domingo, 27 de janeiro de 2013

Se Roma fosse Salvador, pane e circo ou “Arena do nariz vermelho”

Gil Vicente Tavares*
Se Roma fosse Salvador – e comparação melhor não há, visto que a segunda é comumente chamada Roma Negra –, Roma não seria mais Roma. Com certeza, interesses políticos aliados ao interesse de empresários – nossos coronéis urbanos – já teriam comprovado que a estrutura do Coliseu estava comprometida, e teriam derrubado um dos pontos turísticos mais importantes e significativos do mundo para construir viadutos ou um parque para a população, com algumas poucas lojas, que depois seriam diversas lojas sem parque, para depois virar ruínas.
Se Roma fosse Salvador, todas as termas da cidade teriam sido derrubadas para a construção de arranha-céus, pois as ruínas estavam juntando muitos drogados, seriam espaços violentos, degradados e sujos, teríamos construções históricas criticadas por sua decadência, justamente pelo poder público que deveria cuidar delas, e estes seriam argumentos para derrubar tudo; com o apoio dos novos ricos e ignorantes que, em Roma, não mandam, mas, aqui, são chamados de opinião pública.
Se Roma fosse Salvador, aquele imenso vazio abaixo das ruínas do antigo palácio de Nero, onde eram praticadas atividades esportivas das mais diversas no auge do império romano, ao invés de, simbolicamente – como eu senti quando estive lá – representar o vazio que se tornou o declínio e decadência daquela cultura, ao invés de ser um pequeno vale livre de estruturas concretas, um “antimirante” das ruínas, um grande vão de terra, verde e vento, seria rapidamente considerado um espaço subutilizado, e, num instante, um grande shopping center seria construído. 
Se Roma fosse Salvador, muitos apoiariam esses projetos, raciocinando que, com a cidade degradada, abandonada, seus sítios históricos depredados e em ruínas, comprometidos e condenados, demolições e novas construções revitalizariam a cidade, trariam mais cultura, mais opções e resolveriam boa parte de nossos problemas. O raciocínio de muitos não seria razoável o suficiente para perceber que a degradação e abandono de sítios históricos de uma cidade são de responsabilidade do poder público. Que, se estamos em ruínas, condenados e comprometidos, foi por falta de cuidado, dedicação, empenho e competência dos poderes públicos. 
A Europa nos dá lições de como resolver o problema de suas capitais históricas o tempo inteiro. Grandes cidades mantiveram-se preservadas e sem problema de moradia, mobilidade urbana, sítios históricos, lazer e cultura, porque houve um planejamento urbano pensado de forma lúcida que conseguiu fazer um diálogo construtivo entre passado, presente e futuro. 
Se Roma fosse Salvador, várias conjecturas poderiam ser feitas para além de seu urbanismo e sítios históricos. Poderíamos pensar um gestor público da área da cultura que achasse que Antonioni, Visconti, De Sica, Fellini e Scola eram privilegiados e que era preciso dar espaço para os outros. Assim, ele fecharia as portas para os estabelecidos, e outros assumiriam a cena, sem saber direito como fazer, sem referências, felizes pela oportunidade, enquanto o cinema italiano ia acabando. 
Roma, sendo Salvador, teria muitos outros problemas, mas Roma não é Salvador. A começar pela ideia, aqui, de uma arena para cinco mil pessoas construída na faixa verde, na falha que distingue a cidade alta da cidade baixa. A construção não é um teste que, não dando certo, pode-se reverter, retirando essa intrusão do Centro Histórico de Salvador. Somos uma cidade que derruba a Igreja da Sé, o Teatro Politeama, deixamos o Cine-Teatro Jandaia e o Pax depredados, viramos às costas ao incêndio do belo e histórico Teatro São João – perdendo assim um teatro de referência histórica, simbólico, que bem poderia ser nosso Teatro Municipal –, porque, sim, somos uma capital sem Teatro Municipal, com uma Praça da Sé (diga-se de passagem, transfigurada de forma horrível) sem Igreja da Sé. 
Enquanto muitos festejam o novo como forma de resolver o degradado, Salvador vai desfigurando-se. Desordenadamente. Não é um plano urbanístico para embelezar, resolver problemas de base da nossa cidade. Não. São intervenções que vão tirando nossa alma. Se juntarmos todo nosso conjunto arquitetônico abandonado e degradado, temos espaço suficiente para que teatros, casas de xous, centros comerciais, restaurantes e bares, lojas de artesanato – é uma vergonha ver um material da qualidade do que é vendido na Barroquinha relegado a segundo plano, enquanto soteropolitanos vão comprar sandálias e bolsas nordeste afora –, muito poderia ser feito com o que já temos, mantendo a beleza que nos diferencia, preservando a arquitetura que nos destaca, revitalizando a história que nos torna uma cidade especial; primeira capital do Brasil, igrejas, fortes, prédios, tudo isso misturado à cultura indígena, à cultura de origem africana e árabe, dando à cidade uma característica ímpar e sedutora. 
Nos quatorze minutos de bombardeio sobre Dresden, os aliados quiseram destruir não só bases militares e abrigos, eles queriam derrubar a cultura, o simbólico que toca mais fundo na alma de um povo. Soltaram uma bomba na belíssima catedral da cidade. Passada a guerra, os alemães a reconstruíram. Sabiam de seu valor, de sua importância. 
A Alemanha, inclusive, é um belo exemplo do diálogo entre o antigo e o moderno. Basta ver Berlim. Do que sobrou dos bombardeios, muito foi recuperado, muito conservado, restaurado, e nos espaços vazios, destruídos e ampliados, construções modernas, arrojadas, quase sempre de muito bom gosto, foram feitas. Hoje, é uma capital de uma riqueza cultural fantástica, mobilidade urbana ótima, mas Salvador não é germânica, eu sei (antes que me digam algo sobre isso). 
Eis o grande xis da questão! Salvador não é Berlim, Salvador não é Roma, mas Salvador também não é Dubai, reinventada e recriada, não é Brasília, surgida no meio do nada, sem raízes, sem história. Não precisamos crescer, inventar, construir. Precisamos, isso sim, parar de crescer, parar de inventar moda, construir prédios e prédios. Como já escrevi certa feita, os centros históricos são sempre lugares ambicionados para moradia, cultura e entretenimento. São o foco da cidade, são a convergência da cidade para o convívio, o passeio, espetáculos, artesanato, restaurantes sofisticados, padarias tradicionais, bancas de revista e museus. Os shoppings, em Salvador, são casamatas. Enquanto implodem, desfiguram e atolam a cidade antiga, ficamos protegidos da violência que não se resolve, da falta de árvores e brisa que não se resolve, da falta de mobilidade: que deveria ser menos carro, menos ônibus, mais calçadões, bicicletas e bondes elétricos, menos poluentes, barulhentos, e esteticamente mais belos. Muito dinheiro está vindo e virá para a Copa do Mundo da FIFA. Salvador é estratégica. Ainda. Por enquanto. Já perdemos turistas para outras cidades do nordeste que, em termos culturais, históricos e naturais, não chegam a ter o porte daqui. Contudo, têm estrutura, têm gestão inteligente do turismo, têm uma orla, meu deus, uma orla marítima! Estamos em franca decadência. Quando algo está decadente, fazemos o que? Restauramos, revitalizamos, ou derrubamos, abafamos, escondemos a degradação com outras alternativas? Pensem bem. A intervenção de uma arena no entorno da Praça Castro Alves mudará tudo, será um elefante branco a estacionar para sempre na imagem da nossa cidade, na estrutura do nosso centro histórico, na mobilidade do local: que será uma loucura de cinco mil pessoas, ou o ostracismo de mais um espaço criado e subaproveitado. Há o argumento que a arena será para espetáculos de dança, de teatro e óperas. Quantas óperas são produzidas por ano em Salvador? Quantos espetáculos de dança e teatro existem para preencher os quase cem dias que compreendem os finais de semana da cidade? Será que numa cidade que viveu e morre da festa precisamos de mais ações para multidões? 
Fala-se em inclusão cultural, em dar um espaço para o povo sofrido, por outro lado, o que me soa esquizofrênico, pois o problema é que “neguinho não lê, neguinho não vê, não crê, pra quê, neguinho nem quer saber”, como diria Caetano. Inclusão cultural é inserir o soteropolitano na realidade artística diversa que pulula na cidade. E diversidade não pressupõe uma arena para cinco mil, mas cinco mil espaços de espetáculos, museus e opções artísticas, culturais e de lazer. 
Um dos antídotos para nossa barbárie é o silêncio, a contemplação e a atenção no detalhe, no sutil, na filigrana que, numa arena dessas, será inviável (e me dá urticárias ouvir argumentos que pensem numa boa gestão, em Hermeto, Gismonti, Filarmônica de Berlim e Bale Bolshoi para 5 mil, até porque o grande evento modifica pouco, são as ações diárias, regulares, insistentes e recorrentes que vão formatando o cidadão; o crescimento cultural é como um ensaio, requer repetição, dedicação, insistência e intimidade). 
Salvador precisa de menos festa e mais poesia, menos barulho e mais atenção na palavra, menos zoada e mais delicadeza nas entrelinhas. Há uma reforma a ser feita no Teatro Castro Alves. Teremos um sala de concerto para umas 700, 800 pessoas, para além da Sala do Coro, para 200 pessoas, do palco principal, que comporta 1.500, e a Concha Acústica; 3.500. São três equipamentos do estado que suprem necessidades diferentes e estão aí para ser usados. 
Precisamos de mais centros culturais, privados (cadê o CCBB, um Espaço Oi Futuro, um Santander Cultural?) e públicos, com galerias, teatros, cafés, bibliotecas e livrarias invadindo o centro da cidade. Usamos nossas ruas, praças e estabelecimentos a céu aberto apenas como passagem, não como lugar a se ficar, se aproveitar e se curtir em seus diversos meios. 
Dentro de minha limitada experiência, nunca vi o entorno da Concha Acústica do TCA ser beneficiado pelo público que vai aos espetáculos de lá. O entorno só é prejudicado com sujeira e engarrafamento. Assim são os espaços para grandes espetáculos na cidade. A pessoa vai com o objetivo de ver o xou, depois vai embora e pronto. É como um jogo de futebol. A Praça Dois de Julho deveria ter mais vida em seu entorno, para ser mais frequentada, manter mais tempo o cidadão nos arredores. 
Deveríamos valorizar os equipamentos culturais da nossa pequena broadway, deveríamos revitalizar os belíssimos prédios antigos, praças menores do entorno, criar cinturões culturais de convivência na cidade para termos opções de fim de tarde. O centro precisa de pessoas circulando e tendo onde circular, consumindo e tendo o que consumir, vivendo e tendo o que viver. Eu não quero precisar ir para uma das dezenas de casamatas que se constroem na cidade para comprar livros, ver filmes, beber e comer. 
Eu quero poder andar pelo centro da cidade meio-dia e meia-noite, com segurança, iluminação, mobilidade e opções. Precisamos de grandes casas de espetáculo? Sim, precisamos. O Aeroclube – já dizia Ildázio Júnior – poderia ser um espaço com diversas casas de xou. O Wet’n Wild poderia ser finalmente reformulado de forma técnica e estrutural. Temos o parque de exposições, a concha acústica do Costa Azul, os galpões do Comércio... Ali, sim, precisaria uma intervenção moderna e significativa, para além dos belos casarões que deveriam ser recuperados como centros culturais e espaços de lazer e entretenimento, criando-se, assim, uma malha cultural urbana que enriqueceria ainda mais toda a região. Imaginem aqueles casarões perto da Ladeira da Conceição, todos recuperados, com teatros, escolas de arte e artesanato, cafés, livrarias, restaurantes? Não entendo como eu, um simples e ignorante morador da cidade, tenho tantas ideias sobre intervenções pontuais para melhorar o nosso turismo, e nada de efetivo é feito pelos nossos bens culturais (ainda escreverei essas minhas ideias, mesmo tolas, ingênuas e inúteis). 
De uma coisa eu tenho certeza: não será com a construção de uma arena para cinco mil pessoas que qualquer dessas questões será resolvida. 25 milhões seriam bastante úteis para revitalizar, recuperar e dinamizar a Praça Castro Alves e seu entorno. Isso traria turismo. Isso traria a população para a praça, que, assim, seria realmente do povo; vivendo o local. Tenho certeza que há como melhorar um dos mais belos e inusitados centros históricos do planeta sem que nenhuma invencionice precise ser empurrada para a região. Menos circenses, mais panis et poesis.
* Dramaturgo e diretor de teatro

sexta-feira, 25 de janeiro de 2013

Moldando o futuro do transporte urbano


Hoje, mais da metade da população mundial vive em cidades. Em 2030, o número estará perto de 65 por cento e crescendo. O mais rápido crescimento urbano está ocorrendo em países em desenvolvimento, onde as cidades estão se esforçando para fornecer os serviços e a infra-estrutura de transporte que seus moradores precisam e, ao mesmo tempo, se preparar para um futuro influenciado pelas alterações climáticas. As escolhas que os líderes das cidade fazem hoje, especialmente no transporte, irão afetar os padrões de desenvolvimento urbano para as próximas décadas. 
Em 18 de janeiro, o presidente do Banco Mundial Jim Yong Kim e o prefeito de Nova York Michael Bloomberg participaram de painel, transmitido pela internet, sobre como moldar o futuro do transporte urbano. A sessão foi parte da conferência anual Transforming Transportation, organizada pelo Banco Mundial e EMBARQ. 
Tomadores de decisão e especialistas de transportes de todo o mundo discutiram o futuro do transporte sustentável.
Moderadora: Beddoes Zanny Minton, Editor de Economia para o The Economist 
Palestrantes: Michael R. Bloomberg, prefeito de Nova York, Jim Yong Kim, Presidente do Grupo Banco Mundial

quinta-feira, 24 de janeiro de 2013

Uma lógica esmagadora

Claudio Marques*

A divulgação dos estudos preliminares de um projeto que prevê a construção de uma Arena para shows com capacidade para 5 mil pessoas na Praça Castro Alves, por parte da Secretaria de Turismo da Bahia, provocou imediata reação de artistas e agentes culturais da cidade. O assunto passou a ser amplamente discutido nas redes sociais e uma petição pública on-line contra o projeto foi criada: http://www.peticaopublica.com.br/?pi=P2013N34603. Em pouco mais de 48 horas, 1.500 assinaturas foram coletadas.
Nem se discute, aqui, o esboço do projeto em termos estéticos. Aparentemente terrível, mas apenas um esboço. A questão é do conceito em si, ou de sua ausência.
Se criada ao custo de R$ 25 milhões, a Arena, em pleno funcionamento, inviabilizará os demais equipamentos culturais da região. Milhares de pessoas travarão o trânsito, não haverá espaço para estacionar. As paredes do cinema, como em todo show já existente na Praça Castro Alves, se transformarão em mictório a céu aberto. 
O cidadão que quiser ir ao Espaço Cultural da Caixa Econômica ou ao Espaço Cultural da Barroquinha, dificilmente terá sucesso. O Espaço Itaú de Cinema – Glauber Rocha, que possui um dos melhores sistemas de som e projeção do país, e que resiste quase que solitariamente há quatro anos na Praça Castro Alves, ficará às moscas justamente aos sábados e domingos, dias em que possui maior movimento. 

A SETUR afirma que a Arena irá comportar peças de teatro, também. Por qual motivo será criado um novo equipamento se já temos tantos na cidade que carecem de cuidado e manutenção? Na Praça Castro Alves, por exemplo, existe o Teatro Gregório de Mattos, que está fechado há quatro anos. O Espaço Cultural da Barroquinha, restaurado, permanece com atividades mínimas. Os dois espaços devem encontrar nova vida agora, com a gestão de Fernando Guerreiro na Fundação Gregório de Mattos, que luta para conseguir verba para colocar os dois equipamentos em funcionamento.
Já existem espaços suficientes para shows na cidade. Gastou-se um bilhão de reais na construção da Arena da Fonte Nova. Um dos argumentos para se empreender tanto dinheiro nesse projeto sempre foi que se trata de uma Arena Multiuso e que lá os mais diversos shows terão lugar.
Nas proximidades da Praça Castro Alves, existe a Concha Acústica, o Museu do Ritmo, as praças Thereza Batista e Pedro Arcanjo, o Trapiche Barnabé, o futuro palco articulado do Pelourinho..... shows, shows, shows!!!!
A lógica das festas em Salvador é onipresente e esmagadora. Estamos perigosamente reduzidos a uma fórmula que já está escancaradamente desgastada. Parece que não podemos fazer outra coisa, desenvolver outras atividades, formar novos públicos e isso nos levará à morte, culturalmente.
Temos que continuar lutando pela diversidade artística na cidade, inclusive musical. Precisamos fugir da lógica das massas. Tudo é alto, barulhento e pensado para multidões.
O Centro Histórico é um lugar precioso, um dos mais belos de todo o mundo. É necessário criar condições para moradias, para pessoas que irão zelar por aqueles espaços cotidianamente. Deve-se priorizar empreendimentos culturais de pequeno e médio portes. É improvável que alguém tenha o desejo de morar ao lado de uma Arena para shows. Mas, é fácil crer que alguém queira morar ao lado de um cinema, dois teatros, dois centros culturais e um museu.
A bagunça em que está imersa a Praça Castro Alves, hoje, afugenta empresários e artistas. Muitos sonham, mas quase todos temem a falta de ordenamento na região.
A Praça e seu entorno precisam, urgentemente, de uma revitalização. Mas, necessitam de coisas mais simples que uma Arena. A fiação elétrica do entorno precisa ser modernizada. As pedras portuguesas devem ser mantidas, mas renovadas. A população precisa de bancos e árvores, pois a praça está árida, inóspita. Precisamos de espaços para bicicletas e mais linhas de ônibus.
A população de Salvador tem o direito a desfrutar desse mirante natural, onde é possível ver o pôr-do-sol e da lua na Baía de Todos os Santos, durante o ano inteiro.
Com tanto casarão em ruínas, vamos gastar R$ 25 milhões para construir uma Arena para shows? Quando vamos começar a cuidar do que já existe?
*Cinesta e sócio-diretor do Espaço Itau de Cinema - Glauber Rocha
** Artigo originalmente publicado no jornal A Tarde - Opinião - 24/01/2013

quarta-feira, 23 de janeiro de 2013

Theodoro Sampaio. Um aprendiz, um mestre e muitas lições

A trajetória única de um engenheiro negro que mostrou o sertão do Brasil aos brasileiros e deixou seu nome em importantes ruas de São Paulo e Salvador
Theodoro Sampaio (foto) é um personagem que habita o imaginário urbano e rural por causa da divulgação involuntária do seu nome. Sua popularidade vem da importância dos lugares e das ruas que ostentam o seu nome, principalmente a paulistana, localizada no bairro de Pinheiros, zona oeste da capital. Seu nome batiza ainda uma rua em Salvador, em que atuou por 18 anos.
Nome e sobrenome foram separados e assim se autodenominou uma dupla sertaneja do Paraná, “Teodoro & Sampaio”, levando adiante o nome das ruas aos programas de auditório da televisão e às paradas de sucesso, ganhando os rincões pelas antenas parabólicas e ondas do rádio Brasil afora.
Mas afinal, quem foi Theodoro Sampaio? O que fez esse engenheiro para que seja lembrado em São Paulo, justo ali, no Pontal do Paranapanema, lugar do qual só se fala quando os conflitos pela terra viram caso de polícia? Ou então, por que seu nome denomina logradouros em Salvador ou escolas como a de Santo Amaro, aquela cidade do Recôncavo Baiano que só vemos ou ouvimos falar nos dias de carnaval, por causa da associação com celebridades baianas e roteiros turísticos?

A admiração e o interesse pelo personagem são ressaltados quando se chega ao ponto mais intrigante da sua história de vida: ele era negro, filho de uma escrava, sem pai declarado, e se formou como engenheiro civil pela Escola Politécnica do Rio de Janeiro 12 anos antes da abolição da escravatura.

E ficamos mais interessados ainda quando sabemos que o jovem engenheiro negro, por dominar as línguas estrangeiras, logo no primeiro emprego integrou uma comissão de alto nível, formada por experientes engenheiros americanos para avaliar os principais portos marítimos e percorrer o rio São Francisco em toda sua extensão navegável, projetando as melhorias necessárias para implantar a navegação fluvial de longo alcance.

O espanto e a admiração ampliam-se quando sabemos que, além de engenheiro civil, experiente em obras para a navegação fluvial, engenharia ferroviária, cartografia e infraestrutura urbana (água e esgoto), Sampaio foi urbanista e também autor de trabalhos fundamentais para a geografia, a geologia, a etnologia, a arqueologia, a linguística, a ecologia e a história do Brasil, especialmente as de São Paulo e da Bahia.
No entanto, mesmo diante de tamanha capacidade e versatilidade, vem à tona a decepção quando se sabe que, “apesar” de negro, filho de uma escrava e que comprou a alforria dos irmãos, Theodoro Sampaio nutria respeito e admiração pela monarquia, assim como pelo dono do engenho no qual nascera.
Fica-se ainda mais perplexo quando se sabe que Theodoro Sampaio poucas vezes relatou ter sofrido preconceito de cor e prejuízos advindos de sua condição mestiça. Afinal, estamos tão acostumados a associar os negros à condição de subalternos, de injustiçados e desprezados, que imediatamente os associamos à resistência cultural e à militância política e, tratando-se da virada do século 19, ao advento da República e às aguerridas discussões daquela época. Jamais imaginamos que um negro, sofrendo o que deve ter sofrido numa sociedade escravocrata para trabalhar e estudar, pudesse ainda defender a Monarquia. Ao contrário de seus contemporâneos abolicionistas, como José Patrocínio, no Rio de Janeiro, Manoel Querino, em Salvador, Astolfo Marques, em São Luís, Luis Gama, em São Paulo, todos de ascendência negra e encarniçados militantes republicanos, Theodoro Sampaio era monarquista.
O interesse pela trajetória desse intrigante personagem da engenharia, da geografia e da historiografia brasileira aponta para um caso muito particular entre os intelectuais e profissionais que atuaram na virada do século 19. 
Um negro na Escola Politécnica
Theodoro Sampaio nasceu em 7 de janeiro de 1855, no Engenho Canabrava, antigo bairro Bom Jardim, atualmente cidade de Teodoro Sampaio, no Recôncavo Baiano. Na época, o lugar pertencia a Santo Amaro da Purificação. Há dúvidas sobre sua paternidade: pode ter sido o Visconde de Aramaré, Antônio da Costa Pinto, dono do Engenho Canabrava, seu irmão Francisco Costa Pinto, ou o padre do engenho, capelão Manoel Fernandes Sampaio, que deu a ele o seu sobrenome. Com 4 anos de idade, ele foi tirado da mãe, uma escrava doméstica do visconde, e levado à cidade de Santo Amaro.
Com 10 anos, Sampaio foi para o Rio de Janeiro com o padre Manoel e foi interno no Colégio São Salvador, um dos melhores de sua época. Em 1872, foi admitido na Escola Central, transformada em Escola Politécnica em 1874. Formou-se em engenharia civil em 1876, mas iniciou sua vida profissional como professor e, depois, como desenhista no Museu Nacional, quando ainda era estudante, em 1875. Cabia a ele desenhar as peças do acervo para serem publicadas na Revista do Museu Nacional, cujo editor era o diretor do museu, Ladislau Neto. Na ocasião, conheceu o americano Orville Derby, considerado, atualmente, o “pai da geologia no Brasil”, que participava da equipe do museu como responsável pela organização do acervo gerado pelas expedições em que acompanhara seu mestre, Charles Frederick Hartt, chefe da extinta Comissão Geológica do Império.
As cadernetas de campo
A trajetória de Theodoro Sampaio pode ser dividida em três etapas, coincidindo com momentos decisivos para a consolidação política, social e econômica do Brasil contemporâneo. Atuando profissionalmente por, aproximadamente, 60 anos, de 1877 a 1937, o engenheiro vivenciou os últimos 13 anos do Império e toda a Primeira República. Assistiu à subida de Getúlio Vargas ao poder, em 1930, e morreu um ano antes da instituição do Estado Novo. 
Cada uma das etapas de sua carreira coincide com uma cidade ou estado (na época ainda chamado de província) em que atuou. A primeira etapa compreende oito anos (1878 a 1886), marcada pelo trabalho no sertão baiano, como integrante de comissões técnicas para construir ferrovias e estabelecer a navegação no rio São Francisco. Ele era engenheiro do Ministério dos Negócios da Agricultura, Comércio e Obras Públicas e nessa condição integrou, de 1878 a 1880, a Comissão Hidráulica do Império. Foi como membro dessa comissão que publicou as primeiras cartografias e artigos técnicos sobre navegação e geologia.
O que se destaca desse período é o revelador conjunto de cadernetas de campo que produziu. Seus desenhos e anotações possibilitaram a publicação do livro O Rio São Francisco e a Chapada Diamantina, que se tornaria uma das suas obras mais conhecidas, publicada parcialmente desde 1902 na Revista Santa Cruz, reunida em livro em 1905 e reeditada, posteriormente, em 1938, 1998 e 2002. Theodoro Sampaio aproveitou as anotações de seus diários, suprimindo as informações excessivamente técnicas. Dessa forma, além de descrever a paisagem e os aspectos socioculturais de uma vasta região isolada, os sertões, da zona central do país, Sampaio conta a aventura de um jovem engenheiro de 25 anos, que, em seu primeiro trabalho, busca compreender a realidade que pretende transformar por meio de projetos e obras.
As cadernetas de campo utilizadas para documentar a viagem de mais de seis meses revelam o exímio desenhista de observação e permitem entrever o repertório erudito que orientou sua formacão. A Comissão Hidráulica percorreu cerca de 2 mil quilômetros navegáveis do rio Sao Francisco, e Sampaio ainda atravessou a cavalo, de um extremo ao outro, a província da Bahia, percorrendo a Chapada Diamantina e reencontrando o restante da comissão em Salvador.
O trabalho de campo
Em decorrência da vivência anterior no ambiente acadêmico e museológico do Museu Nacional e do contato com Orville Derby, Sampaio incorporou o olhar que denominamos “antropológico”, ampliando o arco de disciplinas que já integravam a sua formação e suas atividades profissionais. Ele também agregaria o desenho de observação e o diário de viagem de um modo muito particular ao trabalho de engenheiro, documentando a vegetação e os elementos de interesses geomorfológicos, geológicos, arqueológicos e, especialmente, os aspectos sociais que observava. É notável sua sensibilidade para observar de um modo crítico e abrangente o que atualmente denominamos como fatores antrópicos, contemplando os impactos, mas, também, a sabedoria centenária que resulta do embate do sertanejo com as asperezas do meio, expressa no saber fazer da população ribeirinha.
Um encontro entre engenheiros ilustres
De 1882 a 1883, Theodoro Sampaio atuou na construção do prolongamento da Estrada de Ferro da Bahia ao São Francisco, que ligaria Juazeiro, na margem baiana do rio São Francisco, a Salvador. Publicou, na ocasião, o segundo artigo, seguido de um mapa, sobre a geologia da região servida pela ferrovia em construção.
Ele jamais poderia imaginar, à época, que, mais de uma década depois, esse trabalho o aproximaria de um jovem engenheiro da Escola Militar, bigodudo, magro e inquieto, que o procurara logo que soube de seu trabalho pioneiro de mapeamento do sertão baiano. Foi a possibilidade de fazer a cobertura jornalística da Guerra de Canudos para o jornal O Estado de São Paulo que fez com que Euclides da Cunha procurasse o engenheiro, em função das informações que este possuía sobre a região do conflito, atravessada pela ferrovia que ajudara a construir.
O mapeamento foi passado para o futuro autor de Os Sertões e seria utilizado pelo próprio Exército, que não dispunha de informações tão detalhadas sobre o palco da guerra. Sampaio relatou o fato numa homenagem que fez ao escritor Euclides da Cunha. Contou, na ocasião, que o recebia aos domingos para ouvir a leitura das primeiras versões da obra. Há, inclusive, relatos de contemporâneos de ambos, afirmando que até o nome da obra, Os Sertões, teve a participacão de Theodoro Sampaio, que o aconselhara pela economia e capacidade de síntese ali contido – e foi o título que permaneceu.
De 1883 a 1886, Theodoro Sampaio integraria a Comissão de Melhoramentos do Rio São Fancisco, que realizou as obras determinadas pela Comissão Hidráulica do Império. Com exceção de um projeto para o porto de Santos, sua atuação nessa fase esteve concentrada nos sertões da Bahia, onde se casou e teve os quatros primeiros filhos, de um total de 11.
Essa experiência nos sertões, envolvendo levantamento de campo, cartografia e engenharia para navegacão fluvial, o credenciou para uma experiência ainda mais exigente. A convite de Orville Derby, o geólogo que conhecera no Museu Nacional no Rio de Janeiro, mudou-se para São Paulo a fim de auxiliá-lo na estruturação dos trabalhos da Comissão Geográfica e Geólogica, a CGG.
A vida antes de virar nome de rua
A segunda etapa de sua trajetória, de 1886 a 1904, corresponde à fase paulista e compreenderia 18 anos de sua vida. Um primeiro momento foi marcado pela consolidação do trabalho da CGG, de 1886 a 1892, envolvendo a concepção de um serviço regular de geografia, cartografia e geologia paulista. A partir de 1890, o saneamento e o planejamento da cidade e do Estado de São Paulo passaram a dominar sua atividade no governo estadual.
Em 1892, Sampaio demitiu-se da Comissão Geográfica e, Geológica e até 1904, atuou nas repartições responsáveis pelo planejamento territorial e urbano, pelo serviço sanitário, responsável pela concepção e aplicacão de uma legislacão específica, além do saneamento, do abastecimento de água e do serviço de coleta de esgoto e vigilância sanitária, da capital e de várias cidades do interior paulista. Sua primeira missão em São Paulo foi descer o rio Parnapanema e iniciar por ali o levantamento cartográfico e geológico do estado inteiro, além de projetar as obras necessárias para ligar o porto de Santos ao Mato Grosso, à bacia do rio Paraná e à bacia do rio da Prata. Ao lado da exploração e levantamento dos rios da então província paulista, sobressai-se dessa primeira etapa da fase paulista o uso pioneiro no Brasil da geodésia (método para o cálculo e representação cartográfica da forma esférica da superfície da Terra), sistema que garantia a exatidão dos mapas topográficos realizados pelo engenheiro.
O primeiro livro publicado de Theodoro Sampaio, O Tupi na Geografia Nacional (1901), foi produzido a partir dos estudos eruditos e do contato no Vale do Paranapanema com os últimos remanescentes dos povos que habitavam originalmente a região. O engenheiro mostra nesse livro sua face de etnógrafo, linguista e geógrafo. Essa obra apresenta uma ótica muito particular para se compreender a importância e o legado da cultura indígena, como a toponímia (palavras aportuguesadas que vieram do tupi). Sampaio, já chefe do Serviço de Água e Esgoto de São Paulo e engenheiro sanitário do estado, participou da construção de vários institutos e laboratórios que deram origem ao complexo hospitalar atualmente conhecido como Hospital das Clínicas, instalado no bairro de Pinheiros, no qual, não por acaso, está localizada a famosa rua Teodoro Sampaio.
De volta à Bahia
A terceira etapa da vida do engenheiro, de 1904 a 1937, corresponderia à fase baiana. Theodoro Sampaio dedicou à Bahia e a Salvador os últimos 33 anos de sua vida. Nesse período aprofundou sua relação com o meio intelectual baiano, mantendo intensa correspondência com estudiosos estrangeiros e brasileiros de vários estados. 
Paralelamente à atuação de caráter cultural e científico, Sampaio foi contratado pela prefeitura de Salvador para projetar e implantar o serviço de abastecimento de água e a coleta do esgoto. Estabeleceu a firma Theodoro Sampaio & Paes Leme, cujo escritório técnico seria, depois, dirigido por seu filho, Fructuoso Theodoro Sampaio (1883-1919), engenheiro formado pela Politécnica de São Paulo em 1910.
Apresentou propostas urbanísticas elaboradas para a modernização e saneamento da capital baiana e, em 1919, projetou a “Cidade da Luz”, atualmente conhecida como Pituba. Tratava-se de um bairro situado na costa oceânica, uma área distante do perímetro urbano da cidade de Salvador, que só foi incorporada à área urbana a partir da década de 1950. No entanto, seu trabalho definiu os padrões urbanísticos que orientaram a expansão urbana para aquela região.
Urbanismo demolidor em Salvador
O projeto de Theodoro Sampaio tem sido reconhecido por sua contemporaneidade e pelas inovações da Cidade da Luz. Encontramos nesse projeto elementos que posteriormente foram integrados ao ideário modernista, como a própria referência à importância da luz, apontando para a questão da salubridade, chave do pensamento sanitarista contemplada pelo urbanismo moderno, principalmente nas propostas do mestre franco-suíço Le Corbusier.
Sampaio adotou um traçado regular pensando na continuidade das vias longitudinais à orla marítima e na fluidez da circulação de automóveis juntamente com as preocupacões estéticas e obras de uso comunitário. Destacam-se no projeto da Cidade da Luz as vias largas com áreas ajardinadas e uma avenida central, com rotatória dotada de um obelisco, articulando o acesso às demais vias. A proposta incluía drenagem, água e esgoto, incineração de lixo, cemitério, capela, um escola, arborização das ruas e um balneário.
Além de projetar e executar a reforma e ampliação do sistema de abastecimento de água e coleta de esgotos de Salvador, de 1905 a 1910, à frente do IGHB, Sampaio participaria dos debates que envolveram o período no qual a cidade foi objeto da ostensiva modernização promovida pelo governador José Joaquim Seabra, nos períodos 1912 a 1916 e 1920 a 1924. Integraram o chamado “urbanismo demolidor“ de Seabra o projeto de modernização do porto (1906-1921), a ampliação do centro comercial na Cidade Baixa e a abertura da avenida Sete de Setembro. 
Eleito deputado federal para a legislatura de 1926 a 1928, integrando a seleta bancada baiana, formada por escritores e intelectuais, Theodoro Sampaio destacou-se nesse período por sua participação na quase demolição da Igreja da Sé, considerado por estudiosos como uma das primeiras mobilizações da sociedade civil pela preservação de um patrimônio cultural.
Otimista diante do desenvolvimento econômico em curso num país de riquezas e dimensões gigantescas, grande parte delas ainda por se conhecer na sua época, Theodoro Sampaio empenhou-se na busca por soluções que viabilizariam o Brasil como nação, tanto no período monarquista como no republicano. E, apesar da declarada preferência pelo Império, participou de forma entusiamada de ambos regimes; porém sempre realista e crítico. E para quem passou sua vida projetando e traçando caminhos, no campo ou na cidade, nada mais natural do que passar à posteridade como nome de rua.
*Doutor em Urbanismo pela USP

terça-feira, 15 de janeiro de 2013

Cidades para pessoas são feitas de "homens lentos"

Adriana Sansão* 

Quando a cidade de Copenhagen, ainda nos anos 60, transformou a área de Strøget (foto) na primeira zona exclusiva para pedestres no mundo, muita gente deve ter se perguntado: mas por onde vão passar todos os carros? E os estacionamentos, onde ficam? Passados mais de 40 anos, essa pergunta, embora para nós ainda pareça tão natural, para eles já é um tema superado. Após notável revolução em seu sistema de mobilidade, Copenhagen prepara-se para concorrer ao título da melhor cidade para ciclistas no mundo. Pois o pioneiro nessas ideias, o arquiteto dinamarquês Jan Gehl, esteve no Rio +20 e falou sobre essa experiência para os cariocas. Gehl é Professor Emérito de Projeto Urbano da Escola de Arquitetura de Copenhagen, e realizou uma conferência no Instituto de Arquitetos do Brasil, dentro das atividades do evento “Cidade Sustentável - expressão do século XXI”. O tema central de seus estudos e projetos é a relação entre o ambiente construído e a qualidade de vida das pessoas que vivem nas cidades.  Preocupado em transformar o meio urbano hostil, dominado pelos automóveis, em lugar para pedestres e ciclistas, ele defende o projeto da “cidade para pessoas”. 

Para um auditório lotado e ansioso, começou sua apresentação afirmando que edifícios sustentáveis - prática arquitetônica emergente tanto em países desenvolvidos como em desenvolvimento – por si só não significam uma cidade sustentável. Para ele, o planejamento urbano deve ter um olhar abrangente, com foco principal na atuação sobre os espaços públicos. Segundo ele, a cidade para pessoas tem como características fundamentais ser animada, atraente, segura, sustentável e saudável. A cidade animada é a que permite o encontro de pessoas no espaço público, sejam elas conhecidas ou não, o que está diretamente ligado à qualidade das calçadas e praças, e aos usos e atividades dos edifícios ligados a elas. Relacionada a esta, a cidade atraente é aquela dotada de uma escala humana, com menos stress, barulho e poluição, onde podemos olhar para outras pessoas, ver e sermos vistos, e onde os carros têm uma fração do espaço dedicado aos pedestres. A cidade para pessoas também deve ser segura, no sentido literal da palavra, onde os pedestres não estejam sujeitos a riscos no uso dos espaços públicos, e também sustentável, onde o desenvolvimento das atividades humanas não cause impactos negativos na sobrevivência do domínio público ao longo do tempo. E, finalmente, a cidade para pessoas é saudável, onde os espaços públicos são convidativos para caminhar e pedalar, e as pessoas são fisicamente ativas. O ser humano pratica na cidade tanto as atividades obrigatórias, que incluem morar, trabalhar, comer; quanto as opcionais, como por exemplo, praticar esportes, passear; e as sociais, como os encontros e festas. Para permitir o pleno desenvolvimento dessas atividades, todas as ações devem ser feitas para convidar as pessoas a caminharem, pedalarem e a serem menos sedentárias, e isso envolve ampliar e qualificar esses percursos “lentos”, e, em ação inversa, reduzir cada vez mais o espaço dos automóveis. Essas ideias, em si, já não são inovadoras. Mas ainda são balizadoras e inspiradoras na busca de melhorias nas nossas cidades. Para que se concretizem, precisam tanto dos técnicos, que vão pensar e executar as melhorias, como da população, mudando de comportamento, reduzindo o uso do automóvel em troca de formas não motorizadas de deslocamento ou de uso do transporte público. A vitória dos “homens lentos” seria também a das cidades para pessoas, em um mundo contemporâneo que ainda coloca a velocidade em um pedestal. 

 *Arquiteta e Urbanista.

quinta-feira, 10 de janeiro de 2013

Angelina Bulcão Nascimento

angelina_nascimentoAngelina Bulcão Nascimento (falecida esta semana no Rio de Janeiro), foi professora do Curso de Psicologia da Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas da UFBA, entre os anos de 1975 e 2003, fez mestrado e doutorado na Faculdade de Comunicação da Universidade Federal da Bahia. Escreveu cinco livros, dentre eles, três publicados pela EDUFBA (Quem tem medo da Geração Shopping: uma abordagem psicossocial; Trajetória da juventude brasileira: dos anos 50 ao final do século; Comida: prazeres, gozos e transgressões). Uma referência acadêmica e de vida, mas também, uma pessoa muito querida e generosa.
Por Vagner Campos
EDUFBA – Fale sobre sua vida: infância, adolescência, família…
ANGELINA – Nasci em Salvador, em 1943, plena guerra. Quando eu tinha um ano e meio, meus pais se mudaram para o Rio de Janeiro em busca de médicos que pudessem diagnosticar problemas de artrite reumatóide de minha mãe, à época uma doença praticamente ignorada. Depois de ouvirem as maiores sumidades, uma delas cometeu a barbeiragem de mandar engessar suas duas pernas, durante quase um ano, de modo que ela ficou paralítica, hoje se diz ‘paraplégica’… Com 28 anos.
Apesar de continuar levando vida normal, cuidando da casa, e da única filha, e formando com meu pai, um casal sempre apaixonado, durante os 49 anos que viveram, eu sofri os respingos. Fui muito controlada, tive uma educação rigorosa, estudava em semi–internato (colégio de freiras), o Colégio Sion. Lá estudei 12 anos, de 1950 a 1961, fiz muita bagunça e quase fui expulsa.
Em contrapartida, fiz amizades que conservo até hoje, e os livros me salvaram no meu cotidiano enjaulada. Ficava amiga dos personagens que povoavam meu quarto… Conversava e brincava com eles.
Uma vez, sentada num banco de numa pracinha, com meu pai, comecei a conversar com um velhinho que me escutava com muita atenção. Claro que não lembro o que eu lhe contei, mas não posso esquecer o que ele disse ao meu pai: esta menina vai ser escritora!
Desde criança, fui apresentada a livros, não só por meus pais, que sempre os valorizaram muito, como por uma madrinha possuidora de vasta biblioteca, um padrinho poeta, e o próprio colégio. Uma das minhas professoras de português, um dia, me disse ao elogiar minha redação: menina, você vai ser escritora! Ela, assim, confirmava a profecia do velhinho da praça. Aos nove anos, escrevi e ilustrei meu primeiro livro ‘catando milho’ na máquina de escrever de meu pai. Foi intitulado ‘Férias atrapalhadas com um fim feliz’. Edição de um só exemplar…
Minha adolescência foi típica dos anos dourados. Cinemas em Copacabana, festas todos os sábados, praia no Arpoador, lanches nos primeiros Bob’s, grupos de amigos interessantes. Vi nascer a Bossa Nova, não no apartamento da Nara Leão, mas na casa de uma colega, Anna Maria Portella, que tinha música no sangue. Lá conheci Baden, ainda desconhecido, e outros já famosos ou não, como o maestro Antônio Carlos Jobim que despertava ‘frissons’ com sua beleza madura. Estive na inesquecível ‘Noite do Amor do Sorriso e da Flor’, na Faculdade de Arquitetura, e organizei show no colégio, a exemplo de outros, pois colégios e faculdades foram os primeiros palcos.
As freiras haviam evoluído, João XXIII revolucionava a Igreja, e começamos a participar dos movimentos de Ação Católica: Jec (Juventude estudantil católica) Juc (Juventude universitária católica), e havia também a Juventude operária (JOC) a independente (JIC) e a agrária (JAC). Esses movimentos estimulavam a ação de cristãos se engajarem no momento histórico que era promover as mudanças sociais.
Nossa geração era atenta aos problemas políticos, desde a infância e adolescência.
Ficamos chocadas com o suicídio de Getúlio, acompanhamos cada lance, rádio ligado madrugada adentro, durante o processo de renúncia que culminou tão tragicamente. Participamos, de perto, da famosa greve dos bondes, que parou a cidade, quando os estudantes ainda eram respeitados e os soldados paravam ao vê–los abrir a bandeira nacional. Vivenciei a inauguração de Brasília, dancei valsa com JK, na festa de 15 anos de minha prima, bati papo com Oscar Niemeyer, frequentador dos saraus dominicais da minha tia. E coisas do arco da velha…
Conto tudo isso, e mais teria a contar, porque acho que minha geração ganhou oportunidades ricas. Temos a impressão de que vivemos a História do Brasil por dentro, e não apenas como espectadores.
EDUFBA – Como se deu sua trajetória acadêmica? Quais são os momentos de destaque desta trajetória?
ANGELINA – Em 1962 fiz vestibular para o curso de Jornalismo na PUC do Rio, e para o Instituto de Belas–Artes. Mas no segundo semestre do ano seguinte, meu pai resolveu se mudar para Salvador, com o pretexto de que o Rio estava se tornando um “antro de perdição”. Tinha medo exagerado da propalada liberdade sexual, medo do comunismo, e da filha ter escolhido ser jornalista, profissão que ele considerava perigosa para uma mulher. Acreditava que a Bahia era ainda uma província pacata, namoro em portão, onde as moçoilas bordavam enxovais e faziam footing no Farol da Barra. Mal imaginava que chegamos justamente em época de mudanças radicais na Universidade, cujas alunas, em proporção crescente, nada tinham a ver com as donzelas do imaginário de meu pai.
Aqui eu me transferi para a escola de Belas–Artes como aluna especial, e para a antiga Faculdade de Filosofia no bairro de Nazaré, onde militei, estagiei, me formei e trabalhei e/ou colaborei em todos os jornais baianos.
Eram tempos de pré-reforma universitária. Os estudantes experienciavam as mesmas turmas do princípio ao fim do curso, e todos os cursos se misturavam nas Assembléias quase permanentes, especialmente no Restaurante Universitário, onde até Juscelino foi dialogar. Todos se conheciam pelo nome, e se encontravam nas festas mensais da Residência do Universitário, bailes nas faculdades e até mesmo na missa das 18 horas, em São Bento, onde D. Timóteo e D. Jerônimo pontificavam.
Em 1970, fiz vestibular para o curso de Psicologia, recentemente inaugurado na UFBA. Nesse mesmo ano ganhei uma página no suplemento dominical do falecido Jornal da Bahia. Assinei, durante quase dez anos esta página intitulada ‘Comportamento’, onde, exceto pela censura rigorosa à Imprensa, que se instalou após o golpe de 64, e enrijeceu após o AI–5, eu tinha total liberdade.
Eram tempos que, ninguém melhor do que Chico Buarque descreve em sua composição ‘Rosa dos Ventos’: “na gente deu o hábito de murmurar entre as pregas, de tirar leite das pedras…”
A Reforma Universitária começava a funcionar, as turmas começaram a se esfacelar, e ainda havia um medo enorme. Muitas vezes não sabíamos onde estavam colegas, alguns presos, sumidos, torturados ou mortos.
Em 1974, já formada em bacharel em Psicologia, fui aprovada no concurso do Mestrado da Faculdade de Educação da UFBA.
Tive uma vida paralela ao do meu marido. Ele, apesar de psiquiatra, prestou concurso para professor da Faculdade de Filosofia, vindo a ser meu professor, e anos depois, foi diretor da Escola. Após ter feito comigo a formação em Psicodrama, filiou-se à Escola Brasileira de Psicanálise-Seção da Bahia, assumindo o papel de psicanalista, e assim passamos a seguir caminhos profissionais diferentes.
Após receber o diploma de Psicóloga em 1975, comecei a ensinar no curso de onde acabara de sair, primeiro como professora colaboradora, depois por concurso como professora Auxiliar de Ensino.
Trabalhei um ano na Extensão no J.U., Jornal da Universidade. Gestão de Macedo Costa, sendo Pró-reitor Fernando Perez. Os parceiros eram a jornalista Nadja Miranda, Loreta Valadares, recém chegada do exílio, e Naomar Almeida Filho. Outro trabalho importante foi o Projeto Cansanção, uma mobilização que realizava um trabalho comunitário em pleno sertão baiano, coordenado pela profª. Edileusa Gaudenzi e pelo prof. Antonio Dias.
Fiz formação em Psicodrama da Sociedade Brasileira de Psicodrama e na UFBA trabalhei alguns anos no Instituo de Química, convidada pelo Departamento de Química Orgânica, para coordenar uma experiência em Sociodrama também realizado na Escola de Nutrição. Estudei alguns anos psicanálise, mas não fui totalmente convertida para abrir consultório. Das poucas experiências relacionadas, houve a clinica ‘Comportamento’, da qual fui sócia com meu marido e algumas colegas.  Encerramos as atividades porque descobrimos que era impossível conciliar idealismo com ganha-pão em clínicas psicológicas.
Em 2000 iniciei o doutorado na Escola de Comunicação da UFBA, que culminou em tese defendida em 2004.
Saindo um pouco do contexto da academia, em 1966 casei com Mário Nascimento, estudante de Medicina (psiquiatria) que também militara no M.E., fazendo parte da chapa da UEB sob presidência de Sérgio Gaudenzi.
Passamos um ano no Rio, o ano que dizem que nunca acabou, 1968, onde tive nosso primeiro filho, Octavio, enquanto o pai fazia Mestrado de Saúde Mental na FENSP, situada em Manguinhos, título que o levaria mais tarde a assumir a direção da Divisão de Saúde Mental do Estado. Voltamos em 1969.
Em 1971 tive meu segundo filho, Marcos, que se intitula ‘filósofo andarilho’, enquanto o mais velho optou pela advocacia. Ambos estudaram na UFBA, embora o segundo tenha feito posteriormente graduação e doutorado em Filosofia na USP, e o primeiro, fez Mestrado na PUC-SP, onde atualmente termina o doutorado.
EDUFBA – Quem são as suas referências de vida?
ANGELINA – Não posso deixar de citar meus pais, apesar de não ter sido filha muito obediente nem a mulher prendada que eles gostariam que eu fosse. Mas me deram muito incentivo para a leitura, e o que me negavam em roupas novas e discos de rock, contribuíram para formar minha biblioteca. Tive a grande sorte de conviver com todo o tipo de pessoas, e grande parte delas foi referência.
No Rio, Regina e Francisco Pereira Pinto, minha avó pintora e meio anárquica, meu padrinho poeta casado com ela; minha madrinha Leonor Moniz de Aragão que serviu de personagem para uma das minhas histórias publicadas, por sua cultura e amor aos livros.
Na Bahia, meus tios postiços Filinto Borja e Pedro Seixas, ambos médicos, ainda lembrados; meu tio João Garcês Fróes, um sábio; João Lopes Cunha e Anísio Felix, jornalistas tarimbados que tiveram a carreira prejudicada com o fechamento do Jba; Florisvaldo Mattos, que, felizmente, continua batalhando no Jornalismo (e na Poesia também); Jomar Castro, um visionário criador da Bazarte, de onde saíram pintores e gravadores excepcionais como Tripoli Gaudenzi; Augusto Rodrigues, pintor e gravurista que virou uma lenda; O saudoso cineasta baiano Fernando Coni Campos; Oliveiros Guanais, que foi presidente da UNE em 1960; Mercedes Chaves de Carvalho, professora marcante que influenciou meu rumo; Eduardo Saback Dias de Moraes, psiquiatra, professor e diretor da Faculdade de Filosofia da UFBA, e amigo incondicional; Loreta Valadares, militante e mulher de inteligêcia e coragem ímpares. Falar dela, implica falar também do seu marido Carlos Valadares, que continua lutando pelo nosso país; D. Timóteo não precisa de apresentações nem adjetivos. Vinícius de Moraes, que tive o privilégio de conviver em sua estadia na Bahia nos anos 70. Joviniano Neto, que considero o “Dom Quixote contemporâneo”… Além de ter se dedicado sempre a causas perdidas, foi um dos maiores articuladores da Anistia e depois se dedicou a questão dos direitos humanos, tendo sido presidente da Apub várias vezes querendo sempre trabalhar sem ganhar.
E como a sorte não me abandona, sempre conheço mais gente interessante, que admiro e sou grata, como Flávia Garcia Rosa, diretora da EDUFBA. Não digo mais sobre ela, para não parecer puxa-saco.
A lista é muito maior, inclui amigos fiéis, professores marcantes, parentes solidários.
EDUFBA – Você acredita que a juventude desse fim de década difere muito da geração de 90? Quais aspectos são mais importantes para sua análise?
ANGELINA – Acho difícil responder com segurança. Ao me aposentar em 2003, perdi contato com estudantes universitários, meus filhos cresceram, assim como as galeras com as quais eles conviviam.  Mas creio que posso repetir o que escrevi em meu livro sobre a geração shopping: que não podemos generalizar ao falar em juventude!
Vemos todos os tipos de tribos. Dos consumistas, cabeças ocas, aos situados, engajados, idealistas. Dos que ‘ficam’ e descartam as meninas, aos que se apaixonam loucamente. Dos que vivem na praia e nos barezinhos da vida, (com o devido respeito a estes lugares) mas desatentos ao que acontece em sua volta. Lamento viverem numa época de violência, de correrem riscos na própria rua ou transporte, de estarem expostos à tentação da tecnologia, das drogas e da corpolatria.
Eles precisam lidar com isso, são cobrados para ter um diploma que não lhes basta para conseguir emprego, e principalmente, lamento pelos que generalizam considerando todos os políticos corruptos e de mau-caráter e desacreditam em mudanças para melhor… Podem contribuir para isso com mais ação.
EDUFBA – Qual sua visão sobre a atual situação do mercado de livros na Bahia e no Brasil?
ANGELINA – Para quem, como eu, mora em Salvador, mas viaja muito, acho lamentável ver livrarias fechando a cada momento, pouca ou nenhuma leitura de grande parte de crianças e jovens, sem falar dos adultos…
Também considero lamentável o alto percentual que as editoras precisam pagar às lojas que vendem livros, dificultando o pagamento digno de seus funcionários, autores e qualidade da produção. E vejo cada vez mais difícil a questão da destribuição de editoras não famosas como as do “sul-maravilha”, como dizia nosso inesquecível Henfil…
EDUFBA – Sobre a UFBA e a atual estrutura da universidade, em todas as instâncias, o que você tem a dizer?
ANGELINA – Infelizmente não posso julgar a UFBA, pois estou completamente afastada dela desde 2003.  Sei, por experiência própria, que a juventude não costuma apoiar quem está no poder, geralmente tem razão para isso, mas falar é fácil, difícil é encontrar soluções e agir.  Procuro valorizar mais os fatos do que as interpretações, embora haja um autor famoso que diga o contrário. Mas uma das coisas que o estudo de psicologia me deu foi a idéia de ‘percepção seletiva’ e contaminação por identificação grupal. (a publicidade é um exemplo).  A predisposição positiva, ou negativa, contribui demais para enxergar vilões, bandidos e mocinhos, mesmo sem fatos comprováveis.
EDUFBA – Você se sente uma pessoa realizada? Por quê?
ANGELINA – Sua pergunta me faz lembrar a frase de um psicanalista carioca, Quinet. Quando lhe perguntam como ele vai, ele responde: cada vez mais insatisfeito graças a Deus! Acho difícil existir uma pessoa ‘realizada’ de verdade. Dizem que uma pessoa se realiza quando planta uma árvore, se casa, tem um filho e escreve um livro. Já fiz tudo isso, e nem assim me sinto realizada. E QUERO ficar cada dia mais insatisfeita! Para poder realizar mais!!!
EDUFBA – Projetos literários pro futuro. São quatro, estou certo?
ANGELINA – Nossa! Você está dedurando minhas crises de megalomania, necessárias para eu não desistir de escrever, devido às condições acima citadas!
Depois de publicar cinco livros, dentre eles, dois para crianças, dois sobre adolescência e um sobre minha tese, não pretendo parar. Na verdade, comecei um livro para crianças que fala sobre costumes, hábitos, mudanças de comportamentos na História do Brasil no século 20. Um livro divertido, não daqueles com datas e nomes para decorar. Estava me divertindo também, quando a tese de doutorado interrompeu e eu o deixei de lado temporariamente. É preciso muita pesquisa!
O outro tem a ver com uma demanda de adolescentes ouvidos quando eu ensinava a disciplina no curso de Psicologia. Ignoravam muita coisa (talvez quem sabe por lerem pouco?) até sobre sexualidade, por incrível que pareça. Mas é preciso checar se esta demanda ainda existe.
Também estou empenhada em coletar reminiscências de pessoas interessantes, vivências que não devem ser enterradas com estas pessoas, mudanças, uma miscelânea ainda não bem definida sobre a Bahia das décadas passadas…
E finalmente, algo que provavelmente vai virar blog: dicas e roteiros de viagens, incluindo locais que os guias não costumam dizer ou saber… seria algo “para quem gosta de viajar e detesta guias e pacotes e lugares comuns (em ambos os sentidos da palavra)”…
EDUFBA – Gostaria de deixar um recado para as pessoas?
ANGELINA – LEIAM!!! LEIAM!!! LEIAM!!!
* Uma homenagem à amiga e primeira colaboradora deste blog. Entrevista publicada originalmente no site da EDUFBA