quinta-feira, 30 de abril de 2009

Pelo Porto e a Via Expressa

Walter Pinheiro
O debate sobre o porto de Salvador tem sido prejudicado por duas teses equivocadas. A primeira atrela a reabilitação socioeconômica do Comércio e, por extensão, de toda a Cidade Baixa, ao fim das operações portuárias de carga em nossa capital. A segunda ignora o dinamismo emergente da economia baiana para sugerir que a desativação do Porto de Salvador pode ser contrabalançada pela expansão do complexo portuário de Aratu. Em termos sócio-econômicos, o bairro do Comércio pode ser dividido em três faixas paralelas aos armazéns do porto. A primeira, situada entre as avenidas da França e Miguel Calmon, abriga, além da atividade portuária, agências bancárias, escritórios de advocacia e outros serviços. Esta área mantém dinamismo evidente. A segunda, o miolo formado por ruas como Portugal e Santos Dumont, conhece o abandono, apesar de alguns investimentos privados recentes, inclusive em faculdades. As muitas lojas fechadas testemunham o declínio ainda não revertido deste espaço que já foi um centro varejista importante. Mas é sobretudo na terceira faixa, a da encosta que vai da Montanha ao Taboão e, daí ao Pilar, em direção à Calçada, onde se encontra a verdadeira ruína. Uma pergunta não quer calar: porque os novos planejadores da cidade insistem em associar a reabilitação do Comércio à destruição da principal atividade que nele prospera? O Porto de Salvador vai bem. Cresceu em movimentação de carga 21,2% em 2008. É um negócio rentável e pode ter um desempenho ainda melhor com novos atracadouros, o aumento do calado e a construção da Via Expressa para o tráfego de caminhões pesados. Nada disso, lembremos impediria o uso de parte de sua área como terminal turístico de passageiros associado a algum equipamento de lazer. Por que nossos neourbanistas não enfrentam a tarefa prioritária de recuperar os trechos arruinados das encostas do Centro Histórico ao invés de sugerir a transformação do porto num grande shopping em distrito boêmio? Por que não se mobilizam para usar os recursos do novo programa de habitação do governo federal para construir moradias no Centro Antigo? Por que não seguem o exemplo de empreendedores como Carlinhos Brown (Museu do Ritmo) ou Bernard Attal (Trapiche Barnabé)? O segundo equívoco é acreditar que a Bahia do século XXI demandará apenas um porto – Salvador ou Aratu. A lógica binária parece exigir uma aposta na estagnação. O governo Wagner trabalha por uma economia dinâmica, mais diversificada e melhor distribuída espacialmente. Eis porque não apenas analisa a expansão portuária em Aratu e apóia os novos investimentos em Salvador, como também inicia a construção de um terminal para a nova Ferrovia Leste-oeste, o Porto Sul, em Ilhéus.
Artigo publicado no Jornal A Tarde, 30/09/2009.p.3 - Opinião.

Walter Pinheiro, Secretário de Planejamento do Governo da Bahia. Natural de Salvador, tem 49 anos. Foi eleito deputado federal em 2006 com o maior número de votos do PT no Brasil - 200.894 votos em 414 do total de 417 municípios baianos. Foi presidente da Comissão de Ciências e Tecnologia da Câmara , líder da bancada do PT e coordenador da bancada de oposição durante o Governo Fernando Henrique.

quarta-feira, 29 de abril de 2009

Desvario Cultural

Foto do Espaço de cinema quando ainda era permitido o estacionamento.
Fernando da Rocha Peres
Foram necessários oito anos e meio, muito trabalho e desgastes burocráticos para a construção do Espaço Unibanco de Cinema/ Glauber Rocha, na Praça Castro Alves, em Salvador, aberto ao público em 19 de dezembro de 2008. Recordando a história do cinema na Bahia, a terra do “já teve” ou do “impossível acontece”, está ocorrendo um fato, pouco conhecido dos eleitores soteropolitanos, que é a possível e premeditada inviabilidade do recém-inaugurado espaço de entretenimento e lazer. Xibança igual só na Bahia. Ali, na Praça do Poeta, em 1919, existiu uma casa de espetáculos e cinema denominada Kursaal Bahiano (do alemão: sala para apresentações sociais), que o Jornal da Manhã, em 1920, por consulta e votação popular, fez mudar o nome para Cine Teatro Guarany. Vejam que exemplo democrático. Até 1949, os espectadores afluíam com frequência para ver os grandes astros e o noticiário da cinematografia mundial. Durante seis anos, o Guarany esteve fechado e só reabre, festivamente, com a exibição de O Manto Sagrado, em 1955.Após um longo período de vigência e lugar de referência, o Guarani, agora sem o “y”, entra em nova decadência, é fechado em 1998, arruinado fica por muitos anos, mas renasce da sujeira e do lodo com a nova proposta de quatro salas para exibição,uma livraria (Galeria do Livro), uma lanchonete, uma bombonière e, em breve, um restaurante. Nesta sua nova fase, de três meses e meio, como Espaço Unibanco de Cinema/ Glauber Rocha, já começaram as dificuldades com o poder municipal, que está impedindo o estacionamento ao lado e em frente do empreendimento, que só tem a acrescentar no entorno de uma área, no ex-centro dito “histórico” e carunchoso de Salvador. Nas três últimas semanas, março/abril, a queda diária de frequentadores é de 70 por cento, tendo chegado a mil e quinhentas pessoas só aos domingos, o que não mais ocorre após a proibição de estacionar automóveis. Diante desta evidência, o grupo Unibanco já cogita fechar o Espaço Glauber Rocha. Se isto acontecer, vai ser um despautério dos diabos, com repercussão nacional, pois não há ilegalidade no estacionamento, mas só capricho de quem não faz nada. Aliás, é preciso dizer que os contatos dos que gerenciam o empreendimento com o poder municipal, com as dificuldades de sempre, têm sido bastante propositivos, como relatado: 1) adotar a área do antigo Cacique, restaurante que funcionava ao lado do cinema, como uma praça de convivência; 2) criar no calçadão em frente ao Espaço Unibanco um estacionamento para 35 carros, agenciado como era na década de 1940, tudo por conta da iniciativa privada. Sabe-se, com certeza, que o impasse e a proibição não partiram do alto escalão da Prefeitura Municipal do Salvador, como um todo, onde penso que existe gente sensível aos interesses da população, e que sabe da importância de uma “revitalização” do centro da cidade. Todos sabem que sonhar é preciso, e o próprio cinema tem utilizado bastante o sonho como tema: aos curiosos e sonhadores basta indicar a obra-prima de Akira Kurosawa intitulada Sonhos. Acontece que também é necessário navegar, andar, chegar. Isto foi realizado com o Espaço Unibanco para a alegria dos cinéfilos assistirem a películas clássicas, antigas e contemporâneas, e conhecerem o trabalho de jovens cineastas baianos. Numa cidade onde as opções de lazer, fora da praia ou do axé, são poucas, é frustrante admitir que o poder público aja sem atentar para os interesses da coletividade.Enquanto isso, eu pergunto: qual o motivo ou intenção daqueles que administram a cultura municipal desejarem o imobilismo do já existente e falarem em projetos mirabolantes, arábicos e irrealizáveis, quando é sabido que não há dinheiro para a saúde, o saneamento, a educação e a segurança? É preciso, além de sonhar, pensar bem antes de desvariar ou fazer besteiras. De minha parte, como articulista, peço o alerta e a mobilização dos eitores para o assunto.
Artigo publicado originalmente no Jornal A Tarde

terça-feira, 28 de abril de 2009

Salvador e a elegância nos transportes

Almir Santos
Bom-dia, por favor, obrigado. São gestos elegantes que cabem em todos os lugares, em todas as oportunidades. Nas repartições públicas, nos bancos, nos estabelecimentos comerciais, nos estabelecimentos de prestação de serviços, nos elevadores, nos táxis, nos ônibus etc. Como é elegante as pessoas se cumprimentarem. Como é elegante o agradecimento por ter sido servido. Nos ônibus há uma peculiaridade. Cerca de 80% dos usuários do transporte coletivo os utilizam para o trabalho e para a escola. Fazem repetidamente os mesmos trajetos nos mesmos horários. Geralmente, as pessoas são servidas diariamente pelos mesmos motoristas e pelos mesmos cobradores. Acostumam-se a eles. Por isso esses profissionais passam a fazer parte de suas vidas como fazem os seus colegas de trabalho ou de escola. Cria-se entre essas pessoas uma interdependência. Passam a ser parceiras. Entretanto, os gestos agradecer ou cumprimentar nem sempre são bem entendidos ou bem recebidos. Há quem não responda até ao gesto de se desejar um Feliz Natal ou um Feliz Ano Novo. Isso não é uma regra geral, felizmente. Há profissionais superatenciosos, superelegantes e educados. Mas há os que só respondem um cumprimento quando se trata de uma garota bonita. Já o portador de passe livre está incluído entre as pessoas que muitas vezes não tem uma resposta dos seus gestos elegantes. Há até a quem vira o rosto quando o portador de passe entra no ônibus. Por que isso? Por que não somos, todos nós parceiros, elegantes nos transportes? Sejamos pois elegantes ! ! ! Elegantes ao entrar e sair dos transportes. Elegantes ao facilitar o acesso aos portadores de deficiência, idosos e gestantes. Ceder os lugares para eles, mesmo que não estejamos nas poltronas preferencias. Elegantes ao parar o ônibus corretamente para embarque e desembarque de passageiros. Tenhamos em mente que a honra é mais para quem dá, do que pra quem recebe. Esta mensagem é dirigida para todos os parceiros do sistema de transporte coletivo.

sexta-feira, 24 de abril de 2009

O Senador Eterno da Bahia

Oliveiros Guanais de Aguiar
Em 50 anos de militância política, iniciando por cargos eletivos aqui e logo depois no cenário nacional, foi lá, no senado federal, que o seu talento pôde afirmar-se e fazê-lo reconhecido como uma das maiores cerebrações nacionais. E olha que no seu tempo o senado reunia as maiores expressões da inteligência e da cultura do Brasil, não era esse galinheiro de hoje. Para ser o melhor naquela época, era preciso ser alguém de genialidade excepcional. Pois o nosso senador o era. Chamava-se Rui Barbosa. Não vou falar de todos os campos em que o seu gênio brilhou. Ficarão também de lado as controvérsias que aconteceram em torno de suas ações e de sua maneira de ser, com os que não gostavam dele, por inferioridade ou por inveja, apontando traços negativos em suas obras e em seu estilo: acusações que lhe foram feitas, em vida, deram-lhe oportunidade de contestá-las todas, com um ímpeto que causava medo e silêncio nos seus detratores. Verboso, de palavreado longo, alheio às realidades nacionais, voltado para a cultura de outros povos e de outros tempos, advogado de interesses estrangeiros, tudo isso e muito mais disseram dele... Há um pouco de razão em algumas dessas críticas, mas, afinal, ninguém é perfeito. E quem o atacava? Micos, gente pequena, porque todos ficavam pequenos comparados a ele. E, de qualquer forma, as suas maiores virtudes relacionam-se ao enfrentamento dos poderosos, ao combate ao militarismo, à contribuição jurídica doutrinária e ao ativismo de uma advocacia desassombrada, criando dificuldades imensas para Floriano Peixoto e envergonhando ( já naquele tempo) o Supremo Tribunal Federal no julgamento do primeiro “Habeas Corpus” que lá chegou, apresentado por Rui em defesa de oficiais revoltosos da marinha.
Por seu enfrentamento ao “Marechal de Ferro”, foi obrigado a pedir asilo na embaixada chilena e a seguir depois em exílio para Argentina e de lá para a Inglaterra. E vale destacar ainda a “sua coragem pessoal, [que foi] até maior do que o seu talento -se isso for possível”- como afirmou o seu mais respeitável opositor no senado, o grande representante do Rio Grande do Sul, Pinheiro Machado. É da relação entre os dois que vamos falar um pouco. Foram amigos e correligionários políticos, depois ficaram em campos opostos, mas um admirava e respeitava o outro. Pinheiro, como líder do Partido Republicano Conservador, se batia muito com Ruy, líder liberal. E uma vez, no curso dos debates, disse assim – “ Deus sabe o sacrifício que me custa enfrentar V.Ex. nesta tribuna”. E, em outra ocasião, afirmou: “ –Quando Rui fala, eu fico mais inteligente. Ele diz o que eu quisera dizer”. Pinheiro, sexagenário, andava em conquistas femininas, o que levou Ruy a dizer num discurso, dirigindo-se ao seu opositor: “V. Ex., touro osco do Sul”... [ Osco, no Rio Grande, é o tom acinzentado do pelo do gado vacum]. Ao que Pinheiro redargüiu : -“ E V. Ex., brilhante sagüi dos canaviais do Nordeste”...
Certa vez, o deputado Germano Hasslocher, freqüentador do mansão do Morro da Graça ( residência do senador gaúcho), furioso com um ataque que Rui desferiu contra Pinheiro Machado, esbravejou: -“ Amanhã vou reduzir Rui a farelo”. Pinheiro interveio: -“Não. Tu não vais fazer nada disso. Primeiro, porque reduzir Rui a farelo não é tarefa ao alcance do poder humano. Segundo , porque, dado que o conseguisses, que sobraria depois neste país?”
Quando Pinheiro Machado foi apunhalado pelas costas no Hotel dos Estrangeiros, Rui recusou, irado, a proteção de uma patrulha mandada para protegê-lo na eventualidade de uma manifestação da ira popular.
Dias depois, o nosso senador preparava-se para comparecer à missa de sétimo dia por alma de Pinheiro, quando lhe chega um amigo para uma consulta de ordem jurídica. Rui sobe numa escada em busca de um livro da última prateleira e cai. Ao tentar levantar-se, não consegue. Tinha quebrado a perna. O médico que o atendeu decretou: setenta dias de repouso. Ruy então comentou, com bonomia: “Foi a última rasteira que o Pinheiro me passou. Não quis que eu fosse à sua missa.”
Rui não deve ser lembrado como a “Águia de Haia”, nem como o homem que “falava todas as línguas”, ou se propunha a “ensinar inglês aos ingleses”, tudo isso fruto da reverente imaginação popular. Rui deve ser lembrado como defensor das liberdades, da justiça, da igualdade entre as nações em face do Direito. Deve ser lembrado pela coragem que teve de enfrentar sábios e poderosos, armados ou não.

quarta-feira, 22 de abril de 2009

Nem só turistas vivem em Salvador

Angelina Bulcão*
A poluição sonora, já considerada típica de Salvador, se amplia assustadoramente apesar da Lei do Silêncio existente.
Inevitáveis são as construções que tornaram a cidade num canteiro de obras.
Mas as festas pré e pós carnavalescas se emendam o ano inteiro. As tradicionais comemorações juninas já têm características de pagodes. E recentemente, até uma imagem de Cristo desfilou em trio elétrico no circuito Barra-Ondina, numa manifestação promovida por uma igreja alternativa.
Ninguém discorda que o carnaval traz, para a cidade, empregos, milhares de dólares, etc. Mas é impossível ignorar que, em Salvador, também se trabalha, apesar da fama que o baiano ganhou de preguiçoso... fama, por sinal, já desmentida em tese de doutoradoda prof. Elisete Zanlorenzi, PUC Campinas
Inegavelmente, tais eventos causam transtornos para alguns bairros, dificultando a entrada e saída dos moradores de suas ruas, dos estudantes irem/voltarem do colégio, e impedem aqueles que trabalham, se concentrarem ou dormirem por causa do barulho que já se torna crônico.
Uma pequena venda de rua começa oferendo cigarros, balas, cerveja. Logo depois, surge uma mesa, quatro cadeiras. E não demora, várias mesas, várias cadeiras que se espalham pela calçada. Eis que a barraca dá origem a uma festa de largo...
Festas-de-largo, lavagens, passeatas não dão direito a feriados àqueles cujas obrigações impedem de dançar ou ensaiar durante o verão inteiro...
É possível constatar também que o barulho não ocorre apenas em locais situados longe de residências. Praticamente todos os bairros têm um clube, e/ou um hotel, e/ou uma igreja, com possantes autofalantes.
Automóveis com portas abertas deixam escapar um som que arromba os tímpanos. A disputa entre a potência foi proibida, mas basta o policial se afastar, para tudo recomeçar. E os protestos já provocaram tragédias recentemente, segundo os noticiários locais.
As queixas de pessoas que residem longe de certas casas de shows só fazem comprovar que os aparelhos de som destas casas ultrapassam os decibéis para poderem ser ouvidos à distância! Festas de alguns hotéis são escutadas por vários km, uma vez que o vento é capaz de espalhar o som, quando este ultrapassa o volume permitido.
Só quem quer fazer ouvidos moucos ignora os efeitos nocivos da poluição sonora na saúde física e mental. Distúrbios do sono e da saúde em geral no cidadão urbano foram revistos na literatura científica dos últimos 20 anos. Em vígilia, o ruído de até 50 decibéis (dB) pode perturbar, mas é adaptável. A partir de 55 dB provoca estresse leve, excitante, causando dependência e levando a durável desconforto. O estresse degradativo do organismo começa a cerca de 65 dB com desequilíbrio bioquímico, aumentando o risco de infarte, derrame cerebral, infecções, osteoporose etc. Provavelmente a 80 dB já libera morfinas biológicas no corpo, provocando prazer e completando o quadro de dependência. Em torno de 100 dB pode haver perda imediata da audição. Por outro lado, o sono, a partir de 35 dB, vai ficando superficial, à 75 dB atinge uma perda de 70 % dos estágios profundos, restauradores orgânícos e cerebrais.
A surdez causada por ruídos é um problema que preocupa os médicos. "Mesmo parcial, esse tipo de dano é irreversível", declarou o otorrinolaringologista Antônio Celso Nassif, presidente da Associação Médica Brasileira a uma revista informativa. O ideal é evitar, se possível, expor-se a ruídos muito intensos.
Adolescentes parecem ignorar os riscos de ouvir música em alto volume. As crianças pequenas também correm risco pois os brinquedos estão cada vez mais barulhentos".
Os repórteres Sergio Berezovsky/Carlos Fenerich, em uma matéria publicada na referida revista, anunciaram um levantamento realizado no final do ano passado pela Sociedade Brasileira de Otologia. A associação dos médicos especialistas em ouvidos, mediu a audição de mais de 60000 pessoas em todo o país. Entre os consultados que disseram não ter nenhuma deficiência (cerca de 10% do total), 40% não escutavam direito. Nas cidades maiores e mais barulhentas, é maior a seriedade do problema: mais da metade dos que julgavam ouvir perfeitamente já não conseguiram captar alguns sons agudos (o primeiro indício de danos auditivos provocados por exposição aos ruídos). "Essas pessoas poderão ter problemas mais graves depois que passarem dos 60 anos", afirmou Ricardo Ferreira Bento, presidente da Sociedade Brasileira de Otologia e professor da Universidade de São Paulo. "A partir dessa idade, a capacidade auditiva começa a diminuir naturalmente." Esse é um caso de difícil prevenção. Ninguém se expõe por escolha própria ao barulho de um congestionamento nem ouve uma britadeira porque quer. E quem reclama contra as festas e manifestações é acusado de intolerante e inimigo do paraíso tropical.
Assim somos obrigados a suportar este tormento, disfarçado em chavões tais como, "o verdadeiro espirito da alegria de um povo", "manifestações populares e autênticas de uma cultura genuína", "querem calar a Bahia", etc.
Nem todo mundo aprecia e está disposto a ouvir este tipo de "manifestação artística", este é um direito inalienável do cidadão, salvo nos regimes de força. A psicanalista Eugênia Carvalho, em protesto enviado ao jornal 'A Tarde' pergunta: Será que vivemos sob a ditadura e o estigma do trio elétrico, com seus decibéis ensurdecedores e sua zoeira dissonante? Esta não seria então também uma forma de fascismo?
Tudo em nome da divulgação da "boa terra", cujo mote deveria ser "aqui pode tudo", onde não há limites entre o espaço privado e o espaço público, semblante de paraíso perdido tropical, "esquema" sustentado por uma política neo-liberal para incrementar a industria turística a qualquer preço.

* Escritora e psicóloga

segunda-feira, 20 de abril de 2009

Uma Polêmica de Volta

Pedras Portuguesas sendo retiradas do Porto da Barra
Almir Santos
Com segurança, o insucesso do uso das pedras portuguesas no caso de Salvador deve-se mais à má execução das obras e conservação. O que foi feito na Barra é um pavimento pobre, longe do que foi feito na Pituba no Campo Grande, na Praça da Sé, na Praça da Inglaterra e na Piedade. Agora se fala em fazer o mesmo no Comércio. Por falar em Piedade, uma obra executada há aproximadamente 10 anos, toda executada em material nobre, está pessimamente conservada. Há pedras quebradas, faltando e soltas. Há árvores que morreram e não foram replantadas. Problema de execução, fiscalização e conservação. Enquanto isso há pisos de centenárias igrejas de Salvador em perfeito estado. Na Avenida Marquês de Caravelas em frente a um hipermercado há um contraste gritante: a calçada executada pelo particular é bem feita e a executada pela prefeitura é mal feita. No Largo da Vitória há uma calçada em pedras portuguesas feita por um condomínio particular há aproximadamente 30 anos que está em perfeito estado. Se a Prefeitura exigir das empreiteiras um serviço bem feito, seguir as práticas recomendadas, pode dar um show de pedras portuguesas e embelezar a cidade. Pode realizar um concurso para novos desenhos e sempre adotar meio-fios de granito. Nunca um pavimento nobre com meio-fio de material pobre e pouco resistente. O material poderá ser totalmente aproveitado e a parte das pedras polidas pelo uso deverá sempre estar voltada para cima para dar um bom visual. Deve haver uma norma eficaz para a recomposição da calçada quando for necessária uma eventual escavação para instalação de duto ou caixas de visita. O mesmo para rebaixamento de meio-fios nas entradas de garagens e estacionamentos. Principalmente a observação de Lei Municipal n.º 5303/99 que define a responsabilidade da manutenção e conservação das calçadas. Fazer bem feito deve ser uma questão de brio ! ! ! Espera-se que o assunto PEDRAS PORTUGUESAS NO COMERCIO seja repensado.

sábado, 18 de abril de 2009

Muda Salvador, mas com jeito

SALVADOR - BAHIA
Oliveiros Guanais
Há muitos e muitos séculos, um cara chamado Heráclito sustentava que tudo estava em permanente mudança: “não passarás por um rio duas vezes”... Outro patrício dele, Parmênides (gregos ambos), dizia, com argumentos mais complicados, que não há mudança, tudo permanece igual. Daqueles tempos para cá, as torcidas se dividiram, cada um tendo seus seguidores. Eu torço por Heráclito, assim como Lula torce pelo Corínthias.
Quando vejo fotos da Bahia antiga, sinto imensa nostalgia, saudades do que vi e do que não cheguei a ver, e neste blog do Osvaldo tenho me deparado muito com imagens que me trazem recordações sobre tempos idos. Conheci muito da Bahia que está nas fotos, mas muitas coisas são anteriores a mim.
A Bahia de hoje está melhor ou pior que a Bahia de 50 anos atrás? Esta pergunta é difícil de ser respondida , pois não há maniqueísmo nessa história, mas divisão de perspectivas, porque umas coisas melhoram, outras chegam a irritar de tão ruins que ficam. Por outro lado, como o passado não tem pecado ( Êpa, é do passado que vem tudo o que somos hoje, de bom e de mau, e é na infância e adolescência que se constrói a nossa personalidade, conforme disse um poeta inglês: “o menino é o pai do homem”), vemos os tempos idos com saudades.
O que falta na Bahia é o que ainda se preserva em importantes e antigas cidades da Europa, que zelam por seu patrimônio urbano e arquitetônico e, mesmo sendo muito mais velhas do que Salvador, não se deixam desfigurar pelo novo que não representa beleza, nem conforto, nem melhoria na qualidade de vida da população. Houve famosos transformadores lá e cá. Paris teve Haussmann, que derrubou casas velhas e alargou ruas, criando os bonitos bulevares da cidade . Na virada dos séc. XVIII- XIX, o Rio de Janeiro teve em Pereira Passos o seu urbanista revolucionário, derrubando também imóveis e patrimônios antigos, embelezando as áreas nobres da zona Sul, mas ignorando a pobreza dos morros e a própria zona norte da cidade. Encontrou soluções mas também deixou problemas. Quase na mesma época ( décadas de 30 a 50 ), em Nova Iorque e Salvador, Robert Moses, lá, e Mario Leal Ferreira cá, entregaram-se às transformações de suas respectivas cidades. Moses era um gênio louco, ou somente um louco, que quase transformou Nova Iorque numa nova Cartago. Foi impedido a tempo de destruí-la por inteiro, mas deixou a cidade diferente do que era antes. ( Para melhor ou para pior? ).
Salvador encontrou em Mario Leal Ferreira muito mais que um urbanista; encontrou um homem de ciência, um sociólogo, um humanista. Mas ele morreu jovem, antes de pôr em prática os estudos multidisciplinares que comandou ( Veja artigo neste blog) . É claro que não se encontram homens como Mário Leal Ferreira disponíveis por aí. Por outro lado, interesses pessoais divergentes e entraves ou inação política fazem com que as soluções não sejam levadas adiante. A quem viveu a Bahia de 1950 para cá, pode-se dirigir a pergunta: o crescimento da cidade foi satisfatório? Eu diria que não. Aí estão os engarrafamentos, os conglomerados urbanos, a orla abandonada, a falta de perspectiva para um crescimento ordenado, deixando a Bahia muito atrás de Aracaju, Recife, Fortaleza, só para falar de capitais do nordeste. Em Salvador, o homem que se alcunhou “prefeito do século” valeu-se do plano de Mario Leal Ferreira, usando uma montanha de dinheiro que lhe foi repassada pelo primeiro ditador pós-golpe, mas ficou apenas nas aberturas de algumas avenidas de vale, não correspondendo à visão integrada que o nosso urbanista-mor concebera para o desenvolvimento da cidade. E foi esse mesmo administrador que abriu as comportas para a inundação de espigões na cidade. ( Não estava ele, o tal prefeito, eufórico e sorridente no coquetel de inauguração do Apolo XXVIII, o primeiro edifício de proporções descomunais a dar início à descaracterização da corredor da Vitória ? Pois é. )
O crescimento urbano de Salvador foi absurdo por falta de controle de gabaritos, por falta de preservação de patrimônios históricos valiosos e por abandono irresponsável da orla, que tem ou tinha as condições para ser a mais bela do Brasil.
Agora, comentários finais.
1-Nenhuma cidade resiste ao crescimento demográfico exponencial;
2-nenhuma cidade pode apoiar-se em automóveis como meio de transporte privilegiado;
3- O metrô é a única solução como transporte de massa;
4-nenhuma transformação ( destruição do velho/construção do novo) pode ser bem sucedida se não houver controle e direcionamento dos órgãos públicos apropriados, valendo-se do poder administrativo de polícia .
Fora desses requisitos, nenhuma urbanista, nenhum administrador consegue fazer algo de perene.

quinta-feira, 16 de abril de 2009

Pituba e rua Minas Gerais

Almir Santos
Não faz muito tempo era uma rua de tranqüilos moradores, poucas casas, poucos prédios. Hoje abriga algumas dezenas de estabelecimentos comerciais e de prestação de serviço. Situada na Pituba, cresceu com o bairro e com a cidade guardando, entretanto, um gostoso sabor provinciano. Pituba, um dos maiores bairros de Salvador. Um loteamento cujo projeto foi elaborado pelos consagrados engenheiros Teodoro Sampaio, Felinto Melo e Saturnino Brito. Uma planta datada 1938 previa uma grande avenida à beira mar entre Amaralina o atual Posto Esso. No governo Octávio Mangabeira, quando grandes obras foram realizadas para a comemoração do 4.° centenário da Cidade do Salvador, como o Fórum Rui Barbosa, Hotel da Bahia e Avenida Centenário, decidiu-se pela construção, através do DERBA-Departamento de Estradas de Rodagens Da Bahia, de uma nova via de acesso à Base Aérea e ao então Aeroporto de Ipitanga. É a atual avenida Octávio Mangabeira. Seu primeiro quilômetro foi justamente inaugurado nessa época. O nome dos estados dados às ruas nasceu com o projeto do loteamento. Também os territórios de Rio Branco e Guaporé e criados em 1943, foram contemplados com nomes de logradouros. Posteriormente esses territórios ganharam novos nomes Rondônia, Roraima respectivamente em 1957 e 1962. O Rio Grande do Norte, entretanto, é o único estado da federação que não está homenageado no bairro da Pituba. Isso porque, com a construção da estrada Amaralina-Aeroprto, a rua em frente a antigo clube Português, que era chamada Rio Grande do Norte, foi incorporada à nova via. Outro fato que ocorreu, foi que nesse primeiro trecho a via construída tinha sete metros mais acostamentos. Os proprietários dos imóveis avançaram em massa seus gradis até o limite do acostamento incorporando assim uma boa área aos seus lotes constituindo-se dessa forma uma grande invasão do colarinho branco que se consolidou.. Com isso esse trecho que viria se transformar em uma ampla avenida foi prejudicado. A Pituba não teve pavimentação até o fim dos anos sessenta, quando um grande projeto de contribuição de melhoria foi executado, pavimentando todas as suas ruas. A partir daí a Pituba deslanchou. O loteamento original serviu de embrião para inúmeros outros loteamentos que, hoje formam um bloco único e consolidado. Há dezenas de agências bancárias, hotéis, luxuosos prédios residências, colégios, faculdades, concessionárias e locadoras de veículos, supermercados, farmácias etc. Na rua Minas Gerais, todavia, não há nenhuma agência bancária, prédios de luxo ou hotéis cheios de estrelas, mas um intenso calor humano. É a rua dos drinks ao meio-dia e dos bate-papos regados a cerveja nos fins de tardes e princípios de noites. Dorme cedo, mas vive intensamente o dia. Seus usuários são fiéis e ecléticos: comerciantes, advogados, engenheiros, médicos, bancários, juizes, políticos, delegados, ex-jogadores de futebol etc. É a rua dos mercadinhos, das loterias, do pequeno shopping, do jogo de bicho, dos consertos de eletrodomésticos, do sebo, dos livros, jornais e revistas, do alfaiate, do salão de beleza, do barbeiro, do engraxate, do borracheiro. Dos vendedores de camarões, peixes, temperos. Dos quibes, acarajés, comida caseira, sorvetes, amendoim, queijo coalho, água de coco, frutas e mingaus, Dos peixes, camarões, lambretas e caranguejos. Das variadas carnes de qualidade desde a madrugada Dos materiais de construção e das rações, Das lanchonetes e muitos bares. Ah! Muitos bares! Djalma’s Drinks, Tio Medrado, Porto Futuro, Bar do Milton, Kana Kaiana, Rei da Carne do Sol, Tijuana, Pedaço Paulista são os principais. Neles fala-se de política, de futebol, comenta-se o Fantástico, fala-se da vida dos outros, sem se falar mal de ninguém. Pra repor as energias ainda existe a Sorveteria Artufo. Entres os seus assíduos freqüentadores está o pessoal do DERBA: Afonso, Zé Reis, Roberto Santana, Carlos Alberto, Helinho Costa e Renato Lins. O irreverente Heitor Portugal, que tem cada dia da semana para beber com determinado grupo. Alguns sumiram, mas todas as pessoas que por ali passaram deixaram suas marcas. Cadê vocês? Rodamilans e suas gozações, do circunspeto Souzinha, Arlindo, Lira, Borges, Rogério, Vítor, Rui Tanus, Gil, Alda, Tânia, Zé Fantasma, Zé Eduardo, Boca, Carlos Augusto, Benjamim, Paulino Irujo, Paulinho Almeida, um outro Paulinho, Magalhães, Gontran. Cadê vocês? Outros continuam firmes usuários. Milton, Bené, Queiroz, Borba, Raimundo barbeiro, Agnaldo, Raimundo do bar Luciano, Brasil, Eduardo, Taner, Edmilson, Luizinho Bacelar, Zé Teixeira, Bueno, Flaviano, Góis, Barabadá, Cláudio. A argentina que vende incenso. Ari da barraca e suas desencontradas histórias sobre a Pituba, morador pitubano há 53 anos. Risadinha, o vendedor de queijo coalho mais antigo da área. Começou menino. Mas há os que nos deixaram definitivamente: Danilo, Raimundo Beija-Flor, Medrado, Rui, Caria, Paulinho Povoas, Tote, Djalma e o mágico quase centenário, que ainda ganhava uns trocados tirando a pombinha da cartola. Alguns bares também deixaram saudades: O Popular, Tocaia Grande, O Limão, Novo Limão, Siri Patola, Vileta. É uma rua de “boêmios diurnos”, onde até segunda-feira parece uma festa. Nela, todos se conhecem, todos se cumprimentam. São apenas 900 metros de rua de amigos em permanente confraternização. Anda-se muito a pé, cresceu sem se descaracterizar. É a rua mais gostosa da Pituba.

quarta-feira, 15 de abril de 2009

Díogenes Rebouças : Um visionário para além do concreto

Integrante da equipe do Escritório do Plano de Urbanismo da Cidade do Salvador (Epucs), criado por Mário Leal Ferreira, em 1946, Diógenes Rebouças notabilizou-se como pioneiro na Bahia de uma nova forma de fazer-se arquitetura, baseada numa visão interdisciplinar que não se descolava da realidade urbana. No seu trabalho prevalecia sempre a visão do urbanista sobre a concepção arquitetônica dos projetos específicos. Intelectual de ampla envergadura, ele contribuiu de forma decisiva para abrir a capital baiana às demandas de crescimento configuradas nas décadas de 1960 e 1970. Além de arquiteto e urbanista, Diógenes se notabilizou como professor, moldando sucessivas gerações de arquitetos na Escola de Arquitetura da Ufba, e como pintor, sendo considerado um dos melhores da sua geração.
Se o Epucs tornou-se um marco no planejamento urbano do país, graças à visão pluridisciplinar de Mário Leal Ferreira dando contornos modernos à cidade do Salvador, Diógenes Rebouças foi o responsável pela coordenação dos principais projetos urbanos implementados no período de 1940 a 1970 na capital baiana. Com a morte de Mário Leal, em 1947, ele assumiu o comando das pesquisas e da execução das propostas do Epucs. Diógenes Rebouças passou a ser figura central na história do urbanismo moderno do pós-guerra em Salvador. O seu prestígio ultrapassou as fronteiras baianas e garantiu-lhe um intercâmbio sistemático com os pioneiros do movimento modernista do país, entre eles Lúcio Costa, Oscar Niemeyer, Afonso E. Reydi, Burle Marx, Paulo Antunes Ribeiro e Bina Fonyat. Foi o responsável pelo convite a arquiteta Lina Bo Bardi para reformar o Solar do Unhão e para ensinar na Escola de Belas Artes. Diógenes mostrou-se um adepto da matriz de base corbusiana, que primava pelo uso racional dos materiais, métodos econômicos de construção, linguagem formal sem ornamentos e diálogo sistemático com a tecnologia industrial.
Do seu escritório de arquitetura, assessorou e coordenou a execução de diversos projetos na capital baiana, como a Avenida Contorno, a Estação Marítima, as faculdades de Farmácia, de Arquitetura e a Escola Politécnica da Universidade Federal da Bahia, o projeto do Estádio da Fonte Nova, o terminal do ferry-boat e a restauração do Paço do Saldanha, sede do Liceu de Artes e Ofícios.
A concepção programática do grande educador baiano Anísio Teixeira encontrou uma forma arquitetônica moderna no projeto realizado por Diógenes Rebouças e Hélio Duarte na cidade de Salvador, em 1947. Foram eles os responsáveis pela concepção do projeto da escola parque. Em meio a uma grande área verde, a transparência das salas de aula tornava obsoletos os prédios escolares da época. Este projeto foi solicitado pela Secretaria da Administração do Estado da Bahia na gestão do então Governador Otávio Mangabeira. A obra começou em 1947, sendo concluída em 1962. No entanto, em 21 de setembro de 1950, ela foi inaugurada com apenas três dos seus cinco edifícios e três escolas classes. Uma marca do trabalho do Diógenes Rebouças era uma arquitetura que não se deslocava da realidade urbana. Lembrando sempre a visão global de Mário Leal Ferreira, mentor do Epucs, repetia que o método de aprendizagem não se inicia pelo desenho de um objeto isolado, tipo hospital, escola, edifício residencial, mas decorre de um processo gestado nos problemas mais amplos inerentes à cidade, tais como saúde, educação, habitação, esporte, lazer, turismo etc. Após a inserção conceitual e urbanística na problemática, era então postulada a eleição do tema.
Como salienta um dos discípulos de Diógenes Rebouças, o professor e arquiteto Helidorio Sampaio, em artigo publicado no jornal A Tarde, para o “mestre Diógenes” sempre existia um raciocínio maior, que é o que legitima a arquitetura em face do contexto físico, histórico, social e econômico da cidade. “Logo, ao seu ver, estética não é algo imposto como uma condição ‘a priori’, pois os valores formais deveriam fluir e reforçar aquela relação entre o ‘partido arquitetônico’ e o que ele chamava de geomorfologia do sítio, que era a base da própria cidade e sua lógica, seus princípios”, observou. Um dos princípios basilares da obra de Diógenes Rebouças, observa Heliodorio, está na convicção de que antecede a idéia de arquitetura uma lógica maior – a noção da cidade, vista na melhor tradição de tentar articular arquitetura e urbanismo como coisas indissociáveis. Diógenes Rebouças criticava os arquitetos que se descolavam do seu contexto, que “desenhavam sem pensar”. Chamava-os de “arquitetos cujas mãos estavam a quilômetros de distância da cabeça”. Outra característica sua era a de conceber o projeto como meio e não como fim. “Projeto é papel pintado, e papel se rasga e joga fora, faz-se outro e mais outros tantos. Já a obra, não. Se feita errada, estará sempre lá espiando nossos equívocos”, dizia.
Publicado originalmente na Revista Bahiainvest Junho de 2006

segunda-feira, 13 de abril de 2009

Quem Pensou a Salvador do Futuro? MÁRIO LEAL FERREIRA

Um pioneiro do planejamento

Dona de uma beleza natural e arquitetônica exuberantes, a Cidade do Salvador sinalizava, na primeira metade do século passado, o acúmulo de problemas urbanos gerados por um crescimento sem planejamento. 
Na chamada “cidade presépio” das décadas de 30 e 40 prevaleciam deficiências como iluminação pública ruim, ruas estreitas, falta de saneamento e carência de transporte coletivo, entre outras.
A solução para esses problemas começaria a ser pensada no início da década de 40 por uma equipe multidisciplinar, composta por engenheiros, arquitetos, historiadores, advogados, sociólogos, antropólogos e médicos. 
Tendo à frente o baiano Mário Leal Ferreira, o Escritório do Plano de Urbanismo da Cidade do Salvador – Epucs, foi responsável pela elaboração do plano que mudou a cara da capital baiana e configurou a cidade como pode ser vista hoje.
O Epucs tornou-se um marco no planejamento urbano do país. Haviam cidades planejadas na sua gênesis. Mas, pela primeira vez, um escritório de urbanismo estava planejando e projetando a evolução e o desenvolvimento de uma cidade brasileira. O objetivo, como observa o livro Epucs – uma experiência de planejamento urbano, era criar e consolidar uma consciência urbanística, “sem a qual não seria possível uma expansão racional e metódica da capital”.
Idealizador do Epucs, e seu primeiro comandante, Mário Leal Ferreira era um baiano adepto da engenharia pluridisciplinar. Nascido em janeiro de 1895 e formado em engenheiro geógrafo pela Escola Politécnica da Bahia, em 1914, iniciou sua vida profissional no Rio Grande do Sul, mudando-se, em seguida, para o Rio de Janeiro, onde foi, por muitos anos, professor da Escola Nacional de Engenharia, na disciplina “Higiene, Saneamento e Urbanismo”.
 Foi ainda professor de “Higiene da Habitação”, na Escola Nacional de Belas Artes. Fora da Academia, Mário Leal Ferreira atuou como engenheiro-chefe do Serviço de Água de São Paulo, organizou e dirigiu o Laboratório do Serviço de Águas e Esgotos do Distrito Federal e dirigiu a engenharia sanitária dos Serviços de Saúde do Estado do Rio de Janeiro. Coordenou também o Departamento de Geografia e Estatística do governo federal.
Volta a Salvador através do seu prestígio junto ao presidente Getúlio Vargas, conseguiu uma bolsa da Fundação Ford, iniciando sua trajetória internacional pela Universidade de Harvard, nos Estados Unidos, onde se especializou em engenharia sanitária. Em seguida, foi para as Filipinas, atuar junto ao combate à epidemia de febre tifóide. Como bolsista da Fundação Rockfeller, dedicou-se a estudos em engenharia e sociologia. Em países como França e Alemanha, além de nações da América do Sul, desenvolveu estudos e projetos.Na década de 40, ele retorna a Salvador para apresentar um plano de urbanização para a cidade, como alternativa à proposta defendida pelo francês Alfred Agache, um dos maiores urbanistas do mundo. Os técnicos da prefeitura, comandada então pelo prefeito Durval Neves da Rocha, aprovam a proposta do baiano, mesmo tendo um custo um pouco superior a do francês. 
Como lembra o ex-secretário de Planejamento da Prefeitura de Salvador, Manoel Lorenzo, seu plano tem influência do urbanismo progressista, cujo maior expoente era Le Corbusier, e as idéias do urbanista Patrick Geddes, que rejeitava a adoção de modelos, não concebendo uma “cidade tipo”, mas tantas cidades quanto a realidade apresentasse.
“Mário Leal concebia o planejamento como um processo e, por essa razão, previa o detalhamento de cada um dos setores integrantes do zoneamento, quando deveriam ser detalhados os centros de bairro. Em consonância com essa visão processual, aventava duas alternativas para a legislação urbanística: uma, geral, abrangeria toda a zona urbana de uma só vez; outra trataria a cidade por partes/setores, sendo de sua preferência esta última. No entanto, a alternativa que vingou e se transformou no Decreto-Lei 701/48, foi a primeira”, avalia Lorenzo.
Início do Epucs 
Em abril de 1943, começa a funcionar o Epucs, no terceiro andar de um edifício na Praça Cayru. Foram desenvolvidas pesquisas de investigação histórica e científica na cidade e entrevistadas cerca de 4.500 famílias. Na sua proposta de trabalho, Leal Ferreira avaliava que “corrigir os defeitos de uma cidade ou lhe projetar o desenvolvimento deve ser, antes de tudo, motivo de prescrutação do passado, visando identificar, através de investigação histórica e científica, os fatores que influíram na sua evolução”.
A proposta de trabalho previa um sistema integrado, no qual se articulassem duas redes de avenidas– uma para o tráfego mais lento, de acesso aos bairros, e que seria implantada nas partes mais altas, interligadas por viadutos, e outra, a ser construída nos vales, através de avenidas. Exemplos deste tipo de avenida são a do Vale do Canela e a da Avenida Centenário. 
No livro O Macroplanejamento da aglomeração de Salvador, A S. Scheinowitz explica a opção pela rede de avenidas de vale: “Caminhando no meio de jardins, a rede permite uma extrema mobilidade e uma grande segurança, já que o fluxo de carros é isolado das habitações. Além disso, os pedestres não usam essa rede, pois as habitações estão situadas onde chegam também os transportes coletivos. Enfim, a conjugação das avenidas de vale com as redes de esgoto, os canais de drenagem e a distribuição de água facilita muito a manutenção e ampliação dessas infra-estruturas. As avenidas de vale teriam ainda o objetivo de proteger a zona residencial dos ruídos, poeiras, gases de combustão dos automóveis e acidentes”.
O Escritório do Plano de Urbanismo da Cidade do Salvador – Epucs, apresentava propostas relacionadas ao encaminhamento de soluções para os problemas de Salvador de então apresentados nas diversas áreas. Na área de Saúde, por exemplo, foi proposta a construção de uma clínica tisiológica no Hospital das Clínicas, no Canela, e o Dispensário Ramiro de Azevedo, ambos voltados ao tratamento gratuito dos portadores de tuberculose, uma doença de alta incidência na época. O saneamento do Rio Camurugipe também começou com o Epucs.
Na área de turismo, em razão de carência detectada pelo pessoal de Mário Leal Ferreira, foi projetado pelo arquiteto Diógenes Rebouças o Hotel da Bahia, no Campo Grande. Já na área de segurança pública, foi definida a construção da Penitenciária Lemos Brito, no barro de Mata Escura. A localização e a coordenação do projeto do primeiro Teatro Castro Alves foi uma das contribuições do Epucs na área cultural. Outro projeto desenvolvido pelo Escritório foi a Escola Parque, no bairro de Caixa D’Água, que passou a contar com a direção do educador Anísio Teixeira.
Diretrizes básicas
O prazo para conclusão dos trabalhos do escritório estava previsto para 1946, quando parte do plano foi entregue ao então prefeito Armando Carneiro da Rocha. Foi solicitado um adiamento no prazo de oito meses para encerramento dos trabalhos, mas, em razão da complexidade do plano, foi solicitado um novo adiamento em janeiro de 1947. No dia 11 de março do mesmo ano morre, em razão de problemas gástricos, Mário Leal Ferreira, assumindo o comando o arquiteto Diógenes Rebouças.Em janeiro de 1948 é criada a Comissão do Plano de Urbanismo da Cidade do Salvador – Cpucs. 
Sua função seria concluir as pesquisas do Epucs. Em 1949, começa a execução das propostas do Escritório do Plano de Urbanismo da Cidade do Salvador. A construção das avenidas Centenário e Amaralina dá início ao plano. Era o começo de uma série de obras propostas pelo Epucs, a exemplo da Avenida Vasco da Gama, ligando o Dique do Tororó ao Rio Vermelho, a Avenida Contorno, ligando a Cidade Baixa a Cidade Alta, o Estádio da Fonte Nova, As avenidas Cardeal da Silva, Mário Leal Ferreira (Bonocô), Antonio Carlos Magalhães, Magalhães Neto, Presidente Castro Branco (atual Tancredo Neves), Garibaldi e Suburbana. Isso sem falar nos viadutos Marta Rocha, da Federação, azaré/Barbalho, Fonte das Pedras, entre outros.Mas a morte de Mário Leal acabou por provocar uma queda no ritmo de trabalho. 
Em 1958, foi extinta a Cpucs, sendo todo o seu pessoal e acervo transferido para a recém-criada Seção de Planejamento. Um ano mais tarde foi criada a Superintendência de Urbanização da Capital– Sucap, cujo objetivo era executar as obras do sistema viário propostas pelo Epucs.
Na década de 70, surge o Órgão Central de Planejamento – Oceplan, com a finalidade de retomar o planejamento de Salvador, tendo em consideração as novas condições e características da cidade. Na década de 40, Salvador tinha uma população de cerca de 400 mil habitantes. Na década de 60, esse número dobra, chegando hoje a 2 milhões e 500 mil habitantes.Todo o trabalho de Mário Leal Ferreira foi desenvolvido sem ajuda das tecnologias informacionais de hoje. Naquele tempo, o equipamento era uma régua de calcular e calculadoras que faziam apenas as quatro operações básicas. Além disso, o Epucs enfrentou dificuldades de diversas ordens. 
Como Salvador não possuía cartografia, todas as plantas da cidade tiveram que ser desenvolvidas. Isso sem falar, que a maioria dos integrantes da equipe não possuía experiência em planejamento urbano, em especial num planejamento interdisciplinar. Desta forma, o Epucs acabou sendo uma escola de planejamento para toda uma geração de profissionais. E o Plano Mario Leal Ferreira cumpriu seu propósito de oferecer à cidade as diretrizes básicas para o seu crescimento.
*Publicado originalmente na Revista BahiaInvest-- maio de 2004

quinta-feira, 9 de abril de 2009

Delegação da Gestão do Porto

Osvaldo Campos

A principal experiência brasileira de delegação da gestão portuária a municípios vem ocorrendo em Santa Catarina, onde, desde 01/12/1997, através do convênio de delegação nº 08/97 a União transferiu ao município de Itajaí a administração do porto local.
Seguindo o modelo largamente utilizado na Europa, onde a atividade portuária representa a principal atividade econômica das cidades que abrigam grandes portos, o município de Itajaí apostou na profissionalização da gestão do porto e na integração do planejamento portuário, aos planos diretores de desenvolvimento urbano e econômico da cidade, como estratégias capazes de promoverem o desenvolvimento sustentável do município. Desde a delegação da gestão ao município, o porto vem apresentando um dos maiores crescimentos na movimentação de cargas entre todos os portos brasileiros e, Itajaí e sua região de influência vêm atraindo inúmeras empresas, gerando desenvolvimento, emprego e renda para toda região.
O que se propõe para o município de Salvador é a enfatização do papel do porto para o desenvolvimento econômico do município. Deve-se inicialmente, através da celebração de convênios com cidades portuárias brasileiras (como Itajaí) e européias (como Roterdan, Hamburgo, Antuérpia e Amsterdan), colher subsídios e experiências que possam ser replicadas em Salvador.
Como exemplo, podemos adotar para Salvador a declaração de princípios do Porto de Amsterdam : “ The port in fact belongs to the municipality or city of Amsterdam under whose instructions Port of Amsterdam Authority manages, operates and develops the port. The main aim is stimulating economic activity and employment in the entire Amsterdam port region.” (O porto efetivamente pertence à municipalidade ou à cidade de Amsterdã sob a orientação da qual a Autoridade Portuária de Amsterdã gerencia, opera e promove a expansão do porto. O principal objetivo é estimular a atividade econômica e a geração de empregos em toda região de influência do porto de Amsterdã).
Deve-se buscar através da integração das gestões do porto e do município, uma maior participação do setor privado na administração e no planejamento das atividades portuárias. O fortalecimento dos órgãos representativos dos setores produtivos privados como Federações das Indústrias, Agricultura, Associação Comercial e dos segmentos ligados ao Turismo e Serviços, na gestão do porto, será essencial para o sucesso da nova estratégia de desenvolvimento do porto e da economia da cidade.
A ênfase da estratégia relacionada à integração da gestão portuária à administração do município deverá ser o desenvolvimento dos setores de serviços, comércio e turismo. Estas atividades são convergentes com as atividades portuárias, que, em Salvador deverão priorizar o desenvolvimento de três segmentos específicos, quais sejam os serviços relacionados à operação de navios porta-contêiner, dos navios de Cruzeiros Marítimos e, incluindo ainda o terminal portuário privado do grupo M dias Branco também localizado em Salvador, as operações de grãos.
A integração das gestões do plano de desenvolvimento e zoneamento do porto - PDZ com o plano diretor de desenvolvimento urbano - PDDU, facilitará o equacionamento de importantes questões pendentes, como os projetos dos novos acessos rodoviário e ferroviário, e, os planos para expansão do porto, com destaque para a construção do novo terminal de contêineres e do novo terminal de cruzeiros marítimos.

Com a delegação do porto ao município de Salvador haverá uma mobilização do poder executivo municipal, da Autoridade Portuária e de toda a comunidade portuária local para que os projetos do novo terminal de contêineres, dos novos acessos terrestres e do novo terminal de Cruzeiros Marítimos, saiam do papel e se materializem. Salvador passará a dispor da melhor infra-estrutura portuária do Norte e Nordeste nestes segmentos, assumindo a liderança nestes importantes mercados. Com a expansão da atividade portuária haverá a geração de novos empregos, renda e maior desenvolvimento econômico sustentável para a cidade de Salvador e todo o Estado.
A Bahia que já detém a liderança no comércio exterior com mais de 55 % das exportações da região Nordeste terá condições de continuar atraindo novos investimentos industriais e crescer ainda mais, com a viabilização destes projetos portuários. A cidade do Salvador por outro lado poderá também se fortalecer como grande centro voltado para o comércio exterior e o segmento de serviços, expandindo e atraindo novas atividades relacionadas aos segmentos de transportes e logística, comércio em geral, atividades financeiras e de prestação de serviços diversos.
O município do Salvador também poderá se consolidar como Hup-Port para navios de Cruzeiros Marítimos, com o início e fim dos roteiros ocorrendo em Salvador, com as empresas aqui instaladas passando a fornecer toda gama de serviços, materiais e gêneros alimentícios às embarcações, seus turistas e tripulantes. Com a consolidação de Salvador como hub-port e não mais como porto de escala ocorrerá um aumento no tempo de estadia dos turistas que poderão ao término dos cruzeiros, permanecerem alguns dias a mais na cidade ou se deslocarem para outras regiões do Estado da Bahia.
Como podemos constatar a delegação da gestão do porto ao município de Salvador, com a profissionalização da administração da Autoridade Portuária e a maior participação da comunidade local na busca das soluções para as grandes questões pendentes, propiciará a médio e longo prazo a expansão das atividades portuárias com reflexos positivos sobre toda economia do município e região de influência.

Salvador, maio de 2008.

quarta-feira, 8 de abril de 2009

A Baianidade e o Corpo

Angelina Bulcão Nascimento

A Bahia não poderia ficar imune aos modismos corporais facilmente verificáveis no cotidiano da nossa capital. Academias, lojas de produtos naturais e vigilantes do peso proliferam. O discurso dietético permeia as conversas, a orla é invadida pelas pessoas que fazem ‘cooper’. Tampouco as novas concepções de moral deixaram de atingir seus habitantes, alterando hábitos e atitudes.Entretanto, as mudanças das práticas corporais não podem ser indissociadas, na Bahia, de alguns aspectos incluídos na expressão ‘baianidade’. Esta alcunha teria se originado nos tempos do Brasil colônia (*) começou a circular e entrou no vocabulário popular e nos dicionários. Segundo Armindo Bião, em palestra realizada no Seminário de Cultura Contemporânea da Pós Graduação da FACOM, o imaginário brasileiro sobre a baianidade, expresso em piadas, programas de televisão e canções, representa os baianos como “um povo dengoso, faceiro, afetado, enfeitado, requebrado, jovial, feiticeiro, manhoso, birrento, que fala alto e cantando, que adora ver e ser visto, que se pega muito, que reconhece os lugares pelos cheiros de azeite, de sujeira e de maresia, que cultua: o aqui e o agora; o passado mas sobretudo o presente; a preguiça, a festa; as praias e as ladeiras; as pimentas (que atiçam o paladar), as figas e os balangandãs que enfeitam e protegem; a dança, a música e todos os espetáculos; além, de, naturalmente, todos os santos”. Acrescenta Jorge Amado, em seu livro “Bahia de Todos os Santos” , que o baiano faz da amabilidade uma verdadeira arte, é arguto, cordial e compreensivo, descansado e confiante, gosta de rir, conversar e de contar casos, o que reforça a imagem de descontração e afabilidade. O autor apresenta a Bahia como uma terra de contrastes e contradições: cidade negra por excelência, é também uma cidade portuguesa. O novo e o velho, a riqueza e a pobreza dividem espaços em quase todos os bairros. Embora muitas vezes reacionária e saudosista, é também revolucionária. As formas de modernidade conservam a essência do tradicional que dificultam uma definição precisa da nossa identidade. Entre a religião e a superstição, por exemplo, os limites inexistem. O catolicismo, também professado por uma população fiel aos cultos africanos, convive com o candomblé e lhe empresta os santos. Com sinaliza Amado, é possível identificar algo de pagão na religião dos baianos, que beira o sensual e nos dá a impressão de que as centenas de igrejas sejam um prolongamento dos terreiros. Tal como Jocasta, Iemanjá, deusa das águas, foi mãe e amante. Seus devotos têm por ela uma ternura que oscila do filial ao sensual. Ela é representada não apenas como uma sereia, mas como uma virgem, Nossa Senhora da Conceição, cuja festa é tão freqüentada quanto a festa de Iemanjá. O sincretismo também se traduz na mistura de cultos dos deuses Dioniso (desinibição, entusiasmo, espontaneidade) e Apolo (o fervor sóbrio, disciplinado e comedido). O corpo que se dobra de joelhos diante do deus cristão, também se rebola para honrar os orixás. Constatadas todas essas peculiaridades, podemos ver como, e se isso repercute nas práticas corporais contemporâneas na Bahia.Parece existir um ‘algo mais’ na corporalidade dos baianos, os quais criaram fama de preguiçosos, vagarosos, e até pouco tempo atrás não conjugavam o verbo ‘pular’ como os cariocas, e sim o verbo ‘brincar’ no carnaval.Os novos costumes encontraram na Bahia uma realidade diferente de outras capitais do país. Uma realidade em que as mentalidades sofreram influência da miscigenação de raças, mesmo que, em alguns segmentos sociais, esta influência tenha permanecido latente.As famílias de classes médias e altas, por exemplo, parecem ter sido refratárias durante muito tempo às influências africanas. Nestes segmentos sociais, a sensualidade era contida e reprimida, e o corpo sujeito a interdições de várias ordens. As distinções de formas de comer, sentar, andar, vestir, foram estimuladas como elementos de diferenciação, determinados pelos preconceitos raciais e econômicos. A renúncia ao prazer e ao conforto, exigida pela moral judaico-cristã, se expressava nos comportamentos de cama e mesa. Sabemos também que, até poucas décadas atrás, era nítida a distinção da prática religiosa entre as classes sociais. Os segmentos mais altos se limitavam a freqüentar os templos católicos, participar de procissões e novenas que, extrapolando seu objetivo religioso, permitiam a aproximação entre rapazes e garotas vigiadas, mas que não ia além dos olhares. As festas influenciadas pelos ritos afros, tais como lavagens de igrejas, com características carnavalescas, reuniam apenas a população dos bairros mais pobres, pois o candomblé, perseguido vários anos, era considerado religião de negros e sofria toda a carga de preconceitos. Nessas festas sacro-profanas, a música e a dança aproximavam os corpos, que se misturavam sem censura.Nos últimos anos, são inegáveis as mudanças verificadas nos estratos sociais elevados de Salvador, relativas aos princípios educacionais, que exigiam pudor e recato às mulheres. As danças mais sensuais, outrora restritas a camadas mais pobres da população, vítimas de discriminações de ordem racial e econômica, hoje são assumidas por todas as classes sociais e por ambos os sexos. ‘Garotas de família’, ‘patricinhas’ e ‘mauricinhos’, católicos e intelectuais aderem ao ritmo que lhes faz mexer com todas as partes do corpo, em movimentos que sugerem o ato sexual. Além dos fatores de mudanças acima citados, ressaltamos possíveis influências locais para transformações de comportamentos relativos ao corpo, saúde e moralidade:Antropólogos discorreram sobre a influência da chamada ‘cultura da praia’, referindo–se aos comportamentos e valores das populações que habitam cidades na orla marítima. Admitindo que os brasileiros ‘têm um culto da praia’, Thales de Azevedo (**), concluiu que esta, para muitos, determina formas de lazer e de relacionamento, tornando-se uma espécie de local obrigatório, uma válvula de escape para problemas e ansiedades. Além do mais, a cultura da praia vai de encontro à moral burguesa cristã, expressa no recato e na ‘pureza’, na contenção da sexualidade, na forma de lidar com o corpo, liberando a sensualidade. Amantes da areia, do sol e do sal e devotos de uma deusa que reina nos mares, os baianos estão, sem dúvida, sob efeito desta influência. Nos anos 70, tempos do ‘milagre brasileiro’, começou a ser difundida a imagem do ‘tropical feliz’ com o provável objetivo de neutralizar as desventuras dos habitantes do terceiro mundo. E foi nesse contexto que a Bahia se tornou a Meca dos foliões, dos amantes da dança e adoradores do sol. Aos poucos, houve adesão de intelectuais, artistas plásticos, professores, etnólogos, pesquisadores de diversas áreas, além da propaganda utilizada por oportunismos políticos e interesses turísticos. Um número cada vez maior de pessoas de classes altas foi atraído para os cultos e festas afros. O que, até então, fora rejeitado virou modismo. O espaço de lazer, antes restrito às praias (em horários delimitados), aos ‘footings’ no Farol da Barra, às matinês, ampliou-se para as ruas.É possível identificar uma tendência do baiano para o espetacular. Citando mais uma vez Bião, “na Bahia, o mundo é barroco e não é só um teatro, é muito mais, é um espetáculo total”. Salvador tornou-se um imenso palco onde, como se diz , ‘quem não está dançando, está ensaiando’. Esta frase contribui para a estereotipada imagem ‘oba-oba’ do baiano que troca o trabalho pela folia.Durante muito tempo, desconhecidas ou desprezadas pelas famílias tradicionais, a dança e música baianas contribuíram para derrubar algumas barreiras entre as classes, propiciando liberação de uma sensualidade proibida. O sucesso da música baiana ilustra o poder que tem a mídia. Que, para ela, abriu espaço, cada vez maior, nos programas de rádio e TV, ampliando as representações da Bahia como um lugar exuberante e sensual. A dança encontrou espaço ideal em uma terra onde o teatro, introduzido pelos jesuítas desde os tempos da colônia, com seus traços das formas espetaculares da cultura espanhola e italiana, seduziu seus habitantes. Os gestos eróticos, característicos de algumas danças africanas, foram recriados na Bahia, gerando estilos peculiares e permitindo catarses e soltura dos braços, pernas, quadris, nádegas, como foi o caso do lundu (dança de grande expressão nos palcos baianos do século XIX) a umbigada, a lambada, a timbalada, o ‘axé music’. Este último, assim como o pagode, apela para coreografias constantemente renovadas, estimulando o molejo do corpo e a sensualidade. Sensualidade que invade as relações quotidianas.A expansão das danças e músicas sensuais para todas as classes tem ou pode ter a ver com a ideologia dos lucros: percebendo um grande filão de consumo nas classes mais altas e anteriormente mais pudicas, a mídia passa a legitimar tais comportamentos com vistas a ganhar um grande e poderoso mercado consumidor. A música e dança baianas fazem com que o verão, o carnaval e a permissividade se prolonguem o ano inteiro originando um novo mercado econômico. Parece infinita a criatividade dos movimentos: ora se imita a galinha, o crocodilo, a tartaruga, a manivela, ora o gingado ganha outros apelidos sugestivos como ‘tortinho’, ‘deboche’, ‘fricote’. O carnaval recuperou seu caráter pagão e dionisíaco, abrindo as portas de um mundo isento do pecado. O mito do paraíso tropical corre o mundo, traz estrangeiros, enche os cofres públicos e particulares, democratiza a sensualidade, tenta driblar o mal-estar da civilização contemporânea. Sambar no asfalto, seguir o trio elétrico, amanhecer num bar, freqüentar festas de largo e lavagens, tornaram-se opções de lazer da elite. Essa mudança teve efeitos multiplicadores, e repercutiram intensamente na maneira de pessoas condicionadas a serem contidas soltarem seu corpo.Devemos perceber, porém, que essa adesão, por parte das elites, a certos costumes afros (antes apenas restritos a pobres e negros) não implica o apagamento das fronteiras e delimitações sociais. Os blocos carnavalescos, com seus cordões de isolamento e seguranças contratados, bem o ilustram. A separação de classes continua, portanto. O preconceito também racial persiste, embora muitas vezes disfarçado nos cuidados estéticos com o corpo. Na elite econômica, os narizes achatados são afinados por cirurgiões plásticos, os cabelos crespos são alisados por cabeleireiros competentes, e os quadris avantajados corrigidos com muita malhação e lipoescultura.Mesmo admitindo que a maioria esmagadora do povo baiano não escape da miscigenação, o verniz importado da cultura branca prevalece. Poderíamos, então, excluir as características da baianidade dos estratos mais altos da cidade de Salvador? A resposta a essa pergunta certamente exigiria análises mais amplas e cuidadosas. Mas não se pode negar que a influência negra tomou de assalto a maioria da população baiana, mesmo que não seja assumida diretamente. Pois é possível identificar um denominador comum entre as classes sociais, referente à descontração, espontaneidade, paixão pela música e dança, pelos espaços abertos, pela sensualidade que inspirou G. Gil ao compor: Toda menina baiana tem um jeito que Deus dá ...E se prestarmos atenção, podemos identificar em Salvador o sincretismo que também se aplica às práticas corporais, mistura da obsessão pela saúde que exige disciplina e renúncia aos prazeres, e o hedonismo expresso na satisfação dos apetites, sejam eles voltados para a comida e bebida que é pretexto para o encontros, sejam nas inesgotáveis formas de lazer que fazem da Bahia uma festa permanente. Apolo e Dioniso tomam assento ao lado dos orixás.

(*)A. Bião, op. cit., levanta a hipótese de ter havido uma proto-idéia de baianidade entre 1580 e 1640, quando Portugal era dominado pela Espanha. “Talvez date dessa época a criação de um adjetivo pátrio que viria a definir a identidade baiana, sobre o fato de constituir-se esse locus em singular nó da rede de relações culturais entre a Europa, as Américas, a África e Oriente. De fato, a baianidade parece soar bem em espanhol: la baianidad”.(**) O antropólogo prof. Thales de Azevedo em seu trabalho A Praia, Espaço de Sociabiliade. publicado pelo Centro de Estudos Baianos em 1988.

terça-feira, 7 de abril de 2009

O Rio Vermelho de minha infância e Juventude

Almir Santos

Cresci ouvindo histórias do Rio Vermelho. Primeiro, contadas por minha avó Amélia. Uma santamarense nascida em 02 de janeiro de 1882, que adotou o Rio Vermelho aos dois anos.
Lá minha avó casou e nasceram todos os seus filhos. As emocionantes histórias por ela contadas não foram registradas em nenhum documento, mas ficaram fresquinhas na minha memória. Tem até estória de lobisomem que aparecia freqüentemente. Falava de fatos, pessoas, lugares, transportes etc.
Contava do sucesso do meu avô Manuel da Paixão Ferreira, também conhecido como Pequeno, comerciante que teve um dos maiores armazéns na época. Dos compadres João Batista e Raul. Do Sr. Nazareth. Dona Anunciata, uma amiga italiana que teria morrido afogada na praia da Paciência não fora a coragem e habilidade de minha bisa-avó Joaquina. Das famílias Odilon Santos e Tabuada.
Do presente da Mãe d’Água, hoje conhecido como festa de Iemanjá. Do Bando Anunciador. Da Ladeira do Papagaio, onde morou, hoje integrante do corredor Cardeal da Silva. Dos sobrados coloniais. Das pescarias de xaréu. Das canoas e saveiros.
O Rio Vermelho, uma vila predominantemente de pescadores, era separada do centro da cidade por florestas e fazendas. O acesso ao centro, quando não feito a cavalo, era feito por um trem, chamado pelo povo de “maquina” que ligava o Campo Grande até às imediações da atual rua Lídio Mesquita.
Para vencer a grande diferença de nível o traçado da linha do trem contornava toda a elevação onde hoje se situa o Colégio Antônio Vieira, (daí o nome de Curva Grande), passava por baixo do Primeiro Arco, atingia uma via que viria ser denominada Rua do Trilho e, posteriormente, Rua Gomes Brandão, alcançava a Rua Garibaldi, passava sob o Segundo Arco, nas proximidades do viaduto da TV Itapuã, seguindo pela Rua Garibaldi até a Rua da Paciência.
Mais tarde essas histórias eram ratificadas por minha mãe, Núbia, nascida naquele arrabalde, como se dizia antigamente.
Quando me entendi não havia ônibus. O transporte de passageiros era o bonde, que saía do Terreiro de Jesus até o Campo Grande, daí ate o Largo da Mariquita. Só que o bonde não passava pela Curva Grande. Fazia o percurso ao longo da atual Avenida Leovigildo Filgueiras, passava por cima do Primeiro Arco, seguindo o trajeto do antigo trem. Era a linha 14 – Rio Vermelho.
Para se chegar ao Rio Vermelho, também poderiam ser usadas as linhas 16 – Amaralina e 15 – Rio Vermelho de Baixo. Esta última tinha o seguinte itinerário: Barroquinha, Largo do Teatro, hoje Praça Castro Alves, Rua da Ajuda, Rua do Tijolo, Baixa dos Sapateiros, Sete Portas, Rua Djalma Dutra, Fonte Nova, Rua Vasco da Gama, Largo da Mariquita.
Nos presentes da Mãe-d’Água havia muitos bondes extras para atender à demanda de passageiros, onde os homens ostentavam os seus belos liformes brancos e as mulheres seus trajes típicos e oferendas.
Pelas suas praias, pelas pessoas e coisas que existiam e pelo fato de ter nascido e crescido ao longo desse trajeto o Rio Vermelho passou a fazer parte da minha vida.
As mais recentes histórias aqui narradas foram por mim vividas.
Lembro-me que entre o Primeiro Arco e a Rua da Paciência não havia pavimentação. A linha do bonde só era dupla em alguns trechos. Havia necessidade de se esperar o sinal livre enquanto o outro bonde que vinha em sentido contrário.
Lembro-me do mato que arrastava nos passageiros que viajavam no estribo.
A maior emoção, quando levado à praia por meu pai e minha mãe em companhia de meu irmão Ayrton, era sentir o cheiro do mar quando o bonde passava da Vila Matos.
Nosso destino era o banho de mar na praia de Santana. Trocávamos a roupa na casa de Manuel de Lucila, pois não se andava nos bondes em trajes de banho.
Lembro-me das pessoas que ali moravam: Major Chaves, um eterno batalhador pela pavimentação da Rua Garibaldi. Morreu sem ver o seu desejo concretizado.
De Aymar Veloso, um fiscal da Prefeitura, Dr. Gratulino Melo, Chefe do Campo de Experimentação de Ondina, Dr. Lacerda, engenheiro da Prefeitura, dos seus filhos maestros Carlos e Toninho Lacerda e de sua filha Emília Lacerda, que nos deixou prematuramente. Da beleza de Marlene, do escultor Mário Cravo e tantos outros.
Do guarda 59 e do motorneiro, Sr. Xavier, que moravam na Vila Matos. De Eloi, meu barbeiro, que também morava na Vila Matos.
De quando, nos fins da década de 40, a linha 14 - Rio Vermelho foi contemplada com bondes fechados tipo sossega-leão. Que festa!
Do motorneiro do bonde 286, apelidado de Mão de Luva, que tinha um grande fã clube, mas sempre era punido por excesso de velocidade.
Dos descarrilamentos.
E da última linha de bondes que existiu em Salvador: Campo Grande-Rio Vermelho. Isso no início dos anos 60.
Dos meus colegas que utilizavam o mesmo transporte: do meu amigo Edyano Castro Meira, que morava na Rua Eurícles Matos (Paciência) 49.. De Ivan Reis, Ivan Rabelo, José Calazans. Dos irmãos Milton e Carlos Araújo.
De comprar manga na roça de René, onde hoje está situado o Parque das Mangueiras. Que delícia!
Da sede do Esporte Clube Ypiranga.
Do alargamento da Rua da Paciência quando foram demolidos vários casarões, inclusive a antiga Escola Guiomar Pereira. Da demolição do forte na Rua Guedes Cabral para urbanizar a área. Da construção da nova Igreja de Santana. Tudo isso até o fim da década de 60.
Esses depoimentos datam de tempos remotos, desde uma pequena Salvador de pouco mais de 100 mil habitantes até os nossos dias com 3,0 milhões de habitantes.
Em que pese o progresso, das novas tecnologias, de luxuosas edificações, hotéis cinco estrelas, o Rio Vermelho mantém vivas lembranças de um passado opulento.
Sempre teve o privilégio de acolher pessoas ilustres como o inesquecível Jorge Amado.
É o bairro preferido para moradia e lazer de artistas e intelectuais. É o bairro dos bares, restaurantes e comidas típicas. Abriga uma das mais belas festas populares do Brasil. A festa de Iemanjá.
Continua com o mesmo charme.

segunda-feira, 6 de abril de 2009

Um Lugar pra chamar de seu

REGINA MEYER

As cidades estão na ordem do dia, sobretudo as grandes cidades. Qual será a explicação, ou melhor, as explicações para esse protagonismo? Uma hipótese, entre outras, é que as cidades possuem atributos concretos por meio dos quais é possível avaliar as fortes e abrangentes transformações que estão em andamento em todas as esferas da organização da sociedade. É no interior das cidades que estão se reorganizando as atividades produtivas, cujas dimensões espaciais, sociais e culturais ganham forma. Seu caráter intrinsecamente ambivalente e material é, justamente, o tema de dois livros que se situam no interior de um grande arco de tempo que tem o ponto de partida no século 15 e o de chegada na primeira década do século 21. Estão aí presentes cinco séculos decisivos para a história da cidade. Nos dois extremos desse percurso situam-se "A Cidade do Primeiro Renascimento", de Donatella Calabi, arquiteta e professora no Instituto Universitário de Arquitetura de Veneza, e "Confiança e Medo na Cidade", do sociólogo Zigmunt Bauman. Professor nas universidades de Leeds e Varsóvia, é um dos mais profícuos autores da atualidade, com 17 livros já publicados no Brasil. Embora muito diferentes nas suas abordagens, ambos se situam em pontos distintos de um processo marcado por mudanças no quadro físico que as cidades experimentaram. Numa ponta situa-se o período identificado como primeiro Renascimento, patrocinado por príncipes que entenderam e exerceram com energia o poder a partir da edificação de espaços urbanos "mais organizados" no século 15. Na outra, os espaços da cidade contemporânea, que Bauman aponta como pós-moderna, regidos por príncipes multinacionais e globalizados cujas manifestações iniciais ocorreram no final do século 20. Enquanto Calabi utiliza instrumentos de análise que destacam a articulação entre os aspectos físicos e ideológicos das operações urbanas praticadas no século 15 europeu, Bauman aponta para a experiência desprovida de urbanidade que caracteriza a vida na cidade contemporânea. Entretanto, é indiscutível que ambos analisam de forma distinta um mesmo tema: as relações entre cidade e a sociedade. Nos dois casos fica evidente o acerto da análise de Manuel Castells [sociólogo espanhol] quando diz que a cidade não pode nunca ser vista como mero reflexo da sociedade, mas o seu principal instrumento de realização.


Fonte: Caderno Mais - Folha de São paulo,05/04/09

Agradecimentos

domingo, 5 de abril de 2009

Os Tamarindeiros da Barra

Oliveiros Guanais de Aguiar

No calçadão do Instituto Mauá, no Porto da Barra, havia dois imensos tamarindeiros. Eram belos gigantes vegetais, irmãos gêmeos resistindo às mudanças da cidade. Numa noite de tempestade, um raio desceu com violência e partiu um deles de cima a baixo, deixando duas bandas no chão. Foi uma pena e todos sentiram a morte da grande árvore, e talvez quem mais sentiu foi a companheira que lá ficou solitária, tendo assistido à tragédia que se abateu sobre sua irmã. ( Será que as árvores têm sentimentos? Talvez tenham.)
Dias depois do ocorrido, alguém [certamente de algum serviço da prefeitura, gestão 1993-1997] plantou uma mudinha de tamarindeiro no lugar em que vivera o que foi despedaçado. E como eu passo por lá quase todos os dias, vi a arvorezinha crescendo lentamente, numa vontade irresistível de viver. O tempo foi andando, houve mudança no comando da prefeitura, e a corrente que assumiu pertencia àquela linha que destruía tudo o que havia sido feito por adversários. Mas quem ia notar uma plantinha tenra, tão insignificante como aquela? E foi assim, por ser quase invisível, por não ter importância alguma - na opinião de muitos-, que ela sobreviveu, protegida por sua humildade. E foi crescendo, para ocupar o lugar de uma árvore centenária que um raio em fúria destruiu mas que tinha de renascer, porque o solitário tamarindeiro preservado precisava de sua réplica, porque eram eles símbolos vegetais do Porto da Barra antigo. E foi o que aconteceu. Hoje, passados mais de doze anos, o tamarindeiro novo está grande e viçoso, já tem fronde, já é árvore, ainda adolescente mas promissora, dando exemplo do que pode a vontade humana, que muitas vezes se debate com as forças da natureza, ora vencendo, ora sendo vencida. A desgraça provocada pelo raio poderia ser o fim daquela dupla de árvores gigantes, atalaias daquela pracinha, mas alguém acreditou num recomeço, e deu certo. O tamarindeiro novo dentro de pouco tempo estará igual ao velho companheiro que esperou por ele.


Salvador, janeiro de 2006
Oliveiros Guanais

sábado, 4 de abril de 2009

A Bahia já teve

Angelina Bulcão Nascimento

SALVADOR mantém, ainda nítidos, testemunhos e vestígios de mais de quatrocentos anos de história. O progresso não matou, nem o tempo apagou, a maioria dos seus fortes, solares e igrejas. Tampouco apagou as tatuagens deixadas pela cultura afro, expressas nas crenças, comportamentos, culinária. Pois os navios negreiros trouxeram não apenas escravos, mas concepções mágicas e religiosas que se espalharam e sobrevivem entre nós. E se misturaram tanto a ponto de não mais sabermos o que é história ou lenda, ficção ou realidade. Não é à toa que a cidade é cheia de mistérios... O mesmo não se pode dizer dos costumes. Repete-se a todo momento que a Bahia é a ‘terra do já teve’. Já teve pregão de rua, já teve ladrão de galinha, já teve jogo de baleado, pião e arraia empinada nas ruas sem trânsito. E já teve pesca do xaréu, já teve casarões mal-assombrados. Já teve, em suas praias, jegues carregando caçuás transbordantes de coco verde, jangadas atoladas na areia e palhoças de piaçaba. Já teve cinemas que passavam seriados de bang-bang. Já teve residência e restaurante universitário. Já teve homens usando pernas-de-pau na Baixa dos Sapateiros, contratados para distrair crianças buliçosas e chamar a atenção dos tabaréus ‘aperreados’ pelos sapatos. Já teve coisa que até Deus duvida! Contar e relembrar algumas dessas coisas é uma tentativa de resgatar a Bahia provinciana com encantos de cidade pequena, esta Bahia que não se estuda no colégio nem nos livros de História. Pois não só de lugares históricos se faz a vida de uma cidade. Desapareceram tradicionais pontos de encontro. Desapareceram trocas de visitas com direito a doce em compota. Desapareceram as inocentes travessuras estudantis. Desapareceram as madrugadas poéticas, os seresteiros boêmios. Desapareceram os tempos em que se vivia um ritmo mais lento e preguiçoso. Quando o sol se encolhia, as calçadas se enchiam de cadeiras e espreguiçadeiras. As novidades circulavam entre os vizinhos, e eram divulgadas antes das gazetas. Todos se conheciam, e conheciam a vida alheia. E contavam, é lógico, o que sabiam, senão se perdia a graça de saber. Como lembra o prof. Cid Teixeira: “Minha mãe dizia que a Bahia é lugar de muro baixo pois todo mundo enxerga o quintal do outro”(*). Mas o que a Bahia já teve não foi completamente perdido, pois sobrevive nas lembranças e histórias, contadas em prosa e em verso. O NAMORO na Bahia tinha características peculiares. As gerações do início do século apelaram para manuais, sem os quais seria impossível compreender os códigos utilizados para driblar a vigilância dos familiares. Tinham que usar a linguagem dos leques, da bengala, das flores, das cores etc. Após a primeira guerra mundial, as moças ganharam maior liberdade, embora dependessem da companhia de tias solteiras para saídas e encontros. As gerações dos anos 30 e 40 não perdiam as novenas do mês de maio, trezenas de Santo Antônio, mas não por motivos religiosos. Nos anos dourados, foi institucionalizado o 'footing' dominical no Farol da Barra. Por meio de olhares e gestos, o interesse pelo sexo oposto podia ser demonstrado. Mas Salvador custou a perder as características de província. Os pais continuaram a manter as proibições aposentadas em outras capitais. Durante anos, a garota só teve permissão para conversar com o namorado no portão de sua casa, vigiada, exposta à curiosidade dos vizinhos. A entrada do rapaz dentro do lar significava noivado. Por isso era freqüente, antes do pedido oficial, ele presenteá-la com uma ‘aliança de compromisso’. Depois da década de 60, as mudanças radicais dos costumes afetaram as formas do relacionamento amoroso. Nos anos 70, num estacionamento da orla, os casais podiam assistir ao que foi ironicamente batizado ‘corrida de submarinos’. A prefeitura local encarregou-se de policiar a área, garantindo a segurança local e a publicidade a nível nacional. Mas pouca gente sabe que a praia onde fica o atual ‘Jardim dos Namorados’ era chamada ‘Chega-Nego’. Isso porque, após abolição do tráfico de escravos, os negros contrabandeados desembarcavam ali. O historiador Cid Teixeira sugeriu que o nome original fosse mantido, mudando apenas a entonação: “Chega! nego” mas sua proposta não foi aceita. (*) Salvador deveria ser a cidade mais limpa do mundo com tanta LAVAGEM! Antigamente só existia a tradicional lavagem do Bonfim e, menos concorrida, a de Itapuã. Hoje em dia se lava tudo, numa sucessão interminável de lavagens que acontecem desde as primeiras semanas de janeiro até o carnaval. Quando não há igreja ou festa, se inventa. A tradição, apesar de sua origem católica, traz influências do candomblé. Limpar um lugar significa expulsar os eguns — almas de pessoas mortas — e outras entidades maléficas para garantir o equilíbrio energético. Existe, inclusive, o ‘Exu-Limpa-Caminho’. Através de sua ajuda torna-se possível realizar oferendas aos orixás, sem que nada impeça a comunicação com eles. O 'ponto chic' de Salvador, dos anos 30 aos anos 50 foi a RUA CHILE, apontada como a ‘sala de visitas da Bahia’, a ‘passarela da cidade’. Durante muitos anos, era um grande “shopping céu aberto” segundo o prof. Cid Teixeira. Também foi cenário de flertes e desfiles de modas. Os homens exibiam impecáveis ternos, chapéus, sapatos de duas cores. As mulheres não dispensavam suas jóias, luvas e saltos altos.A Rua Chile já foi chamada Rua Direita das Portas de Santa Luzia por causa da ermida dedicada à padroeira dos olhos, erguida no lugar onde foi construído o extinto teatro São João. Desaparecendo a igreja e fundado o Mosteiro de São Bento, passou a denominar-se Rua Direita das Portas de São Bento. Ganhou também o nome de Rua dos Mercadores e, mais tarde, Rua Direita do Palácio. Em 1902, recebeu o nome atual em homenagem ao povo chileno, cujos oficiais da Marinha visitavam a cidade. Em seu primeiro governo, J. J. Seabra (1912-1916) mandou alargá-la e, para isso, demolir as casas do quarteirão oriental.Desde a década de 30 o comércio se intensificou com lojas atraentes, entremeadas de consultórios dos médicos e dentistas de prestígio: CASA ARMAS DE PARIS, PARQUE REAL, NOVA AMÉRICA, AFRICANA, DUAS AMÉRICAS, CASA SLOPER, BELAS ARTES, CASA DA MÚSICA (EX-MILANO), ADAMASTOR, CASA ALBERTO, LOJAS CLARK, ALFAIATARIA DO SPINELLI com seu inesquecível anúncio: ‘Adão não se vestia porque Spinelli não existia’.Quem queria saber o que estava acontecendo na cidade tinha que ir à Rua Chile. A administração municipal e estadual se concentrava no trecho compreendido entre as Praças da Sé e a Castro Alves. Em acaloradas discussões, intelectuais, estudantes e políticos pareciam decidir o futuro do país. Dizem que as conversas de esquina derrubaram alguns cargos... Um dos centros de debates ficava próximo do Palácio Rio Branco. Os intelectuais se reuniam na Livraria Civilização Brasileira e os universitários em sua sede, a UEB, no segundo andar de um sobrado vizinho. Às quatro da tarde, começava a circular o jornal ‘A Tarde’ cujos primeiros exemplares eram disputados por uma pequena multidão. No edifício onde funcionava o vespertino, uma sirene anunciava os fatos extraordinários. Quem pensa que AMARALINA é alguma ninfa que habita os mares daquele bairro, pule, por favor, este pedaço. A verdade é mais prosaica: AMARALINA é palavra inventada por um latifundiário, um certo José Álvares do Amaral que havia comprado a fazenda ‘Alagoa’, situada naquela região. Rebatizou, então, as terras adquiridas, inspirado em seu próprio sobrenome. (*) Já a palavra PITUBA, que nomeia o bairro, significa cheiro forte. Provavelmente refere-se ao cheiro dos sargaços e da maresia peculiar à região, hoje quase sufocado pelo gás carbônico dos veículos. O historiador Cid Teixeira lembra ter caçado muito tatu nas proximidades do Iguatemi. Até os anos 50, a Pituba resumia-se às terras arenosas de um comerciante português chamado Manoel Dias da Silva. Este contratou o engenheiro Teodoro Sampaio para projetar a então ‘Cidade da Luz’, em homenagem à Nossa Senhora da Luz, cuja capela ficava próxima da atual igreja. Depois da morte de Manoel Dias, seu cunhado Juventino Silva vendeu os lotes, ainda sem pavimentação, sem energia e sem água.(*) Há quem diga que o REFRIGERANTE FRATELLI-VITA tinha tanto gosto de Bahia quanto um acarajé. ‘Assustados’ ou ‘arrasta-pés’ eram regados a gasosas, guaranás, sukitas. A geração baiana dos anos dourados, que não foi seduzida pelo ritmo do rock’n roll, bem que merece ser rotulada ‘geração fratelli-vita’, ao invés de geração ‘coca-cola’...Dois irmãos italianos, José e Francisco Vita, fundaram em 1902 uma fábrica de refrigerantes e cristais. Inicialmente as bebidas foram chamadas ‘gengibirras’, pois tinham gosto de gengibre. Não fizeram sucesso. Em compensação as gasosas de pêra, morango, limão, o guaraná e a sukita (de laranja) agradaram os paladares de várias gerações. Dizem que quando o baiano não está dançando, está ensaiando. A dança parece ebulir seu sangue. Cada ano inventa mais ritmos, mais passos para acompanhá-los. E lá vem a ‘dança da galinha’, a ‘dança do cachorro’, a ‘dança do jacaré’, e por aí vai. Mas houve um tempo, não tão longe assim, de danças bem-comportadas, dois pra lá dois pra cá. Lugares havia muitos. Eram os chamados ‘cabarés’, onde moça de família não entrava. O ‘Pigale’ foi um deles. Localizado na Ladeira do Pau da Bandeira, era tão disputado quanto o ‘Rumba Dancing’. Este ficava perto da Rua da Ajuda, numa casa onde existia o ‘Bilhar do Abel’. Tais locais funcionavam como escolas de dança. As professorais eram moças contratadas para servir de par. O cliente recebia um cartão perfurado no qual um funcionário marcava os minutos. O desafio dos estudantes de mesada curta era fazer o tempo render. Se algum deles impressionasse, os dez minutos a que tinha direito eram contados como cinco. Se pisasse nos calos da parceira, ela transformava cinco minutos em quinze. — relembra o professor Miguel Fascio, do Instituto de Química da UFBA.Professores da Universidade, juízes, desembargadores e outras figuras de projeção, freqüentavam, sem disfarces, tais ambientes. Mesmo nas ‘casas suspeitas’, como eram chamadas à época, havia uma certa inocência. Em uma delas, perto do ‘Sete Candeeiros’, desembargadores soleníssimos sentavam-se a uma mesa, pediam cerveja enquanto despachavam pilhas de processos e davam eruditas sentenças. Às vezes interrompiam, iam ‘lá dentro’, para continuar depois. (*) Havia também o TABARIS, misto de cabaré, cassino, bar, restaurante, ponto de encontro de várias gerações, onde havia shows com artistas vindos de outros estados. Funcionava atrás do antigo cinema Guarani. Freqüentar o 'Tabaris' exigia dinheiro, paletó e gravata. Seus dias de glória terminaram com a proibição do jogo. Mas o local tornou-se um mito da boemia baiana. O BAILE DO BARÃO foi um dos maiores acontecimentos da vida universitária da Bahia. Era uma festa organizada pelos formandos de Direito, realizada no mês de novembro em uma casa próxima ao cinema Pax, conhecida como a ‘Casa do Barão’. Os que compareciam, tinham a obrigação de levar uma empregada doméstica para quem a festa era dedicada. Nas vésperas, todos se mobilizavam para encontrar uma acompanhante disponível e atraente. A idéia partiu da turma de 57. Indignadas, as formandas ensaiaram um boicote, chegando a implorar ao prof. Orlando Gomes sua intervenção contra o baile. O mestre, porém, admitiu a impossibilidade de se intrometer e conseguiu acalmá-las. Por causa do rosto de um anjinho pintado num azulejo, azul como eram todos os antigos azulejos, o local, mistura de boate, bar e ponto de encontro, foi batizado ANJO AZUL.A idéia partiu de um grupo de intelectuais que o instalaram numa velha casa da rua do Cabeça. Durante muitos anos foi o reduto da boemia intelectual, local de encontros furtivos. Era um ambiente profano decorado com objetos sagrados. Além das mesas redondas de jacarandá, cercadas de cadeiras de palhinha, havia sacrários com imagens de santos barrocos. No corredor de entrada, podia-se admirar o imenso painel pintado por Carlos Bastos, também inspirado em figuras celestes. Bebia-se, num piniquinho de barro, o ‘xixi de anjo’, espécie de batida. E também se podia pedir, além das biritas corriqueiras, o ‘sangue de anjo’ feito com campari para dar ao coquetel a cor sanguinolenta. O ‘Anjo Azul’ não sobreviveu às mudanças do lazer e costumes baianos. Inicialmente os BONDES eram puxados a cavalos. Partiam da Praça do Palácio e desciam até o Largo do Teatro São João, na Praça Castro Alves. Ali os cavalos eram substituídos e o transporte seguia para a atual Carlos Gomes. Com a invenção da eletricidade, os animais foram aposentados e os trilhos cravados no calçamento. Não raro, o condutor parava para beber água, ou interrompia o trajeto para dar dois dedos de prosa com algum colega. Estes personagens eram queridos pela população que lhe concedeu diversos apelidos: ‘urubu malandro’, ‘cara-queimada’, ‘bezerro’, etc. Freqüentemente havia descarrilamentos. E em protesto à deterioração do sistema, em 1930, uma população enfurecida incendiou e destruiu mais de cinqüenta bondes. O episódio ficou conhecido como ‘quebra-bonde’.O prof. Cid Teixeira lembra um caso notório: ao ver um sujeito fumando no primeiro banco, o cobrador apontou o cartaz onde se podia ler a proibição. Mas o fumante retrucou: “Ora, se eu fosse obedecer A tudo que os anúncios me mandam fazer, estaria tomando também a ‘Saúde da Mulher’!” Além das TREZENAS a Santo Antônio, as NOVENAS do mês de maio reuniam a população baiana nas igrejas. Seu nome, devido ao número de dias das rezas, curiosamente era o mesmo do castigo de açoites, durante nove dias seguidos, infligido aos escravos. Foram ocasião de encontros, de flertes, de fofocas, de estréias de vestidos novos. No último dia do mês, a imagem de Nossa Senhora, entronizada nos píncaros do altar-mor, era coroada por crianças vestidas de anjinhos provocando ohs e ahs de admiração ou de susto quando alguma se desequilibrava.Em algumas paróquias, as menininhas de cor eram proibidas de ser anjinhos, sob a argumentação racista: onde já se viu anjo escurinho no céu?!. Eram tempos pré Lei Afonso Arinos... As ‘REPÚBLICAS’, como eram chamadas as residências onde moravam os estudantes, surgiram no início do governo do marechal Deodoro. As idéias de democracia difundidas pelo sistema recém-nascido, inspirou o nome de batismo das casas alugadas aos universitários. Permitiam àqueles que moravam no interior estudarem na capital com um mínimo de conforto e sem onerar muito suas famílias. Em geral, eram casarões velhos e decadentes, os mais pobres mobiliados com caixotes. Ficavam localizados em ruas próximas às faculdades, e alguns dos seus nomes revelavam o senso de humor dos seus habitantes: ‘Doce de Coco’, ‘Pé de Anjo’, ‘Não posso comer molho’, ‘Harpa e Dança’, ‘Donzelos’, ‘Inocentes’, ‘Castelo do Diabo’, etc. Os jovens provocavam simpatia das pessoas mais velhas, que se divertiam com suas pândegas, assinavam seus livros de ouro ou atendiam pedidos de gulodices em tempos de festas. Nas ruas de Salvador transitavam os chamados ‘TIPOS POPULARES’, em geral considerados malucos, e provocando caçoadas, dichotes, piadas dos estudantes e moleques. Alguns reagiam atirando pedras, cuspindo palavrões, correndo atrás, ameaçando bater. Outros se entrosavam com os transeuntes, se estes davam corda. Entre os que vivem na memória das gerações mais velhas, destacam-se. Miss Piedade, Dr. Raiz, Garapa, Peru, Madame Lagartixa, professor Gusmão, Xodó, Carrapêta, Jacaré-de-Paletó, Mamãe-não-quer, Sinhá-Mariquinha-cadê-o-frade? Colete-Curto, Professor Mussurunga, Balbina-das-Galinhas, Isaura-Avestruz, Meio-quilo, Princesa Russa, Caju-Doce, Noventa-Pum, Mariquinha-Pinote, Caveirinha, Pé-de-Revólver. E de quebra, uma mulher que se vestia de roxo fazendo ponto na porta da ‘Casa Sloper’. A população se afeiçoava a muitos destes tipos, cujos apelidos eram inevitáveis. Ainda mais numa terra onde quase ninguém escapa de um diminutivo carinhoso ou uma alcunha venenosa. Seus trajes exóticos, seus comportamentos bizarros escondiam histórias, trágicas ou cômicas, algumas para sempre desconhecidas. Não são raras as ruas de Salvador cujos nomes sugerem histórias, algumas delas misteriosas ou macabras — AVENIDA DAS FACADAS, RUA DA AGONIA, RUA DOS OSSOS, por exemplo. Existem também nomes que, por si só, revelam a razão do seu nome de batismo. Na RUA DO BREJO, atual Rui Barbosa, existiu um extenso mangue.Poder-se-ia supor, então, que o BECO DO SOSSEGO devia ser sossegado, e que no BECO DO MINGAU devia haver alguma vendedora de mingaus. Alguns nomes despertam curiosidade não satisfeita. Os motivos perderam-se no tempo... Outros foram substituídos para homenagear personalidades mas o povo insiste em manter os antigos apelidos. Citemos alguns: FONTE DOS FRADES, ÁGUA DO GASTO, ALEGRIA DO PARAÍSO, ALTO DOS MACACOS, AVENIDA CRISTA DE OURO, AVENIDA DOS AMORES, BAIXA DA ÉGUA, RUA DO CÉU, GUINDASTE DOS PADRES, RUA MATA MAROTO, MIRANTE DOS AFLITOS, RUA DA PACIÊNCIA, LADEIRA DO PAU MIÚDO, LADEIRA DA PREGUIÇA, LADEIRA DO QUEBRA-BUNDA, QUINTA DAS BEATAS, TRAVESSA DO CHICO DIABO, TRAVESSA LAGOA DA VOVÓ. Havia o amolador de facas, o guarda-noturno, o leiteiro, a bordadeira, o baleiro, o taboqueiro, o verdureiro, a cerzideira, o sapateiro que colocava meia-sola, a engomadeira... Alguns anunciavam seus serviços cantando ou recitando de porta em porta. Outros recorriam a versinhos de pés quebrados. Como ilustram os que foram escritos na tampa de uma caixa de sapato pendurada à janela de uma das casas do bairro da Saúde:Bainha aberta/ Cobre-se botões/ Fornece-se marmita/ Aplica-se injeções (*) É indisfarçável a saudade que escapole das lembranças. Mas por maior que seja, o saudosismo não consegue negar os encantos que a Bahia ainda tem. E um dos seus maiores encantos é a cumplicidade entre seu passado e seu presente.


Angelina Bulcão Nascimento (*) — depoimentos da entrevista concedida pelo historiador prof. Cid Teixeira. — Depoimentos do juiz Octavio de Aragão Bulcão também contribuíram para a elaboração deste trabalho.