quinta-feira, 1 de outubro de 2020

Pastelaria Triunfo

Valdomiro Santana* 

Foi a memória involuntária que, generosa, desatou em mim a Pastelaria Triunfo. No chão da consciência nada consigo localizar, nenhum objeto, para dizer como de súbito a lembrança da pastelaria me apareceu trinta anos depois. Proust, num dia triste e com a perspectiva de mais um dia sombrio, bebeu sem vontade uma colherada de chá onde deixara amolecer um pedaço de madeleine — bolinho de farinha de trigo, ovos e açúcar, semelhante à delícia que chamamos de brevidade —, e com esse gesto prosaico mudou a literatura do mundo.

Não resisto e transcrevo, na excelente tradução de Mario Quintana, o que diz Proust em Du côté du chez Swann, o primeiro volume da Recherche: “[…] no mesmo instante em que aquele gole, de envolta com as migalhas do bolo, tocou o meu paladar, estremeci, atento ao que se passava de extraordinário em mim. Invadira-me um prazer delicioso, isolado, sem noção de sua causa. Esse prazer logo me tornava indiferentes as vicissitudes da vida, inofensivos os seus desastres […] tal como o faz o amor, enchendo-me de uma preciosa essência: ou antes, essa essência não estava em mim; era eu mesmo”. 

Foi esse gosto da madeleine, embebida em chá-da-índia ou de tília, sentido muitos anos depois, que ressuscitou em Proust uma emoção antiga, única e instantânea: a lembrança de sua infância em Combray. Os rostos, as casas, as alamedas, o traçado dos jardins… tudo — que ele julgara morto para sempre — voltou em segundos a existir, vívido e cintilante, com seus detalhes, sua atmosfera particular. O que Proust recordasse de Combray lhe seria unicamente fornecido pela memória voluntária, a da inteligência — mas as informações que ela nos dá sobre o passado não conservam nada deste. Todos os esforços da inteligência são inúteis para evocar o nosso passado. “Está ele oculto, fora do seu domínio e do seu alcance, nalgum objeto material (na sensação que nos daria esse objeto material) que nós nem suspeitamos. Esse objeto, só do acaso depende que o encontremos antes de morrer, ou que não o encontremos nunca”. Eis então o mistério da memória involuntária, a que dispensa o intelecto e é capaz de retrouver le temps, de redescobrir o tempo — que dávamos como irremediavelmente perdido.

“[…] quando mais nada subsistisse de um passado remoto, após a morte das criaturas e a destruição das coisas — sozinhos, mais frágeis, porém mais vivos, mais imateriais, mais persistentes, mais fiéis —, o odor e o sabor permanecem ainda por muito tempo, como almas, lembrando, aguardando, esperando sobre as ruínas de tudo o mais, e suportando sem ceder, em sua gotícula impalpável, o edifício imenso da recordação”. 

Eu estava na praia com meus filhos. De repente, a Pastelaria Triunfo se desenhou inteira em minha lembrança. Que odor, que sabor, que madeleine, não sei; nada me ocorre que tenha operado esse encantamento, a palpitar no fundo de mim, para me fazer repetir a musicalidade feliz destas duas palavras: Pastelaria Triunfo, perfeitamente casadas, com seu quê de delicadeza e força. Há mais do que tonicidade na sílaba un de triunfo: há plenitude, que incorpora o nome e o faz pulsar para além de sua carga semântica. Triunfo, pastelaria, Triunfo. Em que eu estava pensando? Talvez em algas, ramagens, hipocampos… Ou em nada. E o velho casarão, plantado no alto da Ladeira da Praça, me trouxe de volta um menino de 13 anos, ainda usando calças curtas, o pai a segurar-lhe a mão. Saem do Elevador Lacerda, não têm nenhuma pressa, na brisa gentil do verão e sob a translucidez do céu; à esquerda, o prédio baixo, acinzentado pelo tempo, da Imprensa Oficial da Bahia, vizinho ao prédio maior, de um amarelo pardacento, da Biblioteca Pública; à direita, o Palácio Rio Branco, esquina com o trecho mais elegante da cidade, a Rua Chile, onde a loja Duas Américas dispunha, só ela em Salvador, de uma escada rolante, inaugurada havia pouco mais de um ano, uma coqueluche. 

Dezembro de 1959, quatro horas da tarde, e Terezinha Morango — mais uma vez — é capa de O Cruzeiro.

— Que pernas, meu Deus! Aaaah…! — o homem dissera, diante de uma banca de revistas na Praça Cairu, em tom baixo e suspirando, e seu “ah” se prolongara, cavo e sóbrio. O menino, querendo imitá-lo, soltara um “ah” nem um pouquinho rouco, de tão verde, longe daquela bossa, ou molho, que poucos homens conseguem, pondo um tanto de volúpia e solenidade na voz, para que saia um “ah” como convém: nem de mais, que soe a cafajestice, nem de menos, ou desenxabido, que lembre o “ah” idiota dos almofadinhas. 

Seguem de mãos dadas, passam pelo abrigo do ponto de ônibus e bondes em cuja cobertura, assim que anoitecer, brilharão os anúncios da cera Parquetina e dos chapéus Ramenzoni; em frente, a Prefeitura e a Câmara Municipal no mesmo edifício que já foi cadeia pública: sua fachada, após tantas deformações e acréscimos, mais parece a de um cabaré mexicano.

Desviam-se dos carros que vêm da Sé pela Rua da Misericórdia, e naquela confluência, bem no topo da ladeira, o que inunda os olhos do menino são os vidros bojudos de azeitonas em cima do balcão. Pretas, verdes, cor-de-damasco… 

— Autênticas da Grécia e da Espanha — o homem, um habitué, diz para o menino. — As pretas são magníficas.

Sentam-se a uma mesa redonda com pés de ferro, tampo de mármore. Os olhos do menino passeiam pelo balcão, acima do qual estende-se um cano vermelho descascado pendurando rolos de presunto, salame, caixinhas de figos secos, reclames de sal-de-fruta e de bebidas, tiras e arranjos de papel celofane.

— Pronto — diz o homem, cigarro no canto da boca, a fumaça espiralando em seu rosto. O menino não ouvira o pedido; e num tempo que a recordação hoje tornou matéria de sonho, o garçom surgirá do nada, mas era como se ali estivesse desde o começo do mundo: lépido, magrinho, de anel (topázio?) e sem gravata-borboleta, sorriu, “a família vai bem?”, “vai bem, obrigado”, trouxe os guardanapos de pano (linho?), o cálice de conhaque, chope, guaraná, as rodelas de pão e de salame, azeitonas pretas, “com licença”.

— Um equilibrista improvável — comenta o homem. — Viu como ele segurava a bandeja?

— Vi — diz o menino. — Quase ela cai. 

Uma tarde calma e honrada a que têm direito o homem e o menino, em meio a tantos odores convidativos, fortes, discretos, almiscarados ou não, das caixas de bacalhau, das conservas de enchovas e atuns, dos defumados, dos doces em compota, das frutas de clima frio, da profusão de queijos e da variedade de vinhos turvos e leves. E como havia patês, bolachas folhadas, nozes, castanhas, chocolates!

— O que é aquilo?

— Nêspera.

Mas não havia pastel. 

— Não é uma pastelaria?

— É.

— E não tem pastel?

— Não. 

O menino corre os olhos pelo balcão, prateleiras, envoltórios de vidro, escaninhos, cada compartimento, e vai à forra:

— Uma pastelaria improvável — diz. 

Menos de quatro anos depois a Triunfo desapareceu, devorada por um incêndio. Todos temos as nossas madeleines. Se o que narro aqui mal e mal não foi uma madeleine, foi com certeza, feito um alumbramento, a saudade de meu pai. Agora, no fim de janeiro, fez dois anos que ele morreu.

*Contista e cronista

sexta-feira, 18 de setembro de 2020

João Mangabeira, um Socialista


Antonio Paim* 
 Político consagrado na República Velha, João Mangabeira evoluiu na direção do socialismo democrático. Muito ligado a Rui Barbosa, seria marcado pela ênfase que Rui passou a atribuir à questão social. Até mais ou menos a época do Estado Novo, contudo, essa adesão correspondia a uma espécie de desdobramento de postura humanista. A experiência dos anos 1930 e do Estado Novo é que iria despertá-lo para a necessidade de ser estruturada no País uma alternativa socialista de cunho nitidamente democrático, dado o fato de que essa corrente assumira, sobretudo em decorrência da ascensão de Getúlio Vargas, feição francamente autoritária. Baiano de nascimento, jurista e advogado de certo prestígio, começou a envolver-se na política – sem afastar-se do exercício da advocacia –, em 1906, quando completou 26 anos. Em 1909 começou uma atribulada carreira como deputado federal. Nas duas décadas seguintes envolveu-se em todas as principais questões típicas da República Velha, notadamente a praxe do reconhecimento (e a degola) de mandatos; as duas campanhas de Rui Barbosa à presidência; o envolvimento do País na Primeira Guerra Mundial; a situação de permanentes estados de sítio que o País vivenciou nos anos 1920; a Reforma Constitucional de 1926 etc. Assim, quando eclodiu a Revolução de 1930, era um nome consagrado no cenário político nacional, além de jurista de reconhecida competência. Devido a isto, participou da famosa Comissão do Itamaraty, a qual foi atribuída a missão de elaborar o projeto de Constituição que seria tomado como referência pela Assembleia Constituinte de 1934. Mangabeira elegeu-se para a Constituinte e passou a integrar a Câmara dos Deputados após promulgada a Constituição. Seguiram-se anos de extrema polarização no País, com choques de rua entre comunistas e integralistas, processo que culminaria com a insurreição de novembro de 1935, promovida pelos comunistas em quartéis da Capital da República e de alguns Estados, rapidamente esmagada. Serviu de pretexto para a decretação do Estado de Guerra, que suspendia as garantias constitucionais. Vargas iria valer-se dessa prerrogativa para prender os parlamentares que se destacavam como seus oposicionistas, entre estes João Mangabeira. Introduziu-se tribunal de exceção (Tribunal de Segurança Nacional) que condenou os parlamentares a variadas penas, sob a alegação de que seriam uma espécie de ponta de lança dos comunistas. Mangabeira foi condenado a três anos. O tribunal militar reduziu-lhe a pena. Ao todo ficou preso de março de 1936 a junho de 1937. Retornou à Câmara que, entretanto, foi fechada logo adiante pelo golpe de Estado de novembro, que instituiu o Estado Novo. Na fase de redemocratização do País constituiu, com outros intelectuais, a Esquerda Democrática, que iria fazer parte da União Democrática Nacional. Esse acordo terminou logo depois das eleições (dezembro, 1945). Em agosto de 1946, a Esquerda Democrática transformou-se no Partido Socialista Brasileiro (PSB). O programa do PSB foi escrito por um notável grupo de intelectuais, entre os quais sobressaíam João Mangabeira, escolhido presidente da nova agremiação, e Hermes Lima (1902-1978), eleito representante do PSB à Assembleia Constituinte de 1946. Mangabeira conquistaria mandato somente na eleição complementar realizada após a promulgação da Constituição, em 1947. O programa do PSB reiterava, sempre que oportuno, seu inequívoco compromisso com o sistema democrático-representativo. Antes de mais nada, deixava claro que a aplicação dos princípios que preconizava não se constituiria “em solução de continuidade na história política do País, nem violência aos caracteres culturais do povo brasileiro”. Desse modo, rompeu frontalmente com a tradição, emergente nos anos 1930, de “passar o País a limpo”, “inaugurar os novos tempos” e outras tiradas messiânicas desse tipo. O programa expressava a intenção de preservar a federação brasileira e a autonomia municipal. Todas as principais características da organização democrática do Estado são claramente referidas. O PSB incorporou, como “patrimônio inalienável da humanidade”, as conquistas democrático-liberais, embora as considerasse insuficientes para alcançar a almejada eliminação do sistema econômico que se baseia na “exploração do homem pelo homem”. Se chegasse a alcançar o poder, o PSB preservaria a liberdade de organização partidária. As transformações que almejava introduzir na estrutura econômica do País também são apresentadas de forma equilibrada. Assim, preconizando a “gradual e progressiva socialização dos meios de produção”, entende que somente deverão ser realizadas na medida em que as próprias condições do País o exijam. Ainda mais: a mencionada socialização não era identificada com a posse estatal, não poderia ser efetivada ao arrepio do Parlamento nem excluía a circunstância de que pudessem ser preferidas organizações cooperativas. Tampouco se cogitava da completa eliminação da propriedade privada. O documento evitou a expressão “luta de classes”, dando preferência a “antagonismo de classe”. Finalmente, o PSB não se identificava com nenhuma concepção filosófica nem circunscrevia-se à defesa de determinado grupo social, dizendo-se comprometido com todos que vivem do próprio trabalho. O PSB viria a ser a primeira agremiação no País, de índole socialista, de fato comprometida com o sistema democrático representativo, já que a expressão predominante dessa corrente, desde os anos 1930, revestiu-se de caráter nitidamente autoritário, sobretudo por se achar associada ao varguismo. Ao que parece, contudo, não encontrou ambiente favorável ao seu florescimento. No ciclo do interregno democrático, nunca conseguiu uma representação digna de nota no Parlamento. Como foi referido, Mangabeira seria deputado na primeira legislatura após concluídos os trabalhos da Assembleia Constituinte. Acentuando-se as divergências com a UDN, sobretudo por sua insistência com candidatura militar à presidência, nas eleições de outubro de 1950 concorreu com chapa própria, sendo candidato o próprio Mangabeira. Nessa eleição, Vargas obteve cerca de quatro milhões de votos, enquanto João Mangabeira menos de 10 mil (ao todo, 9.466), o que dá bem uma ideia da pouca expressão alcançada pelo PSB. Sob o parlamentarismo, ocupou a pasta da Justiça. Após a reintrodução do presidencialismo, optou por deixar a função, apesar da intenção de Goulart de mantê-lo no posto. Desde então, afastou-se da política, vindo a falecer menos de um mês após o movimento de 31 de março de 1964, em 27 de abril, pouco antes de completar 84 anos. A ideia de um socialismo comprometido, antes de mais nada, com o funcionamento das instituições mantenedoras da democracia não prosperou. O PSB que se reconstituiu nos dois períodos chamados de reconstituição democrática (1945-1964 e o pós-1985) perdeu a singularidade do socialismo democrático antes caracterizado, afeiçoando-se às agremiações que se tornaram a feição típica, como se mostra nas breves indicações adiante O Partido Socialista Brasileiro foi reorganizado em 1985. No período inicial, foi apropriado por um grupo que optou por transformá-lo numa agremiação de tipo marxista-leninista. A documentação resultante dessa fase foi examinada por Antonio Paim no livro O socialismo brasileiro-1979-1999, editado pelo Instituto Teotônio Vilela. A conclusão do autor é transcrita adiante. A análise precedente e os documentos que a instruem evidenciam que, nos três lustros iniciais, a tentativa de renascimento do PSB fez-se em flagrante contradição com o legado dos fundadores da agremiação em 1947. Os que assumiram tal responsabilidade, mesmo sendo socialistas, a tanto não estavam obrigados. Podiam simplesmente iniciar uma nova experiência, como fizeram os fundadores do PT. Se preferiram identificar-se com o PSB – e até adotaram o mesmo programa –, o que se poderia exigir é que revelassem um mínimo de conhecimento de causa. Ao contrário, o empenho foi dirigido no sentido de estruturar uma organização do tipo stalinista. Nunca causou qualquer constrangimento ao PSB suas alianças públicas com o PC do B, que corresponde precisamente ao absoluto contrário de todos os princípios que norteiam o socialismo democrático. E, mesmo depois da aprovação das novas diretrizes, no Congresso do Cinqüentenário (novembro, 1997) – que revogam a linha até então seguida e dizem expressamente que o PSB não é uma agremiação de classe –, após as eleições de 1998, o PSB formou um bloco com o PC do B na Câmara dos Deputados. No livro de memórias que nos deixou (Travessia, Rio de Janeiro, 1974), Hermes Lima fixou com exatidão o problema enfrentado pela Esquerda Democrática, ao desligar-se da UDN e dar nascedouro ao PSB: distinguir-se tanto dos liberais (UDN) como dos comunistas (PCB). Logo adiante, devido ao clima de histeria anticomunista que se instaurou no País após as eleições presidenciais, de que saiu vitorioso o general Eurico Gaspar Dutra – fechamento do PC; cassação de mandatos dos representantes comunistas; empastelamento de jornais e grande número de prisões – o PSB, já então constituído, tratou de fixar a sua posição independente, sem fazer concessões à falta de liberdades na União Soviética, mas defendendo firmemente o Estado Liberal de Direito em face das sucessivas violações às liberdades fundamentais presenciadas no País. Apesar da complexidade da situação, a impressão que se recolhe da documentação existente é que aquela liderança soube orientar-se adequadamente. Nesse particular, tudo indica que a questão central corresponde à capacidade de distinguir-se do comunismo, tratando-se de agremiação que, a partir mesmo do seu nascedouro, identificou-se com o socialismo democrático ocidental. Subsidiariamente, teria de acompanhar a evolução do socialismo na Europa Ocidental. Na verdade, entre as maiores agremiações socialistas do continente, somente o PS francês mantém-se fiel à bandeira socialista. As demais fizeram uma franca opção social-democrata, isto é, renúncia à utopia da sociedade sem classes e ao entendimento de que o socialismo deveria traduzir-se em estatização da economia. Em 1993, assumiu a presidência do PSB um tradicional líder da esquerda, Miguel Arraes (1916-2005), governador de Pernambuco cassado pelos militares e que, após 1985, voltaria a ocupar aquele cargo. Abandonou o projeto anterior, mas acabaria contribuindo para desfigurar totalmente a agremiação, ao aceitar, em 2002, o ingresso no partido de Anthony Garotinho, que ocupara o cargo de governador do Rio de Janeiro. Esse fato determinou o afastamento de Roberto Saturnino, então senador, que representava justamente a melhor tradição do socialismo democrático. Desde então, o PSB tornou-se progressivamente uma agremiação sem nítida feição própria, engolfada pela geleia geral que passou a representar a base de apoio dos governos subsequentes.

segunda-feira, 17 de agosto de 2020

Elsimar Coutinho, a vida dedicada à Medicina e à Ciência

Retornando da França, o Dr. Elsimar tornou-se professor Associado de Fisiologia na Escola de Farmácia da Universidade Federal da Bahia, mas por pouco tempo, pois logo foi convidado a "fellow" da Fundação Rockfeller na área da endocrinologia reprodutiva, tendo trabalhado no "Rockfeller Institute for Medical Research" de Nova York, hoje "Rockfeller University", ao lado de renomados profissionais da área como os Professores A. Csapo e G. Corner, este último o descobridor da progesterona.

Seguindo os ensinamentos dos seus mestres, o Dr. Elsimar, passou então a estudar os esteróides com efeito progestagênico, e particularmente descreveu o papel dos íons, cálcio e magnésio, como agentes periféricos da ação da progesterona.

Retornando dos Estados Unidos, ele tornou-se o Diretor de Pesquisas Clínicas da Maternidade Escola da Universidade Federal da Bahia, fazendo desse serviço, a Maternidade Climério de Oliveira, em Salvador - Bahia, o primeiro centro de referência para estudos e pesquisas na área da Reprodução Humana da Organização Mundial da Saúde no Brasil.

No início dos anos 60, estudando o emprego de substâncias progestínicas na prevenção do trabalho de parto prematuro, Dr. Elsimar observou e descreveu o efeito anticoncepcional da medroxiprogesterona (MPA), que se por um lado não se prestava àquela ação, por outro lado apresentavam efeito anticoncepcional, chegando então a propor em seus trabalhos clínicos os primeiros anticoncepcionais injetáveis, utilizando a substância progestagênica isoladamente por períodos de três meses, ou em combinação a um componente estrogênico, sendo este contraceptivo injetável de uso mensal (Ciclofem).

A partir daí, o Dr. Elsimar Coutinho despontou para tornar-se uma das maiores expressões na endocrinologia da reprodução e no planejamento familiar, tendo desenvolvido além do primeiro anticoncepcional injetável de efeito prolongado (Depo Provera), a primeira pílula anticoncepcional contendo Norgestrel, que é hoje o progestínico mais usado do mundo seguida da primeira pílula de dosagem reduzida. Outros métodos anticoncepcionais, fruto do seu pioneirismo, desenvolvidos ao longo de quarenta anos de pesquisas na Faculdade de Medicina da UFBA, incluem implantes subcutâneos com efeito prolongado (seis meses, um ano, dois anos, 3 anos e seis anos), dispositivos intra uterinos (Cruz de Lorena e Cruz de Caravaca), e o Lovelle®, a pílula vaginal.

Ainda fruto de suas pesquisas foram os tratamentos de infertilidade provocada pela endometriose (condição na qual tornou-se autoridade mundial, presidindo o 4o Congresso Mundial de Endometriose cuja realização na Bahia ocorreu em 1994) ou pela miomatose.

O primeiro caso de regressão de mioma seguida de gravidez, relatada na literatura médica internacional foi de sua autoria, publicado em 1982. Foi um dos fundadores no "International Committee for Contraceptive Research" - ICCR, do "Population Council", que se destacou no desenvolvimento de métodos contraceptivos como os dispositivos intra uterinos medicados com cobre, e o implante hormonal subdérmico com levonorgestrel, o Norplant.

Foi membro do Conselho Diretor do Programa de Reprodução Humana durante seis anos e do "Steering Committee of the Task Force on Infertility of the Expanded Programme in Human Reproduction" da Organização Mundial de Saúde, durante oito anos. Na área da infertilidade, desenvolveu um novo tratamento para a endometriose com a administração da Gestrinona, descrevendo também sua ação no tratamento não-cirúrgico dos leiomiomas.

Participante de várias sociedades médico-científicas no Brasil e no exterior, e fundador da Sociedade Brasileira de Andrologia, realizou conferências, organizando e presidindo eventos médico-científicos não só no Brasil, mas em diversos países.

Além da sua atividade de pesquisa e acadêmica como Professor Titular do Departamento de Ginecologia, Obstetrícia e Reprodução Humana da Faculdade de Medicina da Universidade Federal da Bahia, exerceu o cargo de Presidente de uma clínica modelo em planejamento familiar em Salvador, o CEPARH - Centro de Pesquisas e Assistência em Reprodução Humana, que é a semente de uma série de serviços de excelência nessa área especifica de tamanha necessidade em nosso meio.

Foi também o Presidente de um organismo internacional, o "South to South", que congrega pesquisadores de países em desenvolvimento, particularmente localizados no Hemisfério Sul, para o desenvolvimento conjunto de novos métodos contraceptivos mais adequados a sua realidade como:

  • O gossipol, uma fração de óleo de algodão que apresenta efeito anti espermatogênese, a primeira proposta de uma pílula anticoncepcional para o homem.
  • A pílula vaginal, proposta de uma via alternativa, mais fisiológica, como meio de administração hormonal.
  • O Uniplant, um implante hormonal de única cápsula contendo progestínico de liberação contínua, de aplicação e seguimento mais simples que os disponíveis hoje no mercado internacional.
  • Na Faculdade de Medicina criou a disciplina de Reprodução Humana, única no Brasil, no qual tornou-se professor titular desde a sua criação até a sua aposentadoria compulsória aos setenta anos de idade. Na década de 90, o Professor Elsimar Coutinho tornou-se muito conhecido pelo público em geral através de sua participação em programas educativos versando sobre Fertilidade, Infertilidade, Sexualidade e Planejamento Familiar em âmbito nacional. Atualmente o professor é presidente da Sociedade Brasileira de Ginecologia Endócrina (SOBRAGE), primeiro vice-presidente da Academia de Medicina da Bahia (AMB), Presidente do Centro de Pesquisas e Assistência em Reprodução Humana (CEPARH) e Presidente da Sociedade Baiana de Climatério (SOBACLIM).
  • O Professor Elsimar era membro de 32 sociedades médicas. Até o ano de 2000 participou como conferencista convidado de 253 congressos. Publicou 350 trabalhos científicos, a maioria em revistas médicas internacionais como Nature, Endocrinology, Fertility and Sterility, American Journal of Obstetrics and Gynecology e Contraception.
  • Publicou e editou mais de dez livros, a maioria no exterior. Seu livro sobre a menstruação, publicado em 1996, encontra-se na 8a edição. A versão inglesa deste livro foi publicada pela Oxford University Press e recebeu elogios de revistas médicas como Lancet, Journal of the American Medical Association (JAMA) e do British Medical Association cujo reviewer o classifica de obra prima.
Elsimar Metzker Coutinho, que estava internado com covid-19 desde 20 de julho, não resistiu à doença e morreu nesta segunda-feira (17), no Hospital Sírio Libanês,em Sāo Paulo, para onde havia sido transferido. FONTE: http://www.elsimarcoutinho.com/o-medico/biografia/

sexta-feira, 31 de julho de 2020

Hidalgo decidida a restringir serviços da Amazon em Paris

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As
autoridades de Paris ameaçaram tomar medidas legais sobre o novo serviço de entrega expressa da Amazon, alegando que isso poderia forçar as lojas locais a fecharem seus negócios. A prefeita socialista Anne Hidalgo prometeu adotar uma abordagem "intransigente" ao serviço Prime Now da Amazon, que oferece entrega em uma hora em uma variedade de produtos, incluindo mantimentos.
As autoridades temem que o serviço, que opera em 40 cidades como Nova York, Londres e Roma, possa perturbar o "equilíbrio comercial" da capital francesa. Eles também afirmam que foram informados sobre o serviço de Paris apenas alguns dias antes de ser lançado na semana passada.
Hidalgo disse que está pedindo aos legisladores que examinem o serviço de entrega da Amazon para ver se podem ser estabelecidas salvaguardas para evitar que isso prejudique comerciantes independentes.
A prefeitura de Paris também disse que vai procurar efeitos colaterais indesejados da operação, incluindo aumento de tráfego e poluição.
Hidalgo disse: “Esta operação corre o risco de afetar seriamente a balança comercial de Paris. Esta grande empresa americana não achou oportuno informar Paris até alguns dias antes do lançamento. ”
Ela disse que havia uma necessidade de “definir por lei, as proteções para impedir que esses serviços se tornem uma concorrência desleal para lojistas e artesãos. Paris será intransigente em relação à Amazônia. ”
A Amazon está se oferecendo para entregar mais de 18.000 produtos, incluindo itens elétricos e frutas e legumes frescos ou congelados, aos assinantes de seu serviço Premium, que custa € 49 (£ 38) por ano e promete chegar dentro de duas horas. Por um custo adicional de € 5,90, as mercadorias serão entregues dentro de uma hora.
Os itens são despachados de um armazém de 4.000 metros quadrados no 18º arrondissement, que foi revelado durante o lançamento de quinta-feira. O armazém emprega 70 funcionários.
Em declarações à rádio francesa, Olivia Polski, uma das vice-prefeitas de Paris, disse que o serviço é uma ameaça direta às lojas locais. "À primeira vista, pode parecer uma notícia muito boa ter um novo serviço de compras, exceto que não é uma loja real e não está sob as mesmas restrições que as empresas", disse ela, acrescentando que o serviço não estava sujeito aos mesmos impostos e regras de competição como lojas físicas. No domingo, a Amazon rejeitou as alegações.
Em uma declaração, dizia: “Refutamos essas informações incorretas, baseadas em muitos erros factuais e especulações infundadas. A Amazon paga todos os impostos necessários na França e em todos os países em que está presente.
"Com mais de 9.300 empregos na França esperados a partir de agora até o final do ano, nos tornamos um grande empregador e nosso" mercado "permitiu a criação de milhares de empregos extras em PMEs que vendem em nosso site".
A Amazon acrescentou que havia criado mais empregos na França entre 2013 e 2016 e disse que qualquer cálculo foi feito a partir de dados fora da Amazon.
Ele também disse que os cálculos de emissões subestimaram o tamanho do setor de computação em nuvem e foram erroneamente baseados em estimativas de servidores muito menos eficientes do que os usados ​​na AWS.

quarta-feira, 1 de julho de 2020

A Morte e a Morte da Democracia

Fernando Gabeira
É preciso  retomar o tema da democracia ameaçada. A prisão de Fabrício Queiroz conteve o avanço da extrema direita. Muitos interpretam o perigo de golpe apenas como um blefe de Bolsonaro, um delírio que agora se dissolve.
São pessoas sensatas que me perguntaram quando soei o alarme se eu não estava exagerando.
De uma certa forma, abordei este tema num artigo de fim de semana. Lembrei a tensão nas democracias europeias dos anos 30 e as pequenas pausas que surgiam entre elas. Muitos as interpretavam como o fim dos problemas, um novo período de paz.
Não tenho nenhuma intenção de comparar a extrema direita brasileira com a Alemanha nazista. Isto serviria apenas para reforçar a ideia de que exagero. Minha preocupação é apenas analisar a pausa. Ela pode ser aproveitada para se avançar na defesa da democracia ou pode ser considerada como o fim de um período de hostilidades.
Muitos imaginam o golpe de estado clássico: tanques saindo dos quartéis e ocupando pontos estratégicos, Congresso e STF fechados. É uma espécie de tiro no coração da democracia. Acontece que, nos últimos anos, cresce o consenso de que a democracia é comida pelas beiradas, como um vírus que invade, gradativamente, seu pulmão até que pare de respirar.
Essa lenta e sistemática derrubada da democracia brasileira está em curso. Não há tanques na rua, nem censores dentro dos jornais.
Mas a informação de qualidade está sob intenso fogo. O IBGE teve contestado seus dados sobre desemprego; a Fiocruz, invalidada uma pesquisa sobre consumo de drogas; o Inpe, decapitado por seus informes sobre o desmatamento na Amazônia. O próprio Bolsonaro tentou, mas não conseguiu, suspender a Lei de Acesso à Informação.
É como se as luzes de um edifício fossem sendo apagadas gradativamente. Na Fundação Palmares já não é possível contestar o racismo. O governo já não defende a diversidade cultural. Somos todos filhos de um mesmo Deus. Nas palavras do Weintraub: “Odeio a expressão povos indígenas.”
Três mil militares ocuparam a administração civil. No Ministério da Saúde desalojaram técnicos num momento em que se luta, e se perde, contra uma pandemia que já levou mais de 50 mil vidas. As armas são vendidas em maior escala, na medida em que cai o controle do Exército.
Na preservação ambiental, as luzes já se apagaram há muito. Na escuridão, crescem o desmatamento, o garimpo ilegal, a grilagem. Não se respeitam as leis, e os funcionários que tentam aplicá-las são demitidos.
O avanço de um golpe clássico foi contido pelo STF. Mas ele foi propagado em faixas que pediam intervenção militar com Bolsonaro na Presidência. Frequentaram essas manifestações, além do presidente, generais no governo e o ministro da Defesa.
Foi preciso prender extremistas e investigar as contas de deputados que financiam as manifestações. O Congresso não se manifesta. Está escondido atrás das togas dos ministros, esperando que canalizem sozinhos a agressividade digital bolsonarista.
Um Congresso que tem medo de tuítes sairia correndo ao ver o primeiro fuzil. Mas é preciso contar com ele.
Felizmente, a sociedade começou a acordar. Manifestos surgiram em vários setores. Esboços de frentes vão se formando aqui e ali. Há sempre quem se ache o rei da cocada e não aceita certos parceiros. Mas o rumo geral é de união.
Apesar da pandemia, surgiram as primeiras manifestações de rua. De um modo geral, pacíficas, um ou outro choque com a polícia, uma solitária faixa pedindo ditadura do proletariado, rompendo o tom.
Seria importante interpretar a pausa apenas como um tempo que se ganha para se organizar, não relaxar, achando que as coisas se resolvem sem nossa intervenção. Uma semana depois da prisão de Queiroz, o TJ do Rio já concedeu foro especial a Flávio Bolsonaro e pode anular não só a prisão, como trazer o processo à estaca zero.
Daqui a pouco, volta toda a onda agressiva e vamos nos perguntar o que fizemos na pausa. As democracias europeias vacilaram inúmeras vezes, mas acabaram vencendo no final. Mas os analistas sempre se perguntam se a vitória não poderia ter vindo mais cedo, poupado mais vidas.
Mesmo em dimensões desarmadas, o preço da vitória depende da maneira como interpretamos as relativas calmarias, se alimentamos ilusões conciliatórias ou compreendemos que, cedo ou tarde, a batalha se dará.
Artigo publicado no jornal O Globo em 29/06/2020

sexta-feira, 26 de junho de 2020

Uma Pausa para Avançar

Fernando Gabeira*
Além da pandemia, por décadas vamos sentir os efeitos da passagem de Bolsonaro pelo poder.
A leitura da História da Europa nos anos 30 mostra uma longa tensão bélica entrecortada por pausas que enchiam de esperança os que sonhavam com a paz. Poucos percebiam, como Winston Churchill, quão importante era aproveitar os momentos de tensão para se preparar para um confronto inevitável.
Guardadas as proporções, o Brasil entra numa pausa com a prisão de Fabrício Queiroz. Jogado na defensiva pelos diferentes processos no Supremo, um contra fake news, outro contra manifestações com bandeiras ilegais, Bolsonaro tende a se acalmar por alguns dias.
Toda a sua energia certamente estará concentrada em se defender do pepino do tamanho de um cometa que ronda seu governo. A presença de Fabrício Queiroz na casa do advogado da família Bolsonaro levou, de novo, não só os problemas de Flávio Bolsonaro, mas a incômoda questão das milícias cariocas para o terceiro andar do Palácio do Planalto.
Dificilmente, nesse período, crescerão as manifestações pedindo o fechamento do Congresso e do STF. Muito menos Bolsonaro, Mourão e o ministro da Defesa devem lançar novas notas afirmando que as Forças Armadas não aceitam julgamentos políticos. Isso agora soaria como um blefe.
Muito possivelmente Bolsonaro perdeu terreno nas Forças Armadas e também na faixa de seu eleitorado que esperava a luta contra a corrupção. Nesta última ele já havia perdido com a saída de Sergio Moro do governo denunciando suas tentativas de intervir na Polícia Federal do Rio. E as perdas se acentuaram quando firmou aliança com o Centrão, uma espécie de seguro contra o impeachment, que nem sempre é honrado pelos contratantes.
Quando a prisão de Queiroz apertou o botão “pausa” a sociedade estava se organizando para deter o golpe e fazer frente à política nefasta de Bolsonaro. Manifestações de rua surgiram aos domingos e manifestos brotaram de vários setores, indicando a possibilidade de uma frente democrática em gestação.
Nesse momento também a pandemia atingia seu auge, ultrapassando a casa de 1 milhão de contaminados e 50 mil mortos. O Brasil tornou-se um país a ser evitado. O fracasso no combate à pandemia, impulsionado pelo negativismo de Bolsonaro, afasta os potenciais visitantes.
A destruição da Amazônia, que pode alcançar 16 mil km2 no prazo de um ano, por sua vez, afasta os investidores. Fundos de pensão responsáveis por investimentos gigantescos podem voltar as costas ao Brasil, por causa da destruição da floresta e a cruel política para os povos indígenas.
Bolsonaro não torna o País inviável apenas simbolicamente, arrasando a cultura e atropelando nosso patrimônio histórico. Ele nos coloca nas piores condições possíveis para superar a profunda crise econômica, agravada pela pandemia. Embora o ministro Paulo Guedes veja um futuro brilhante pela frente, grandes economistas brasileiros, ao contrário, veem no horizonte uma das grandes privações por que passará o Brasil em sua História.
Quem se preocupa com a democracia apenas quando se aquecem os motores dos tanques militares pode ter uma falsa sensação de alívio. A democracia continuará exposta a pequenos golpes cotidianos Além disso, quanto menos margem de manobras Bolsonaro encontrar, mais possibilidade de buscar ações .
Enquanto a sociedade se move, ainda lentamente por causa da pandemia, o confronto com as aspirações golpistas concentrou-se na reação do Supremo Tribunal Federal. Infelizmente, o Congresso recuou para segundo plano, talvez temeroso da agressividade da militância bolsonarista.
É preciso que os deputados e senadores superem a fixação numa salvação individual nas eleições. Os deputados da extrema direita, segundo a PGR, usam verbas parlamentares para mobilizar o fechamento do próprio Congresso. Não há como se esconder atrás das togas negras do Supremo. É necessária uma frente democrática no próprio Congresso.
“Somos poucos”, dirão os deputados. Mas não importa tanto o número, o importante é começar. Se a pausa acionada com a prisão de Queiroz for entendida como um momento de distensão, uma época para simplesmente deixar andar o processo judicial, ela pode trazer surpresas desagradáveis…
Naturalmente, os processos legais têm de ser acompanhados. Mas os danos ao País continuam a ocorrer. E a chegada de momentos mais dramáticos da crise econômica pede a construção de redes de solidariedade.
Diz a OMS que o mundo sentirá por décadas os efeitos da pandemia de coronavírus. No caso brasileiro, além da pandemia, vamos também sentir por décadas a passagem de Bolsonaro pelo poder.
No trabalho de reparo dos estragos e reconstrução do futuro não pode haver pausa. Mesmo porque as desgraças não nos abandonam nem no cotidiano. O mínimo que esperamos de novo, nessa pausa, é uma voraz nuvem de gafanhotos que nos invade pelo sul do País.
Um aumento de chances de vitória é uma razão suficiente para intensificar a luta. Quanto menos nos preparamos para ela, mais difícil será o desfecho. Sem necessariamente estabelecer um paralelo com o nazismo, a História dos anos 30 é uma aula sobre as hesitações da democracia diante de um perigo no horizonte.
*Jornalista

quinta-feira, 25 de junho de 2020

ACARAJÉ, patrimônio cultural da Bahia

Mais do que uma comida rápida de rua, o acarajé é indissociável da cultura do candomblé e da história dos africanos no Brasil. Quitute é elemento central de um complexo cultural

Carolina Cantarino
O ofício das baianas do acarajé é patrimônio cultural do Brasil. Quando anunciado, equívocos em torno do “tombamento do acarajé” e outros mal-entendidos esconderam a valorização de uma profissão feminina historicamente presente no país: as baianas de tabuleiro. O orgulho por esse reconhecimento podia ser visto nos rostos das mulheres negras de novas e antigas gerações presentes durante a cerimônia de diplomação de seu ofício.
As baianas  de acarajé que mantém a tradição usam roupas tradicionais cuja peça mais característica é a grande saia rodada, complementada por outros adereços como os chamados panos da costa, o torso na cabeça, a bata e os colares com as cores dos seus orixás pessoais. Nas ruas de Salvador, de outras cidades do estado da Bahia e, mais raramente, em outras regiões do país, as baianas tradicionais encontram-se sempre acompanhadas por seus tabuleiros que contêm não só o acarajé e seus possíveis complementos, como o vatapá e o camarão seco, mas também outras “comidas de santo”: abará, lelê, queijada, passarinha, bolo de estudante, cocada branca e preta. Os tabuleiros de muitas baianas soteropolitanas se sofisticaram: revestidos por paredes de vidro, muitas vezes contêm caras panelas de alumínio junto às colheres de pau.
O acarajé, o principal atrativo no tabuleiro, é um bolinho característico do candomblé. Acarajé é uma palavra composta da língua iorubá: “acará” (bola de fogo) e “jé” (comer), ou seja, “comer bola de fogo”. Sua origem é explicada por um mito sobre a relação de Xangô com suas esposas, Oxum e Iansã. O bolinho se tornou, assim, uma oferenda a esses orixás.
Mesmo ao ser vendido num contexto profano, o acarajé ainda é considerado, pelas baianas, como uma comida sagrada. Para elas, o bolinho de feijão fradinho frito no azeite de dendê não pode ser dissociado do candomblé. Por isso, a sua receita, embora não seja secreta, não pode ser modificada e deve ser preparada apenas pelos filhos-de-santo.
“Pode parecer que estamos dando importância maior ao acarajé do que ao ofício das baianas do acarajé, mas este fato tem um sentido: neste complexo cultural, o acarajé é o elemento central. O ofício não teria a importância que tem se o acarajé fosse apenas um dos alimentos tradicionais”, afirma Roque Laraia, antropólogo da Universidade de Brasília e membro do Conselho Consultivo do Iphan, em seu parecer sobre a proposta de registro do ofício das baianas do acarajé. O inventário que instruiu o processo de registro foi realizado pelo Centro Nacional de Folclore e Cultura Popular.
Raul Lody e Elizabeth de Castro Mendonça foram os antropólogos que realizaram a pesquisa que consistiu na realização de entrevistas; levantamento bibliográfico; registros audiovisuais e, dentre outras coisas, visita a pontos característicos de baianas do acarajé na cidade de Salvador tais como Bonfim, Pelourinho, Barra, Ondina, Rio Vermelho e Piatã. Brotas também foi um dos bairros visitados devido à presença de um “baiano de tabuleiro”, evangélico.
As baianas sofrem, cada vez mais, com a concorrência da venda do acarajé no comércio de bares, supermercados e restaurantes baseados, inclusive, no marketing do bolinho de acarajé como fast food. Essa apropriação do acarajé contraria o seu universo cultural original e a sua venda como “bolinho de Jesus” pelos adeptos de religiões evangélicas – que postam Bíblias em seus tabuleiros - tem causado polêmica.
“Se você tem uma religião que é contrária ao candomblé, por que vender acarajé e não qualquer outro quitute?” indaga Dona Dica diante do seu tabuleiro no Largo Quincas Berro D’Água, no Pelourinho, ressaltando que o acarajé, para a maioria das baianas de tabuleiro, filhas-de-santo, é indissociável do candomblé. Essa indistinção não deixa de ser, também, uma estratégia de diferenciação de seus produtos, num contexto de concorrência cada mais acirrada que é Salvador, uma cidade que atrai muitos turistas por ser considerada como o locus de africanismos no Brasil, a partir dos quais uma inegável comercialização da cultura negra tem se constituído.
Mas se para essas baianas as mudanças em relação ao aspecto religioso são inaceitáveis, outras transformações são bem vindas. “No passado era muito ruim porque a gente tinha que descascar o feijão e quebrá-lo na pedra. Hoje em dia não se tem esse sofrimento porque as meninas usam o moinho elétrico ou mesmo o liqüidificador”. Essa é a opinião de Arlinda Pinto Nery, que trabalhou com seu tabuleiro durante mais de 50 anos e aprendeu o ofício com sua mãe.

Dona Arlinda faz parte da Associação das Baianas de Acarajé e Mingau do Estado da Bahia que existe há 14 anos e conta com dois mil associados dentre baianas e baianos do acarajé e vendedores de outros tipos de comida como mingau, pamonha e cuscuz. O trabalho da associação é voltado para a profissionalização da atividade, que já conta com um selo de qualidade: através de parcerias com o Sebrae e o Senac, os associados têm acesso a cursos sobre manipulação de alimentos, normas de higiene e sobre finanças, para que possam administrar melhor os seus ganhos.

As mulheres de tabuleiro de ontem e de hoje

A comercialização do acarajé tem início ainda no período da escravidão com as chamadas escravas de ganho que trabalhavam, nas ruas, para as suas senhoras (geralmente pequenas proprietárias empobrecidas), desempenhando diversas atividades, dentre elas, a venda de quitutes nos seus tabuleiros. Ainda na costa ocidental da África as mulheres já praticavam um comércio ambulante de produtos comestíveis, o que lhes conferia autonomia em relação aos homens e muitas vezes o papel de provedoras de suas famílias.

O comércio de rua nas cidades brasileiras permitiu às mulheres escravas ir além da prestação de serviços aos seus senhores: elas garantiam, muitas vezes, o sustento de suas próprias famílias, foram importantes para a constituição de laços comunitários entre os escravos urbanos e também para a criação das irmandades religiosas e do candomblé: muitas filhas-de-santo começaram a vender acarajé para poder cumprir com suas obrigações religiosas que precisavam ser renovadas periodicamente.

Devido a essa liberdade de movimento é que as escravas de tabuleiro eram vistas como elementos perigosos, tornando-se, por isso, alvos de posturas e leis repressivas.

A venda do acarajé permaneceu como uma atividade econômica relevante para muitas mulheres mesmo com o fim da escravidão. Hoje, atrás das baianas existem famílias inteiras dependendo dos seus tabuleiros: 70% das mulheres pertencentes à Associação das Baianas de Acarajé e Mingau do Estado da Bahia são chefes de família. A rotina dessas mulheres é caracterizada pela compra dos ingredientes necessários para o preparo do acarajé, um trabalho diário e árduo: precisam levantar cedo, ir à feira, buscar produtos de qualidade a preços acessíveis. O preço do camarão e do azeite de dendê são os que mais variam. Muitas ainda enfrentam problemas para adquirir tabuleiros novos ou mesmo para guardá-los, deixando-os, muitas vezes, na praia.

“Às vezes nos sentimos órfãs porque trabalhamos sozinhas com nosso tabuleiro, de sol a sol, expostas ao frio, ao calor e mesmo à violência. Mas somos mulheres negras e perseverantes: se não vendemos hoje, venderemos amanhã. Somos um símbolo de resistência desde a escravidão”, lembra Maria Lêda Marques, presidente da Associação que, juntamente com o terreiro Ilê Axé Opô Afonjá e o Centro de Estudos Afro Orientais da Universidade Federal da Bahia, fizeram o pedido de registro junto ao Iphan

sábado, 20 de junho de 2020

Um desastre de gerações

O governo de Jair Bolsonaro, ao submeter a saúde e a educação do Brasil a seus propósitos deletérios, compromete o futuro de gerações. Essas duas áreas, mais do que quaisquer outras, são a essência da construção da cidadania. Um país de doentes e semiletrados jamais alcançará um patamar de desenvolvimento considerado satisfatório.
A degradação do Ministério da Educação talvez seja o maior símbolo de um governo cujo espírito é essencialmente destrutivo. O presidente Bolsonaro, que vê comunistas em toda a parte, entende que é preciso arruinar o sistema educacional do País porque este, supostamente, está dominado por doutrinadores de esquerda. Por isso escolheu a dedo seus ministros da Educação.
O primeiro foi Ricardo Vélez Rodriguez, que durou exatos 97 dias no posto. Assumiu o cargo dizendo que “Jair Bolsonaro prestou atenção à voz entrecortada de pais e mães reprimidos pela retórica marxista que tomou conta do espaço educacional”. Sua curta gestão foi marcada por tropeços, mal-entendidos e descontrole, e Vélez Rodriguez acabou demitido por Bolsonaro porque, segundo o presidente, “não tinha essa expertise com ele”. Ou seja, Bolsonaro levou pouco mais de três meses para perceber o que todos já sabiam no instante em que o nome de Vélez Rodriguez foi anunciado – que ele não tinha a menor tarimba para ser ministro da Educação.
Tendo uma segunda chance para acertar em área tão sensível, Bolsonaro dobrou a aposta na mediocridade e no destempero e colocou no Ministério o economista Abraham Weintraub. Ao longo dos 14 meses de sua passagem pela pasta, Weintraub fez exatamente o que o presidente esperava: transformou o Ministério da Educação em cidadela da guerra imaginária do bolsonarismo contra o “marxismo cultural”.
Enquanto se empenhava em desorganizar a educação, Weintraub assombrava o País com suas seguidas grosserias contra universidades, professores e até governos estrangeiros – isso sem falar dos espantosos erros de português em suas diatribes nas redes sociais. Era, portanto, a expressão mais bem acabada do bolsonarismo – tanto que o presidente, em meio à saraivada de críticas ao ministro, disse que, “no meu entender, ele (Weintraub) está sendo excelente” e, “se tem jornalistas criticando, é porque está indo bem”. 
Weintraub fez tão bem seu trabalho, conforme as expectativas de Bolsonaro e dos bolsonaristas, que se indispôs com a República inteira, especialmente com o Supremo Tribunal Federal (STF) – de cujos ministros pediu a prisão, chamando os de “vagabundos” durante infame reunião ministerial. A dura reação do STF contra Weintraub obrigou Bolsonaro a afinal demitir seu fidelíssimo sabujo, para tentar reduzir sua já extensa lista de problemas com a Justiça e com outros Poderes.
Ou seja, Weintraub não foi exonerado por sua gritante incapacidade de exercer a nobre função de ministro da Educação, tampouco por ter tratado a comunidade acadêmica e científica como inimiga; ele perdeu o emprego em razão dos cálculos políticos do acossado presidente. Por isso, nada indica que o próximo ministro venha a ser muito melhor do que Weintraub, porque é improvável que o presidente desista de sua guerra ao intelecto e à razão – sabotando os esforços de milhares de educadores para dar aos jovens brasileiros condições mínimas de participação ativa na vida nacional.
Essa irracionalidade militante do bolsonarismo se reflete também na área de saúde. Temos um presidente que afronta a ciência, estimulando comportamento irresponsável dos seus concidadãos em meio a uma pandemia e recomendando o consumo de remédios sem eficácia comprovada, mas com graves efeitos colaterais. Temos um chefe de governo que demitiu dois ministros da Saúde justamente porque estes se recusaram a cumprir suas ordens irresponsáveis – o atual, um general, aceitou até mesmo manipular números da pandemia para que seu comandante pudesse dizer por aí que o total de mortos é muito menor do que os governos estaduais informam e que o País já deveria ter “voltado ao normal”.
Bolsonaro, em resumo, baseia-se nas fake news que circulam furiosamente nas redes bolsonaristas para nortear a política oficial de saúde.
Enquanto isso, o número de casos confirmados de covid-19 no Brasil passou de 1 milhão.

*

Bolsonaro repete Dilma

Osvaldo Campos Magalhaes*
Para viabilizar a chegada ao poder e evitar uma nova derrota de Lula na disputa pela presidência da República, o Partido da Ética e da Esperança foi transformado por ZéDirceu e Lula numa Organização Criminosa. O assassinato do prefeito petista de Santo André, Celso Daniel, revelava o que viria a acontecer na esfera federal. Ao invés de se aliar a partidos comprometidos com a Ética, o PT optou por cooptar a escória da política brasileira. Enquanto o cenário internacional permitiu, bancado principalmente pela grande demanda da China por commodities, a economia brasileira cresceu gerando recursos para um excelente programa de distribuição de renda que retirou mais de 20 milhões de brasileiros da miséria. Mesmo com o escândalo do Mensalão, que levaria à condenação os principais dirigentes do PT, o excelente quadro econômico do país confere índices de aprovação superiores a 80% a Lula, que não consulta o partido e opta por escolher uma candidata sem tradição dentro do PT e sem qualificações e preparo para exercer a presidência e dar continuidade ao excelente trabalho realizado no seu governo. Com nomes muito mais qualificados dentro do PT, como Patrus Ananias e Tarso Genro, Lula opta por uma candidata que na sua análise séria fácil de controlar e manobrar. Cometendo um segundo erro, ao entregar a vice presidência ao PMDB e a um político ardiloso e maquiavélico, Lula preparou o terreno para o surgimento das forças políticas reacionárias e fascistas. Com a mudança no cenário internacional provocada pela crise do sistema bancário norte americano, de 2008, a partir de 2011, no governo Dilma, foi adotada uma política de incentivo ao consumo, de congelamento dos derivados de petróleo e redução artificial das taxas de juro. No segundo mandato a política econômica entra em colapso, com o crescimento da inflação, da taxa de desemprego e , pela primeira vez na história, dois anos seguidos de recessão. Aproveitando-se da fragilidade do governo, da incapacidade de negociação política de Dilma, o vice presidente com o apoio de seu aliado Eduardo Cunha, articula o impeachment da presidente Dilma. Com a insatisfação popular resultante do aumento das tarifas públicas, do alto índice de desemprego e da volta da inflação, fica fácil para Temer viabilizar o impeachment. O movimento de insatisfação popular faz surgir um vigoroso crescimento de grupos fascistas , fortalecendo a extrema direita, que resultaria na viabilização da candidatura de Jair Bolsonaro, que se fortalece nas mídias sociais como o candidato anti Sistema. Consegue eleger a segunda maior bancada no Congresso e inexpressivos candidatos ao governo em vários Estados da Federação. Com a indicação de qualificados quadros técnicos para as áreas de infraestrutura e economia o governo consegue reverter a tendência de estagnação econômica e inicia um grande programa de desestatização, criando forte expectativa de crescimento econômico, com queda da inflação e das taxas de juros. Contudo, setores estratégicos como educação, relações exteriores, cidadania e direitos humanos, turismo e cultura são entregues a Ministros despreparados sem a devida qualificação para liderarem setores tão importantes, gerando desgastes na imagem do governo. Assim como Dilma, que enfrentou a grave crise econômica de 2008, o governo Bolsonaro é atingido pela crise provocada pela Pandemia do Covid 19. Ambos os presidentes subestimam os efeitos das crises, adotando posturas equivocadas e sofrendo sérios desgastes nas avaliações de desempenho dos respectivos governos. Contudo, o mais grave diz respeito aos indicadores econômicos, com a volta de uma grande recessão econômica com expressiva taxa de desemprego. Bolsonaro se mostra tão despreparado quanto a presidente Dilma, e, ameaçado por um processo de impeachment abandona as promessas de campanha, distribuindo cargos a deputados do Centrão, fortalecendo também a presença de representantes das forças armadas no governo, incentivando grupos de extrema direita e flertando com um novo golpe militar. Sem a Guerra Fria que existia em 64 e com a provável derrota do aliado Donald Trump, a hipótese do Golpe Militar se mostra completamente inexequível.
*Engenheiro Civil e Mestre em Administração (UFBa), é membro do Conselho de Infraestrutura da FIEB

Bolsonaro já tem o seu Tchau Querida


Reinaldo Azevedo*
O governo Bolsonaro acabou. A reforma da Previdência, único marco que ficará destes dias, durem quanto durar, é, na verdade, herança do governo Temer, que só não conseguiu aprovar o texto porque teve de enfrentar o lavajatismo golpista e de porre de Rodrigo Janot. Isso à parte, sobra pregação golpista. E só.
Quanto tempo o “mito” ainda fica por aí? Não sei. Mas é “um cadáver adiado que procria”, para lembrar verso de Fernando Pessoa em caso bem mais nobre. E qualquer coisa que venha à luz, nessas circunstâncias, será necessariamente ruim.
Não temos mais um presidente, mas um refém do fundão do centrão. À medida que a sociedade vai saindo da clausura a que a condenou o coronavírus, cresce o preço político para manter o corpo na sala. Até a hora em que os próprios apoiadores resolvem enterrar o malcheiroso.
Lembram-se do “tchau, querida” de Lula, ao se despedir de Dilma, naquela gravação feita e divulgada ilegalmente por Sergio Moro? Esqueçam o mérito. Fixo-me nas palavras. Elas se transformaram numa espécie de emblema da derrocada do governo. Era também uma senha entre os que defendiam o impeachment.
Bolsonaro já tem os dois vocábulos imortais que servem para carimbar seu fim. E saíram de sua própria boca, em um dos habituais acessos de fúria. Falando a seguidores no Alvorada, deu a entender que, a partir daquele momento, passava a ter o comando das vontades do STF. Vociferou para o TIH (Tribunal da Ironia da História): “Acabou, porra!”.
Pois é... Acabou, porra!
A partir de agora, não há mais como o presidente se ocupar do governo. Enquanto estiver por aí, vai ter de pagar, às custas do futuro do Brasil, o preço para que não se formem os 342 votos na Câmara que o empurrariam para julgamento, e condenação certa!, no Senado por crime de responsabilidade.
Aqui e ali, as pessoas se espantam: “Caramba! O Fabrício Queiroz foi se homiziar justamente no sítio de Frederick Wassef, advogado dos Bolsonaros, que tinha estado no Palácio do Planalto no dia anterior, a convite do presidente, na posse de Fábio Faria, o ministro que simbolizaria a disposição para o diálogo?”.
Meus caros, vocês queriam o quê? De Goethe a Max Weber, estamos diante de uma derivação das chamadas “afinidades eletivas”. A Operação Anjo, no âmbito da qual Fabrício foi garfado, é uma referência ao apelido de Wassef entre os Bolsonaros: anjo. Eles todos devem saber por quê.
Queiroz foi preso no dia seguinte àquele em que Bolsonaro negou a democracia três vezes. O dia 17 de junho entrará para a história. Logo de manhã, o presidente anunciou às portas do Alvorada, referindo-se a magistrados de tribunais superiores: “Eles estão abusando. Está chegando a hora de tudo ser colocado no devido lugar”. À noite, foi ainda mais sombrio: “É igual uma emboscada. Você tem de esperar o cara se aproximar”.
Na sequência, foi arriar a bandeira em companhia do comandante do Exército, Edson Leal Pujol, que caía, ele sim, numa emboscada. Entre uma ameaça e outra, fez a mais grave de todas as afirmações desde que assumiu. E justamente na posse do novo ministro.
Nas barbas de Rodrigo Maia e Dias Toffoli, presidentes, respectivamente, da Câmara e do STF, o mandatário evocou as forças do caos: “Não são as instituições que dizem o que o povo deve fazer. É o povo que diz o que as instituições devem fazer”. Essa é a divisa dos tiranos, não dos democratas. “Povo”, para Bolsonaro, ele já deixou claro, se resume às suas milícias digitais e àqueles que comungam de seus, vá lá, valores, que ele chama “conservadores”, numa distorção miserável do sentido da palavra.
É o passado policial de Bolsonaro que põe fim a seu governo, ainda que o cadáver fique por aí. Mas o que já o impedia de governar é a sua absoluta incompreensão do que é a democracia. Sim, novas ameaças de autogolpe virão nos próximos dias. É de sua natureza.
Bolsonaro quer que acreditemos que os generais podem botar os tanques nas ruas para unir a história das Forças Armadas à de patriotas como Fabrício Queiroz.
*Reinaldo Azevedo. br /> Jornalista, autor de “O País dos Petralhas”.

sexta-feira, 19 de junho de 2020

MORRE JOÃO CARLOS TEIXEIRA GOMES, JOCA, O GRANDE PENA DE AÇO

Fernando Alcoforado*
Faleceu ontem, 18/06/2020, o jornalista, escritor e professor da UFBA, João Carlos Teixeira Gomes. Joca, o Pena de Aço, como era conhecido será cremado hoje, 19, no Bosque da Paz, em cerimônia restrita a pequeno grupo. Poeta, escritor, ensaísta, professor, membro da Academia Baiana de Letras, onde ocupava a cadeira de número 15, Joca fez parte do grupo conhecido como Geração Mapa, ao lado do cineasta Glauber Rocha, do escritor João Ubaldo Ribeiro, do pintor Calazans Neto e do também professor e jornalista Florisvaldo Matos, entre outros.
No Jornal da Bahia, Joca, o Pena de Aço, que ajudou a fundá-lo, ocupou sucessivamente os cargos de repórter, secretário, chefe de reportagem, redator-chefe e editorialista. Joca foi um batalhador pela liberdade da imprensa contra o arbítrio, contra a ditadura militar. Como redator-chefe do Jornal da Bahia, travou uma luta de vida ou morte contra Antônio Carlos Magalhães (ACM), representante da ditadura militar na Bahia, desde o primeiro governo dele durante o regime militar que durou muitos anos. Ele escreveu inclusive um livro, 'Memórias das Trevas', em que conta episódios lamentáveis da vida de ACM.
Joca, o Pena de Aço, também foi colaborador fixo do jornal  ATARDE, publicando artigos quinzenais nas páginas de Opinião. Foi secretário de Comunicação Social do Governo de Waldir Pires em meados dos anos 1980, e diretor do Centro de Estudos Baianos da Universidade Federal da Bahia. Publicou, entre outros, um livro sobre Gregório de Mattos: Gregório de Mattos, o Boca de Brasa, bem recebido por crítica e público. Foi autor também de Camões Contestador e Outros Ensaios e de Glauber Rocha – Esse Vulcão. Participou, como colaborador, dos livros Dezoito Contistas Baianos, Da Ideologia do Pessimismo à Ideologia da Esperança, A Obsessão Barroca da Morte de Manuel Bernardes e Quevedo. E tem três livros de poesias: Ciclo Imaginário, O Domador de Gafanhotos e A Esfinge Contemplada.
Minhas condolências aos familiares desta grande figura humana, Joca, o Pena de Aço,  que fará muita falta em nosso País neste momento grave que o Brasil atravessa de ameaça à democracia e à liberdade de imprensa.
*Engenheiro, Doutor em Planejamento Territorial e Desenvolvimento Regional - Universidade de Barcelona  

Bolsonaro no mesmo caminho de Dilma

Osvaldo Campos Magalhaes*
Para viabilizar a chegada ao poder e evitar uma nova derrota de Lula na disputa pela presidência da República, o Partido da Ética e da Esperança foi transformado por ZéDirceu e Lula numa Organização Criminosa. O assassinato do prefeito petista de Santo André, Celso Daniel, revelava o que viria a acontecer na esfera federal.
Ao invés de se aliar a partidos comprometidos com a Ética, o PT optou por cooptar a escória da política brasileira.
Enquanto o cenário internacional permitiu, bancado principalmente pela grande demanda da China por commodities, a economia brasileira cresceu gerando recursos para um excelente programa de distribuição de renda que retirou mais de 20 milhões de brasileiros da miséria.
Com índices de aprovação superiores a 80%, Lula não consulta o partido e opta por escolher uma candidata sem tradição dentro do PT e sem qualificações e preparo para exercer a presidência e dar continuidade ao excelente trabalho realizado no seu governo. Com nomes muito mais qualificados dentro do PT, como Patrus Ananias e Tarso Genro, Lula opta por uma candidata que na sua análise séria fácil de controlar e manobrar.
Cometendo um segundo erro, ao entregar a vice presidência ao PMDB e a um político ardiloso e maquiavélico, Lula preparou o terreno para o surgimento das forças políticas reacionárias e fascistas.
Com a mudança no cenário internacional provocada pela crise do sistema bancário norte americano, em 2008, Dilma prefere adotar uma política de incentivo ao consumo, de congelamento dos derivados de petróleo e redução artificial das taxas de juro. No segundo mandato a política econômica entra em colapso, com o crescimento da inflação, da taxa de desemprego e , pela primeira vez na história, dois anos seguidos de recessão. Aproveitando-se da fragilidade do governo, da incapacidade de negociação política de Dilma, o vice presidente com o apoio de seu aliado Eduardo Cunha, articula o impeachment da presidente Dilma. Com a insatisfação popular resultante do aumento das tarifas públicas, do alto índice de desemprego e da volta da inflação, fica fácil para Temer viabilizar o impeachment. O movimento de insatisfação popular faz surgir um vigoroso crescimento de grupos fascistas , fortalecendo a extrema direita, que resultaria na viabilização da candidatura de Jair Bolsonaro, que se fortalece nas mídias sociais como o candidato anti Sistema. Consegue eleger a segunda maior bancada no Congresso e inexpressivos candidatos ao governo em vários Estados da Federação.
Com a indicação de qualificados quadros técnicos para as áreas de infraestrutura e economia o governo consegue reverter a tendência de estagnação econômica e inicia um grande programa de desestatização, criando forte expectativa de crescimento econômico, com queda da inflação e das taxas de juros.
Contudo, setores estratégicos como educação, relações exteriores, cidadania e direitos humanos, turismo e cultura são entregues a Ministros despreparados sem a devida qualificação para liderarem setores tão importantes, gerando desgastes na imagem do governo.
Assim como Dilma, que enfrentou a grave crise econômica de 2008, o governo Bolsonaro é atingido pela crise provocada pela Pandemia do Covid 19.
Ambos os presidentes subestimam os efeitos das crises, adotando posturas equivocadas e sofrendo graves desgastes nas avaliações de desempenho dos respectivos governos. Contudo, o mais grave diz respeito aos indicadores econômicos, com a volta de uma grande recessão econômica com expressiva taxa de desemprego. Bolsonaro se mostra tão despreparado quanto a presidente Dilma, e, ameaçado por um processo de impeachment abandona as promessas de campanha, distribuindo cargos a deputados do Centrão, fortalecendo também a presença de representantes das forças armadas no governo, incentivando grupos de extrema direita e flertando com um novo golpe militar.
Com a provável derrota do aliado Donald Trump, diferentemente de 64, não terá o apoio Norte Americano.
*Engenheiro Civil e Mestre em Administração (UFBa).