sexta-feira, 31 de dezembro de 2010

O descaso que envergonha

Antonio Imbassahy*
É constrangedor sentir vergonha perante os amigos da própria casa onde se vive. Põe a autoestima da pessoa ao rés do chão. Pois é isso que o cidadão de Salvador vem sentindo diante da perda de qualidade de vida na nossa cidade nos últimos anos, a cada dia que passa.
Envergonham e deprimem o abandono de drogados e desamparados pelas ruas e praças, feito molambos; lixo e entulhos não recolhidos; passeios e calçadas tomados por ambulantes, sem organização; a bagunça no centro da cidade e nas vias principais dos bairros, a falta de fiscalização, de ordenamento, de autoridade; a deterioração contínua do Centro Histórico; o descaso, a falta de conservação de nossas praças e largos com seus monumentos, um desrespeito à nossa história e cultura. E mais um verão de caos nas praias, por falta de um projeto decente para a nossa orla. Mais o estresse dos engarrafamentos, que tornam o trafegar agressivo e o ato de estacionar uma disputa; e o projeto do metrô mutilado para légua e meia que não anda, e virou chacota nacional. Por fim, o clima de insegurança pública que assusta e muda os hábitos baianos…
Há poucos dias, neste mesmo espaço editorial, o escritor e jornalista João Carlos Teixeira Gomes escreveu sobre a vergonha ao se deparar, depois de meses longe da Bahia, com a sua cidade tão degradada urbanisticamente, vilipendiada pelo descaso dos poderes públicos. Ele ainda citou o amigo escritor João Ubaldo Ribeiro, que já não consegue andar pelas ruas de nossa capital, hoje tão desumanizada. Entristece.
Por último, a administração do prefeito João Henrique teve as contas de 2009 re-jeitadas por unanimidade pelo Tribunal de Contas dos Municípios. Desde a administração de Fernando José (1989-1993) isso não ocorre. Não se tem notícia também de algo semelhante em outra capital do País.
As principais razões apontadas pelo TCM referem-se a infrações à Constituição Federal, reincidência de impropriedades e créditos suplementares além do limite estabelecido em lei. Pior: sabe-se que as contas de 2010 apresentam buracos alarmantes, irregularidades contábeis e administrativas bem maiores. Uma administração ruinosa.
É preocupante. A prefeitura não vem cumprindo suas obrigações. Há atrasos no pagamento de serviços terceirizados e de fornecedores. Diria que a prefeitura vive uma fase de deseconomia – quando a receita diminui, a gestão de arrecadação minora, os gastos aumentam e não há correspondência entre o valor dos tributos pagos e os serviços públicos oferecidos. Daí, o contribuinte se afasta porque não mais acredita na gestão pública e o investidor não arrisca.
Esse quadro já é real e não há perspectiva de reversão. Salvador é uma cidade histórica que depende de sua cultura, do turismo e vive um momento especial a três anos e meio da Copa do Mundo 2014, que nos impõe, como uma das sedes do evento, um grande volume de investimentos em infraestrutura, notadamente no campo da mobilidade urbana. A sabida incapacidade de endividamento do município e de gerenciamento da atual administração compromete qualquer projeto. E pasmem. Com todo esse quadro, o prefeito gasta dinheiro em propaganda para divulgar a implantação temerária de um parque infantil sob o viaduto no Bonocô.
Já tivemos dias melhores de cidade limpa, contas pagas em dia, serviço público decente, administração bem avaliada, o reconhecimento de toda a nação e o cidadão orgulhoso de seu espaço. É hora de uma mobilização geral pelo resgate de nossa dignidade, de nossa cidadania … Ou será tarde demais. É hora de uma mobilização geral pelo resgate de nossa dignidade, de nossa cidadania.
*Antonio Imbassahy, Deputado Federal eleito, é engenheiro eletricista e foi prefeito de Salvador entre 1997 e 2004.

quarta-feira, 29 de dezembro de 2010

Tropicália, Heranças & Herdeiros

Antonio Risério*
Para lembrar "Memos" de Augusto de Campos – poema onde os cortes e a variação dos tipos das letras como que estilizam o jogo labiríntico da memória -, podemos dizer que a Tropicália foi uma espécie de “instante-luz” na história da música popular brasileira. Não de uma luz clara e firme como a de João Gilberto. Mas um “instante-luz” feito de muitas luzes, luzes caóticas e coloridas, plurifaiscando em torno do cerne daquele pensamento, que se articulou desenhando uma encruzilhada para a convergência de Oswald de Andrade e do supracitado João.
E a Tropicália irrompeu projetando o óbvio uma estética sincrética para um país sincrético, onde qualquer pretensão de “pureza” cultural nunca foi mais do que uma pobre e empobrecedora fantasia alienada, estelarmente distante do movimento real de nossas vidas. Em termos conjunturais, no entanto, aquele “óbvio” foi explosivo. Revolucionário.
Uma espécie de anamnese anárquica, “brutalista” e agressiva da cultura brasileira. Naquele momento – à exceção de Augusto de Campos e uns poucos mais , a produção poético-musical brasileira era encarada pelas lentes distorcidas de um maniqueísmo ancorado na ignorância. De um lado, ficava o “bem”: a música “nacional”, “autêntica”, multiplicando protestos agrários, de feitio “nordestino”. De outro, o “mal”: o rock, as baladas, as guitarras elétricas, o “iê-iê-iê” urbano da então chamada Jovem Guarda.
Tratava-se, então, de estabelecer um cordon sanitaire entre uma coisa e outra. Mas veio a Tropicália e – mobilizando simultaneamente a nossa tradição e a moderna música internacional, em função da leitura do presente brasileiro – denotou esse horizonte baixo e fechado.
Ao dizer a que veio, nesta sua investida rápida e fulgurante (1967-1968), a Tropicália teve que explicitar, ainda que fragmentariamente, a sua visão de nosso passado musical. E, aqui, duas coisas vieram à frente. De uma parte, o então chamado “grupo baiano” sublinhava que a Bossa Nova nascera ao estabelecer um diálogo formal criativo entre a linguagem do samba e uma linguagem musical internacional contemporânea o jazz. De outra, Caetano e companheiros, na pauta do poema oswaldiano, tratavam os seus antecessores com amor e humor.
Bem vistas as coisas, o “nacionalismo” não tinha onde pôr os pés. Por um motivo simples: a música não nasceu no Brasil. Na verdade, a nossa produção artística nasce justamente da imersão de linguagens extrabrasílicas em nossa circunstância ecossocial. É o que vemos no barroco tropical de Gregório de Matos, por exemplo. A sátira mestiça do Boca do Inferno foi um produto da dialética entre uma estética internacional – o barroco, nucleado nas penínsulas ibérica e itálica – e a nossa realidade tropical sob domínio lusitano, configurando-se, naquela época, como um novo mundo antropológico.
Veja-se, agora, o caso do samba. O ritmo e a dança que formariam o samba-de-roda do Recôncavo Baiano vieram com os bantos. Kasadi wa Mukuma reconheceu a sua origem angolana. E o fato da música negra ter cruzado o Atlântico foi um acontecimento de funda conseqüência cultural. Ao se encontrarem em nossos trópicos, formas musicais africanas e formas musicais européias geraram um produto novo, original, em relação às suas matrizes. E da mestiçagem de padrões rítmicos da África com modelos harmônicos-melódicos da Europa foi se desenhando, com o tempo, o espaço musical em que um dia viria a nascer um poeta-compositor como Caymmi.
Além, disso, como disse, os tropicalistas trataram seus antecessores com amor e humor. A Tropicália desmente uma lenda muito difundida entre professores universitários e críticos de literatura: a de que as gerações artísticas mais novas entram em cena negando, necessariamente, a geração anterior. Sim – porque a invenção tropicalista, além de se proclamar filha de João Gilberto, jamais desprezou ou hostilizou a tradição musical popular brasileira. Muito pelo contrário.
A negação ocorreu no interior de uma mesma geração, nos contrastes e atritos entre o grupo “baiano” e a esquerda universitária de formação “cepetista”. Entende-se. Centrado na vida urbano-industrial, o próprio projeto tropicalista, além de derrubar bloqueios “esquerdofrênicos”, provocando reações previsíveis, era em si mesmo, por sua disposição ambiciosa, abarcando os extremos da sofisticação e da vulgaridade, algo ilegível para um agrupamento intelectualmente midcult, que erigiria, em “hino revolucionário” uma valsinha kitsch de um compositor apenas sofrível.
Se tratou bem os seus antecessores, a Tropicália, salvo desonrosas exceções, foi igualmente muito bem tratada pelas gerações pós-tropicalistas. Na verdade, foi possível sentir o influxo e os efeitos do tropicalismo, no ambiente musical brasileiro, já mesmo no período em que Caetano e Gil se encontravam no exílio londrino.
Assistimos, ali, ao fim da estigmatização absurda da guitarra elétrica e da prevenção contra a estetização das cenas e cenários urbanos. Enfim, houve uma espécie de liberação geral. Uma rejeição de balizas elaboradas para promover qualquer tipo de demarcação das terras em que a música popular brasileira deveria abrir as suas roças e estender as suas tendas.
Quase que fatalmente, veio também, nessa época, a diluição. A apropriação superficial de estilemas da textualidade tropicalista, em vez da assimilação da informação que deu sentido e substância ao movimento. E assim tivemos, o subtropicalismo aguado de mustangues cor de sangue, tambores da paz, sons livres, américas do sul, lixos ocidentais. Mas veio também a contracultura tristetropical, o “desbunde” – e, nessa maré psicossocial de cintilações canábico-lisérgicas, um disco como Ferro na Boneca, do conjunto Novos Baianos. As coisas haviam, de fato mudado.
E foi por isso mesmo que um rockeiro que vinha correndo por fora, Raul Seixas, pôde encontrar uma ecologia estético-cultural propícia ao florescimento de suas “pirações”, como então se dizia.
Em seguida, a face mais experimental da Tropicália repercutiria, com ênfase, em criações de Walter Franco. Walter Franco avançou sob a luz dos elementos mais radicais que foram mobilizados pela Tropicália: a poesia concreta e a vanguarda musical eletrônica brasileira, formada sob signos de Boulez e Stockhausen. Refiro-me, é claro, ao Walter de Cabeça, Me Deixe Mudo, Iara. Adiante, topamos com as ousadias brutais e afiadas do Arrigo Barnabé de Clara Crocodilo, trabalho que o seu caminho franqueado, entre outras coisas e mais imediatamente, pelo Araçá Azul de Caetano e pelo disco da mosca, de Walter.
Por fim, ainda em vinculação com o arco aberto pelo tropicalismo, chegamos à geração do multimídia Arnaldo Antunes, do mangue-beat eco-eletrônico Chico Science, das fusões e confusões promovidas pelo talento incomum de Carlinhos Brown. São, todos, descendentes da Tropicália. Não só da Tropicália, obviamente. Mas o fato é que se pode reconhecer, no corpo da poética de cada um deles, as tatuagens indeléveis do tropicalismo.
De um modo bastante genérico, podemos dizer que a Topicália significou para a música popular brasileira, um momento de ampliação de horizontes e de liberdade formal. De incorporação crítico criativa das informações internacionais. De sincretismo carnavalesco entre essas informações internacionais e gêneros tradicionais da música brasileira, como o baião. De livre circulação entre os pólos da high culture, da cultura popular e da cultura de massa. E é pelos caminhos e descaminhos desses campos de fronteiras indecididas que se move a sua descendência – e que se inconclui o seu legado.
*Antropólogo, escritor e poeta

quinta-feira, 16 de dezembro de 2010

Transportes e Sustentabilidade

Osvaldo Campos Magalhães*
O fenômeno das mudanças climáticas, que tem entre suas causas o aumento das emissões e da concentração de gases de efeito estufa na atmosfera, impõe um enorme desafio à toda sociedade nesta década.
A viabilização em Cancun, México, durante a 16ª Conferência das Nações Unidas sobre Mudanças Climáticas, a COP-16, de um Fundo para apoiar as atividades de mitigação e adaptação climática nos países em desenvolvimento, abre uma excelente oportunidade para a discussão e priorização de ações voltadas para a proteção ao meio ambiente.
De acordo com o estudo “COP 16: as Contribuições da Indústria Brasileira”, elaborado pela Confederação Nacional da Indústria, a participação dos processos industriais nas emissões de gases de efeito estufa no Brasil limita-se a 4%.
Por outro lado, conforme dados divulgados durante a Conferência das Partes sobre o Clima em Cancun, a maior participação nas emissões de CO² no mundo está relacionada aos setores de geração de energia e transportes, sendo que o maior crescimento ocorre no setor de transportes, que já responde por 23% das emissões no planeta.
No Brasil uma das principais fontes de emissão de gases de efeito estufa está relacionada à energia fóssil, consumida no transporte de carga e no transporte urbano. Se considerarmos que na Bahia, cerca de 90% deste transporte é efetuado pelo modal rodoviário, e que, cerca de 40% dos caminhões realizam viagens de retorno sem cargas, constatamos que existe uma grande oportunidade para o aumento da eficiência no setor de transportes e a redução das emissões de carbono na atmosfera.
Neste contexto, o incentivo ao transporte de cargas através das ferrovias e hidrovias assume importante papel na busca pela sustentabilidade ambiental. Lembremos que o Programa Estadual de Logística de Transportes - PELTBAHIA, elaborado pelo governo do estado em 2002 projetava uma mudança na matriz de transportes para 2022, prevendo a implantação da ferrovia Leste - Oeste e a operacionalização da hidrovia do São Francisco, ligando Pirapora (MG) a Juazeiro (BA). O início em janeiro próximo (conforme anunciado pela VALEC), das obras da ferrovia, que teve seu projeto ampliado, e ligará Tocantins a Ilhéus, constitui-se desta forma numa excelente ação visando a redução futura das emissões de CO² no setor de transportes na Bahia.
Além do incentivo à utilização das hidrovias e ferrovias, uma política de sustentabilidade nos transportes deve priorizar a migração para combustíveis não fósseis, como etanol e biocombustíveis, pesquisa e introdução de novos padrões tecnológicos, que busquem economia nos motores a combustão e, maior planejamento e racionalização, reduzindo as ociosidades e ineficiências do setor. A implantação de Plataformas Logísticas Multimodais, também previstas no PELTBAHIA deve ser priorizada, contribuindo para a redução do trânsito de caminhões nos centros urbanos. No transporte de passageiros deve-se priorizar o transporte público, construção de ciclovias e a ampliação do sistema de metrô, com sua integração com o sistema ferroviário metropolitano.
Mesmo que o Brasil não venha a ser beneficiado pelos recursos do Fundo criado em Cancun, o momento é bastante oportuno para as discussões sobre as medidas a serem implementadas visando a redução das emissões de gases de efeito estufa na atmosfera, que contribuem para o agravamento do processo de aquecimento global.
Ações como a construção da ferrovia Oeste - Leste, e a reativação da hidrovia do São Francisco, que contribuirão para o balanceamento da matriz de transportes no estado da Bahia, estão em sintonia com a questão da sustentabilidade nos transportes.
*Especialista em Infraestrutura da FIESP. Engenheiro Civil e Mestre em Administração (Ufba), com foco em Tecnologia e Competitividade.

quarta-feira, 15 de dezembro de 2010

Notas Nordestinas

Antônio Risério*
Pernambucanos, sergipanos, etc., se sentem e se definem como nordestinos. A Bahia não se manifesta assim. Os sertanejos da Bahia podem se ver como nordestinos, mas os baianos do Recôncavo não. Não é estranho, nem de estranhar. De fato, é muito difícil situar o Recôncavo Baiano no Nordeste. A paisagem é exuberante, chove muito, água é o que não falta na região. Salvador e as cidades do Recôncavo não sabem o que é a seca. A culinária local vive de frutos do mar e azeite de dendê. Não tem nada a ver com carne-de-sol. Sua música é o samba de Caymmi, não o forró de Luiz Gonzaga. E o misticismo de sua gente exibe, de modo forte e vistoso, a presença e o brilho de deuses nascidos na África Negra. O Recôncavo não tem nada a ver com Antonio Conselheiro e Padre Cícero. Culturalmente, o Recôncavo fornece a imagem que os brasileiros fazem da Bahia. Economicamente, é a região mais rica do estado. Além disso, geograficamente, Salvador e o Recôncavo não ficam exatamente no Nordeste. São terras a leste. Ficam no Brasil Atlântico Central. Por tudo isso, seria muito difícil a Bahia se manifestar como nordestina, a não ser no momento de receber verbas federais, desde os velhos tempos da Sudene de Celso Furtado.
Na verdade, a definição do que seja o Nordeste é mais histórico-política do que geográfico-ambiental. É uma definição confusa, que não prima pela clareza, nem pelo rigor. As configurações ecossistêmicas são simplesmente ignoradas, deixadas de lado por determinações políticas. Basta refletir um pouco para reconhecer estas violações da geografia e das realidades ambientais. A Mata Atlântica não se interrompe bruscamente na região de Porto Seguro. Não estaciona na fronteira da Bahia com o Espírito Santo. Pelo contrário, desce em direção ao Rio de Janeiro e segue adiante. Se é difícil aceitar a classificação do Recôncavo no Nordeste, mais difícil ainda é incluir, neste, a região de Porto Seguro. O cerrado conecta o oeste da Bahia não ao Recôncavo, mas ao planalto central do país. Em outro extremo, as terras frescas do Maranhão, antes que se vincular ecologicamente ao Raso da Catarina ou ao agreste pernambucano, ligam-se, naturalmente, ao mundo amazônico. Neste sentido, o Nordeste não existe.
Daí que Euclydes (com "y"; era assim que ele assinava - acho absurdo mudar a grafia do nome das pessoas, depois que elas morrem) da Cunha, Gilberto Freyre (também com "y") e Roger Bastide falem de duas Bahias, de dois Nordestes. De um lado, o sertanejo-antes-de-tudo-um forte; de outro, os "mestiços neurastênicos do litoral". O que Euclydes vê no sertão é a paisagem atormentada. O "martírio da terra", com seus verões queimosos, seus tabuleiros rasos, suas formações calcárias. Dentro do martírio da terra, o martírio humano. E assim como vê a diferença climática entre o sertão e a orla do mar, Euclydes nota, também, a diferença antropológica. No sertão, brancos e índios gerando mamelucos. No litoral, predomínio do cruzamento de brancos e negros - e seu produto típico, o mulato. E esta leitura de Euclydes foi matizada e enriquecida por Freyre e Bastide.
Freyre distingue maravilhosamente entre o Nordeste litorâneo da cultura do açúcar, alongando-se, por terras de massapê (é com "ê", sim) e várzeas, do Recôncavo da Bahia ao mar do Maranhão, e o Nordeste pastoril que se alarga para o interior. Sua análise é ecológica, histórica e antropológica (não há espaço para reproduzi-la aqui; mas, se alguém se interessar, leia o livro Nordeste). Bastide (Brasil, Terra de Contrastes) acentuou ao extremo as diferenças, com observações finas sobre o meio ambiente, a fisionomia etnodemográfica, a religiosidade. Em síntese, um seria o Nordeste barroco e canavieiro, místico e erótico, com as suas praias e os seus orixás. Outro seria o Nordeste do gado e do couro, ascético e milenarista, com procissões que se arrastam pedindo chuva.
Tudo bem, dois Nordestes. Mas nem esta relativização leva os baianos de Salvador e do Recôncavo a se verem no Nordeste ou como nordestinos. E isto cria alguns problemas. A rivalidade entre Pernambuco e a Bahia, hoje, se diluiu. Mas, nas camadas populares de Pernambuco, persiste. Os baianos, antigamente, provocavam, em termos que poderiam estar num texto de Joyce: "Recífilis, a venérea brasileira, capital de Pernambucocos". Hoje, ninguém se lembra disso. Mas os sergipanos ainda reagem. Dizem que os baianos fazem pouco caso de Sergipe, têm uma visão preconceituosa dos sergipanos e não se reconhecem como nordestinos. Como disse, sertanejos da Bahia se vêem como nordestinos. Mas o que Salvador tem a ver com a cultura do couro, de que falava o velho Capistrano de Abreu?
*Escritor, antropólogo e poeta

Oliveiros Guanais - Uma presença

Altamirando Santana*
Com a morte de Oliveiros Guanais de Aguiar, no dia 21 de novembro de 2010, a comunidade médica da Bahia perdeu um anestesiologista de projeção nacional, da melhor formação ética e humana.
Nasceu em 19 de agosto de 1936, na cidade de Caetité, tradicional centro educacional e cultural do sertão baiano, berço de grandes talentos. Dotado de inteligência privilegiada, a vasta cultura filosófica e humanística que Guanais cristalizou, no curso de sua vida, honra seus conterrâneos. Primeiro de sua classe desde o curso fundamental em sua terra natal ao curso secundário no colégio dos jesuítas em Salvador. Primeiro lugar, também, no vestibular da Faculdade de Medicina da Universidade Federal da Bahia, na qual se graduou com louvor, em 1961, proferindo primorosa oração em nome dos seus colegas na solenidade de formatura.
Vocacionado para as ações coletivas, Guanais era um brilhante orador, foi líder estudantil consagrado, presidente da União dos Estudantes da Bahia (UEB) e da União Nacional dos Estudantes (UNE), numa época na qual o movimento estudantil exercia vigorosa influência na política brasileira.
Na vida médica associativa, foi presidente da Sociedade de Anestesiologia do Estado Bahia (SAEB), na Sociedade Brasileira de Anestesiologia (SBA) exerceu quase todos os cargos: membro do Conselho Editorial da Revista Brasileira e da Comissão do Titulo Superior, dentre outros, e não chegou a sua presidência porque não quis.
O gosto pelo debate e o seu espírito questionador marcaram época nas Assembleias de Representantes da Sociedade, em que o seu conceito de debatedor perspicaz e as suas citações latinas ainda hoje são lembrados. No Conselho Regional de Medicina da Bahia e no Conselho Federal de Medicina, seus pronunciamentos em plenário, seus pareceres bem fundamentados sempre foram acatados com respeito e atenção pelos seus pares.
Tive o privilégio de viver muito proximamente de Guanais por mais de meio século; conhecemo-nos ainda estudantes e presenciei a grandeza de sua alma na intimidade do trabalho e na vida familiar. Gostava de conversar com os colegas de trabalho nos centros cirúrgicos, sobretudo com enfermeiros, enfermeiras e auxiliares. Era sempre uma fonte de consultas sobre os mais variados assuntos, desde temas existenciais até os problemas relativos à área médica. Por onde passou deixou o sinal de sua sabedoria.
No Hospital das Clínicas da Universidade Federal da Bahia, exerceu a função de professor e contribuiu para formar várias gerações de médicos anestesiologistas. A sua ação se fez presente praticamente em todos os hospitais de Salvador, com destaque para o Hospital da Beneficência Portuguesa na Bahia, no qual trabalhou e viveu seus últimos momentos, cercado do carinho e respeito de todos, dos mais humildes aos mais destacados colegas de jornada. Durante a sua longa enfermidade, em nenhum momento perdeu a sua verve espirituosa, foi um estoico, celebrou a vida até os últimos dias de consciência. Conhecedor de sua finitude, Guanais conferiu aos seus mais próximos o sentido do viver e morrer em paz.
Casado com Simone Campos Guanais há 45 anos, constituiu família bonita e harmoniosa, com os três filhos Frederico, Juliana, Oliveiros Filho, e os dois netos, Henrico e Fátima, presença constante em sua vida. Merece registro especial o conforto físico e espiritual de suas irmãs Esméria, Palmira, Cecê e Terezinha.
A saudade é a presença do espírito ao longo do caminho da vida.
*Dr. Altamirando Santana, médico, foi presidente da Sociedade Brasileira de Anestesiologia

terça-feira, 14 de dezembro de 2010

O último canto de Camafeu

Oliveiros Guanais*
Camafeu do Oxossi era muito conhecido na Bahia. Seu nome era Apio Patrocínio da Conceição, mas era por Camafeu do Oxossi que todos sabiam dele. Vi-o apenas uma vez, antes da história que vou contar. Foi no restaurante que ele tinha no primeiro andar do Mercado Modelo. De uma lado ficava ele, do outro Maria de São Pedro. Camafeu era negro, sorria fácil, vestia uma camisa havaiana, usava um chapéu de palha de grandes abas.

Camafeu e Maria de São Pedro eram duas celebridades da Bahia, dois nomes de força da cultura negra e do folclore baiano. De Camafeu eu conhecia um LP, editado nos anos sessenta, e que tinha músicas muito do meu agrado. Um dia, lá pela década de 90, o Dr. Roberto Santos, cirurgião competente de cabeça e pescoço- incluindo a parte oncológica - disse-me que no Hospital Aristides Maltez, dedicado ao tratamento de câncer, foi procurado por um senhor chamado Apio, ou seja, Camafeu do Oxossi, e que este era portador de câncer de laringe. Ao ser informado de seu estado, e sabendo que precisava tirar a laringe para ter chances de continuar vivendo, Camafeu ficou triste e resmungou: mas assim eu não posso cantar mais. Mal acabara de falar isso, sua mulher pulou em frente e afirmou com energia: tu toca pandeiro, bem.(Brava mulher!).
Passaram-se uns 15 dias e eu me vi escalado para fazer anestesia para uma laringectomia, aos cuidados do Dr. Roberto Santos, no Hospital Português. O nome do paciente era Apio. Fui à sala de espera, encontrando lá um senhor triste que respondeu aos meus comprimentos com voz baixa e rouca; olhei o prontuário, os exames e aguardei a chegada do cirurgião. Quando este apareceu, disse-me logo: você se lembra do que eu falei de Camafeu do Oxossi? Pois é ele que vamos operar hoje.
Fomos para sala e o paciente foi colocado na mesa cirúrgica, lúcido, consciente. Eu fiz algum comentário , dei início às minhas arrumações e, de costas para ele, comecei a cantarolar: “Pernambuco deu um tiro, Maceió arrespondeu, Paraná (u)ê, Paraná , Paraná (u)ê, Paraná." Mal terminara o refrão, ouvi uma voz rouca prosseguir: “Bahia vitoriosa, do lugar nem se mexeu, Paraná”.
Aí eu me virei com rapidez e, olhando-o, perguntei: -Uai, o senhor conhece esta música? Ele deu uma risadinha e disse com voz abafada: “essa música é minha”.
-Sua, seu Apio, essa música é de Camafeu do Oxossi. -Eu sou Camafeu do Oxossi, respondeu ele. -Seu Apio, o senhor vem me gozar numa hora dessa. Dizer que é Camafeu do Oxossi!
E ele sorria parecendo feliz, mas acabara de cantar, pela última vez , dois versos de sua canção mais famosa.
*Oliveiros Guanais, nascido em Caetité, Bahia, falecido em Salvador a 21/11/2010.
Médico Anestesiologista, foi presidente da UNE - 1960/1961 e membro do Conselho Federal de Medicina.
Artigo escrito em agosto de 2007

sexta-feira, 10 de dezembro de 2010

O futuro do Brasil está em jogo em Salvador *

Horacio Capel**
Nesta nova Europa ultramarina que foi o Brasil desde o século XVI, como outros territórios do norte e do sul da América, e nesta realidade nova e dinâmica que é o Brasil atual, a conservação do centro de Salvador tem uma grande importância nacional e internacional. É a amostra de uma cidade européia construída a partir do Renascimento, com este estilo e com os do Barroco e o Neoclassicismo. Mas é também um desafio e um laboratório para construir uma sociedade diferente. Do êxito ou fracasso dessa construção dependerão muitas coisas.
As circunstâncias históricas da construção do Brasil português, e logo as que estão relacionadas com a Independência do país, fizeram que Salvador, como todo o território brasileiro, sendo parte cultural da Europa, fosse também outra coisa distinta. Durante meio milênio vem se convertendo em um crisol, em um território de intensa mestiçagem e de nova interação intercultural, que é hoje uma realidade vital e de grande dinamismo cultural. Um Brasil que é uma superpotência mundial, um foco que muitos miram como um possível modelo para todo o planeta, pelo dinamismo cultural e a vitalidade da mestiçagem.
Mas nem tudo é cor de rosa. Há perigos evidentes. E isto se percebe claramente em Salvador. Uma, as diferenças sociais, muito patentes. Outra, a oposição à mestiçagem e o desenvolvimento do black power. Salvador, e especialmente o centro da cidade, que foi considerada a Roma negra, é identificada com a negritude. Não só pela importância dessa população como também pela grande efervescência cultural na cidade nos anos 1980-90 e o seu peso na construção da identidade.
A mutação de Salvador, e especialmente de seu centro histórico tem sido verdadeiramente espetacular. De constituir um símbolo da presença européia na América se transmutou em um símbolo da cultura brasileiro-africana. Alguns inclusive a consideram uma espécie de quilombo, um território negro independente.
Mas o centro histórico de Salvador não pode ser um lugar à margem da cidade, pois há de ser sentido como seu por parte de toda a população soteropolitana. Igual para todo o amplo e diverso Brasil, que o deve perceber como uma de suas raízes identitárias.
A imitação dos modelos sociais norte-americanos por parte da população brasileira de origem africana parece haver aumentado nos últimos anos. A aspiração a um black power é formulada explicitamente por alguns, com o beneplácito e o apoio encoberto ou explícito de fundações norte-americanas, que defendem o padrão dicotômico que domina nos Estados Unidos e que seguramente veriam com agrado a fragmentação do Brasil.
Mas o Brasil não é os Estados Unidos, e os modelos daquele país não deveriam ser seguidos no Brasil, que tem uma realidade histórica e racial diferente, e onde a mestiçagem é um impulso irresistível, que dá uma grande força a esta grande nação. O problema foi muito oportunamente analisado pelo professor Pedro de Almeida Vasconcelos, em dois excelentes artigos que estão publicados na revista eletrônica Biblio 3W, da Universidade de Barcelona (nº 729 e 732), e cuja leitura recomendamos entusiasticamente.
Sem dúvida no Brasil as diferenças sociais são enormes, e não cabe dúvida que – como em outros países americanos – as classes dirigentes tiveram até o início do século XX uma clara atitude racista (que alguns seguiram mantendo nos anos seguintes). Mas o Brasil é um país que tem desde a época portuguesa uma forte mistura entre todos os grupos raciais, talvez pelo fato de que os imigrantes dessa nacionalidade foram relativamente escassos e majoritariamente do gênero masculino.
Temos de levar em conta que nos Estados Unidos, apesar da abolição da escravatura, os descendentes de africanos ficaram totalmente segregados até 1960, e a presença de uma gota de sangue africano converte as pessoas em negros. Basta escutar o qualitativo racial que se atribui ao presidente Obama, que é designado normalmente, e de forma inadequada, como negro, sendo na realidade, pelo que sabemos, um mestiço.
No Brasil a questão racial é muito mais complexa, com mistura de, ao menos, três grandes grupos (indígenas brasileiros, europeus e africanos) cada um dos quais tem, por sua vez, importantes diferenças genéticas internas. A mistura tem dado lugar a uma estrutura social e racial muito complexa, desde logo diferente da norte-americana. A cor da pele não é um elemento que deva servir para classificar os indivíduos; o que importa são as diferenças sociais que existem entre uns e outros, e que todos os brasileiros devem esforçar-se em reduzir se querem um futuro de paz e bem-estar.
A proposta de reunir os pardos e os pretos em uma única categoria como negros ou como afro-descendentes é muito perigosa para o futuro do Brasil. A intensa miscigenação que existe neste país é um dado muito positivo, e a consolidação do Brasil como um país mestiço abre uma via de esperança e um modelo para o conjunto da humanidade.
A ascensão social é possível e está se realizando, ainda que lentamente. Alguns exemplos que poderíamos citar mostram que isso é possível. Entre eles o de um dos baianos mais ilustres, o professor Milton Santos, uma das figuras mais destacadas e reconhecidas da geografia mundial, um cientista social de grande prestígio, um intelectual reconhecido dentro e fora do Brasil e um cidadão comprometido com a defesa das liberdades democráticas. Um documentário sobre ele, "Encontro com Milton Santos ou o mundo global visto do lado de cá”, realizado por Silvio Tendler, começa com uma frase que impressiona. “Milton Santos, neto de escravos”. Que em duas gerações haja conseguido passar da situação de escravidão a uma posição brilhante a escala da ciência mundial é uma prova da existência de processos de ascensão social. É a melhor prova de que é possível um futuro brilhante para o Brasil, um modelo de sociedade para todos os países do mundo.
O caminho da mestiçagem é o adequado. O outro é o da separação racial e o enfrentamento. O que se eleja ou o que acabe triunfando em Salvador vai influenciar o futuro do Brasil.
* Trecho do prefácio do livro. "O Centro Histórico de Salvador e a sua integração sócio-urbana." BOMFIN, Juárez. Salvador: UFB, 2010
** Horacio Capel: Professor Catedrático em Geografia Humana - Universidade de Barcelona.

quinta-feira, 9 de dezembro de 2010

'Cidades despreocupadas com o clima perderão o jogo econômico no futuro'

Alexandre Gonçalves*
O prefeito da cidade de Roterdã, na Holanda, Ahmed Aboutaleb (foto), visitou São Paulo na semana passada. Roterdã é a segunda maior cidade holandesa e abriga o maior porto da Europa. Gilberto Kassab convidou Aboutaleb para o próximo encontro do C40 - cúpula que reúne administradores das principais cidades do mundo para discutir questões climáticas. O evento será realizado na capital paulista no próximo semestre. O prefeito holandês de origem marroquina falou ao Estado sobre o encontro em São Paulo e sobre a conferência de Cancún.
E: O que é o C40?
Ahmed: O C40 é uma importante iniciativa financiada pelo ex-presidente americano Bill Clinton. Para combater as mudanças climáticas, ele reúne várias cidades. Cerca de 50% das pessoas no mundo vivem na zona urbana e o número deve crescer em um futuro próximo. O C40 acelera o modo como as cidades fazem políticas sobre o clima. No ano passado, houve uma grande expectativa relacionada a um acordo mundial na conferência do clima em Copenhague. Ele não se concretizou. Mas muitas coisas estão acontecendo nas cidades. Elas sentem necessidade de atuar, não só por razões de saúde pública. Realmente acredito que as grandes cidades que não agarrarem as oportunidades de desenvolvimento tecnológico trazidas pelas mudanças climáticas vão perder o jogo econômico a longo prazo. Não estamos falando só de clima, saúde ou ar puro: também é uma questão de economia, renda e emprego.
E: Há resultados tangíveis das reuniões anteriores do C40 em Londres (2003), Nova Iorque (2005) e Seul (2009)?
A: Mais do que ações concretas, as reuniões geram comprometimento. Cito como exemplo a minha cidade. Temos o compromisso de atuar em várias frentes. Estamos desenvolvendo tecnologia para reunir as emissões de centrais de energia e fábricas químicas, transportá-las por tubulações para armazená-las em velhos campos de óleo no Mar do Norte. Contamos com financiamento da União Europeia e do governo central holandês. Além disso, geramos mais de 350 megawatts de eletricidade por moinhos de vento, o que corresponde a 50% do consumo da cidade. E estamos investindo o máximo dinheiro possível - com o apoio do governo central - para fazer com que toda a energia consumida venha de matriz eólica. Temos também fábricas que produzem mais calor do que precisam. Este excedente é usado para aquecer água que é transportada para a cidade e usada no aquecimento das residências, economizando gás e eletricidade. Também canalizamos o gás carbônico produzido nas fábricas para ser usado em lavouras dentro de estufas, onde é utilizado pelas plantas na fotossíntese. Trocamos a iluminação pública por leds que são mais eficientes. Enfim, há várias iniciativas. Clinton calculou que ao investir um bilhão de dólares construindo uma termoelétrica tradicional a carvão, 800 postos de trabalho são criados. Ao investir a mesma quantia reformando prédios para torná-los mais eficientes do ponto de vista do consumo de energia, você gera seis mil postos de trabalho. É uma diferença enorme.
E: Quais são as expectativas para o próximo encontro do C40 em São Paulo?
A: São grandes. Os desafios variam de país para país. Nós, por exemplo, não temos carros a etanol como alternativa para mitigar as emissões. Quero conhecer estratégias usadas em outros lugares do mundo. Entendo perfeitamente os problemas enfrentados por países como China, Índia e Brasil: necessitam crescer para alimentar suas populações e é impossível fazer isso sem aumentar as emissões. Mas convém investir parte dos ganhos com o crescimento econômico no combate ao aquecimento. Um cientista holandês nos anos 90 argumentava que deveríamos utilizar 10% do crescimento econômico nacional para aprimorar a tecnologia relacionada às questões climáticas. Devemos investir em fontes alternativas de energia, como a solar, a eólica e a água... muitos esforços devem ser feitos.
E: Quais são suas expectativas para Cancún?
A: O mundo deve agir. Será muito frustrante se Cancún, depois de Copenhague, não trouxer resultados práticos. As grandes economias devem trabalhar juntas para chegar a um consenso. Se não, será uma vergonha para o mundo. É algo que tem a ver com liderança e responsabilidade. E liderança é responsabilidade. Mas sou realista o suficiente para saber que as prioridades são diferentes para cada um. Os interesses também. Não me considero um pessimista, mas já ficaria muito contente se chegassem a um acordo.
* Jornalista - O Estado de S. Paulo

terça-feira, 7 de dezembro de 2010

Bicicletas, Transporte Urbano e Sustentabilidade

Sérgio Moraes*
Hoje o debate urbanístico age sobre críticas à cidade modernista. Os planejadores urbanos contemporâneos inserem o discurso da “sustentabilidade” no debate do desenvolvimento e planejamento das cidades na busca de novos paradigmas dentro dos aspectos de uma economia sustentável para o planejamento urbano, ideia que lida basicamente com a necessidade de uma mudança de hábitos (de consumo) das populações, a necessidade de um controle do crescimento demográfico, a perspectiva temporal (para as gerações presentes e futuras) e uma reavaliação de escalas (pensar global, agir local).
Dentro desta perspectiva, fatores como a melhoria da qualidade do ar, a conservação de energia, a diminuição dos impactos gerados pelo trânsito, entre outros tópicos, são hoje enfrentados por diversos urbanistas em diferentes países numa tentativa de desenvolver programas urbanísticos de baixo nível de agressão ambiental.
Deve-se notar também que o conceito de sustentabilidade urbana implica em tópicos mais abrangentes que aqueles considerados dentro do conceito de sustentabilidade ambiental, uma vez que o meio ambiente das cidades deve desenvolver-se em âmbitos sociais, econômicos e políticos, além dos ambientais e ecológicos. Desse modo, o conceito vai buscar definir um desenvolvimento social e/ou econômico que melhore e não destrua o meio ambiente natural e construído.
Neste contexto, cidades européias como Paris, Amsterdã e Copenhague (foto), entre outras, percebendo a importância do uso da bicicleta na relação cidade/homem, buscam uma diminuição da poluição ambiental, uma humanização das ruas e uma diminuição de acidentes de trânsito incentivando este meio de transporte como prioritário, dispondo bicicletas para uso público e construindo redes cicloviárias interligadas a trens e metrôs.
Atualmente, não obstante uma ampliação das discussões sobre as necessidades em diminuir o uso indiscriminado do automóvel nas áreas urbanas, o uso da bicicleta ainda encontra o forte obstáculo do preconceito e, especialmente no Brasil, da falta de cidadania e respeito no trânsito. John Forester, engenheiro de trânsito americano dedicado ao estudo de sistemas cicloviários, nota que existem duas maneiras antagônicas de tratar o uso da bicicleta nas cidades: um que trata o ciclista como um condutor de veículos, sujeito às mesmas penalidades de um motorista de automóvel e outro que trata o ciclista como um “personagem marginal” que deve ser isolado para não atrapalhar o uso das vias pelos automóveis.
Se o primeiro aspecto leva a uma situação onde a cidadania é reforçada ao compartilhar as vias entre os diferentes meios de transporte e a segurança é aumentada pela necessidade de educação no trânsito exigida do ciclista, o segundo modo de tratar os ciclistas isola-o, dificultando a sua integração, aumentando o tempo de deslocamento e criando obstáculos para difusão do uso da bicicleta.
Evidentemente, em algumas situações específicas, a criação de ciclovias segregadas do trânsito é necessária, mas não pode ser colocada como solução a priori.
Infelizmente, as políticas de transporte de nossas cidades enxergam o ciclista pelo segundo aspecto. Ciclovias implantadas em cidades como Curitiba e Rio de Janeiro, ainda que representem um avanço dentro do contexto brasileiro onde o ciclista é praticamente ignorado no planejamento do sistema viário, carecem de integração que complementem rotas cicláveis seguras com outros meios de transporte.
Em cidades no interior paulista onde é intenso o uso das bicicletas como Indaiatuba (120 mil habitantes, 80 mil bicicletas e 40 mil automóveis) a direção de trânsito da cidade recebe reclamações de motoristas de como as bicicletas estão “atrapalhando” o trânsito, sem perceber que elas constituem o trânsito da cidade.
O exemplo de Indaiatuba torna evidente que isolar os ciclistas na rede de vias públicas em vias especiais (com algumas exceções) visa apenas o benefício dos motoristas e não atende as necessidades de uma população que procura modos alternativos de locomoção. Também indica a necessidade de implementação de um planejamento urbano que não desconsidere as necessidades reais de transporte da população.
Como mencionado, alguns avanços têm sido feitos nas cidades brasileiras, nos últimos anos, porém existe uma necessidade de se ampliar o debate em torno do uso da bicicleta como meio de transporte. Sugiro uma visita ao site “Escola de Bicicleta” mantido por Arturo Alcorta, para aqueles que querem mais informações para discussão.
* Arquiteto e Urbanista

sexta-feira, 3 de dezembro de 2010

Salvador, BA: Ilhas de calor – Os impactos do boom imobiliário

Ruben Siqueira*
Não muito distante no tempo, o baiano se questionava sobre o isolamento do condomínio Flamboyant, quase engolido pelo verde na pouco habitada Av. Paralela. Hoje essa “pré-ocupação” foi substituída por outras inquietações. A expansão indiscriminada das fronteiras de Salvador, impulsionada pelo aumento da industrialização e da urbanização dos últimos anos, tem estimulado a especulação imobiliária, provocando impactos sócio-ambientais, como mudanças no clima urbano e na qualidade de vida da população.
Em 2008, dados do IBGE já apontavam Salvador como a capital de maior densidade demográfica do país (9.087 pessoas por km²). O superpovoamento traz diversos problemas urbanísticos, sobretudo nas áreas mais carentes da cidade, onde o percentual de habitantes por quilômetro quadrado é ainda maior, gerando sérios obstáculos no acesso à infraestrutura e outros serviços.
“O descontrole da ocupação repercute em questões ambientais e sociais não só em Salvador, mas em toda a Região Metropolitana, que não é pensada. Este é um dos maiores desastres ambientais causados pela administração negligente do poder público”, disse Agostinho Muniz, jornalista, advogado e ex-integrante do Conselho de Desenvolvimento Urbano (Condurb). “E outros prejuízos vão se agravar em breve”, alertou em reportagem do jornal Bahia Norte.
O norte do desenvolvimento
“O Vetor Norte é o filé mingnon dessa expansão. As empreiteiras já chegaram a Lauro de Freitas invadindo zonas litorâneas como Vilas do Atlântico e Buraquinho, um dos pontos mais bonitos da Região Metropolitana. E a natureza já sente os impactos desse ‘êxodo capitalista’. Existem muitos empresários de olho nisso aqui. Planos para restaurantes, resorts e até um centro de convenções a beira-mar. Os projetos são muito caros e bonitos, mas na maioria das vezes licenciados de forma simplificada, o que os torna questionáveis pelo aspecto sustentável,” disse um funcionário da prefeitura de Lauro de Freitas que preferiu não se identificar.
Enquanto falava, o funcionário apontava para o condomínio Brisa Mar, erguido sobre uma área de mangue, que ainda o circunda, e às margens do rio Joanes. “A praia virou o quintal da casa deles”, disse Aroldo Silveira, barraqueiro em Buraquinho e ativista ambiental. Só entre os 2,7 km entre a Estrada do Coco e a praia, há pelo menos mais de cinco edificações em construção.
“O poder público não tem sido capaz de responder a essa demanda crescente, de atuar como mediador e regulador entre as pendências e as possibilidades de oferta, nem mesmo a que pode advir da iniciativa privada. Por isso falta saneamento, transporte, educação, assistência à saúde, etc.”, observa Floriano Amoedo, arquiteto, urbanista e conselheiro do Instituto de Arquitetos do Brasil (IAB).
O centro da bússola
A Paralela de hoje é vitrine de mega empreendimentos que chamam a atenção de quem passa. Alguns são arquipélagos residenciais: condomínios fechados que reúnem trabalho, diversão e moradia no mesmo lugar, como o Manhattan Square.
Segundo o site do Manhattan Wall Street Empresarial, um dos projetos do empreendimento, “A região da Paralela tem hoje mais de 300 mil moradores. Mais de 6 mil novas unidades residenciais. 30 mil estudantes universitários. Mais de 2 mil alunos de escolas particulares. São milhares de pessoas esperando para virar clientes”. (http://www.oasgafisa.com.br/manhattan/wall_street.php)
“O governo municipal só parece preocupado em facilitar as coisas para os empresários, seja qual for o custo resultante para a população e o efeito sobre a cidade como um todo”, pensa Ordep Serra, antropólogo, pesquisador, professor da UFBA e integrante de movimentos da sociedade civil organizada, como o fórum “A Cidade Também é Nossa”
Alguns condomínios sofreram consequências pela ocupação dos espaços de Mata Atlântica. O Alphaville, onde o prefeito João Henrique residia, foi assolado por barbeiros, escorpiões e outros animais endêmicos da mata destruída. O fato foi notícia nos principais jornais em outubro de 2008.
Mudança Climática
A orla é outro ponto visível de crescimento. Só no trecho entre Jardim de Alah e Aeroclube, mais de dez esqueletos de concreto vão tomando corpo.
Segundo alguns urbanistas, se não houver maiores cuidados e uma atenção sobre a altura e a distância entre os prédios, essa verticalização da cidade poderá criar barreiras para os corredores de ar que canalizam os ventos soprados do litoral para dentro da área urbana, e trazer efeitos climáticos, como a formação de “ilhas de calor”.
Esse fenômeno climático que já acontece em outras cidades, como o Rio de Janeiro, é provocado pela grande quantidade de asfalto e concreto em detrimento de áreas verdes, que concentram o calor mais intensamente e por mais tempo, dissipando a umidade relativa do ar.
Para os especialistas, a alternativa é repensar a logística urbana a fim de integrar Salvador e Região Metropolitana como um todo. “Somente um processo que envolva a gestão democrática das cidades, com base num planejamento sistêmico, poderá garantir o retorno dos investimentos para a melhoria da qualidade de vida de todos”, ressalta Amoedo.
Desenvolvimento e meio ambiente deveriam jogar lado a lado. Porém, a atual política pública do município, que facilita a expansão do mercado imobiliário, parece promover exatamente o contrário. “A devastação ambiental é séria e se não for contida logo cobrará um terrível preço às gerações futuras”, completa Serra.
* Sociólogo do CPT-Ba. Artigo publicado no site EcoDebate, 30/11/2010