sexta-feira, 30 de abril de 2010

Viver no Centro Histórico de Salvador

Dimitri Ganzelevitch*
Voltando ao mau uso do Centro Histórico de Salvador. A rejeição deste bairro pela classe média baiana é uma realidade cultural. Ninguém quer saber se aqui moraram os poderosos, clérigo e nobreza de outras épocas. Nem os responsáveis pela conservação do bairro, seja de primeiro ou segundo escalão, nem o próprio arcebispo, apesar do magnífico palácio arquiepiscopal da Praça da Sé.
Quem manda seus filhos passar férias em Miami e Orlando dificilmente aceitará viver em moldura histórica sem o glamour dos condomínios com playground, zelador e garagem de controle remoto. O escudo invocado sempre é “por causa dos filhos”. Mas lamentar não adianta.
O Centro Histórico necessita de leque sociocultural mais amplo se quiser sobreviver. Há muitos anos defendo a implantação de repúblicas de estudantes, como houve antes da reforma, antes das vaias a um irascível governador. Sangue novo, risos, violões, atitudes rebeldes fazem parte da qualidade de vida de antigos bairros onde espíritos irrequietos e contestadores encontraram refúgio.
Que seria de Salamanca sem suas tunas ou de Coimbra sem suas estudantinas?
Que também fique aqui registrada minha sugestão aos governantes de atribuir, talvez na forma de prêmio, uns ateliês amplos e arejados a alunos recém-diplomados das Escolas de Música, Dança, Antropologia, Belas-Artes etc. Poderia ser sob forma de convênio para um mínimo de dois ou três anos, sem ônus para o contemplado, incluindo luz e água. Uma bolsa-artista. Por que não? Sairia muito mais barato que campanhas publicitárias na televisão e outdoors na Paralela.
Pequenos eventos com programação regular como feiras livres de produtos orgânicos no Terreiro de Jesus e no Largo de Santo Antônio, apresentações semanais de mamulengos e tantas outras formas de atrair e manter uma qualidade de vida diferenciada poderiam mudar os preconceitos da sociedade soteropolitana.
Precisamos reintegrar o Centro Histórico à cidade que dele nasceu. O que não se pode é imaginar que a abertura de um shopping no Santo Antônio ou shows de rock ou de pagode no Pelô solucionarão a previsível decadência do bairro.
Tombado pela Unesco no final do século XX, ou tombando pela falta de visão nos primórdios do século XXI?
*Dimitri Ganzelevitch – Presidente da Associação Cultural Viva Salvador

terça-feira, 27 de abril de 2010

Escolas Espremidas

Ilustração de Aziz
Nelson Pretto*
Tenho saudade de uma Salvador dos espaços generosos. Não imagino que o tempo tenha que parar, que o chamado progresso e o avanço do cimento e do asfalto tenham que ser contidos na marra. Mesmo que nestes últimos tempos de chuvas fortes eles tenham dificultado o movimento da água para seu lugar natural, longe de mim pensar em simplesmente voltar para o passado.
Também não quero falar do tempo das praças sem grades, dos chafarizes, fontes de água, casas sem muros ou com eles ainda baixinhos, onde podíamos sentar para prosear e matar o tempo. Para estes temas, os arquitetos, urbanistas, engenheiros, todos os articulistas de várias áreas já vêm escrevendo em A Tarde desde muito.
Quero falar, no entanto, de um espaço que para mim é muito caro: o das escolas.
Nossas escolas encolheram. E muito. Acabaram-se os amplos campos para o futebol, babas, garrafão ou similares, acabaram as áreas para o tão esperado recreio, também esse espremido entre os poderosos 50 minutos da sequência de aulas. Aulas que normalmente acontecem em salas que, praticamente, mantêm a mesma configuração de muitos anos, quem sabe séculos, e, o que é pior, também elas encolhidas.
São os mesmos móveis, a distribuição das cadeiras, o quadro negro – depois verdes e, nas mais modernas, até digitais –, estes quase todos colocados na frente, para que uma “plateia” de estudantes possa acompanhar as “emissões” dos professores.
No campo de interseção da arquitetura com a educação pouca coisa mudou e Bahia é repleta de experiências nessa área.
De um lado, com a triste proposta de se construir grandes escolas, todas iguaizinhas, replicadas pelo interior do Estado, e ainda por cima com o mesmo nome, antecedido do terrível adjetivo “modelo”. Nada a ver com educação, que precisa mesmo é ir para além dos modelos e caminhar em busca da criação.
De outro lado, tivemos uma rica experiência que não deveria ser esquecida, como a Escola Parque, implantada no bairro da Caixa D’Água por educadores e arquitetos baianos. Idealizada pelo educador Anísio Teixeira em conjunto com o arquiteto Diógenes Rebouças e o engenheiro Hélio Duarte, ali podemos ver, de forma cristalina, uma clara compreensão da importante relação da educação com a arquitetura. Relação essa que nós, da Faculdade de Educação da UFBA, insistimos ser básica para pensarmos a educação no presente e para o futuro.
Tentamos – com sucesso muito pequeno, é bem verdade – uma maior aproximação com a nossa Escola de Arquitetura, para montar um grande projeto para se estudar a relação entre essas duas grandes áreas. Um programa que fosse buscar em Anísio, Diógenes e Hélio inspiração e resgate histórico. Mas que não ficasse só neles. Que fosse também estudar e aprender, por exemplo, com Charles Mackintosh, o arquiteto da Escola de Artes de Glasgow, idealizador de um projeto de escola básica denominado Scotland Street School, hoje belíssimo museu sobre a história da educação na Escócia, onde é possível ver como eram as salas de aula e o funcionamento da escola ao longo dos anos naquele país.
A Escola Parque, pensada por Anísio (ver Revista Muito de 25/04), era um conjunto generoso de espaços livres, que incluía, com uma incrível centralidade, um enorme campo de futebol, rodeado de um teatro a la Teatro Castro Alves, uma magnífica biblioteca a la Brasília, um pavilhão para oficinas, repletos de obras de arte de Jenner Augusto, Carybé, Mario Cravo (aliás, como estão esses painéis, alguém sabe?!) e uma ala administrativa com refeitório, padaria e espaço para professores e alunos. Tudo, absolutamente tudo, imerso numa área verde de frondosas mangueiras que, felizmente, ainda lá estão.
Nesse complexo educacional, dizia Anísio, os filhos dos pobres teriam acesso àquilo que os filhos dos ricos têm nas suas casas. Ali estaria sendo formada uma juventude para fazer diferença.
Aqui, num hoje espremido no tempo e no espaço, nossa juventude é deformada para caber, literalmente, nas grades, curriculares e das salas de aulas. Quebrar estas amarras, na busca de uma formação mais ampla, é algo que demanda ações mais corajosas. E isso, não pode mais ser protelado para amanhã.
*Nelson Pretto – professor da Faculdade de Educação da UFBA – www.pretto.info
(artigo publicado originalmente na editoria de Opinião do jornal A Tarde, de Salvador-BA, em 25.4.2010)

quinta-feira, 22 de abril de 2010

Um centro de convenções no centro histórico

Dimitri Ganzelevitch*
Na década de 90 discordei do espírito que liderou a restauração do Centro Histórico de Salvador. Continuo discordando do aproveitamento leviano que ainda vitimiza este pedaço de cultura e história, ora confundido com um banal Wet’n Wild, ora palco de folclorizações para turismo de massa.
Não me conformo com as “baianas de receptivo”, suas roupas e torços, verdadeira traição à elegância das vestimentas tradicionais. Você conhece cariocas, sevilhanas ou cusquenhas de receptivo? Não me conformo com um monte de erros de como se deve usar este bairro.
Há uns dois anos mandei pela internet uma sugestão de centro de convenções no Pelourinho. Receptividade excelente. De que se trata? Simplesmente de mapear e usar as possibilidades – e são numerosas – para atrair um público variado de profissionais oriundos de todas as partes do mundo.
Temos salas de reunião e auditórios suficientes, hotéis e pousadas para todos os bolsos, restaurantes, bares, sorveterias e teatros para o laser. E mais: não será preciso construir um monstrengo de ferro e concreto para abrigar seminários e congressos. Por que concentrar todos os serviços no mesmo espaço?
Em 1999, fui convidado pela Unesco a um congresso sobre Turismo Cultural em Puebla, no México, cidade tombada como patrimônio mundial. O centro de convenções fica a cinco minutos a pé do Zócalo, coração da cidade. Adaptaram, com desmedido talento, um conjunto de antigas usinas, respeitando os edifícios originais e até as ruínas, levando os participantes a andar de uma sala a outra por jardins, áreas descobertas e velhos depósitos. Passeios para ninguém criticar ou achar penoso. Muito pelo contrário, todos apreciam o aproveitamento da memória material e cultural da região.
Para mudar o perfil do mau uso de nosso Centro Histórico, basta fazer um levantamento exaustivo de suas possibilidades. Senac, Teixeira Leal, Faculdade de Medicina, Ipac (Instituto do Patrimônio Artístico Cultural da Bahia), igrejas…
E assim poderia também se programar a reabilitação dos cinemas Excelsior, Jandaia e Pax, espaços ideais para grandes audiências e exposições. Não, instrumentos de trabalho e bons operários não faltam. O que falta são bons empreiteiros.
* Francês nascido no Marrocos e radicado na Bahia desde 1975. Dimitri fundou a Associação Viva Salvador, que desenvolve ações de educação para a arte. Colecionador de peças de arte popular, ele transformou sua residência, situada no Centro Histórico de Salvador, na Casa Museu Solar Santo Antônio, que reúne seu acervo particular.

terça-feira, 20 de abril de 2010

O trânsito e o uso do solo urbano

Hernani Santos*
As funções básicas do homem moderno, expressas através da habitação, trabalho e o lazer, que crescem em incontida explosão demográfica, provocando um avanço continuado por novos espaços urbanos, tornaram-se cada dia mais distantes, se elasteceram, e por conta dessa nova configuração passaram a exigir da circulação – antes, mero fator integrante – uma posição de dependência quase vital, situando-a dentro do sistema, numa condição de superfunção urbana. Em virtude desse fenômeno, grandes e surpreendentes transformações, notadamente nos setores do desenvolvimento urbano e transportes de massa têm sido observadas nas principais cidades brasileiras, modificando de maneira expressiva as suas configurações físicas, o comportamento do uso do solo, e até mesmo a qualidade de vida dos seus habitantes.
Até o início da década de 50, o problema dos movimentos urbanos era geralmente encarado em termos de volume de tráfego, e o método largamente aceito para avaliar a demanda futura de movimentos em uma determinada via era o de examinar ou contar o fluxo existente e extrapolá-lo para alguma data futura, aplicando um fator de crescimento apropriado. Em 1953 surgiu nova filosofia, tendo como base a influência do uso do solo na formação dos movimentos viários.
Dentro dessa premissa e a consistência adquirida ao longo do tempo, configurou-se em definitivo que toda essa interação, para que venha propiciar as melhores condições possíveis, seja feita através de processo de planejamento contínuo e integrado, do uso do solo e dos transportes.
Salvador, diante da sua história, e em período recente, lamentavelmente, jamais conviveu com o mínimo processo de planejamento voltado para o trânsito, o transporte e o uso do solo. Em fins da década de 60, quando todas as atenções, interesses e fatos convergiam e aconteciam no seu centro tradicional, mais precisamente na Rua Chile, e ainda quando Itapuã era um aprazível e maravilhoso local de veraneio, eis que de repente surgem as avenidas de vale que provocam extraordinária expansão da cidade no sentido norte. Subsequentemente tivemos a construção da Av. Paralela, do Centro Administrativo da Bahia e no terreno onde ia ser erguido o estádio do Bahia, diante e na expectativa de expressivo negócio, foi construido o Shopping Center Iguatemi.
Salvador passou da condição de cidade para metrópole. De forma continuada, surgiram o sistema de viadutos do Acesso Norte, a Estação da Lapa, a segunda pista da Av. Paralela, outros viadutos e as famosas passarelas. Somente no início da década de 80, com a criação da Secretaria Municipal dos Transportes, tornou-se possível imaginar a possibilidade de se poder realizar um trabalho de planejamento mais próximo do ideal admitido e preconizado para a época. Isso porque a prefeitura, já responsável pelo planejamento urbano e gerenciamento dos transportes, passou também a administrar o trânsito.
No entanto, para infelicidade da nossa cidade, em dois períodos administrativos Salvador foi governada por cerca de nove prefeitos.
Pelas condições efêmeras de suas presenças, nada foi feito. As administrações subsequentes não encontraram nada a continuar e pouco puderam fazer, agravado pelo fato de que vieram atreladas e condicionadas à política e suas práticas nocivas, instalando-se dentro do sistema.
Atualmente, além da implantação de novos shoppings, temos em processo de construção o questionável metrô, que agrediu de forma violenta toda a paisagem no trecho por onde deve passar, sobretudo nas proximidades da Fonte Nova, além de Via Portuária, também bastante questionada. Num processo continuado, o que se vê hoje na Av. Paralela é a fixação de expressivos equipamentos geradores de tráfego, além da presença fortíssima da especulação imobiliária que provocam de forma inevitável, grandes congestionamentos e que, mantendo-se a mesma continuada omissa e descontrolada política, certamente viremos a ter no futuro, maiores e mais preocupantes problemas.
Por fim, sem nenhum controle do uso do solo nessas novas áreas de expansão como legado mais expressivo, surgiram e se fixaram grandes e expressivas invasões, favelas: Malvinas e Saramandaia.
*Arquiteto e engenheiro de transportes

quinta-feira, 15 de abril de 2010

Qual a solução para as enchentes?

Enchente em Salvador
Sérgio Teperman*
Enchentes são acontecimentos inevitáveis. Por mais que a humanidade se esforce, a natureza pode até ser contrariada, mas acaba triunfando. A história também, a menos de Stalin e de Tarso Genro, não pode ser alterada. E ela relata que, ao longo dos séculos, as cidades se formaram no cruzamento de eixos comerciais, em torno de colinas fortificadas e principalmente ao lado de rios, ao mesmo tempo fonte de água e lugar para os dejetos, mas, também, grandes eixos de transporte.
As cidades, portanto, estão lá, não dá para mudá-las de lugar nem mudar sua principal conformação urbanística. Tampouco adianta lembrar que as antigas várzeas não eram ocupadas e que ali os ingleses jogavam "football". Muito embora algumas cidades tenham afastado as construções das margens dos rios criando parques, o ganho paisagístico e de imagem de ter um edifício ao lado do rio, com a visão da água e com as perspectivas abertas que as larguras dos rios oferecem torna essa posição imbatível. Reclamar que não se devem fazer avenidas nas margens e que as deveriam transformar em parques, depois que as cidades se estruturaram sobre essas diretrizes, é saudosismo do futuro. Ou mesmo argumentar que não se devem retificar rios, depois que todas as cidades do mundo já usaram essa solução, é o mesmo que dizer que não se devem fazer aglomerações junto aos terrenos fertilíssimos dos vulcões, ou que uma dezena de países deveria sair do círculo de fogo (e água) do Pacífico.
Há casos em que um país é tão inviável, que a solução seria mesmo fechar eternamente para balanço, mandar a população embora e apagar a luz, como no Haiti ou Bangladesh.
Mas há também o caso oposto, o da extrema engenhosidade humana para, mesmo morando em condições previsivelmente catastróficas, ultrapassá-las e se tornar um dos países de maior qualidade de vida e riqueza. É o caso dos Países Baixos. À exceção da cidade de Maastricht, na fronteira da Bélgica e da Alemanha, que atinge a altitude de 300 metros em uma colina fora de lugar, a maior parte dos Países Baixos está abaixo do nível do mar e aí foi criada uma das grandes civilizações da história. Esse país inteiro (pequeno é verdade) possui um planejamento territorial elaborado no meio do século passado, fielmente obedecido, governante após governante. E assim se criaram diques, estradas, portos e várias cidades em "terrenos" que eram água. E são tão capazes de admitir erros, que agora estão relocando cidades para permitir que não o mar (o que seria uma catástrofe), mas que os rios Reno e Maas, em seu delta, extravasem, ocupando áreas que eram cidades. Perceberam que o custo econômico e humano sairia mais barato.
Uma vez perguntei a um holandês qual era o ponto mais alto do país e me respondeu que ficava no Norte, a 4 metros de "altitude". Espantei-me mais ao ser informado de que um país tão pequeno tinha até Norte!
Uma das obras que protege a entrada do canal que leva a Rotterdam, o maior porto do mundo, tem um portão metálico de duas folhas de abrir com 2,5 km de comprimento e comportas que deixam passar o nível de maré alta conveniente ao porto, mas prevenindo inundações.
Naturalmente há também os casos opostos em que a Bushice (ou burrice) do presidente americano deixou praticamente à morte um patrimônio da humanidade, o berço do jazz, New Orleans. A inteligência pode ser incomensurável, mas como se dizia nos tempos da nossa ditadura, a burrice Medí-ci. Mas nenhum local, por mais famoso, escapa de inundações. Falando em Médicis, a cidade de Firenze sofreu em 1966 uma enchente que devastou em sua área central totalmente plana museus, palácios e igrejas, com um "Tsunami" de 6 metros de altura. Aí se percebeu, talvez pela primeira vez, que barragens destinadas a fornecer energia elétrica são em geral totalmente opostas como finalidade, para controle hidráulico. São incompatíveis.
As inundações previsíveis que atingem todos os verões a cidade de São Paulo, os desabamentos de terra nos contrafortes da Serra do Mar, as repetidas catástrofes no vale do Itajaí e tantas outras são inevitáveis.
O que é impensável, inconcebível, é que nada seja feito, previsto, seja como solução viária e urbanística alternativa, ou que, no caso de São Paulo, não seja realmente prevenida e severamente reprimida a atitude vergonhosa da população, de atirar tudo aos rios, colaborando decisivamente para o agravamento das causas das enchentes.
Temos em São Paulo o hábito de ver as enchentes pela impossibilidade de nos locomover, mas o dano é infinitamente maior. Inundações fazem parte da vida e da morte, a diferença está em prever soluções de proteção, alternativas viárias e principalmente planejamento urbanístico e territorial adequado, como sempre. Os governantes dos municípios em torno da Grande São Paulo, por exemplo, recusaram-se a se associar à Companhia de Saneamento Básico do Estado, que faria estações de tratamento de esgoto nos seus municípios, porque preferem gastar dinheiro com fontes luminosas a pagar as tarifas da companhia.
A solução, a meu ver, é extremamente simples: construir um tampão de concreto nos córregos dos municípios vizinhos a São Paulo, na divisa entre os dois municípios e cada um cuida dos seus problemas.
Com a mente curta de atitude corrupta, os nossos políticos só pensam em seus interesses pessoais e de seus companheiros. Quando muito constróem pontes em locais desnecessários e lembram, sempre adaptando o título, Paul Simon nas suas "water under troubled bridges".
* Arquiteto

segunda-feira, 12 de abril de 2010

Agressão a Terreiros

EMILIANO JOSÉ*
Num momento da história, tragédia. Noutro, farsa. Lembro-me de Marx, justo dele, um materialista convicto, quando vejo movimentos da Prefeitura de Salvador contra as religiões de matriz africana. Por que esses movimentos, por que essa má vontade com o candomblé? Quais as motivações? Poderia dizer que é como se a atual administração ouvisse ecos do passado escravocrata ou, até mesmo, do século XX, quando a religião dos negros ainda tinha que pedir licença policial para realizar seus ritos.
Fico aqui a matutar sobre como reagiram os religiosos do Ilê Odô Ogê, terreiro também conhecido como Pilão de Prata, ao receberem um jovem fiscal da prefeitura, no dia 18 de março deste ano. Constrangido, notificava a casa religiosa pelo barulho provocado pelos “instrumentos de percussão”, que era como ele se referia aos atabaques. A notificação dizia que a “emissão sonora gerada em atividades não residenciais” somente poderia ocorrer se autorizada pela prefeitura. Incrível, mas verdadeiro. Penso na lei, na isonomia, e constato a óbvia discriminação. Com essa atitude, agride-se notoriamente o dispositivo constitucional da liberdade de culto.
Ao fiscal, explicou-se que a roça do Ilê Odô Ogê nascera lá pelos idos de 1963, que o terreiro fora tombado em 2004. Tratava-se de um templo já tradicional. Ao jovem fiscal foram mostrados o Museu e a Biblioteca do terreiro. Não havia diálogo, não se admitia conversa. Ele tinha que lavrar o auto. Por que isso só ocorre apenas com as religiões de matriz africana? Por que essa perseguição à religião dos negros, assumidamente religião de negros? Por que essa dificuldade em lidar com a diversidade religiosa? Por que essa intolerância que não cessa? Por que não se aplica o princípio de que toda religião tem que ser igualmente respeitada? A prefeitura – ou se quisermos o Estado, em sentido amplo – tem obrigação de ser laica e na sua laicidade fazer respeitar toda e qualquer religião.
Provavelmente, embora seja quase inacreditável, haja quem, na prefeitura, ainda queira obrigar os terreiros de candomblé a tirar licença para cumprir os seus rituais, procedimento que foi abolido na Bahia em 1975. Tardiamente, mas abolido. A atitude do jovem fiscal evidencia que o ovo da serpente da discriminação, do preconceito ainda tem acolhimento, e não tão disfarçadamente. O espectro da Casa Grande continua a nos rondar. Eu me pergunto se o prefeito João Henrique tem conhecimento disso. Seguramente, o culpado não pode ser encontrado no jovem fiscal. Ele apenas obedece ordens.
A prefeitura vem agindo de modo rotineiramente perverso com as religiões de matriz africana. Falar apenas em erros denotaria ingenuidade. São vários episódios. Lembro-me de outro, recente. Em 2008, a agressão atingiu o Ilê Axé Iyá Nassô Oká, o célebre terreiro da Casa Branca do Engenho Velho, o mais antigo templo afro-brasileiro em funcionamento, cuja fundação remonta ao início do século XIX, tido como uma espécie de “mãe de todas as casas” de santo do Brasil. É uma casa respeitadíssima. O então governador Waldir Pires, em 1987, declarou de utilidade pública para fins de desapropriação o posto de gasolina que ocupava área da Casa Branca, e aí surgiu então a Praça de Oxum, cujo projeto de urbanização foi de Oscar Niemeyer.
Pois bem, em 2008 a prefeitura pediu o arresto do imóvel onde se encontra o terreiro da Casa Branca, depois de autuar uma sacerdotisa falecida há 80 anos por uma suposta dívida relativa ao IPTU. Seria cômico, não fosse trágico. Claro que um terreiro como a Casa Branca, visitado por governadores e presidentes, respeitado por outros credos não pode ser agredido assim impunemente, e a prefeitura teve que recuar diante das reações. Se, no entanto, fazem isso com a Casa Branca, imaginemos o que continuarão a fazer com os demais terreiros, muitos deles pequenos, sem a notoriedade do Ilê Axé Iyá Nassô Oká. Creio que se impõe a todos os que defendem o respeito à diversidade religiosa, que se impeça o crescimento dessa atitude odiosa por parte da administração municipal em relação ao candomblé. Viva a liberdade religiosa.
*Emiliano José – Jornalista, escritor. Site:
www.emilianojose.com.br

quinta-feira, 1 de abril de 2010

A Utopia Urbana de Salvador

Lourenço Mueller*
Utopia é sinônimo de projeto irrealizável, quase um sonho. Não obstante, a esfera do sonho, da fantasia, antecipa o real; não há realização construída se esta concretude não for em algum momento sonhada, imaginada ou projetada.
Por isso gostei quando ouvi um representante do governo dizer que precisamos TER a nossa utopia urbana. Talvez tenha sido uma afirmação inócua mas toda realidade ocupacional desta metrópole leva `a conclusão de que Salvador não pode mais resolver os seus problemas urbanos dentro dos limites territoriais do município, e deveria lançar mão de terrenos exteriores a este, promover urgentemente um plano diretor metropolitano e adaptar as sedes dos municípios limítrofes ao crescimento acelerado da sede metropolitana.
Seguindo regras universais do urbanismo, empregos devem estar localizados próximos às moradias, pois assim podem-se, digamos todos em coro, minimizar custos e tempo de deslocamento.
Repensando a Região Metropolitana de Salvador (RMS), alguns municípios como Camaçari, Lauro de Freitas, Simões Filho e Candeias emergem como geradores de emprego e renda, seja pelas indústrias instaladas, seja pelo setor terciário já desenvolvido com destaque para a localização de empreendimentos de hotelaria na Estrada do Coco e na Linha Verde.
Estes municípios estão na área de influencia da via CIA-Aeroporto, que interliga a baía ao litoral leste. Perpendicular a esta, estudada pela urbanista Maria Elisa Costa, filha de Lúcio, uma nova via denominada “Linha Viva” atravessaria Salvador longitudinalmente, configurando uma espécie de “T”. As duas vias têm natural vocação para o desenvolvimento de atividades urbanas e para o assentamento populacional, podendo abrigar nas suas margens a expansão demográfica metropolitana por muitos anos… Se bem projetadas.
A oportunidade de se agregar sustentabilidade a esse sistema é agora, ao promover a organização de variáveis físicas, econômico-sociais e político-institucionais.
Experiências históricas na direção das utopias urbanas, de Ebenezer Howard a Le Corbusier, não favorecem muito a condição da utopia aplicada ao planejamento urbano. Mas Brasília sim. Há 50 anos, num país que não dominava tecnologias, sonhou-se uma cidade a partir de um sinal gráfico no dizer do célebre urbanista e ela reúne muitas das utopias anteriores.
Ao mesmo tempo em que se afirmou a arquitetura personalíssima de Niemeyer perdeu-se, no plano diretor de Brasília, a oportunidade única de inaugurar e incentivar um modelo de cidade auto-sustentável no país inteiro. Mas não poderiam adivinhar que o automóvel, inquestionável herói da década de 60, quando o Brasil começou a produzi-lo, se transformaria no vilão do século 21 e se tornasse capaz de desestruturar qualquer plano diretor bem intencionado. Oscar e Lúcio estão perdoados.
Poderíamos, agora, aproveitar a oportunidade da “Linha Viva” e da CIA-Aeroporto para desenvolver a nossa utopia urbana : a partir de um modelo paradigmático de tendências mundiais em que é valorizada a mobilidade assim como a ênfase ao transporte publico não poluente, o privilegio do pedestre e do ciclista sobre os automóveis e legislando o solo como uma propriedade estatal, incorporando ideias de urbanistas do passado.
Precisamos dar forma a essas intenções e redesenhar as margens desse T: dimensionar um programa, seguir critérios onde a densidade liquida não exceda 500 habitantes por hectare com uma densidade bruta de 50 mil habitantes por km2 na zona intensamente urbanizada ao longo da faixa das vias onde os terrenos, desapropriados, só poderiam voltar a ser ocupados mediante concessão de uso pelos poderes públicos.
A ocupação obedeceria a uma configuração de zoneamento adaptada a condicionamentos legíferos e geomorfológicos existentes com setores de densidade maior nas centralidades e rarefeita nos extremos, passível de ser atravessada por pedestres em menos de uma hora nos oito rumos da rosa-dos-ventos e permanecendo com os pavimentos térreos vazados.
*Lourenço Mueller – Arquiteto e urbanista