quarta-feira, 21 de fevereiro de 2024

Vi esta cidade crescer


Almir Santos*
Na minha primeira Geografia Atlas, da Editora FTD, Salvador tinha pouco mais de 300 mil habitantes.
Sou do tempo dos bondes que se arrastavam, lentamente, pelas poucas linhas que existiam. Menos de 40.
Pavimentação, geralmente, a paralelepípedos ou pedras irregulares, também chamadas cabeça de nego, era privilégio de poucos bairros, como: Barra, Barra Avenida, Graça, Canela, Campo Grande, Tororó, Nazaré, Barris. Santo Antônio, Barbalho, Soledade, Lapinha Campo Santo.
Nesses bairros, a linha férrea dos bondes era implantada em ruas pavimentadas ou calçadas, como se dizia antigamente. Asfalto era uma coisa rara.
As demais as linhas, implantadas em leito natural, eram muito irregulares e causavam muitos acidentes.
As linhas que utilizava para ir à escola para o lazer 14-Rio Vermelho, 16-Amaralina e 36-Segundo Arco só tinham pavimento até a Avenida Leovigildo Filgueiras, Garcia. O resto era quase tudo sobre a terra.
Algumas, entretanto, tinham pequenos trechos sem pavimentação como 18-Ribeira, 19-Ribeira, 20-Ribeira via Caminho de Areia e Brotas.
Era um transporte folclórico. Os passageiros, condutores e motorneiros se conheciam pelo nome.
Os pontos de parada eram próximos. Basta dizer que no centro da cidade havia pontos no Terreiro de Jesus, Circular (hoje Coelba), Belvedere, Praça Municipal, Rua Chile, Largo do Teatro (Praça Castro Alves) São Bento etc.

Vi bondes circulando pelas estreitas ruas do centro, Rua do Liceu, do Saldanha, do Tijolo e da Barroquinha.
Automóvel só para quem tinha muito dinheiro. Sabiam-se a placas dos carros e os respectivos proprietários. Por exemplo: n.º 1 pertencia a Navarro Lucas, 5 Raul Farias, 11 Antônio Balbino, 12 José Silveira, 13 Fileto Sobrinho, 22 Arnaldo Silveira, 44 Álvaro Silveira, 50 Luiz Eugênio, 70 Miguel Vita, 99 e 100 Companhia Linha Circular.
Poucos eram os taxis, os chamados carros de praça. Seu Candinho, o nosso preferido, tinha a placa 1448.
Ao todo, a frota de Salvador era composta de menos de mil veículos.
Vi esta Cidade crescer.
Imponentes eram os prédios do Palace Hotel, Secretaria de Agricultura, Jornal A Tarde, na Cidade Alta e do Instituto de Cacau, na Cidade Baixa.
Vi serem erguidos o edifício SULACAP e o Oceania na Barra
Mais tarde sugiram na Barra Avenida o Eldorado e na Graça, o Catarina Paraguaçu, monumentais para a época.
Timidamente, surgiu o Edifício Cruz na Rua Portugal, onde funcionou a sede da Construtora Odebrecht e o Edifício Martins na Rua da Espanha.
A cidade baixa foi se transformado aos poucos e perdendo a sua paisagem colonial. Surgiram os Edifícios Paraguaçu, Belo Horizonte, Nélson Farias, Guarabira, Cidade de Aracaju, Larbrás, Suerdieck, Cidade do Salvador em nome do progresso, mas sem ser observada uma ocupação racional.

Restaurantes, bares, botecos e pastelarias eram pouquíssimos. O Colon na Praça Riachuelo, O Conquistador na Barra, da Galinha de Ouro do Manuel, são os de lembrança mais remota.
Café da manhã, almoço, jantar eram rituais bonitos quando a família se reunia, diariamente. Por isso, pouco se usavam restaurantes.
Tomei gasosa de limão ou de morango na Pastelaria Centro Popular na Sé. Havia também O Perez, O Triunfo e O Centro Universal.
Lembro-me dos botecos Danúbio Azul, na Rua d´Ajuda, famoso pela sua bebida Príncipe Maluco, e do Center-Forward, na Rua Cezar Zama. Ambos muito simples. Bebia-se em pé.
Certamente, todos os bares e restaurantes, pastelarias e botecos da cidade, juntos, caberiam no Largo de Santana no Rio Vermelho.
Vi esta Cidade crescer.
Vi a chegada de novos bondes. Vinte e cinco deles com bancos estufados forrados em couro verde.
Vi a extinção gradativa dos transportes por bondes e o crescimento dos ônibus, carinhosamente chamados de marinetes pelos baianos, pelo fato do lançamento do primeiro ônibus em Salvador coincidir com a passagem por aqui de um poeta futurista italiano chamado Marinetti.
O transporte por ônibus não conseguiria sobreviver por muito tempo. Era um dono de um único ônibus que obtinha uma licença para operar em uma determinada linha, mas não tinha bom resultado, até que foi se firmando aos poucos. Inicialmente, na cidade baixa.
Vi esta Cidade crescer.
Vi o Quarto Centenário de Salvador. Vi a encenação do Auto de Graça e Glória da Bahia dirigido por Chianca de Garcia, para comemorar o evento.
A Construção a Estrada Amaralina – Aeroporto, pavimentação da Avenida Amaralina, o prolongamento da Rua Osvaldo Cruz, do primeiro trecho da Avenida Centenário em pista simples.
Vi a inauguração do Fórum Rui Barbosa.

A inauguração do Hotel da Bahia. Vi o Campo da Graça e a inauguração do Estádio da Fonte Nova.
Vi a criação do SMTC-Serviço Municipal de Transportes Coletivos, inicialmente, operando com uma frota de ônibus Volvo a diesel na Avenida Vasco da Gama, que recebera uma total pavimentação numa faixa de 7 metros
Vi a extinção em massa de todas as linhas de bondes da Cidade Baixa para a implantação dos ônibus elétricos. Eram 50 ônibus FIAT - Alfa Romeu, mas a subestação só tinha a capacidade de operar 25, por isso quando um quebrava um novo entrava em operação e assim a frota foi sendo sucateada. Um absurdo!
Vi a encampação da Companhia Linha Circular, que operava os bondes e vi o seu crepúsculo.
Vi esta Cidade crescer.
Vi o carnaval, sentado, tranquilamente, em cadeiras colocadas na Avenida Sete, por onde desfilavam os carros alegóricos dos grandes clubes, os blocos, os caretas e os carros com foliões
Vi o transporte por ônibus ser definitivamente implantado.
Vi o asfalto chegar, definitivamente, e atender a todas as linhas operadas por ônibus.
Vi a construção do Centro Administrativo da Bahia – CAB desde a primeira secretaria implantada a SEPLANTEC. Depois, foi a Secretaria dos Transportes.
Vi surgir o primeiro grande Shopping com 150 lojas, hoje ampliado para mais de 600.
Vi a proliferação de shoppings e o crescimento vertical da cidade.
Aos poucos fui perdendo a conta de quantos novos edifícios iam sendo construídos. Os sobrados coloniais da Cidade Baixa dando lugar a prédios de 10 andares.

Os palacetes do Corredor da Vitória e da Graça dando lugar a prédios de 20, 30 andares. A Ondina, a Valdemar Falcão perdendo o verde e sendo ali implantados, prédios de até 40 andares. Vi a cidade se verticalizar.
Vi surgirem os bairros Caminho das Árvores, Itaigara, o Imbuí, o Costa Azul o Costa Verde, Patamares, Cajazeiras, Mussurunga, Castelo Branco e tantos outros novos bairros.
Vi o rasgar de grandes avenidas. Vale de Nazaré, Bonocô, Contorno, Vale do Camurujipe, Lucaia, Garibaldi, Vale do Canela, Paralela. Vi túneis perfurando as elevações e encurtando distâncias.
Vi a população aumentar aproximadamente 10 vezes e a frota de veículos aumentar 1000 vezes.
Até onde vamos?
Vi esta Cidade crescer e continuo vendo.
*Engenheiro Civil, poeta, escritor e amante de Salvador


domingo, 18 de fevereiro de 2024

Ponte Velha


Paulo Ormindo de Azevedo*
 

Há uma ponte com esse nome em Florença, na Itália. Foi construída pelos romanos, há 2000 anos, para a passagem de carroças. A ponte Salvador-Itaparica se construída teria a mesma função. Já não se fazem pontes em canais de navegação, e muito menos para carruagens. Ela é a culminação da cultura do automóvel, um modal ultrapassado. A velocidade média e sua taxa de ocupação, hoje, nas grandes cidades do mundo inteiro é inferior à das carruagens do século XIX. Por que não pensar em outras soluções? 

Quando o Estado está elaborando um novo plano ferroviário e o governo federal promete um trem rápido de passageiros para Feira de Santana, por que não pensar o mesmo para Itaparica entrando pela contra costa e prosseguindo até Ilhéus? O consorcio chinês da ponte, de empresas ferroviárias, adoraria essa mudança.

 A trajetória da ponte torta é de 1970 e por falta de imaginação é a mesma do ferry boat que não funciona. Na época Salvador tinha um milhão de habitantes, hoje tem 2,5 milhões. Por que ela não se articula diretamente com a BR 324 e Via Metropolitana, sem congestionar mais Salvador? Simulação da Academia Baiana de Engenharia provou que a Via Expressa não tem condição de escoar o fluxo da ponte, que extravasará para a rede urbana. Como ficará o Comércio, a Av. Paralela e a Estrada do Côco depois dessa ponte, que ligará o Sudeste com o Nordeste? 

 Essa é uma ponte velha, obsoleta, que ameaça a operação, a médio prazo, do porto de Salvador e da BTS pelos grandes navios que não param de crescer. Ponte que inviabilizará o Estaleiro da Enseada, o desenvolvimento do Recôncavo e a construção de um hub-porto em Salinas, com 21m de calado em águas abrigadas, que poderia ser um dos terminais da ferrovia transcontinental, FIOL, que articularia as redes ferroviárias do Chile, Peru, Bolívia, Paraguai e Planalto Central Brasileiro drenando toda a produção mineral e agrícola desses países para o Atlântico, através da BTS.  

 Se a questão é quitar um compromisso político desgastante, porque então não pensar num túnel para carros e trens? Existem cerca de 200 túneis submarinos em todo o mundo. Esses túneis evoluíram muito e baratearam. Não rompem mais a rocha, são aduelas pré-fabricadas de concreto que são articuladas no fundo do mar. Em 2013, foi inaugurado um túnel desse tipo entre a Europa e a Ásia, na Turquia, com 13,5 km de extensão. Outro está sendo iniciado ligando a Alemanha à Dinamarca, com 18 km de extensão. Depois de muitos estudos, a ponte que ligaria Santos a Guarujá foi preterida por um túnel desse tipo. 

Esta ponte é uma quimera que já dura 16 anos e ainda não tem orçamento definitivo. Se algum dia ela for construída só servirá para congestionar e desfigurar Salvador, Vera Cruz e a BTS. Existem soluções mais inteligentes que o governo atual precisa considerar.

*Arquiteto e Urbanista - Professor Catedrático da UFBa.

Publicado no jornal A Tarde, 18/02/2024