Ilustração de BRUNO AZIZ (Mamon)
João Ubaldo Ribeiro*Como todos os anos, vim a Itaparica, para passar meu aniversário em minha terra, na casa onde nascí. Casa de meu avô, coronel Ubaldo Osório, que fez pouco mais na vida que amar e defender a ilha e seu povo. De lá para cá, muito se tem perpretado para destruí-los física ou culturalmente e há nova tentativa em curso. Trata-se da anunciada construção de uma ponte de Salvador para cá. Isso é qualificado, por seus idealizadores, de progresso.
Conheço este progresso. É o progresso que acabou com o comércio local; que extinguiu os saveiros que faziam cabotagem no Recôncavo; que ao fim dos saveiros juntou o desaparecimento dos marinheiros, dos carpinas, dos fabricantes de velas e toda a economia em torno deles; que vem transformando as cidades brasileiras, inclusive e marcadamente Salvador, em agregados modernosos de condomínios e shoppings acuados pela violência criminosa que alastra por onde quer que estejam enfurnados, ilhas das quais só se vai de automóvel, entre avenidas áridas e desertas de gente. Também conheço argumentos farisaicos dos proponentes da ponte, ávidos sacerdotes de Mamon, autoungidos como empresários socialmente irresponsáveis. Na verdade, sabem os menos ingênuos, eles se baseiam em premissas inaceitáveis, tais como uma visão imediatista, materialista e comprometida irrestritamente não só com o capital especulativo, que já está pondo as mangas de fora no Recôncavo, como aqueles que investem aquí usando os mesmos padrões aplicados em Pago-Pago ou na Jamaica. A cultura e a especificidade locais são violentadas e prostituídas e o progresso chega através do abastardamento de toda verdadeira riqueza das populações assim atingidas. As estatísticas são outro instrumento desses filibusteiros do progresso que em nosso meio abundam, entre concorrências públicas fajutas, superfaturamentos, jogadas imobiliárias e desvios de verbas. Mas essas estatísticas, mesmo quando fiéis aos dados coligidos, também padecem de pressupostos questionáveis. Trazem à mente o que alguém já disse sobre a estatística, definindo-a como a arte de torturar números até que eles confessem qualquer coisa. E confessarão, é claro, pois Mamon é forte e sempre esteve na crista da onda. Mas não mostrarão que esse progresso é na verdade uma face de nosso atraso. Atraso que transmutará Itaparica num ponto de autopista, entre resorts, campos de golfe e condomínios de veranistas, uma patética Miami de pobre. E que, em lugar de valorizar o nosso turismo, padroniza-o e esteriliza-o, matando ao mesmo tempo, por economicamente inviável, toda riqueza de nossa cultura e nossa História. Quem não é atrasado sabe disso. Para não cometer esse tipo de atentado é que, em Paris, por exemplo, não se permite a abertura de shooppings onde isso possa ferir o comércio de rua tradicional. Tampouco, em Veneza, as gôndolas foram susbstituídas por modernas lanchas. Num país não submetido a esse estupro socioeconômico e cultural, os saveiros seriam substituídos, as antigas profissões, o artesanato e o pequeno comércio também. Exercendo a vocação turística de toda região, teríamos razão em nos mostrar com tanto orgulho quanto um europeu se mostra a nós. Mas nosso destino parece ser acentuar infinitamente a visão que enxerga em nós um país de drinques imitando jardins, danças primitivas, pouca roupa e nativas fáceis.
Conheço este progresso. É o progresso que acabou com o comércio local; que extinguiu os saveiros que faziam cabotagem no Recôncavo; que ao fim dos saveiros juntou o desaparecimento dos marinheiros, dos carpinas, dos fabricantes de velas e toda a economia em torno deles; que vem transformando as cidades brasileiras, inclusive e marcadamente Salvador, em agregados modernosos de condomínios e shoppings acuados pela violência criminosa que alastra por onde quer que estejam enfurnados, ilhas das quais só se vai de automóvel, entre avenidas áridas e desertas de gente. Também conheço argumentos farisaicos dos proponentes da ponte, ávidos sacerdotes de Mamon, autoungidos como empresários socialmente irresponsáveis. Na verdade, sabem os menos ingênuos, eles se baseiam em premissas inaceitáveis, tais como uma visão imediatista, materialista e comprometida irrestritamente não só com o capital especulativo, que já está pondo as mangas de fora no Recôncavo, como aqueles que investem aquí usando os mesmos padrões aplicados em Pago-Pago ou na Jamaica. A cultura e a especificidade locais são violentadas e prostituídas e o progresso chega através do abastardamento de toda verdadeira riqueza das populações assim atingidas. As estatísticas são outro instrumento desses filibusteiros do progresso que em nosso meio abundam, entre concorrências públicas fajutas, superfaturamentos, jogadas imobiliárias e desvios de verbas. Mas essas estatísticas, mesmo quando fiéis aos dados coligidos, também padecem de pressupostos questionáveis. Trazem à mente o que alguém já disse sobre a estatística, definindo-a como a arte de torturar números até que eles confessem qualquer coisa. E confessarão, é claro, pois Mamon é forte e sempre esteve na crista da onda. Mas não mostrarão que esse progresso é na verdade uma face de nosso atraso. Atraso que transmutará Itaparica num ponto de autopista, entre resorts, campos de golfe e condomínios de veranistas, uma patética Miami de pobre. E que, em lugar de valorizar o nosso turismo, padroniza-o e esteriliza-o, matando ao mesmo tempo, por economicamente inviável, toda riqueza de nossa cultura e nossa História. Quem não é atrasado sabe disso. Para não cometer esse tipo de atentado é que, em Paris, por exemplo, não se permite a abertura de shooppings onde isso possa ferir o comércio de rua tradicional. Tampouco, em Veneza, as gôndolas foram susbstituídas por modernas lanchas. Num país não submetido a esse estupro socioeconômico e cultural, os saveiros seriam substituídos, as antigas profissões, o artesanato e o pequeno comércio também. Exercendo a vocação turística de toda região, teríamos razão em nos mostrar com tanto orgulho quanto um europeu se mostra a nós. Mas nosso destino parece ser acentuar infinitamente a visão que enxerga em nós um país de drinques imitando jardins, danças primitivas, pouca roupa e nativas fáceis.
Adeus Itaparica do meu coração, adeus raízes que restarão somente num muro despencado ou outro, no gorgeio aflito de um sabiá sobrevivente, no adro de alguma igrejinha venerável por milagre preservada, na fala, daquí a pouco perdida, de meus conterrâneos da contracosta. Sei em que conta me terão os que querem a ponte e não tem como dizer que só estão mesmo é a fim de grana, venha ela de onde vier e como vier. Conheço os polissílabos altissonantes que empregam, sei da sintaxe americanalhada em que suas exposições são redigidas e provavelmente pensadas, como convém a bons colonizados, já ouví todos os verbos terminados em "izar" com que julgam dar autoridade a seu discurso. É bem possível que a ponte seja mesmo construída, mas , pelo menos, não traio meu velho avô.
* João Ubaldo é membro da Academia Brasileira de Letras
Artigo publicado originalmente no jornal A Tarde, sexta-feira, 22 de janeiro de 2010, p.2
Em 1982 João Ubaldo inicia o romance "Viva o povo brasileiro", que se passa na Ilha de Itaparica e percorre quatro séculos da história do país. Originalmente o livro se chamava "Alto lá, meu general". Segundo João, o livro nasceu de um desafio de seus editores e da lembrança de uma afirmativa de seu pai, que dizia: "Livro que não fica em pé sozinho, não presta." Como seus livros sempre tiveram poucas páginas, diante da provocação, fez um com mais de 700.
Em 2008, o autor foi agraciado com o Prêmio Camões, considerado o maior galardão da língua portuguesa.
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