sábado, 30 de janeiro de 2010

É hora de rebatucar o Carnaval Baiano

Elitização do carnaval de Salvador. E os Baianos onde ficam?
zedejesusbarreto*
Nem tinha terminado a folia de 2007 e o governo petista recém-empossado prometia um amplo debate sobre os rumos e dimensionamentos do Carnaval de Salvador, tido como a maior festa de rua do planeta. Afinal, são seis dias de fuzarca, com o total fechamento do umbigo da cidade, desde o Centro Histórico até Ondina, na orla atlântica.
- Ufa, enfim entra um governo com coragem e cacife popular para intervir um pouco nessa loucura desenfreada que se tornou o carnaval baiano, tão desigual, tão excludente.
Sonhamos.
O Carnaval 2010 está nas bocas e nada, absolutamente nada há de novo. Nenhum debate, nem uma proposta nova, nada!
A indústria dos grandes trios/blocos/estrelas manda na folia, faz o que é do seu interesse. Os camarotes são cada ano mais numerosos e chiques, para alguns. O povão corre atrás para conseguir liberar uma guia, pagando caro, e trabalhar no sufoco, no apertucho, fugindo da cana, dos ladrões, dos fiscais e dos ‘malucos’ na tentativa de ganhar o pão dormindo na rua. As agremiações populares vivem esmolando ‘apoios’ pra sair na avenida … Ué, ‘tudo como dantes no quartel de Abrantes’, como diz o outro.
A velha Salvador já está emparedada.
Não existe mais decoração de carnaval nas ruas da cidade. Também não é mais possível ver as belezuras de sua história, mesmo com os hotéis cheios de turistas: o casario do Pelô, algumas igrejas com suas torres majestosas, praças, monumentos, praias, Farol da Barra, Cristo… nada! Tudo tapumado.
Montagem de camarotes em frente ao Clube Espanhol
As chamadas estruturas do carnaval já ocuparam os espaços, tapam a visão, pois o importante é proteger o verde com placas de compensados imundos, os mesmos do ano que passou, fincar ferros, plantar palcos, camarotes, postos de saúde e segurança ao longo do percurso, espaço para a mídia, os chiques… e corredores da morte para o povão espremido nas calçadas esburacadas, obstruídas… até os meados de março, abril… quando acontece a desmontagem. Vale a pena isso?
Cria-se uma estrutura portátil urbana horrorosa, agressiva, estúpida, dentro da cidade.
Fecham-se ruas, bairros inteiros. E os moradores que se lenhem, se piquem, caso não suportem o sufoco, o confinamento, a barulheira, a invasão de hordas de bárbaros, ou foliões, depende do ponto de vista.
É justo? Justificável… para que meia dúzia encham as burras de dinheiro?
E não me venham com esse papo de ‘herança maldita’.
Não foi o ‘carlismo’ que inventou o axé, o pagode, a indústria dos grandes blocos, os camarotes, a segregação, os ‘cordeiros’, o fogareiro de queijo coalho, o isopor na cabeça, a catação de latinhas, o abadá de mil reais, o venha cá, os privilégios …
Bem como também não foi o tal ‘carlismo’ que inventou o Trio Elétrico (60 anos de Trio), os caretas, as mortalhas, os blocos Afro, a Mudança do Garcia, a diversidade, a tecnologia do som e das transmissões ao vivo para o mundo…
Tudo isso é parte da evolução, da dialética cultural e histórica do povo, das novas descobertas, da expansão do turismo, das leis do mercado, da ação dos ‘negociantes’, da omissão ou adesão dos poderosos de plantão… As mudanças sociais são mais complexas do que imaginam as mentes dos militantes da política eleitoreira.
"A Bahia vai bem’? ‘E a Bahia de Todos nós’? Quem está no andor?
O modelito do carnaval baiano explodiu, saturou-se. Fazemos o carnaval hoje como se fossem os anos 70, 80.
Só que os trios de hoje são monstros que não cabem mais nos corredores da avenida Sete. Imensos, não conseguem mais subir a Praça Castro Alves, não têm como fazer as manobras em esquinas do século XVIII e XIX.
O casario antigo, bem como estruturas como as do Farol da Barra e alguns prédios, lá e cá, já não suportam os cento e tantos decibéis de barulho; tremem, racham. Nossos surrados ouvidos e caixa de ressonância cerebral também.
O carnaval de Salvador dos anos dois mil são vários carnavais.
O circuito mais antigo, do Pelô, continua familiar. Apesar dos tambores que parecem querer derrubar os casarões coloniais, os palanques ocultando suas belas fachadas.
Um absurdo.
É necessário controle, fiscalização, ordenamento, proibições para que o espaço continue das crianças, dos mais velhos, dos que gostam de máscaras, fantasias, bom papo, encontros, menos agonia, mais contemplação. O Centro Histórico exige isso.
O circuito Campo Grande-Praça Castro Alves-Carlos Gomes devia ser apenas para os foliões-pipoca, os blocos afro, os afoxés, as batucadas de rua, a Mudança do Garcia, a brincadeira, a molecagem sadia, os caretas, as fantasias, as bandas alternativas, o samba-de-roda, as manifestações folclóricas, os grupos do Interior, a capoeira, os protestos, a liberdade de brincar, de criar, sem horários, sem tempo, o tempo todo, o espaço livre do povo…
Carros de som, só os pequenos, minitrios, fobicas, corsos, batuqueiros…
A avenida do povão. Que tal?
O circuito Barra-Ondina, espaço ganho na tora pelos grandes trios, é o circuito dos grandes blocos e entidades, dos camarotes… dos mais abastados que chegam até de helicóptero e bebem champã, comem caviar, pagam por boates privadas com som tecno-pop, se esbaldam e se exibem distante do bodum da massa…
É outro mundo!
Lá embaixo o povão se esmigalha para ver o artista global. E, nos supertrios, as estrelas cantam e dançam para as câmaras de tevê e para os sites e blogs dos sete cantos do planeta, vendendo o peixe caro, um luxo só. Beautiful!
É isso que querem, tudo bem.
Mas, pergunto: Logo nos bairros que são morada de milhares de famílias, muitas delas avessas à folia, incomodadas, sitiadas, expulsas de suas casas e apartamentos? Por quê?
Já passou da hora de se criar um espaço próprio para o desfile dos grandes trios e blocos e os correspondentes camarotes dos endinheirados.
Uma carnavalódromo, já! Não falta espaço, né, João?
Vamos conversar? Mas cadê a coragem, diante das urnas, de olho nos votos?
Cobro, insisto na discussão do tema. O interesse público (da maioria) acima dos olhos gananciosos de sempre.
Não se trata de travar a evolução das coisas, mas de apontar saídas, antes que tudo exploda, acabe, por falta de espaço, imaginação, por saturação, mesmice, atraso.
Recife, Olinda, o próprio Rio de Janeiro estão buscando alternativas, renovando, reabrindo espaços para as manifestações populares espontâneas e livres.
Cito, com a licença e toda reverência ao autor, o mestre da Confraria dos Saberes Waltinho Queiroz Jr., em recente artigo num jornal local:
“…reponha a grama do Farol! Não é justo que, em nome da festa, palanques, camarotes, edificações da qualquer natureza danifiquem os espaços públicos!”
E , mais adiante: “…É imperioso incentivar as bandas e orquestras com seus sonoros metais em Salvador, no justo momento em que renascem vigorosas no Carnaval carioca e continuam brilhando em Recife”.
Nunca é demais lembrar que foi uma banda dos Vassourinhas de Pernambuco, nas ruas de Salvador antes do carnaval de 1950, que motivou os fantásticos músicos e criadores Dodô e Osmar a inventar o Trio Elétrico.
Termino ainda com uma sugesta da melhor, do grande Waltinho Queiroz, para ser adotada já, quem sabe neste carnaval 2010 que se aproxima. O povo acata e realiza:
“…Pleiteio há quatro anos um poético espaço alternativo (para o carnaval). Um oásis acústico no Rio Vermelho, bairro de notória vocação boêmia, para manter acesa a chama dos eternos carnavais, e o Para o Ano Sai Milhó viria conosco! Espaço inovador e de alto astral, onde foliões de todas as idades possam brincar em paz!’…
Enfim, o Rio Vermelho seria um ponto de encontro, de relax, de reposição de energias, de escape, de namoro. Sem trios, sem som às alturas, num outro ritmo, um lugar para se dar as mãos, olhar o mar, comer um acarajé… Dar um tempo pro bem querer.
*zedejesusbarreto, jornalista e escrevinhador baiano. Artigo originalmente publicado no Blob Jeito Baiano(26jan/2010)

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