sábado, 24 de janeiro de 2015

A desastrada cultura do M.D.C.


Paulo Ormindo de Azevedo* 
Contava-me um sócio de uma construtora média que encontrou no escritório um colega que se inscrevia para uma vaga. Pediu para ver o currículo e perguntou por que ele não mencionava os cursos e os títulos de pós graduação. – “Porque preciso do emprego e se os menciono não serei nem entrevistado”. Contando isso a um grupo de amigos eles disseram que seus filhos foram aconselhados a fazer o mesmo. A grande empresa está trocando profissionais qualificados por recém formados porque ganham menos e se sujeitam a tudo. Por falta de tecnologia nossa indústria perdeu competitividade e nossas exportações são cada vez mais de commodities sem valor agregado. 
Licitações milionárias são feitas com projetos-básicos sem engenharia. Quando uma refinaria orçada em US$ 2 bilhões, como a Abreu e Lima, chega a US$18 bi e não está na metade não é só corrupção, é incompetência e descontrole total. Cerca de 80% de suas obras foram feitas em regime diferenciado de contratações RDC, onde não se pede nem projeto-básico. Hugo Chaves se deu conta a tempo e tirou o cavalinho, ou melhor a PDVSA, da chuva. Raul Castro não fez o mesmo porque cavalo dado não se olha o dente. 
Neste mesmo regime a Copa de 2014 custou a soma das três últimas e nenhuma das obras de mobilidade ficou pronta. É inadmissível que um viaduto caia antes de inaugurado e dois outros estejam interditados (B.H. e Cuiabá) ameaçando cair. O desabamento de um túnel na transposição do São Francisco foi considerado pelo fiscal uma ocorrência normal neste tipo de obra. Isto ocorre porque os órgãos públicos funcionam com contratados REDA, não abrem concurso e poucos têm planos de carreira.
Nossas universidades estão cheias de professores substitutos, temporários e sem experiência. Para um professor chegar a titular, hoje, não precisa mais fazer concursos de progressão, nem haver vaga, basta ser doutor, ter tempo de serviço e apresentar um memorial. Muitos desses doutores depois do título não escreveram um só artigo. Não é de estranhar que o Brasil, com quase a metade da população da América Latina, não tenha um Nobel, enquanto os hispânicos têm vinte. 
A meritocracia foi abolida do serviço público. Seu sucedâneo é o aparelhamento e a improvisação. O planejamento público foi reduzido ao orçamento. Uma colega funcionaria me disse que fez uma atualização em gestão e comentou com o professor a falta de planejamento das obras. O professor disse que planejamento de estado é coisa do passado, da ditadura. “Estamos fazendo hoje mais planejamento que nunca. As empreiteiras planejam e trazem os projetos-básicos com as licenças ambientais já aprovadas para licitar”. As cinco irmãs não dão prego sem estopa, são todos projetos carimbados. O resultado são obras ruins, superfaturadas, aditadas e desarticuladas. Muitas não servem para nada e foram abandonadas. 
Jorge Amado tinha razão, este é o país do carnaval. Nessa linha não vamos a lugar nenhum. Precisamos superar o complexo de vira-lata e a pratica dolosa do M.D.C. - mínimo denominador comum – e perseguir a excelência e a eficiência para erradicarmos a pobreza e construirmos uma nação desenvolvida. Joãozinho Trinta também tinha razão.
*Arquiteto e professor titular da UFBa

terça-feira, 20 de janeiro de 2015

Um inventor de si mesmo


Mario Nascimento*
A leitura d’O Filósofo Peregrino impactou-me como uma invenção – e também um convite à invenção – de um caminho próprio de vida, de um ser humano com seus desejos muitas vezes conflitantes, com suas hesitações, suas escolhas muitas vezes forçadas pelas contingências e, especialmente, com sua força e coragem para realizar um desejo fortemente decidido. 
Em vários momentos o vimos enfrentar as tentações de desviar-se de seu desejo – quando enganar aos outros seria facílimo –, mas sendo impossível enganar a si mesmo, o filósofo peregrino não cedeu do seu desejo! Para muitos, um desejo louco, para outros um desejo admirável, para outros…
Vimos assim o filósofo peregrino buscar o seu desejo singular, com todas as nuances possíveis, buscando libertar-se da dependência dos outros – parentes, amigos, sociedade em geral –, e tornar-se capaz de prescindir da aprovação dos outros, autorizando-se a si mesmo.
Algo também marcante na leitura foi constatar que o filósofo peregrino tem um corpo, e se este corpo possui força, tem também muitos limites, expressa e produz prazeres, mas também expressa e produz sofrimentos, possui inclusive necessidades imperiosas…
Também produziu ressonâncias o fato de o filósofo peregrino ter se defrontado com o prazeroso da vida, no encanto do encontro com o outro, na troca de experiências, na gentileza, na solidariedade… e também com o doloroso dos atos humanos, através da noticia dos atos de terrorismo, a morte de inocentes, o horror do fanatismo…
Uma pequena história destacou-se para mim. O encontro do filósofo peregrino com o peregrino alemão, uma experiência enriquecedora e prazerosa a princípio, mas que em seguida gera um conflito, conflito de desejos. O alemão demonstra desejo de prosseguirem juntos, mas o desejo do filósofo peregrino aponta na direção oposta… Dilema posto, qual a escolha, qual desejo satisfazer? Naquele momento, o filósofo peregrino decide pelo próprio desejo, abdicando da escolha sacrificial de aceitar a proposta do alemão, tendo coragem de parecer ‘mau’ aos olhos do outro, mesmo se com o cuidado de agir, na medida do possível, com delicadeza ao indicar ao alemão que caminhos diferentes lhes esperavam…
*Psicanalista 

Marcos Bulcão nasceu em Salvador, Bahia.
 "O Filósofo Peregrino" é seu primeiro livro de não ficção.
É doutor em Filosofia pela Universidade de São Paulo (O Realismo Naturalista de Quine: Crença e Conhecimento sem Dogmas, 2005 - Graduou-se em Filosofia pela Universidade de São Paulo (1995), tendo feito seu mestrado em Teoria Psicanalítica na Université de Paris VIII (La Constitution de la Réalité chez le Sujet - Diplômes D'études Approfondies, 1998 
Tem experiência nas áreas de Psicanálise e Filosofia, com ênfase em Epistemologia da Psicanálise e Teoria da Ciência, atuando principalmente nos seguintes temas: psicanálise, mente, epistemologia, filosofia da linguagem, ciência e Quine. Publicou dois livros A Constituição da Realidade no Sujeito (EDUFBA: 2007) e O Realismo Naturalista de Quine (UNICAMP/CLE: 2008) além de capítulos de livros e artigos em revistas especializadas. Um terceiro livro está no prelo: Enigmas Freudianos O Problema da Consciência e outros Paradoxos (Fonte: Currículo Lattes)

quinta-feira, 15 de janeiro de 2015

Brasília, cemitério da esperança

Edson Mahfuz*
Que eu saiba existem poucas obras com a carga negativa do livro Cemitério da Esperança, que  apresenta uma péssima imagem do Brasil e especificamente de Brasília. O mais curioso disso é que, embora o livro deixe um gosto amargo na mente do leitor, há pouco nele que deva ser refutado e muito com o que se pode concordar. É interessante que tenha que surgir um estrangeiro para tecer críticas tão contundentes ao país e sua capital. No Brasil, falar mal de Brasília e de seus dois artífices principais é tabu..
Benjamin Moser parece crer que a monumentalidade é sempre negativa em arquitetura e urbanismo, principalmente porque a associa à grande escala e a obras construídas por regimes totalitários. Mas pode-se ver a monumentalidade como algo diferente. Há pelo menos 60 anos a cidade tradicional é entendida como sendo constituída por dois elementos essenciais: o tecido urbano composto pelos edifícios dedicados à moradia, ao trabalho, aos serviços, etc, que representa a maior parte da cidade, e seus monumentos, aqueles edifícios que possuem importância coletiva por representarem as instituições humanas: escolas, igrejas, prédios administrativos, culturais etc. Esse é um modo de ver o monumental que não o associa com a opressão; pelo contrário, nesse sentido os monumentos ajudam a definir a identidade individual.
O autor parece também se incomodar muito com cidades organizadas de acordo com sistemas formais regulares, muitas vezes derivados de precedentes clássicos. A regularidade e unidade do esquema geral é algo comum nos poucos casos em que se criou cidades do zero (Palmanova, Karlsruhe, Washington, Canberra, Brasília) ou quando tentou-se introduzir ordem e estabelecer conexões em tecidos urbanos medievais (A Roma renascentista, Paris e Bath no século 18 etc.) porque é preciso criar uma ordem clara inteligível sobre a qual a cidade possa ir se desenvolvendo. A dinâmica urbana normalmente se encarrega de suavizar a rigidez inicial, coisa que nunca aconteceu em Brasília pois sempre se a considerou uma obra-prima intocável, até o ponto que acabou mumificada pelo tombamento realizado pela Unesco.
O desenho de Brasília é um híbrido de um esquema geométrico de origem clássica com uma disposição de atividades influenciada pelo pior pensamento urbanístico do modernismo, que pregava a separação física das atividades componentes de uma cidade. O urbanismo de Brasília é em parte a materialização de idéias de um grupo influente de arquitetos modernos, reunidos no chamado CIAM – Congresso Internacional de Arquitetura Moderna – que nunca conseguiram entender o que faz uma cidade ter vitalidade, embora quase todos vivessem em capitais européias, que são lições vivas de urbanismo.
O pensamento urbanístico atual coincide sobre um certo número de valores que caracterizam os melhores lugares do mundo, muitos deles com séculos de existência: alta densidade, concentração, mistura de atividades, possibilidade de alcançar a pé as necessidades básicas do ser humano e  transporte coletivo de qualidade.
Brasília é o oposto de tudo isso. É uma cidade espalhada – espacialmente rarefeita – em que as principais atividades estão separadas: vive-se aqui, trabalha-se lá, compra-se acolá. Caminhar em Brasília não faz sentido, a não ser para fazer exercício mas mesmo assim não se tira muito prazer disso porque o cenário muda pouco e não há quase nada para ver. Ao contrário de bairros que podem ser encontrados em todas as principais cidades brasileiras, os térreos em Brasília não oferecem atrações para o caminhante, são áreas sem vida das quais queremos logo fugir.
O problema de Brasília não é o se tamanho em si, mas sua escala em relação ao ser humano. A capital brasileira parece ter sido projetada apenas com a escala maior em mente. Desde o chão Brasília é um desastre, pois a escala do pedestre foi ignorada. Esse abandono da escala humana constitui o que é conhecido entre os urbanistas como “A Síndrome de Brasília”, presente em lugares onde as distâncias entre edifícios são enormes e nada de interessante acontece no nível térreo.
Voltando à imagem anterior, Brasília pode ser descrita como um conjunto de monumentos sem tecido urbano que confira significado a eles. O conjunto de superquadras não constitui um tecido, pela distância entre os edifícios e o fato de que não se comunicam entre si. Moser está correto ao afirmar que a chance de Brasília tornar-se uma cidade real estaria na sua densificação, na ocupação dos seus gigantescos espaços vazios, mas isso não acontecerá pois a cidade foi congelada como monumento cultural, indo de encontro à dinâmica natural de qualquer cidade, que a leva a transformar-se constantemente. A essa hipotética densificação deveria ser acrescentada a inserção de usos diferentes e complementares nos setores monofuncionais.
Ao longo do texto, Moser comete um erro muito comum, pois parece acreditar que Oscar Niemeyer é o autor do plano urbanístico de Brasília, sem nunca mencionar seu verdadeiro autor, Lúcio Costa. Niemeyer é o autor dos principais edifícios da cidade, tendo atingido ali o auge da sua carreira, mas não se sabe que tenha tido qualquer influência sobre o projeto de Costa.
Com seu ataque frontal a Brasília e às atitudes mentais que levaram a ela, Moser nos presta um serviço. Se Brasília não pode mais ser salva, que pelo menos sirva de exemplo negativo, impedindo-nos de continuar cometendo os mesmos erros.
* Edson Mahfuz é arquiteto e professor titular de Projetos na Faculdade de Arquitetura da UFRGS.