sexta-feira, 14 de março de 2014

Embates históricos sobre impostos em Salvador - II

Paulo Fábio Dantas Neto *
No artigo anterior comentei conflitos sobre tributos municipais, antes de 1964, em que dois prefeitos de Salvador foram vencidos pela influência política de interesses empresariais, respaldados pelo Estado. Durante o regime autocrático, tributos voltaram a opor esses interesses ao Poder Municipal. Quando o prefeito Virgildásio Sena foi deposto, em 1964, teve fim um hiato de autonomia política em Salvador. Entre aquela deposição e a ascensão, em 1967, de Antônio Carlos Magalhães, a cidade foi gerida por Nelson Oliveira, engenheiro sem força política. Já ACM tinha peso político na capital, mas o apoio (militar e financeiro) federal e a cobertura política do governador Luís Viana Filho é que explicam sua autonomia de ação na Prefeitura. Autonomia do prefeito, não do município. Seu legado político foi uma sujeição ainda maior da cidade ao poder estadual. Suas prerrogativas como prefeito não se institucionalizaram. Ao tornar-se governador, Antonio Carlos carregou-as consigo. O prefeito enfrentou, no início da gestão, uma campanha coordenada por A Tarde e entidades do comércio e indústria para reverter uma mudança no Código Tributário, aprovada pela Câmara, que levara a um substancial aumento de alíquotas do IPTU. A referida campanha relutava em conferir legitimidade a impostos municipais, vendo no Município um apêndice do Governo Estadual. O argumento do prefeito era a debilidade financeira diante de novos encargos urbanos, de efeitos da política de pessoal do antecessor e da recente subtração, aos municípios, dos impostos sobre Indústrias e Profissões e Transmissão Intervivos. Mas a referida campanha o levou a buscar noutro lugar os recursos para executar seu plano de governo. Um debate na sede de A TARDE, sugerido por ACM, legitimou a campanha, mas lhe abriu espaço para uma saída honrosa. Em sua fala no debate ele foi incisivo, irônico e desafiador, mas os fatos superaram as palavras. Um mês após o evento, presidido pelo governador Luís Viana, a solução atendeu aos argumentos da campanha reativa, ainda que garantisse à gestão um patamar de receita superior às dos antecessores. Sendo um caso exemplar de constrangimento imposto a prefeitos pela lealdade política entre governo estadual e segmentos da elite econômica de Salvador, esse conflito em torno do IPTU tem importância analítica. Foi a primeira vez em que ACM, investido em cargo executivo, precisou conciliar apetite político e aspirações de performance administrativa com interesses do pacto conservantista baiano. Aprovado no teste, o jovem prefeito, com ajuda federal e estadual, prosseguiu sua obra administrativa, acumulando poder pessoal, nos limites do script. Ponto fora da curva em relação a esse enquadramento político do poder local foi a gestão de Jorge Hage (1975-77), indicado e demitido pelo governador Roberto Santos. Ele liderou um projeto modernizador voltado a planejar e controlar o desenvolvimento urbano e a acumulação imobiliária. Foi vítima da contradição entre suas intenções reformistas, a influência de elites econômicas junto ao governo estadual e a ordem autoritária vigente. A equipe de Hage, animada pela postura voluntariosa do prefeito, tentou fazer, por via tecnocrática, mudanças que, diante de interesses contrariados, requeriam respaldo político e social num grau que não existia. É difícil eleger uma razão única para explicar a demissão de Hage na metade do mandato. Choques com setores empresariais ocorriam, por exemplo, em torno de limites de gabaritos para construções, mas chegaram a um ponto crítico num conflito sobre o IPTU, envolvendo o jornal A Tarde. Ficaram tensas as relações com os governos estadual e federal. Aconselhado a demitir-se, o prefeito obstinou-se na resistência e radicalizou o discurso, acenando, por fim, ao campo oposicionista, que se manteve indiferente quando foi dado o tiro de misericórdia. A oposição viu a demissão apenas como um conflito interno ao regime. A autonomia do poder local ainda não estava na sua pauta. 
*Paulo Fábio foi Deputado Estadual pelo PCB.  Doutor em Ciências Políticas, é professor da UFBa

sexta-feira, 7 de março de 2014

Embates históricos sobre impostos em Salvador

Paulo Fábio Dantas Neto*
Apesar do verniz jurídico da polêmica sobre a revisão da base de cálculo do IPTU em Salvador, reitera-se, agora, um conflito político que tem história. Várias vezes, em 60 anos, confrontaram-se, de um lado, prefeitos dispostos a alterar situações financeiras críticas que deixam a prefeitura sem autonomia efetiva e, de outro, a militância contra tributos municipais, praticada por diferentes segmentos empresariais, cujos interesses são quase sempre patrocinados, ou usados, pelo governo estadual, ainda mais se governador e prefeito são de correntes ou partidos adversários. "Interesse do contribuinte" é biombo retórico que torna o conflito político e econômico menos transparente. Numa breve série de artigos que com esse se inicia, aludirei a exemplos históricos, antes de chegar ao atual.
Osvaldo Gordilho (PSD), um "balbinista", foi prefeito de 1951 a 1953, nomeado e demitido pelo governador Regis Pacheco, ligado a outra facção do PSD. Sua gestão quis dar ao município estrutura financeira sólida, uma premissa para intervenções mais ambiciosas no sistema viário e estímulo à expansão urbana. Seu foco fixou-se no problema tributário. Mais de mil recursos judiciais comprometeram a vigência da revisão que procedeu no Imposto Predial.
Em 1953 surgiu divergência entre Gordilho e Regis pelo apoio, do primeiro, à pre candidatura de Antônio Balbino ao governo do estado. O pretexto para demitir o prefeito veio quando a Câmara concedeu abono salarial ao funcionalismo, via aumento do Imposto de Indústrias e Profissões. A sanção do prefeito à lei desencadeou uma onda de críticas pela imprensa, sob o comando de entidades representativas do comércio e da indústria. A ação das "classes conservadoras" foi rápida e implacável. Entrevistaram-se com o governador e ouviram dele a afirmação de que o prefeito agira impropriamente. Regis pediu uma semana para resolver a questão. Dito e feito. O motivo real da demissão de Gordilho foi a sucessão estadual, mas o conflito empresarial foi pretexto útil ao Governador para remover um obstáculo político.
Sendo o prefeito eleito, as coisas não se resolvem com a caneta, mas isso não impede desfechos contra a autonomia municipal. Foi assim com Hélio Machado (PDC; 1955-1959), eleito por voto direto, em 1954, com expressiva votação. A popularidade junto a um eleitorado pobre, inflado pela urbanização recente, estimulava sua ambição política. Abrindo várias frentes de luta por autonomia administrativa e financeira, Machado esbarrou em controvérsias sobre sua ética administrativa, em interesses empresariais descontentes com sua política tributária e em interesses políticos desafiados quando ele, adversário do já então governador Balbino, quis concorrer ao governo estadual.
Uma campanha de setores empresariais da cidade, apoiada por A TARDE, arrancou-lhe concessões na política tributária. Foi emparedado, mesmo após esse recuo, por ações judiciais de contribuintes e credores e um boicote do comércio aos tributos municipais. Além de mandados de segurança contra o Imposto de Indústrias e Profissões, suspenderam o pagamento de todos os tributos, em protesto contra a "tolerância" da prefeitura para com os camelôs e contra o reajuste do Imposto Predial.
O prefeito não cedeu no Predial, mas no de Indústrias e Profissões aceitou redução de 35% e o parcelamento dos débitos, em troca da retirada dos mandados de segurança. Mas a tempestade contestatória prosseguiu, sem lhe dar fôlego. As concessões feitas enfraqueceram seu discurso populista voltado ao urbano pobre e subtraíram ao erário, já depauperado e endividado, receitas essenciais a um desempenho administrativo razoável. No último ano, a gestão cambaleou ferida de morte financeira e política e o prefeito renunciou ao cargo três meses antes da conclusão do mandato. Cúmplice e virtual beneficiário da má sorte do prefeito, Balbino perdeu, contudo, a luta pela própria sucessão. A Bahia tradicional - que não gostava dele, nem de Machado - fez o serviço completo.
Artigo publicado em A Tarde, 07/03/2014 - primeiro artigo de uma série de 4 , sobre o tema
* Professor de Ciência Política da Ufba