quinta-feira, 31 de março de 2011

Parabéns senhor prefeito, pelo nosso aniversário

Gil Vicente Tavares*

O prefeito de Salvador está de parabéns. A nova coreografia do Balé Municipal, acompanhada da Orquestra Sinfônica da Cidade de Salvador, embelezou ainda mais nosso novo Teatro Municipal. Este espaço, recém inaugurado, caiu como uma luva pra cidade. Localizado no centro de Salvador, as dez salas de ensaio, o espaço experimental, com capacidade pra 300 pessoas, e a sala principal, com um total de 1.200 lugares, acabou vindo na esteira da criação da Secretaria de Cultura do Município. Com o novo recapeamento da cidade, que agora conta com ruas asfaltadas em nível internacional, pode-se chegar ao Teatro Municipal através dos bondes modernos que foram criados para interromper o fluxo contínuo de carros. Agora, com esses bondes, basta se deixar o carro ou chegar de ônibus ou metrô no estacionamento subterrâneo, e de lá passear pelo centro admirando a reforma que trouxe uma nova vida à cidade. Com a interrupção do desmatamento, nosso prefeito seduziu as construtoras e revitalizar prédios antigos, ao invés de construir mais e mais coisas, numa ação que era totalmente burra; deixava-se imóveis belíssimos, espaços obsoletos no centro pra fugir para a periferia da cidade, fazendo fronteira, já, a outros municípios. Fiquei também orgulhoso de ver como todas as nossas praças foram reformadas. A ideia de fazer anfiteatros e barraquinhas nas praças, retirando ambulantes das ruas, acabou por trazer as famílias de novo ao seu passeio de fim de tarde, às atrações de final de semana porque, sim, a Secretaria de Cultura passou a incentivar as artes da cidade e não tem final de semana que não haja programação de boa qualidade nas raças. As novas lixeiras, banheiros públicos e passeios planejados vieram a deixar mais belo ainda o projeto das novas barracas de praia. Pistas de ciclismo, boa acessibilidade, tudo isso transformou a orla de Salvador num espaço moderno e sedutor. A política de incentivar uma urbanização limpa e pensada já há tempos cessou com os engarrafamentos. Pouca gente pensa em sair de carro de sua casa, pois a interligação entre metrô, ônibus climatizados e bondes modernos, funcionando de forma regular até às 2hs da madrugada, trouxe menos barulho, menos poluição e menos violência e mortes no trânsito. É bom ver que agora as pessoas vêm a Salvador pra assistir sua arte, apontando para o futuro. Viramos uma referência em todos os ramos da arte e o Museu de Arte contemporânea inaugurado há pouco tempo nos colocou de novo no cenário internacional de forma sensacional. Foi-se o tempo em que as pessoas vinham ver aquela cidade folclórica, de gente suja e pobre, de arte tosca e carnaval desorganizado. O prêmio concedido pela UNESCO ao planejamento feito no nosso último carnaval trouxe investimentos e o carnaval do ano que vem promete revolucionar a economia local. Agora, as pessoas não vêm mais para o carnaval, elas aproveitam o período para assistir bons espetáculos, coreografias, ver nossa orquestra e balé no Teatro Municipal. O incentivo da Secretaria de Cultura do Município à música local potencializou nossa criação e hoje dificilmente se consegue assistir apresentações musicais se não se comprar o ingresso com antecedência. Os grupos instrumentais de Salvador acabaram por esvaziar as grandes bandas de carnaval devido à demanda dos espaços novos, dos anfiteatros nas praças, o soteropolitano, depois dessas iniciativas do governo, passou a consumir todo tipo de arte local e paramos de ser os provincianos que ficavam atrás de xous de Lenine, Ana Carolina, etc., bem como espetáculos de globais. Com os novos incentivos da prefeitura, a produção local tomou um gás e hoje em dia está difícil achar espaço pra atrações de fora, visto que o prestígio local dos artistas vêm lotando teatros e praças. Claro que tudo isso se deve, também, à revolução na educação. A qualificação, reciclagem e capacitação dos professores, que tiveram aumentos na ordem de quase 300%, tudo isso acabou se refletindo nas salas de aula. As escolas municipais, reformadas, ficaram mais atraentes e uma geração de meninos preparadíssimos começou a surgir. Grandes professores da rede privada migraram, devido às condições e metas da prefeitura, para o ensino público e uma pequena revolução foi feita. Muito se poderia falar, parabenizando nosso prefeito. Não citei nem metade. Mas, pra eu não perder a fama, faço aqui uma crítica da minha área, a arte. Com essa urbanização fantástica, essa revolução na educação e o surgimento de novos teatros, espaços e museus, nossa produção aumentou muito. O governo conseguiu dar conta disso através de recursos próprios e acordos com a iniciativa privada. Temos, hoje, vários grupos de teatro, de dança, grupos musicais residentes em espaços públicos e privados, com programação constante e rica. Nossa orla virou referência nacional e nosso sistema de transporte, também. Com o fim da violência urbana, o soteropolitano passou a sair mais, ter mais tempo com trânsito livre, passou a frequentar mais a cultura local. Sim, e qual é a crítica? O problema é que a maioria dos teatros está com as temporadas dos grupos de dança e teatro esgotadas. Essa ideia de vender ingressos pra temporadas inteiras está afastando o turista. Precisa-se de uma política pra que o turista que chega num de nossos novos hotéis baratos e confortáveis possa curtir a cidade e sua cultura. Referência que somos, agora, de arte, as pessoas vem aqui assistir nossas criações e não acham ingressos. Claro que sempre haverá opções, com as barracas de praia novas, nossa orla fantástica, todo o sistema turístico implantado na cidade... Ah, não falei dele! Bem, o NST, Novo Sistema Turístico, aliou avançado sistema de transportes, a revitalização das praças, calçadas, a criação de banheiros públicos, lixeiras, barracas para atendimento, tudo isso se juntou a um mapa turístico pensado da cidade. Hoje em dia, você chega em qualquer lugar histórico da cidade e encontra um sistema informatizado com toda a história do local e explicando como foi o processo de revitalização do entorno. O mesmo sistema está sendo implantado, agora, nos espaços culturais da cidade. Mas isso seria um outro texto. Senhor prefeito. Não adianta criar um teatro municipal maravilhoso como esse, subvencionar as artes, revitalizar monumentos, espaços, praças, ter um sistema de transporte qualificado. Como o turista poderá usufruir disso? Quis assistir a nova coreografia do Balé da Cidade de Salvador e a mulher da bilheteria disse que os ingressos para a temporada 2011/2012 estão esgotados. Eu, como soteropolitano, não estou tendo chance de ver o balé da minha cidade, a orquestra da minha cidade. Imagine o turista? Parabéns, senhor prefeito. E espero que um dia você exista. Porque a atual conjuntura é desesperadora e as perspectivas dos próximos prefeituráveis são péssimas. Parabéns, senhor prefeito. E conte com meu voto.

* Dramaturgo, ator e escritor

Salvador: Transporte sobre trilhos ou sobre rodas?

A pouco mais de três anos para a Copa do Mundo do Brasil, Salvador ainda não definiu um dos seus principais entraves: a mobilidade urbana. Enquanto o metrô segue sem previsão de inauguração, após 11 anos do início da sua construção, técnicos e políticos debatem e divergem sobre qual seria a proposta mais viável para integrar o transporte de massa da capital baiana, o BRT (Bus Rapid Transit) ou o VLT (Veículo Leve sobre Trilhos). O governo do Estado abriu uma Proposta de Manifestação de Interesse (PMI) para as empresas do setor apresentarem as suas propostas, até a próxima quarta-feira (30), para que, a partir daí, o projeto escolhido seja implementado. A edição do Diário Oficial do Estado (DOE) de sábado e domingo (26 e 27) trouxe publicado o Procedimento de Manifestação de Interesse (PMI) destinado à realização de estudos preliminares de viabilidade técnica, avaliação ambiental, econômico-financeira e jurídica, para estruturação de projeto de transporte público metropolitano entre Salvador e Lauro de Freitas. A expectativa é que o PMI aponte a melhor solução para a mobilidade urbana dos dois municípios.Os entusiastas do BRT, como o deputado federal Nelson Pelegrino (PT), ressaltam o menor custo e a agilidade para o funcionamento do sistema. “O BRT é três vezes e meio mais barato, tem a implantação mais rápida e não envolve subsídios. Sem contar que o material rodante é todo fabricado no Brasil e, no futuro, as vias de circulação poderão ser adaptadas para qualquer outro modal”, defendeu. Ao considerar as duas propostas, o prefeito João Henrique Carneiro (PP) sugeriu que o bonde moderno fosse instalado no Subúrbio Ferroviário e os corredores para os ônibus bi-articulados construídos na Avenida Paralela. O Sindicato das Empresas de Transportes - SETEPS vem atuando claramente em favor do BRT, usando como principal argumento do descrédito provoc ado pelas obras infindáveis da linha 1 do Metrô de Salvador, que virou caso de polícia, "operação castelo de areia " (click e leia)envolvendo Prefeito, ex-prefeito, políticos, empreiteiras baianas, paulistas, mineira e pernambucana. (CC, AG, ODB, OAS, QG)

Carybé homenageado em São Paulo

Valdemir Santana*

Uma exposição gigante, com um conjunto de 19 peças de Carybé deve ser a parte mais relevante das homenagens para comemorar os 100 anos de nascimento de Hector Julio Páride Bernabó ou “Carybé”, o artista argentino que morou durante mais de cinquenta anos, e morreu, em Salvador, tornando a cidade ainda mais famosa no mundo por causa das pinturas que fez. A surpresa da exposição é que as obras ganham destaque em São Paulo, com mostra especial no Museu Afro Brasil, criado pelo artista baiano Emanoel Araújo. O artista plástico Justino Marinho, que também é baiano, é quem faz a curadoria adjunta para levar os painéis de Carybé para a grande mostra em São Paulo, considerada de nível internacional. Justino teve autorização da Fundação Clemente Mariani, proprietária das obras, para levar os painéis a São Paulo. Eles estão no “Museu Afro-Brasileiro de Salvador” e são embarcados esta semana. A exposição é inaugurada dia 28 integrando a programação do “Ano Internacional do Afro descendente”, no Brasil. São 19 painéis que seguem para São Paulo. Feitos em pranchas de cedro eles têm pintura, incrustações e entalhes para representar individualmente os orixás cultuados pelas religiões afro-brasileiras, com suas armas e animais litúrgicos. O conjunto tem uma história singular, pois foi feito sob encomenda do banqueiro Clemente Mariani, então dono do Banco da Bahia, e instalado em 1968 na agência da Avenida Sete de Setembro.

* Jornalista da Tribuna da Bahia

quarta-feira, 30 de março de 2011

José Alencar Gomes da Silva /1931 -2011


Um BRASILEIRO

Uma foto vale por mil palavras

Inteira definição do que em todos os tempos é a Bahia


Gregório de Matos*


Que falta nesta cidade....................VERDADE.


Que mais por sua desonra?.................HONRA.


Falta mais que se ponha?..............VERGONHA.




O demo a viver se exponha,


Por mais que a fama a exalta,


Numa cidade onde falta


Verdade, honra, vergonha.




Quem a pôs neste socrócio¹?.............NEGÓCIO.


Quem causa tal perdição?................AMBIÇÃO.


E o maior desta loucura?.....................USURA.





Notável desventura


De um povo néscio, e sandeu,


Que não sabe que o perdeu


Negócio, ambição, usura.




Quem são os seus doces objetos?..........PRETOS.


Tem outros bens mais maçciços?.........MESTIÇOS.


Quais destes lhe são mais gratos?........MULATOS.




Dou ao demo os insensatos,


Dou ao demo a gente asnal,


Que estima por cabedal


Preto, mestiços,mulatos.




E nos frades há manqueiras²............FREIRAS.


Em que ocupam os serões?.............SERMÕES.


Não se ocupam em disputas?.............PUTAS.




Com palavras dissolutas


Me concluís, na verdade,


Que as lidas todas de um Frade


São freiras, sermões, e putas.

O açucar já se acabou?................BAIXOU.

E o dinheiro se extinguiu?...............SUBIU.

Logo já convalesceu?...................MORREU.

À Bahia aconteceu

O que a um doente acontece,

Cai na cama, o mal lhe cresce,

Baixou, subiu, e morreu.

¹-Rapinar

²-Deslize moral

*Gregório de Matos e Guerra nasceu em Salvador, em 1633 (ou 36), filho de uma família afluente, e morreu no Recife em 1696. Alcunhado de Boca do Inferno ou Boca de Brasa, foi advogado formado em Coimbra, arcebispo e poeta na Bahia colonial. Utilizou a poesia como arma contra seus desafetos. Criticava a Igreja, o Judiciário e as pessoas de côr. Mesmo sendo racista ou apesar de, é considerado o maior poeta barroco da América portuguesa.

terça-feira, 29 de março de 2011

SALVADOR, SALVADOR

Roberto Mendes e José Carlos Capinan*
Luminosa cidade Espelho no mar No céu claridade É bonita de ver Refletida nos olhos Do meu amor Salvador Não deixe o meu amor morrer Me salve da dor Se esse amor virar saudade Negra na cor Cidade da fé, felicidade Negro amor Quero ver nos olhos dela Tua imagem O amor quando nos deixa É um beco sem saída Me salve da dor De um beijo de despedida… Eu vou botar meu coração na mão Que toca o tambor do teu afoxé Cidade da fé, felicidade Me salve da dor Se esse amor virar saudade…

* Poetas e compositores

** Publicado originalmente no blog Jeito Baiano

Salve salve, os 462 anos de Salvador

Osvaldo Campos Magalhães*

Salve, salve Salvador, cidade de todos os ritmos, de todo as cores, de tantas injustiças e de tantos amores; Salve Salvador, cidade da mistura, cidade da miséria e da vilania, Cidade da festa e da fantasia; Salve, salve Salvador, cidade da fé e de todos os ritmos, cidade da folia, Cidade do Carnaval, cidade da Bahia; Salve Salvador, cidade de cantores, dançarinos, poetas, Cidade da alegria, Cidade sem pudor, cidade da hipocrisia; Salve, salve Salvador, cidade de todos os ritmos, de todas as cores, Cidade de tantas injustiças e de tantos amores; Cidade cruel e tão desigual, cidade sensual; Salve, salve Salvador, de todos os cantos, males e encantos, Cidade Carnal, cidade amoral; Cidade da música e da felicidade, Cidade da exclusão, injustiça e impunidade; Cidade radiante, cidade mutante, cidade poesia, Cidade península, cidade da Bahia; Cidade da chuva, cidade do sol, cidade do futebol; Salve a alegria, salve a mistura, salve o axé e a fé, Cidade da ginga, cidade do Candomblé; Cidade pagã, cidade cristã, da mentira e da verdade, Ecumênica cidade; Salve a esperança e a perseverança, salve a ternura e toda procura, Cidade da loucura, Cidade do bem, cidade do mal, cidade do carnaval.

*Editor do blog Pensando Salvador do Futuro

** Foto: Daniela Paim

Salvador justa e sustentável

Isaac Edington*
O que é uma cidade ? O termo "cidade" é geralmente utilizado para designar uma dada entidade político-administrativa urbanizada. Mas, o que é a cidade para você? Cada um de nós, tem um desejo do que seria uma cidade boa para se viver. O educador colombiano Bernardo Toro cunhou uma expressão quase poética para o que seria uma cidade: “um imaginário convocante, sedutor, que inclua os sonhos, objetivos e necessidades...” Para Toro, uma comunidade de fato se estabelece quando qualquer grupo humano se revela capaz de compartilhar um entendimento comum acerca de um determinado aspecto da realidade, de posicionar-se em relação a ele de forma coesa, com pessoas, grupos e instituições unidos por crenças, valores e sentimentos comuns e, finalmente, atuar frente às situações concretas de modo convergente e complementar, mantendo constância de propósito ao longo do tempo. Bom, não vou falar da realidade da nossa cidade. Todos nós sabemos e sentimos. Mas a realidade é: fazemos muito pouco para mudá-la. Então, como começar a fazer essa mudança? Como por exemplo, construir uma articulação política, social e econômica capaz de comprometer a sociedade e sucessivos governos com uma agenda composta por um conjunto de metas destinadas a promoção da qualidade de vida das cidades? Na busca dessas respostas, comuns à grande maioria das cidades latino-americanas, surge no Brasil o movimento por Cidades Justas e Sustentáveis que se organiza em forma de Rede, e já reúne cidades com São Paulo, Rio de Janeiro, Belo Horizonte, Recife entre outras, que seguem o exemplo bem-sucedido de Bogotá com o movimento Bogotá Como Vamos, que, há mais de uma década, vem transformando e melhorando as condições de vida da população da capital colombiana. Nas cidades brasileiras, a rede é formada por organizações sociais apartidárias e inter-religiosas apoiadas por lideranças comunitárias, entidades da sociedade civil, empresários, além de cidadãos interessados em mudar o panorama atual dos centros urbanos. O principal objetivo é comprometer a sociedade e sucessivos governos com comportamentos éticos, justos e que contribuam para o verdadeiro desenvolvimento sustentável. Cada movimento em suas respectivas cidades, promove atividades, articula ações e monitoram o poder público para alcançarem a eficácia e transparência das políticas públicas. Na cidade de Salvador, surge o mais novo membro da rede, o Movimento Nossa Salvador, que contará com três frentes de trabalho: •programa de indicadores sociais, •acompanhamento da gestão pública e •educação para a cidadania. A partir destas frentes estão sendo formados grupos de trabalho (GTs) com eixos temáticos prioritários: educação, saúde, segurança pública, meio ambiente, mobilidade urbana, juventude, trabalho e renda entre outros. Os GTs são constituídos por representantes de entidades e cidadãos e cumprem uma agenda decidida coletivamente. Os grupos têm autonomia para planejar as ações sob a perspectiva de cada área temática e se reúnem periodicamente. O movimento irá selecionar, sistematizar e divulgar, os principais indicadores de qualidade de vida da cidade, permitindo o acompanhamento de toda a sociedade, abrindo espaço para o debate e monitoramento sistemático da gestão pública. O movimento lança uma pesquisa com 61 indicadores sociais em áreas como educação, saúde, segurança e meio ambiente, para apresentar aos soteropolitanos uma fotografia da situação em que se encontra a cidade. Assim, busca encorajar uma atitude construtiva de todos na vida da cidade: governo, empresas, institutos, organizações civis e cidadãos. O objetivo do movimento é que a atenção colocada sobre os indicadores sociais, uma vez amplamente divulgados, potencializem o interesse de todos para o encontro de soluções, no sentido de: tornar Salvador um cidade justa e sustentável para todos. Talvez esse seja o imaginário convocante a ser perseguido por cada cidadão da cidade de São Salvador”.

* Isaac Edington Diretor Presidente do Instituto EcoD, Criador e Publisher do Portal Ecodesenvolvimento.org

Salvador , 462 anos

Andreia Santana* Do desembarque de Pedro Alvarez Cabral em Porto Seguro, em 22 de abril de 1500, até o início do processo de colonização no Brasil, foram gastos mais de 30 anos em que a coroa portuguesa não sabia o que fazer com a imensidão de terras ocupadas.

Não sabia e também não queria fazer nada, porque dava trabalho e custava dinheiro. O Brasil, nos seus 30 primeiros anos de colonização, servia como entreposto para extração de pau-brasil, a madeira usada para tingir tecidos, que valia muito na Europa.

Em Porto Seguro, nesse período, havia um ou dois engenhos de açúcar muito primitivos. Serviam como teste da coroa portuguesa, que já havia instituido a indústria açucareira em Cabo Verde, nas Antilhas e nos Açores. Era uma garantia de futuro, descobrir se a nova colônia realmente fazia jus à descrição do escrivão Pero Vaz de Caminha: “nessa terra, em se plantando, tudo dá”. O litoral imenso do Brasil era terra de ninguém. Piratas e corsários infestavam. Extraiam pau-brasil sem autorização de Portugal. Praticavam escambo com os índios.

A coroa não queria gastar para mandar povoar o Brasil, não queria gastar para mandar guardar a costa brasileira. Nas colônias espanholas (no restante do que hoje conhecemos como América Central e América do Sul), jorrava ouro e prata do solo. Enquanto no Brasil, nem uma pepita para amenizar o “prejuízo” português. O Brasil era um abacaxi de dimensões continentais para a coroa descascar. Não tinha pedras preciosas ou metais visíveis, estava infestado de piratas e de índios, que eram os ocupantes legítimos da terra. Privatizar a colonização era a solução para impedir que o vasto território fosse invadido por holandeses, franceses, espanhois. E se, realmente houvesse outras riquezas aqui além do pau-brasil? Valia a pena manter a posse da terra, disso a coroa não duvidava, o problema era quem pagaria a conta. Donatários em ação - Na teoria era bem simples.

O rei dividiria o território brasileiro em 15 grandes lotes, doados para 12 fidalgos da coroa. Alguns receberam mais de um lote. Esses nobres, por sua vez, seriam responsáveis por colonizar o Brasil, cada um faria as benfeitorias no seu pedaço de território. Os donos da terra teriam direito de fundar vilas, conceder sesmarias (que eram como grandes fazendas), cobrar impostos, distribuir justiça, legar sua terra aos filhos, netos e bisnetos…Seriam obrigados a pagar uma taxa dos impostos ao rei e não poderiam explorar os produtos que fossem monopólio da coroa. Cada donatário traria seus próprios colonos, gastaria do próprio bolso, investiria no projeto do rei e garantiria para ele a posse do Brasil, dando lucro, ainda por cima. Mas, não foi bem assim que a coisa aconteceu. Da teoria para a prática, houve uma sucessão de poréns que transformou o processo todo numa grande bagunça. Territórios imensos, que deveriam ser povoados e gerar receita, transformaram-se em gigantescos latifúndios. Os donos nem tomavam conhecimento.

Francisco Pereira Coutinho escapou de um naufrágio... Para começo de conversa, alguns donatários não se interessavam em deixar o conforto da corte e se lançar numa aventura marítima. A travessia de Portugal para o Brasil naquela época era um suplício: dois meses no mar, sem água e comida frescas, sem banho, com as gengivas sangrando de escorbuto, piolhos e pulgas fazendo morada nos corpos e cabelos. Depois, uma vez no Brasil, tomar posse da capitania significava pacificar ou exterminar os índios, que não sairiam de sua terra assim tão facilmente. Erguer uma vila não era tão simples, arrumar moradores para ela, instituir uma rotina de povoamento eram processos lentos. Alguns nobres simplesmente acreditavam que o Brasil era um tremendo presente de grego e não apareceram por aqui. Justiça seja feita, houve donatários que até tentaram, mas navegaram numa maré de azar de dar pena.

Quatro capitães perderam suas fortunas investindo na colonização brasileira. Aires da Cunha, dono do Maranhão, além de ficar na miséria, morreu em um naufrágio; Francisco Pereira Coutinho (o dono da capitania da Baía de Todos os Santos) foi morto pelos tupinambás da ilha de Itaparica, depois de sobreviver a um naufrágio; Pero de Campo Tourinho (Porto Seguro) foi preso pela Inquisição, acusado de heresia. E Vasco Fernandes Coutinho (do Espirito Santo) virou alcoolatra, gastou o dinheiro todo e voltou para Portugal reduzido a mendicância. As capitanias que deram certo foram as de São Vicente e Pernambuco, dos donatários Martin Afonso de Souza e Duarte Coelho. Deram certo, lógico, sob a ótica do colonizador, porque para os índios o negócio resultou em morte e escravidão.

Quando Thomé de Souza chegou ao Brasil, com a missão expressa de fundar uma capital para o governo geral e botar ordem nas capitanias, essas duas eram as únicas que se mantinham sólidas, prosperando e rendendo dividendos. O resto todo do território, continuava a ser terra de ninguém. Coube a um senhor de 48 anos, de obediência cega a El Rei D. João III, mas de vontade de ferro no comando da colônia, instituir o que hoje conhecemos por Brasil. ...para ser morto pelos tupinambás A última capitania foi extinta no século XVIII, mas a origem da unidade territorial brasileira está nessa forma primitiva de administração. Como escreve o professor Luiz Henrique Dias Tavares, na sua História da Bahia, “as capitanias deram início à ocupação efetiva da terra, enquanto o governo geral instituiu oficialmente o poder de Portugal na colônia”. As estruturas de poder vigentes hoje no país, também têm origens naquela época. A divisão do Brasil em estados e municípios, que têm nomes herdados das suas capitanias de origem, é um exemplo dessa herança de quase 500 anos.

* Jornalista e editora do blog " Conversa de Meninas" Fontes de pesquisa para este post: “Donos da Terra”, reportagem publicada na edição de domingo, 06 de abril de 2003, do caderno Correio Repórter (jornal Correio da Bahia)

domingo, 27 de março de 2011

Mobilidade Urbana Sustentável

O Institute for Transportation and Development Policy (ITDP), prevê que em 2030 a expectativa é que 60% da população mundial, cerca de 5 bilhões de pessoas, viverão em áreas urbanas - e a maioria delas em países em desenvolvimento. Como meio de minimizar os efeitos do crescimento populacional na qualidade do transporte das cidades, o programa Our Cities Ourselves do ITDP, em parceria com o urbanista dinamarquês Jan Gehl, desenvolveu um livreto (em inglês) para estimular o debate de ideias e a implantação de uma política de mobilidade pública mais inteligente.

A publicação lista dez princípios básicos para transformar qualquer cidade em um modelo de mobilidade sustentável. São eles:

* Direito de andar: Todos os indivíduos são pedestres, é essencial ter um ambiente de trânsito a pé de qualidade;

* Transporte não poluente: O melhor meio de transporte é aquele que não polui, o uso das bicicletas e de não motorizados deve ser encorajado com vias específicas;

* Mobilidade coletiva: Para maiores distâncias, a melhor alternativa é o transporte coletivo de qualidade;

* Restrição ao acesso de veículos: Em lugares de grande trânsito de pedestres e muitas construções, o acesso de veículos e coletivos deve ser reduzido;

* Serviços de entregas sustentável: As entregas delivery devem ser realizadas da maneira mais limpa e segura possível;

* Integração: Um bom bairro é aquele que integra áreas residenciais às comerciais e de lazer. Essa diversidade atrai as pessoas para trabalharem, comprar ou simplesmente aproveitar o espaço;

* Preencher espaços: Moradores e visitantes são atraídos para lugares onde podem realizar a maioria das tarefas diárias a pé. Preencher espaços baldios pode facilitar a vida da comunidade quando se busca uma feira ou posto dos correios;

* Preservação cultural: Uma comunidade se torna mais atrativa quando expõe a sua própria cultura, belezas naturais e tradições. Essas qualidades tornam o lugar único;

* Conectar espaços: Conexões entre quarteirões diminuem a distância entre os destinos e possibilitam o trânsito a pé ou em bicicletas;

* Pensar longe: Investir a longo prazo em construções de vias públicas torna o transporte mais sustentável, já que o gasto com reparações é menor e a durabilidade maior. A publicação fez parte de uma das exposições do programa Our Cities Ourselves, que funcionou até o dia 11 de setembro, na cidade de Nova York. Foram realizadas 10 apresentações, de 10 arquitetos diferentes, sobre visões para melhorar o transporte público de 10 cidades do mundo.

sexta-feira, 25 de março de 2011

Qualidade de vida urbana

David Byrne* Por meio da Transportation Alternatives, uma organização local, sou apresentado a Jan Gehl (clik e assista vídeo), um visionário, porém prático planejador urbano ( no centro da foto) que, com sucesso, transformou Copenhague em uma cidade simpática para pedestres e ciclistas. Pelo menos um terço de todos os trabalhadores de Copenhague vai a trabalho de bicicleta agora! Ele diz que metade deles irá aderir em breve. E ele não está sonhando. Nós aquí em Nova York podemos achar que isso é bom e natural para dinamarqueses, mas que nova-iorquinos são enfezados e têm uma mentalidade mais independente, então isso não pode acontecer aqui (a razão pela qual as pessoas sentem que dirigir um carro deixa alguém com uma mentalidade mais independente é um mistério para mim). Mas Gehl revela que de início suas propostas foram recebidas lá extamente com o mesmo tipo de oposição: os moradores disseram, "Nós dinamarqueses nunca vamos concordar com isso - dinamarqueses nunca vão usar bicicletas".
Ian Gehl ajudou a transforma trechos de Manhattan
Também em Copenhagen. Antes, a área que margeia esse canal era usada como estacionamento, os carros circulavam por ali procurando vagas. Esse lugar adorável era, há não há muito tempo, basicamente um feio estacionamento e um lugar de passagem. Agora é um destino. Os carros ainda podem circular por lá, mas não estacionar. E dessa pequena mudança a área explodiu como um agradável ponto de encontro e até turístico. A cidade nem teve de investir em "melhorias" caras para permitir que isso acontecesse. Os usuários e comerciantes locais fizeram as melhorias - colocando cadeiras do lado de fora e instalando toldos - embora no início muito deles tenham reclamado que se as pessoas não pudessem parar em frente aos seus estabelecimentos seus negócios iriam sofrer. Essa parece ser a maneira como Gehl trabalha, fazendo , aquí e ali, mudanças relativamente pequenas ao longo dos anos que acabam por transformar a cidade inteira, tornando-a um lugar melhor de viver. Gehl concordou em participar do evento no Town Hall e dar uma pequena palestra! Há pouco tempo ele foi contratado como consultor pela cidade de Nova York e fez estudos da situação em outras cidades - Amsterdã, Melbourne, Sidney e Londres. Na foto ao lado, proposta de Gehl para requalificação urbana de uma Nova York. * David Byrne, formado em Design, é músico, fotógrafo e escritor. Integrou a band Cult dos anos 80, "Talking Heads" e, vem divulgando os trabalhos de vários artistas brasileiro, como Tom Zé, Os Mutantes e Margareth Menezes. Publicou em 2009 o Livro Diários de Bicicletas, Editora Amarylis.

Gol de Fux


Eliane Cantanhêde*
A votação de ontem no Supremo Tribunal Federal é um alívio, ao mostrar que o Fla-Flu na mais alta corte do país acabou e da melhor forma: com a vitória da lei, da experiência e da técnica jurídica sobre o apelo fácil da demagogia.
Ninguém que não tenha rabo preso nem dívidas na polícia e na Justiça pode ser contra a Lei da Ficha Limpa. Eu, tu e nós (nem sempre eles) somos a favor de moralidade na vida pública e exclusão dos piores quadros e dos mais lamentáveis exemplos de homens públicos. A questão, porém, é que juízes não julgam pela impressão ou pela simples vontade, mas friamente com base no que está escrito nas leis vigentes e na Constituição.
Luiz Fux, que veio para desempatar, elogiou o princípio da lei, como todos nós elogiamos, mas votou de acordo com a Constituição: a Lei da Ficha
Limpa foi sancionada em junho do ano eleitoral de 2010 e, portanto, só pode valer para as próximas eleições -a de 2012, municipal, e a de 2014, geral.
Dói? Dói, mas doeria mais se Fux jogasse às favas os escrúpulos de consciência e a letra da lei em favor dos aplausos e dos elogios. Para "ficar bem" com a opinião pública.
A Ficha Limpa, para ele, é "a lei do futuro, a aspiração legítima da sociedade brasileira". Mas, igualmente, deve ser aspiração da sociedade brasileira o Estado democrático de Direito regido de fato pelo direito, não ao sabor do clamor popular e do aplauso fácil.
Que, assim como Fux teve a coragem de enfrentar as câmeras e as críticas, a Justiça brasileira a tenha também para perseguir uma sociedade mais justa, em que a lei valha efetivamente para todos. Haverá então um dia em que lei, realidade e aspirações legítimas da sociedade andem, enfim, juntas. Vai demorar? Vai. Mas devagar e sempre.
Comemorem "fichas-sujas" do PT, do PSDB, do PP, do PSB. Sem esquecer de que o Brasil avança e que quem ri por último ri melhor.
--------------------------------------------------------------------------------
Eliane Cantanhêde
É jornalista e comenta governos, política interna e externa, defesa, área social e comportamento.

quinta-feira, 24 de março de 2011

Ainda o Carnaval

Nelson Varón Cadena*
Duas semanas transcorridas e eu continuo no Carnaval, ainda hoje me surpreendi cantarolando no trânsito a música de Caetano : “Atrás do trio elétrico/Só não vai quem não pagou/Quem não comprou o abadá/Aprendeu, que é do outro lado/de dentro da corda, do lado/Que é lá do lado de lá”. Ritmo de frevo gostoso, alucinante, que nem a Vassourinha na magnífica interpretação de Morães Moreira; por um momento revi os velhos carnavais da Praça Castro Alves: “Varre, varre, varre a sujerinha/varre para baixo do tapete, escondidinha/Abriu alas e abriu trilhos pra depois passar/O metrô calça curta. Se um dia funcionar”. Como já disse continuo no Carnaval cantarolando as músicas que me remetem à folia, no banheiro, no carro, no escritório baixinho, na academia, também baixinho, para não incomodar.
Gosto do Carnaval da Bahia, mas também do Carnaval do Rio de Janeiro, me vejo lá nos versos de André Filho; imagino um mar de foliões, eu no meio, dedinhos apontados para cima cantando pelas ruas de Ipanema: “Cidade tão perigosa/Cheia de morros mil!/Cidade tão perigosa/Embromação de meu Brasil!”. Falei em dedinhos para cima e então lembrei dos braços para cima do Frevo Novo, da turma da mortalha no Clube de Engenharia da Rua Carlos Gomes: ”A praça Castro Alves é do bobo/como o céu é do avião/Malandrou afinou no roubo/todo mundo na praça/e muita gente sem graça no camburão/ Mete o cotovelo e vai abrindo o caminho/Puxe o seu cabelo, não deixe o guarda ver, roubar sozinho”.
Frevo é bom mas está meio fora de moda. Sou mais as marchinhas que também estão fora de moda, mas vez por outra um artista de renome embarca no rítmo rememorando os bailes de bairro e já ia lembrando de uma delas que faço questão de dividir com os leitores : “Este ano já vai ser, igual aquele que passou/eu me zanguei/Você também se zangou/Este ano ficou combinado/Nós vamos brincar separados”. Legal ! Mas sou mais a segunda parte da música: “Se acaso meu bloco/Atropelar o seu/Não tem problema/Aconteceu/São seis dias de folia e brincadeira/Você para lá e eu para cá/Até a quinta-feira”.
Marchinha que nada, nós temos o axê music. Ainda ontem, à noite, andando por Brotas lembrei da música de Daniela, soltando a voz do alto do trio, nos anos 90, não resisti e também soltei a minha dentro do carro para espanto dos outros motoristas, devo ter exagerado a julgar pelo risos maliciosos: “ “A cor dessa cidade/è breu/O canto dessa cidade/É léu”. Carnaval é mesmo motivo de alegria, toma conta de todos nossos sentidos,ficamos semanas a cantarolar as músicas que ouvimos na avenida. Uma delas, pagode de estimação, não me sai do pensamento : “Vou sim/Quero Sim/Posso sim/Minha mulher não manda em mim/Tó afim/Eu vou sair/Vou sim/Quero sim/ Tó afim/ Faço sim/Beijo sim/minha mulher não manda em mim /Eu vou curtir”.
*jornalista, publicitário e escritor.

quarta-feira, 23 de março de 2011

Vivaldo Costa Lima e as relações familiares no Candomblé

Marlon Marcos*
A antropologia feita no Brasil ganhou expressão entre nós, e internacionalmente, a partir das etnologias indígenas, com nomes como Eduardo Viveiros de Castro, Roberto Cardoso de Oliveira, da grande Manuela Carneiro da Cunha, e mesmo que muitos reneguem, Darcy Ribeiro. Nossos alicerces teóricos e sustentações metodológicas se avolumaram com as pesquisas de Roberto DaMatta, Marisa Correa, Gilberto Velho, Ruth Cardoso e da excelente Mariza Peirano, para citar alguns dos mais reconhecidos; em âmbito nordestino, Thales de Azevedo, Pedro Agostinho, Ordep Serra, Jeferson Bacelar, Roberto Albergaria, Mirian Rabello, Júlio Braga, Claudio Luiz Pereira, Jocélio Teles dos Santos, Sérgio Ferretti, entre outros.
Nos aspectos etnográficos e na construção da memória das etnias negras em suas reinvenções religiosas no Brasil, os estudos sobre as hoje chamadas religiões de matriz africana foram de suma importância para o desenvolvimento da antropologia como ciência. As pesquisas sobre o candomblé, em especial o baiano, puderam fundamentar leituras sistêmicas sobre o rico arsenal litúrgico dessa religião, decifrando muitas das suas complexidades, classificando e nomeando modelos e tendências de acordo a heranças culturais que aqui chegaram com os grupos étnicos africanos que ajudaram a formar o povo brasileiro.
Do pioneiro Nina Rodrigues, passando pelos estrangeiros Roger Bastide, Donald Pierson , Ruth Landes e Pierre Verger, chegando aos estudos expressivos de Ordep Serra, Julio Braga, Reginaldo Prandi, Rita Amaral; até pousar em estudos preciosos como os do paulistano Vagner Gonçalves da Silva e do maranhense Sérgio Ferretti; e destacando o recente e excelente trabalho do espanhol Luís Nicolau Pares sobre a origem do candomblé na Bahia; para além de tudo isso e por dialogar com tudo isso, a melhor etnografia realizada neste país, e fora dele também, sobre candomblé, é a Família de Santo Nos Candomblés Jeje-Nagôs da Bahia, do já saudoso Vivaldo da Costa Lima.
A figura central deste artigo, que busca perfilar de modo sintético e imperfeito o trajeto da antropologia brasileira à luz de alguns nomes que a fizeram e ainda a fazem, é o mestre Vivaldo da Costa Lima, morto no dia 22 de setembro deste ano, que se foi levando consigo a inestimável inteligência de um erudito que sabia e fazia pesquisa antropológica como poucos. O antropólogo nascido em Feira de Santana, na Bahia, que interpretava a cultura brasileira em acordo com os nossos costumes existenciais, mas sem desprezar conteúdos teóricos erguidos por seus pares nas melhores escolas antropológicas do mundo.
Vivaldo sistematizou o pensamento de Nina Rodrigues, Arthur Ramos, Roger Bastide, Manoel Quirino, Edson Carneiro, corrigindo os equívocos ou enxugando os preconceitos; fez um estudo clássico que descortina as relações familiares no candomblé e classifica as performances ritualísticas do modelo que se convencionou chamar jeje-nagô e que passou a ser símbolo religioso do que mais se aproximaria do antigo culto de orixás e voduns em algumas regiões da África antiga, por mais que ele combatesse o purismo e condenasse o nagocentrismo.
Um ateu que se tornou ogã e obá pelas mãos de Senhora de Oxum, no ilustre Ilê Axé Opô Afonjá e foi um dos maiores defensores da autonomia religiosa dos terreiros; um compositor de saberes que ele retirava do seio do povo negro da Bahia e traduzia para a antropologia em vários idiomas. O cientista que aprendia com as velhas do candomblé; um gênio dificílimo como todos os outros; o homem irascível como seu orixá Ogum, e ao mesmo tempo generoso e maternal como Iemanjá, a mãe amada deste orixá.
Vivaldo cumpriu uma vida belíssima se marcando como um dos maiores pensadores das Ciências Sociais no mundo do século XX. E como diz o seu discípulo mais representativo, o homem que melhor sabe ensinar antropologia na Bahia, o antropólogo Cláudio Luiz Pereira: "ninguém ainda pode dimensionar a importância de Vivaldo para a compreensão da Bahia, para sua tradução; isso de cultura afro, de entendimento do candomblé, da alimentação entre nós; ele era um gênio e muito do que os baianos dizem sobre si foi Vivaldo quem lhes contou."
Nesse duelo de titãs, eu, assim como Andrômeda, só faço esperar e aprender... Obrigado, professores.
*Marlon Marcos é jornalista, antropólogo e professor.

segunda-feira, 21 de março de 2011

Reflexões de cinzas

Pedro Tourinho*
Como na mitologia, a criatura voltou-se contra o criador. (Na foto: Ivete Sangalo e seu camarote)
A solução das micaretas enlatadas (festas indoor, trio parado+abadá, criadas pela industria do carnaval para continuar faturando com os carnavais fora-de-época pelo país) estão dominando uma festa essencialmente popular, que é o carnaval de Salvador. A tónica da folia, que sempre foi a mistura, a diversidade, foi pasteurizada. Mesmos abadás, mesmas músicas, mesmas estratégias. O que são os grandes camarotes senão bolhas de micaretas indoor dentro da folia? A industria do carnaval, seja por preguiça, por limitação, ou por falta de solução mesmo, se viciou neste modelo.
Só que este modelo, é ruim. É predador. Mata a inovação. Satura o público. Não é sustentável. Pode durar mais 2 anos, mais 5 anos, mas não vai nos levar a lugar algum. Lembro de um amigo paulista, que sempre vinha passar o carnaval na cidade. No meio do bloco Eva, ainda com Ivete, chegando ali na praça Castro Alves, ele me disse: nas micaretas em São Paulo tem mais mulher, mais bebida e mais segurança, mas não tem Salvador, essa energia daqui é diferente. Pois é. Essa energia, meu amigo, é o povo, a mistura. Mas a micaretização do carnaval, a mi-caretização, está deixando o povo fora da festa, e nossa festa, de fato, mais careta.
Deixamos de ser acarajé para virar McDonald's.
O Carnaval de Salvador tornou-se uma arena bizarra, de uma batalha grotesca das marcas por espaço de merchandising.
Briga-se por cada centimetro de lona impressa. Por cada poste, ou sacada da cidade. Homens segurando balões, vestidos de lata de cerveja, de pernas de pau... Mulheres com os corpos pintados. Brindes, bonés, bandanas, bate-bates, batecas. É uma fábrica de horrores, onde, mais uma vez, o povo, o folião, fica em segundo plano. O importante é ter um bom pós-venda para apresentar na semana seguinte e estar entre os 5 no ranking de exposição de marcas. Isso é insano.
A presença das marcas no Carnaval tem de ser menos merchandising e mais comunicação. Menos relatórios de exposição e mais pesquisa de satisfação.
Como Nizan disse uma vez, não é investir, e sim, retribuir.
As marcas deveriam proporcionar conteúdo e atrações para o carnaval como um todo, baianos e turistas. E não espaço publicitário em blocos. Ouvi dizer que um banco este ano só patrocinou trios elétricos que tocassem sem cordas. Penso que é por aí. Imagine se as grandes atrações, financiadas por grandes marcas, pudessem tocar de graça para o povo?
O povo está espremido entre marcas, placas e cordas. E todo mundo acha isso normal e, até mesmo, positivo. Não faz sentido.
Concluindo, a lógica está invertida, o Carnaval hoje é uma terra sem dono, é um velho oeste tropical onde políticos e empresários fazem o que querem tanto com o povo, quanto com os artistas. E isso tem que mudar.
Pior ainda é o argumento muito utilizado pela industria de que o "carnaval da Bahia é o mais democrático do mundo, porque o rico paga para o pobre." Isso é um jogo de palavras bizarro e manipulador, que institucionaliza a injustiça social e para mim equivale a idéia de que o rico faz bem em jogar lixo no chão para criar o sub-emprego do pobre que tem de limpar.
O carnaval é maior, é do povo e dos artistas, não pode se resumir a uma industria. É preciso uma mudança estrutural na gestão do Carnaval e de quem investe no Carnaval. Não é impossível, mas todos envolvidos, principalmente marcas e artistas, têm de querer comprar essa briga por um carnaval mais sustentável.
* Publicitário e especialista em entretenimento

domingo, 20 de março de 2011

Boca de Brasa - O Barroco na poesia

Miriam de Sales Oliveira da Rocha*
A poesia barroca do soteropolitano Gregório de Matos era contraditórica, lírica, satírica, erótica e até sacra. Foi apelidado de Boca do Inferno, Boca de Brasa. Foi amado e odiado. O poeta Gregório de Matos.

Considerado por Glauber "gênio da raça" , Gregorio de Matos, continua tão enigmático hoje, como há 400 anos atrás, quando nasceu na Bahia nosso mais importante poeta barroco.
Por seus versos virulentos e ferinos, versos que nunca economizaram o lombo dos poderosos e do clero, apesar da Inquisição, era um poeta maldito, execrado pelos moralistas, uma espécie de bruxo-exu-guia das letras nacionais, principalmente as mal comportadas, no dizer de seu biógrafo Higino Barros.
Apesar de nascido em Salvador em 1636 o poeta continua tão atual pois nos tempos de João Henrique e Sarneys, e de especuladores irresponsáveis, sua obra continua a espelhar a sociedade, com tanta propriedade, como se ainda estivéssemos no século em que viveu.
Da sua vida, sabe-se pouco. Nasceu na Bahia em 23 de Dezembro de 1632, embora a data seja contestada por Pedro Calmon, que apostava no dia 20;sua família, de raízes portuguesas fez fortuna no Brasil, depois de deixar a Corte, graças ao seu avô, Pedro Gonçalves de Matos, que desembarcou aqui como mestre de obras, uma espécie de empreiteiro, enriquecendo rapidamente com a construção de quartéis, fontes e ladeiras. Era também,o único dono de um guindaste novo, para transportar mercadorias da cidade baixa para a alta. Some-se a isso, os engenhos da cana com 130 escravos, a fazenda de Inhambupe, atochada de gado e tem-se uma vaga idéia da posição social e econômica da família.
O pai só aumentou os bens da família e, seus filhos foram estudar em Portugal, na Universidade de Coimbra, ninho de todos os brasileiros ricos da época. Gregorio estudou leis e casou-se com D.Michaela de Andrade, já magistrado e com uma boa posição. Ficou viúvo aos 42 anos e voltou para a Bahia como desembargador e, agora, clérigo tonsurado, padre de batina e tonsura.
Parece que a entrada na vida religiosa foi uma jogada de mestre para conseguir o que queria, pois, mal aportando aqui, jogou a batina ás baratas, e, aconselhado por um amigo a viver de acordo com a Igreja, respondeu: "que não podia votar a Deus o que era impossível cumprir dado ao seu temperamento e fragilidade de sua natureza.
Meteu-se em brigas políticas, angariando inimigos e, enquanto seus amigos batiam-se em duelos com espadas, ele achincalhava os adversários com sua pena virulenta e temerária. O que é pior? Matar um homem ou reduzi-lo ao ridículo? Decidam vocês! Teve mesmo que fugir para o Recôncavo, mas, voltou com a pá virada, transformado no cronista picaresco da cidade.
Casou-se com uma viúva pobre, porém, a mais linda moça do lugar, D.Maria dos Povos, por quem era apaixonado.Teve um filho chamado Gonçalo, como vingança por uma desavença domestica para provar que "em casa em que não manda a galinha é porque manda o galo. Mas, o casamento não o domou. Apesar de racista, meteu-se com negras e mulatas, lundus, modas de viola (andava prá todo lado com uma viola de cabaça que ele mesmo fez, para ganhar os bons favores das negras e mulatas jeitosinhas dessa terra.
Um milagre a Inquisição nunca tê-lo pegado, pois, seus alvos favoritos eram as freiras, os padres e o Papa e chegou a rimar Jesús com cús.
Tantas aprontou que, para não ser morto, seu amigo, o governador D.João Lencastre o despacha para Angola num exílio forçado. Lá meteu-se em confusão, um motim e teve que ser repatriado, dessa vez para Pernambuco, proibido de fazer versos,onde morreu em1696.
Os poderosos, sossegaram; pois, o "Boca do Inferno, não alisava ninguém, e, dizem, foi o precursor do Tropicalismo, pois, seu escritório de advogado, era adornado com bananas e frutas tropicais, mais tarde considerado como símbolo de identificação cultural brasileiro (modernismo,tropicalismo,Carmem Miranda).
O fato é que foi progressista demais para sua época; um artista livre, consciente de seu dom e do poder dos seus versos.
Foi contemporâneo do Pe. Antônio Vieira. Amado e odiado, é conhecido por muitos como "Boca do Inferno", em função de suas poesias satíricas, muitas vezes trabalhando o chulo em violentos ataques pessoais.
Finalmente, o que muitos não devem saber é que Gregório também é considerado antecedente do nosso cancioneiro, pois fazia "versos à lira", apoiando-se em violas de arame para compor solfas e lundus. O lundu, criado nas ruas, tinha ritmo agitado e sincopado, e melodia simples com resquícios modais, sendo basicamente negro. Do lundu vieram o chorinho, o samba, o baião, as marchinhas e os gêneros de caráter ritmado e irreverente.
* Professora e escritora

terça-feira, 15 de março de 2011

Museu a céu aberto, Salvador retrata arte barroca

Ana Lúcia Araújo*
Escola artística dos séculos 17 e 18, o barroco ainda está vivo em Salvador. Concebida segundo o espírito do movimento, que é contemporâneo da Contrarreforma, a cidade é um museu a céu aberto. A melhor maneira para travar contato com esse clima e identificar as características de composição dos espaços urbanos e o volume da arquitetura barroca é caminhar pela capital baiana.
Segundo a arquiteta e historiadora Socorro Targino Martinez, Salvador foi planejada, a partir do século 18, "como um anfiteatro barroco". Antes de entrar nas igrejas e conhecer os museus, "o importante é se perder e descobrir a essência da cidade", recomenda Martinez.
O visitante pode começar pelo forte de Santo Antonio da Barra, rumo ao norte, até chegar ao Pelourinho - tombado pelo Patrimônio Histórico da Humanidade -, onde há mais de 800 casarões dos séculos 17 e 18. Durante o passeio, pode-se perceber como as casas são propositalmente (foto: Igreja da Ordem 3ª em Salvador) iguais, com a igreja no final da rua, como ponto de fuga da paisagem. E as casas são sempre baixas, justamente para permitir ao morador contemplar as igrejas.
Essa posição estratégica da igreja fazia parte do projeto de colonização e conversão de negros e índios ao catolicismo. As procissões, a localização das igrejas e os elementos barrocos buscavam fortalecer o domínio católico na colônia. "Não há como fugir da presença de Deus", afirma a arquiteta.
Foram as ordens religiosas - jesuítas, beneditinos, carmelitas e franciscanos - que trouxeram o barroco para o Brasil. Na Bahia, imperou o barroco das igrejas douradas, como se fossem cavernas de puro ouro. "Ele é conhecido como monumental", afirma Maria Izabel Branco Ribeiro, diretora do Museu de Arte Brasileira da Faap. Mas essa riqueza não foi vista com bons olhos por gerações posteriores. "Até o século 19, o barroco foi considerado um estilo de mau gosto."
Mau gosto ou não, o melhor exemplo do movimento está na Igreja e Convento de São Francisco, que tem seu interior completamente forrado com folhas do metal precioso e carrega a marca de ser uma das igrejas mais ricas do país.
Quem pretende entender a ordem cronológica e as variações do barroco tem de visitar a catedral Basílica, do século 17. Nela, pode-se encontrar dois altares do movimento antecessor, o maneirismo, alguns exemplos de um barroco "acanhado" e ainda sua última fase, com interferências do rococó.
Uma sugestão do arquiteto Francisco Senna é a igreja da Ordem Terceira de São Francisco, que guarda a maior coleção de azulejos fora de Portugal. Segundo o arquiteto, a coletânea "retrata detalhes da vida em Lisboa que foram completamente destruídos com o terremoto de 1755". O conjunto foi restaurado e reaberto para visitação.
Senna explica que essa edificação tem ainda outra raridade: "É o único exemplo de fachada em pedra lavada do barroco espanhol no Brasil". Realizada pelo mestre Gabriel Ribeiro, levou de 1708 a 1748 para ser construída.
* Jornalista

segunda-feira, 14 de março de 2011

Castro Alves, poeta e humanista

Ana Guimarães*
O que diriam os psicólogos modernos sobre um adolescente que perdeu a mãe aos 12 anos, contraiu doença incurável antes dos 16 e aos 17 recebeu a notícia do suicídio do irmão? O sofrimento de Antônio Frederico de Castro Alves virou poesia, que emociona leitores de todas as idades.
Não se sabe se por gosto, identificação ou ambos, Castro Alves tomou o partido dos escravos. Em seus poemas, os negros deixaram de ser mercadoria. Para aquele que ficou conhecido como poeta dos escravos, os negros eram irmãos. Nenhuma causa, nenhum amor mal-resolvido, nem mesmo a morte dos familiares teve tanto destaque em sua obra quanto a luta contra o regime escravocrata.
Castro Alves também escreveu sobre temas como a loucura e a morte, comuns no período. Mas o que traria verossimilhança à obra do poeta baiano era a certeza da morte que a tuberculose lhe dava e o suicídio de um dos cinco irmãos. “Vulgarmente melodramático na desgraça, simples e gracioso na ventura, o que constituía o genuíno clima poético de Castro Alves era o entusiasmo da mocidade apaixonada pelas grandes causas da liberdade e da justiça — as lutas da Independência na Bahia, a insurreição dos negros de Palmares, o papel civilizador da imprensa e, acima de todas, a campanha contra a escravidão”. Quem descreve é Manuel Bandeira (1886-1968), mas não é preciso ser um grande literato para entender o que o poeta dos escravos dizia. Suas palavras dispensam racionalizações e falam fundo ao coração.
“Era um sonho dantesco... o tombadilho/Que das luzernas avermelha o brilho.

/Em sangue a se banhar./Tinir de ferros... estalar de açoite.../Legiões de homens negros como a noite,
/Horrendos a dançar.../Negras mulheres, suspendendo às tetas/Magras crianças, cujas bocas pretas/Rega o sangue das mães:
/Outras moças, mas nuas e espantadas,/No turbilhão de espectros arrastadas,/Em ânsia e mágoa vãs!/E ri-se a orquestra irônica, estridente...”
O trecho faz parte do poema Navio Negreiro, talvez o mais famoso do poeta baiano, acessível gratuitamente no Portal Domínio Público, (http://www.dominiopublico.gov.br/) que reúne toda a obra de Castro Alves. Biblioteca digital, desenvolvida em software livre, o portal dispõe de arquivos de imagem, som, texto e vídeo.
Castro Alves nasceu na fazenda Cabaceiras, a 42 km da vila de Nossa Senhora da Conceição de "Curralinho", hoje Castro Alves, no estado da Bahia, em 14 de março de 1847, e morreu em Salvador, em 6 de julho de 1871. Era filho do médico Antônio José Alves e de Clélia Brasília da Silva Castro, morta quando o poeta tinha 12 anos. Em 1866, perdeu o pai. Em 1868, durante uma caçada, com um tiro acidental de espingarda, feriu-se no pé esquerdo, que foi amputado no Rio, em 1869.
De volta à Bahia, passou grande parte do ano de 1870 em fazendas de parentes, numa tentativa de recuperar a saúde, comprometida pela tuberculose. Morreu em 1871, aos 24 anos, sem acabar o poema Os Escravos.
*Psicanalista e poeta

domingo, 13 de março de 2011

Carnaval dos animais

Gil Vicente Tavares*
Havia acabado de escrever um texto sobre a “síndrome de Peter Pan” que acomete Salvador, essa vontade de não crescer, e caio no carnaval da cidade.
O carnaval de Salvador é um simulacro, em sete dias, do que é a cidade o resto do ano. Uma soma da inoperância e falta de planejamento dos poderes públicos, um domínio voraz de empresários que fazem o que bem entendem e de forma tosca e a selvageria de um povo que, há muito, parece ter perdido a delicadeza.
Peço, então, que o que se lê aqui sobre o carnaval sirva, guardada suas proporções e alvos, como uma metonímia dos outros 358 dias de civilização e barbárie.
Salvador tem que profissionalizar seu carnaval. E o que seria isso?
Há anos vamos empurrando nossa maior festa sem planejamento, organização e planejamento urbano para o real funcionamento da folia. Como já foi estudado em pesquisas, o carnaval de Salvador é mais pra turista que pra soteropolitanos, visto de mais de 60% deles preferem ficar em casa, outros tantos viajam e a cidade se infesta de estrangeiros, sulistas, mineiros e por aí vai.
Primeiramente, tem-se que ter uma organização pensada, que vá da ordem dos desfiles a cumprimento de horários e tempo de percurso. Passando pela escolha das atrações dos trios independentes e seus artistas, bem como apoios a blocos afros e adjacências.
Não dá pra deixar um bloco da beleza do Ilê Aiyê desfilar na avenida de madrugada, assim como não dá pra se jogar dinheiro fora com afoxés e blocos afro que têm meia dúzia de três ou quatro pessoas que conseguem patrocínios por que “mantêm a tradição das nossas raízes blablablá”. Não dá pra deixar desfilar um trio independente, como eu vi alguns, sem ninguém na pipoca, enquanto o projeto Três na Folia, o Baiana System, artistas da cena local ficam à mercê de convites e xous no Pelourinho; que acho bacana, mas não é carnaval de rua, atrás de um trio, e mesmo assim muitos ficam de fora. Seria preciso repensar a sequência das apresentações para intercalar um bloco com um trio independente, e assim contemplar todos, ou algo do gênero. Pensar o circuito, sua sequência de atrações, um planejamento justo e por mérito.
Segundamente, deveria haver um acordo entre os empresários dos camarotes e os poderes públicos. Tudo bem que o camarote é aquele esquema de “todo mundo na praça e muita gente sem graça no salão”. Ou, como na canção “Carolina”, de Chico, pessoas que ficam vendo o tempo passar na janela. Música eletrônica, animação zero, ou, quando há, algo meio fora do que é o carnaval. Passei por vários, pulando, e vi um monte de gente debruçada com cara de nada, mas deixa pra lá. Os camarotes existem e não dá pra ser bobo de ficar com um discurso “abaixo os camarotes”. 60 demais. O que se precisa é organizar, dialogar, fazer troca de benefícios com a cidade.
Nada contra os camarotes que ocupam casarões, andares de prédios e de bares. Mas as megaconstruções que atrapalham, espremem e enfeiam o circuito mereciam ser limitadas urbanisticamente, e construídas num prazo mínimo, sob pena de multa. A cidade parar um mês antes pra construção de mondrongos que beneficiarão o capital privado é algo louco, absurdo. Se fosse ao menos para obras públicas, que beneficiariam a população com um todo... Enfim, fazer o que? Propor aos camarotes que em seus andares térreos fossem construídos postos de saúde, banheiros, propostas de utilidade pública. Por que não a instalação de câmeras no circuito, que poderiam ficar ali para futuramente ajudar na segurança das ruas? O simples pagamento de imposto não serve, sabemos que é um poço sem fundo e, entre sonegação, fiscal corrupto e políticos que desviam verbas, sabemos que pagar imposto é um benefício que garante, no máximo, o exorbitante salário que os políticos ganham para, em sua maioria, fazer apenas pelo seu bolso e partido, e nada pro povo.
Terceiramente, quero falar das empresas patrocinadoras e os governos estadual e municipal. O grande nó. A tragédia.
O carnaval de Salvador precisa de organização. Pensada. Planejada. Precisa que as transversais dos circuitos, os chamados “becos”, sejam áreas de livre circulação, proibindo isopores, foliões parados para observar a folia. E com banheiros públicos dos dois lados. Banheiros públicos mais viáveis, com canaletas e uma porta única, para complementar com os químicos, para necessidades maiores e para as mulheres. E banheiros do Itaú, da Schin, da Credicard. Ao invés de balões, leques e aqueles porretes chatíssimos infláveis, que os babacas usaram nesse carnaval de forma insistente e desagradável, essas empresas tinham que patrocinar banheiros públicos. As cervejarias deveriam criar espaços para venda de cerveja, e receptáculos para se jogar as latinhas. Por que não imaginar uma festa com pessoas jogando lixo no lixo? Precisa a barbárie de mijar e jogar latinhas no chão?
O lucro é muito grande. Mas só se pensa no lucro, nunca nos benefícios que poderíamos ter. Quando acontece uma copa do mundo, uma olimpíada, a cidade sempre fica com estruturas, construções e resoluções urbanas como herança, há sempre benefícios para a cidade. Com nosso carnaval, que é anual, teríamos que ter o mesmo. Imaginem 10 anos de carnaval com benesses para a cidade como banheiros públicos, estruturas de segurança, planejamento da funcionalidade dos serviços?
Em algumas capitais, para se pegar um táxi comum, tem-se que se dirigir a um guichê, onde o preço por local é tabelado, e de lá a pessoa é encaminhada ao primeiro da fila de táxis. Impossível fazer o mesmo em pontos estratégicos da folia? Não, falta vontade política. Falta se pensar a segurança do carnaval com prevenção, com postos de observação, policiais infiltrados em blocos, atenção a grupos que, claramente, estão à procura de confusão. E não aqueles brucutus empurrando a gente com cassetetes e socando e estapeando as pessoas (algo que às vezes é inevitável, não sejamos politicamente corretos para ter pena de vagabundo excessivamente, também, até a hora que acontece com a gente).
Bem, eu poderia falar do quanto as cordas de bloco, a segregação provoca a violência, visto que saí em trios sem corda e não vi confusão. Poderia esculhambar mais com camarotes. Falar da iniciativa de Saulo que deveria ser obrigação de todos os artistas, sair um dia sem cordas pro povo como contrapartida por usar a via pública para encher as burras de dinheiro. Poderia falar do babaca que, em pleno século XX, ainda vê cor e opção sexual como questões que diferenciam os homens, na cena deplorável com Márcio Vitor. Mas isso muita gente já falou demais; o que acho importante e fundamental.
Eu quis, aqui, apenas sugerir e provocar coisas que fogem ao meu controle, pois sou um ignorante quase completo em termos de organização, produção e urbanismo. Mas que ao menos as asneiras que eu falei possam provocar alguém a repensar nosso carnaval de forma profissional. Mesmo com tudo isso, vi muitos se manifestarem dizendo que esse foi o melhor carnaval de suas vidas. Eu também adorei. Mas é preciso profissionalizar nosso carnaval, vê-lo como um investimento para a cidade, para o turismo, para a cultura. Não deixar ele ser essa bagunça vergonhosa que foi esse ano. Essa porcaria institucionalizada. Essa desorganização que muitos querem que seja nossa forma de ser.
Aliado a tudo isso, ainda há o comportamento cada vez mais bárbaro, bruto, deselegante, maleducado, porco e desleixado que é o espetáculo dado pela nossa população de todos os níveis sociais. Não podemos fazer vista grossa a esse lamentável fato de que não colaboramos em nada com o bem geral. Como disse no texto anterior, queremos sempre culpar governos, empresas, mas macaco não olha o próprio rabo, e precisamos tomar consciência e sermos mais delicados e gentis com os outros. Gentileza gera...
Bem, o carnaval é um investimento. Onde, por enquanto, as empresas investem em si; os governos disfarçam ações; a elite se isola em cordas e campos de concentração; e o folião se mascara de alegre e deixa a banda passar...
E, com licença, que depois da maravilha que foi Moraes Moreira, Armandinho e seus irmãos e mais alguns, vou ali ouvir Saint-Saëns, se é que me entendem...
* Dramaturgo, ator e escritor

sexta-feira, 11 de março de 2011

João Ubaldo, 70

Eric Nepomuceno*
De acordo com o santoral católico da Espanha, 23 de janeiro é o dia de São Ildefonso. Já o santoral brasileiro indica que é dia de São Clemente. Mas na ilha de Itaparica, o santoral do lugar, pagão e festeiro, deve indicar que é dia de São João Ubaldo, glória e arauto-padroeiro, defensor de suas justas maravilhas.
No ano de 1941, o dia 23 de janeiro caiu numa quinta-feira, tempo de lua minguante. Pouco antes das 5 da tarde, na casa de seu avô materno, o coronel Osório Pimentel, nasceu João Ubaldo, primeiro dos três filhos de Maria Felipa Osório Pimentel e Manoel Ribeiro.
Trinta anos depois, o João Ubaldo nascido na lua minguante surgiu com um romance crescente, Sargento Getúlio. Até ali, sua carreira de escritor mostrava a participação em duas antologias de contos e um romance discreto, Setembro Não Faz Sentido. Com Sargento Getúlio ele deu uma reviravolta na literatura de seu tempo. Antes, tinha feito de tudo um pouco: foi office-boy, depois repórter no Jornal da Bahia, editor-chefe de A Tribuna da Bahia, havia feito o curso de Direito na Universidade Federal da Bahia, editado revistas e jornais culturais, ao lado de Glauber Rocha, também na Bahia. E se o nome Bahia aparece cinco vezes nessas quatro linhas, é porque João Ubaldo Ribeiro é um cidadão do mundo que, por mais mundo que conheça, por mais vida que tenha vivido, exala Bahia, Brasil e povo brasileiro enquanto respira.
Seus livros estão publicados em mais de uma dúzia de idiomas, e dos nossos autores é um dos mais conhecidos, estudados e prestigiados mundo afora. Viva o Povo Brasileiro, um catatau de quase 700 páginas, vendeu mais de 120 mil exemplares na Alemanha. Pois tudo isso - e muito mais, pois seria justo mencionar os prêmios todos, as glórias todas, os reconhecimentos, as amizades com pilares das artes e das letras - se oculta dentro da figura de óculos de lentes grossas e silhueta rechonchuda, sempre de bermudas, sandálias e camisa folgada, de mangas curtas, que perambula pelas ruas do Leblon, no Rio de Janeiro. Cumprimenta as velhinhas do bairro, é saudado com afeto e entusiasmo por jornaleiros e garçons, reúne-se em botecos com seus amigos e camaradas do dia a dia (nenhum deles literato, nenhum deles celebridade). Todos sabem que ele é conhecido, cronista lido e influente, que é um escritor de peso. Mas talvez não saibam de sua erudição fenomenal, de sua dedicação de monge ao ofício da palavra escrita, de sua obsessão pelos personagens que cria e recria. Que, muito mais que glória de Itaparica e do Leblon, é glória de todos nós, seus contemporâneos.
Durante anos e anos frequentamos a mesa que reunia aos sábados, num mercado do Leblon, um grupo de amigos (alguns bastante conhecidos, é verdade; mas naquele boteco éramos todos iguais, dispostos a não deixar que se extinguisse em nós a alegria). Jamais esquecerei as disputas entre João Ubaldo e Tom Jobim, leitor ávido, para ver quem sabia mais versos de T. S. Elliot. Ubaldo ganhava sempre. A pronúncia perfeita, o vozeirão empostado, a emoção em cada verso, a memória prodigiosa - tudo nele era formidável. Principalmente a perfeição com que cumpria nosso propósito - o humor: certo sábado, confessou que quase todos os versos que ele recordava e Tom não conhecia tinham sido inventados na hora.
Para quem é obsessivamente disciplinado no ofício solitário da escrita, para quem domina pelo direito e pelo avesso o idioma de Elliot, aquela brincadeira era apenas isso, uma brincadeira. Pois eu confesso que me contentaria, e para sempre, em ser capaz de inventar, no calor de uma disputa de bar, versos de Elliot.
Não precisaria de mais nada para me sentir um craque. Porque criar enredos e personagens como ele, bem, isso eu sei que é impossível. Não, não: eu me contentaria em ser João Ubaldo inventando Elliot. E, aliás, inventando que está fazendo 70 anos. Porque quem tem o humor, quem tem a imaginação prodigiosa desse meu amigo, não faz aniversário: flutua.

* Jornalista, escritor e tradutor
**Artigo publicado no jornal O Estado de São Paulo

quinta-feira, 3 de março de 2011

O Mundo é Gandhy

Gilberto Gil*
A presença do Gandhy na minha vida se mistura com a presença do próprio Carnaval, desde a minha infância. Quando eu tinha sete anos, exatamente, o Gandhy começou a desfilar. Tenho a imagem muito clara na cabeça do bloco saindo com aqueles turbantes maravilhosos, um ritmo muito envolvente que é um pouco samba, mas não é samba, um pouco a marcha, mas não é marcha. Um toque religioso, cerimonial do candomblé, que foi parar no Carnaval. Porque os criadores, os fundadores do bloco e a maior parte dos seus integrantes eram "gente de santo". Todos tinham essa coisa forte de manter a ligação do Gandhy com os terreiros.
Aquela aparição extraordinária do Gandhy em 1949 foi uma comoção muito grande para mim. Os elementos ligados à expressividade negra, os aspectos orientais, fazendo a ponte com a Índia, todas essas coisas que eu vim a saber depois, estavam ali, naquele momento, naquela aparição, naqueles homens com aqueles tamancos, com aquela singela elegância.
Não havia ainda caminhão, era tudo no chão. A bateria, as alas de evolução, de danças, de coreografia. Aqueles pais de santo, os filhos de santo, aquelas pessoas todas ligadas ao mundo negro da Bahia.
É muito bonito de ver como muito pouco mudou no Gandhy desde então. Se você vê aquela foto linda do Pierre Verger com eles no bonde, ali em 1949, 1950, logo no início, e se você vê uma foto de hoje, não percebe diferença. Praticamente mantiveram tudo. Claro que ao longo do tempo foram surgindo as marcas publicitárias e tal, mas permanece a emoção da grande mancha branca na avenida. Quando comecei a sair, em 1974, gravei duas ou três canções ligadas ao Gandhy, passei a cantar nos shows e a falar do Gandhy, dar entrevistas, propagar aquela cultura. E isso foi ajudando o bloco a crescer. O atrativo de ter um artista renomado entre eles atraiu os jovens. E o Gandhy foi crescendo e daqueles 100 de 1973 hoje são 10 mil. É uma beleza, sempre. Os rituais se consolidando, os jovens, o gesto sedutor de "amarrar" com as contas a menina fora da corda!
Uma beleza também como se manteve essa ideia de bloco pacífico, baseado na cordialidade, os associados se esparramando em grupos pela cidade, antes, durante e depois do desfile. É o que se chama de "guarda londrina" do carnaval: garbosos, pacíficos, desarmados, impondo respeito. O Gandhy é aquela marca da presença altiva do folião, uma marca profunda do compromisso com a festa e o seu desenrolar pacífico.
Para isso contribui muito a música.
Você imagine a emoção que é carregar essa imagem da infância, ligada a uma dimensão de elegia, de epifania. E que tenha vivido 60 anos, conseguido estar em todos os carnavais de todos esses anos. Sessenta carnavais, a forte dimensão cultural e religiosa e política da luta negra. A perseverança, a permanência, a duração, a herança, o ethos da tradição, o espírito do candomblé.
Há mais de 35 anos desfilo no Gandhy. E este ano não vai ser diferente, vou pro Pelourinho, beber na fonte. De Oxum.
*Cantor e compositor, foi Ministro da Cultura de 2003 a 2008
** Publicado originalmente na revista Serafina