domingo, 27 de julho de 2014

Perguntas frequentes

Paulo Ormindo de Azevedo*
O manual do usuário de qualquer produto novo apresenta três seções: para que serve o produto? como funciona? e perguntas frequentes. Na falta das duas primeiras, me antecipo respondendo algumas perguntas frequentes. A ponte Salvador/Itaparica que parecia morta foi relançada com o anuncio do governador de licitá-la antes de deixar o governo e novas contratações de pareceres e projetos para justificar uma decisão tomada em reunião social sem qualquer estudo prévio.
1º - A ponte faz parte do sistema viário de onde? Uma ligação rodoviária não pode competir com uma ferrovia como a Fiol na exportação de minérios e grãos do oeste, mesmo porque o porto de Salvador não opera graneis. Não serve também ao litoral sul, quando está sendo construído o Porto Sul e um novo aeroporto em Ilhéus. Atrações como Itacaré e Barra Grande são mais acessíveis por Ilhéus.
2º - A ponte substituirá a hidrovia? – Os moradores de Niterói sabem que é melhor pegar a barca e saltar no centro do Rio que enfrentar filas, engarrafamentos e pedágio e não poder estacionar no Rio. Os ferries vão continuar transformados em barcas de passageiros.
3º - A ponte será um escape ou ladrão para Salvador? Quem atrai mais: Salvador ou Nazaré? A ponte irá apenas congestionar Salvador e a Estrada do Côco trazendo os veículos da BR-101 e BR-116 para o litoral norte onde estão o aeroporto, praias, Copec, Ford e acesso ao Nordeste. Quem perde com isso é S. Antonio de Jesus, Salvador e Feira de Santana. A ponte irá ainda duplicar a RMS aumentando sua função de dormitório e prestador de serviços de educação, saúde, abastecimento e lazer para trabalhadores que enriquecem outros municípios. A solução tem que ser ferroviária, pois a ponte será tão engarrafada quanto a Paralela.
4º - Itaparica será uma expansão de Salvador? A classe média quer centralidade, ficar junto do emprego, dos colégios e universidades, dos hospitais, do teatro e dos cinemas. Também não tem lógica criar conjuntos habitacionais para operários que irão trabalhar em Candeias, Simões Filho e Camaçari, sujeitos a esperar horas para a passagem de plataformas de petróleo e guindastes. A Ilha será apenas um acampamento rodoviário como São Gonçalo junto a Niterói.
5º - A ponte beneficiará a RMS e o Recôncavo? Saltando de Salvador para Jaguaripe a ponte irá marginalizar ainda mais o Recôncavo com seu enorme potencial turístico e náutico. A baía também perde com um gargalo na sua boca dificultando o acesso a seus quatro portos internos: Aratu, Temadre, Regaseificação e Estaleiros de S. Roque.
6º - Qual a importância econômica da ponte? Se não serve ao oeste. ao sul ou a RMS o que ganha o estado com esta ponte rodo-eleitoral? Não sabemos responder. Mas “Pergunte ao José”, saudoso programa radiofônico baiano.
7º - Quanto pagaremos pela ponte? Todos sabem que uma ponte não se paga pelo pedágio. A solução apontada de leilões de CEPACs não está funcionando nem no Porto Maravilha, no centro do Rio. Sem esquema financeiro assegurado, ela será iniciada e parada e as empreiteiras irão receber durante anos por terem seu contrato suspenso como aconteceu com o metrô perna-de-pau de Salvador. Mesmo que a União banque uma parte, teremos que pagar uma divida monstruosa, o equivalente a quatro superportos tipo Mariel em Cuba, ou três refinarias de Pasadena, ou ainda as doze arenas da Copa, enquanto o sertanejo, a lavoura e o gado morrem de sede no semiárido. 
8º Não haveria uma alternativa mais interessante? Sim, seria a construção da Envolvente Rodo-Ferroviária de Kerimorê ou BTS, ligada ao novo porto de Salinas da Margarida, projeto que custaria um terço da ponte e teria efeitos socioeconômicos e culturais muito maiores. Ela alavancaria o desenvolvimento do Estado e da RMS e integraria todo o Recôncavo com um trem rápido metropolitano fazendo a ligação Salvador-Feira com variante para São Roque/Itaparica. E ainda reduziria para um terço o acesso de carros para a ilha e criaria milhares de empregos perenes.
*Paulo Ormindo de Azevede é arquiteto e professor catedrático da UFBA

sexta-feira, 25 de julho de 2014

Norberto Odebrecht - formador de líderes


 Salvador, no começo dos anos 40, exibia claramente as marcas deixadas por seu passado colonial. Precisava de quase tudo – de saneamento a recreação, de moradias a abastecimento. É nessa terra carente de realizações que vai despontar a trajetória empresarial de Norberto Odebrecht. Era jovem e havia recebido uma educação especial. Trazia consigo sólidos princípios que se tornariam a chave de seu futuro. “A riqueza moral é a base da riqueza material. A riqueza sem ética não é riqueza sadia”. Os valores transmitidos pelos pais ganharam força com a presença do pastor Ottto Arnold. Vindo da Alemanha, ele chegou a Salvador quando Norberto tinha seis anos, para cuidar da colônia luterana da cidade.
O pastor Arnold se tornou preceptor do lar dos Odebrechts. Foi por meio dele que Norberto compreendeu a expressão “riqueza efêmera”. O que seria isso? O pastor lhe explicou. Faziam longos passeios a pé conversavam muito nos poucos momentos em que o menino tinha contato com o mundo externo. “Não existe riqueza sem saúde, ética, trabalho e produtividade”, lembrava o pastor. A riqueza material se tornaria insalubre se não fosse apoiada em firme conduta ética. Daí a “riqueza efêmera”, condenada a dissipar-se.

Emílio Odebrecht e o filho também saíam para caçar. Eram outras lições de vida, quando cultivavam a arte da paciência esperando pelo instante único e irreproduzível em que a presa deveria ser abatida. Faziam parte dessas aulas conceitos como o da decisão firme e segura; moderação no número de animais a abater; transporte, limpeza e partilha da caça com os companheiros e a família; por último, a limpeza das armas e sua guarda em local seguro.

Aos 15 anos, quando os Odebrechts se mudaram para a Ladeira dos Aflitos, Norberto teve acesso ao mundo do trabalho do pai. A nova casa abrigava também as dependências de apoio da empresa. Depois da escola era incentivado a conviver com outro tipo de professor, os mestres- de-obras que lhe deram as primeiras lições do ofício.

Aprendeu, de início, a ser pedreiro, e em vez de mesada passou a receber salário. Depois foi serralheiro, armador, chefe de almoxarifado, responsável pelo transporte. Ensinaram-lhe como cortar ferro, dobrá-lo e usá-lo na construção de armaduras para colunas, vigas e lajes; a revestir paredes com argamassa, a entalhar madeira, operar uma forja. A educação doméstica dos Odebrechts, seguindo a tradição familiar germânica, colocava o trabalho em alta conta, como o único caminho para a riqueza merecida. Assim, desde menino, Norberto assimilou valores que confluíram para que viesse a assumir uma atitude fundamental: a de procurar sempre servir, e não ser servido.

Enquanto se exercitava nos diversos ofícios técnicos, Norberto ia assimilando as primeira lições práticas de administração e gerência. “Aprendi que o tempo é o único recurso irrecuperável, e que não temos o direito de desperdiçar o nosso e o dos demais”, diria ele anos depois. Aprendeu muito mais. Que, para coordenar com sucesso as pessoas num trabalho, é fundamental conhecer as tecnologias que elas utilizam. Que o trabalho exige planejamento prévio e que, para avaliá-lo, contam muito pouco intenções, esforço, habilidades e técnicas. Que o único e decisivo critério é o resultado obtido dentro de princípios éticos.

Aos 18 anos, seguindo uma trajetória familiar de três gerações, Norberto entrou na Escola Politécnica de Salvador. Parecia ter pela frente uma juventude tranqüila e uma carreira sem sobressaltos, mas já no terceiro ano foi requisitado pelo mundo adulto, quando a empresa do pai começava sua fase de dificuldades.

Norberto recebeu a Emílio Odebrecht & Cia. com seu passivo mas também com seu ativo: os mestres treinados pelo pai na escola dos canteiros de obras, que livremente optaram por confiar no jovem estudante. Seu objetivo era honrar os contratos e dar continuidade aos negócios. A solução veio através de três pactos.
Um pacto político foi estabelecido com o Banco da Bahia, seu principal credor, que se transformou em aliado na conquista de novos clientes. Um pacto econômico garantiu aos clientes obras de qualidade, em menores prazos e a menores custos. E um pacto social selou a união de empresários e trabalhadores. “Só havia uma maneira de liderar aqueles homens de caráter, disciplina no trabalho e com amplo domínio da profissão”, lembra Norberto. “Incentivá-los, tornando-os mais produtivos do que poderiam ser individualmente, criando condições para a recompensa.”
Da teoria à prática, foram implementadas as idéias da descentralização, da delegação planejada, da parceria e da partilha de resultados. Norberto percebia que o mundo dos negócios se assenta sobre um tripé formado pelo relacionamento entre o dono do capital, o empresário e sua equipe e o cliente. Assim, assumiu o encargo de manter o relacionamento com os clientes, fornecedores e banqueiros, com o objetivo de conquistar obras. Cada mestre tornou-se responsável por uma obra (cliente), com toda a liberdade para formar sua equipe e chegar aos resultados previamente estabelecidos, que seriam compartilhados entre o mestre e sua equipe e o empresário. Por último, o empresário contribuía para cada obra com idéias e novos equipamentos, enquanto o mestre entrava com sua criatividade para satisfazer o cliente com a redução de prazos e custos. E assim foi feito. Em 1948 todas as dívidas estariam pagas.
Antes, em 1944, Norberto Odebrecht abriu sua firma individual. A abertura da nova empresa era uma exigência para a continuidade dos negócios, tanto por parte do Banco da Bahia, quanto pelas dificuldades de reestruturação da Emílio Odebrecht & Cia. Assim foi feita a transição da liderança e Norberto começou a atuar plenamente como empresário.
A solução para sair das dificuldades veio de três pactos: o político com os credores, o econômico com os clientes e o social com os trabalhadores 
O que ele pregava, um sadio relacionamento de interdependência, começou a ser praticado no governo de Otávio Mangabeira (1947-1951), marcado por um surto desenvolvimentista inédito no Estado, em que se destacaram a construção do Fórum Rui Barbosa, do Hotel da Bahia e de muitos outros empreendimentos, vários deles com a participação da Construtora Norberto Odebrecht.
Embora com um amplo mercado aberto à sua frente, havia problemas de sobra no caminho da nova empresa. Sem capital para comprar os equipamentos modernos que a guerra na Europa ajudara a desenvolver, tinha ainda de conquistar seu próprio espaço num mercado limitado e ocupado em boa parte por empresas estrangeiras. Norberto lembra que só havia uma alternativa: “Trabalhar muito mais do que quem não estava na nossa situação”. E com um incentivo principal: “muita criatividade”.
Havia uma idéia, simples como um ovo de Colombo, que até hoje está na base da filosofia da Organização Odebrecht: identificar, integrar e desenvolver jovens com talento e disposição para o empresariamento. Alunos dos dois últimos anos da Escola Politécnica, que podiam trabalhar sem abandonar os estudos, passaram a integrar a empresa. Os jovens aprendiam com os mestres, que eram responsáveis pela formação do futuro líder. Para Norberto Odebrecht esta é a maneira de realizar o potencial do Ser Humano, tornando produtivas suas forças. “Um líder tem a responsabilidade de motivar, estimular, desafiar e criar condições para partilhar com seus colaboradores os resultados que eles ajudaram a construir.”
Além da filosofia empresarial, Norberto confirmou a tradição dos Odebrechts: a nova empresa caracterizava-se também por revolucionar os métodos construtivos da época. O esquema de trabalho era completamente diferente do praticado naquele tempo. Por exemplo: até então, levantava-se toda a estrutura de concreto e só se começava a fazer as paredes quando a última laje estava pronta, passando-se então para o reboco, esquadrias, instalações hidráulicas e elétricas e esgoto. Contrariando essas regras, a construtora começou a fazer o trabalho praticamente de uma só vez. Quando a primeira laje estava pronta e o pessoal do concreto partia para a segunda, as paredes daquele mesmo pavimento iam sendo erguidas. “Depois era só descer fechando as portas”, lembra Mestre Bonifácio, um dos remanescentes da equipe de Emílio, com humor.
Logo no início de sua vida empresarial Norberto descobriu que um líder não pode prescindir de quem o substitua. Após uma enfermidade que o deixou 47 dias acamado, em total isolamento, percebeu que a tranqüilidade e a satisfação do Cliente dependiam de fatores fora do domínio do Empresário, como era o caso de sua saúde. Convidou, então, dois jovens estudantes da Escola Politécnica da Bahia – Francisco Valladares e Otto Schaeppi – para o apoiarem na estruturação de uma nova empresa, da qual se tornaram sócios. Surgia, assim, em 1945, a Norberto Odebrecht Construtora Ltda. 
O edifício Belo Horizonte, construído para a Imobiliária Correa Ribeiro, é o marco principal desse período. Foi levantado em nove meses, quando o prazo normal para a época era de três anos. Havia uma cláusula no contrato que não admitia motivo, de qualquer ordem, para que o prédio não fosse feito em nove meses.
Com planejamento e maior produtividade, os resultados eram custos e prazos menores. Logo, vieram as obras que fortaleceram a credibilidade da construtora, que no fim da década de 40 já era uma das mais importantes da Bahia: o Círculo Operário (1946), com 5 mil m2 com lojas, restaurantes e cinema, o Estaleiro Fluvial da Ilha do Fogo (1947), entre as cidades de Juazeiro e Petrolina, no Rio São Francisco, com capacidade para navios de até 1.200 t, o cais e ponte de atracação em Canavieiras (1948). E quatro outros portos, um deles em Ituberá (1949). 
A região de Ituberá, rica em recursos naturais, tinha a cachoeira de Pancada Grande, com 63 m de altura, no Rio Serinhaém, cercada de densa mata tropical. Era um convite à diversificação dos negócios, como geração de energia e manejo florestal. Norberto Odebrecht não dominava essas atividades, mas vislumbrou o alcance social de investimentos produtivos na região e chegou a atrair para lá grupos econômicos fortes, como Firestone (que plantaria seringueiras para fazer seus pneus) e Matarazzo (que plantaria dendezeiros para fazer óleo).
A S.A. Ituberá Comércio e Indústria – Saici, empresa criada por Norberto, atendia aos anseios de prefeitos e vereadores de cinco municípios da região, que pediram ao governo do Estado a construção de 62 km de rodovias para interligá-los. Confiavam nas “condições privilegiadas da região”, como escreveram ao governador Luiz Régis Pacheco Pereira em 1952. Contando com o apoio das autoridades locais, Norberto instalou em pouco tempo uma hidrelétrica, uma serraria e uma autoclave para transformar a madeira extraída, de baixa qualidade, em folhas de compensado imunizadas, de difícil combustão, a preço competitivo.
A delegação plena e a descentralização das decisões permitiam à empresa tocar um número muito maior de obras que a concorrência
Foi construída uma vila residencial, abriu-se um pequeno aeroporto e negociou-se com a TAS – Transportes Aéreos Salvador o pouso diário de dois monomotores. Instalou-se uma fábrica de compensados de envergadura e foram importados enormes caminhões para trazer madeiras nobres de pontos distantes cerca de 250 km dali. O transporte revelou-se antieconômico. Abriu-se mais uma atividade, a de laminados, com uma moderna máquina importada da Alemanha. Circulava muito dinheiro, os aviões voavam lotados, o porto de Ituberá, reformado, recebia navios-tanques de até 1.500 t. Apesar disso, a saúde da Saici era ruim. Foi fechada em 1954 e Norberto aprendeu mais um pouco. “À medida que os negócios da Saici multiplicavam-se com crescente rapidez”, escreveu ele mais tarde, “mais rápido ainda aumentava a minha ignorância acerca deles, impedindo-me, na prática, de liderar quem quer que fosse.”
Segundo ele, “a lógica ensina que, se as premissas são erradas, o raciocínio pode ser impecável, mas as conclusões serão necessariamente erradas”. Em lugar do “único” e “correto” começo da tarefa empresarial, que consiste na identificação prévia de um “cliente que precisa ser servido e satisfeito”, ele teria partido dos “processos” e das “coisas”. Confundiu crescimento com inchamento, aumentando o número de empregados e administradores que formavam uma massa de seres humanos sem liderança, já que ele não dominava de fato a empresa. Por último, ele afirma haver errado por supor ser possível tornar rentáveis negócios que não o eram desde o princípio.
A desativação da Saici gerou uma das maiores crises da história da Odebrecht, mas deixou o germe da diversificação e a lição de como agir no futuro. Além disso, os contratos não paravam de chegar, com obras de todos os tipos. Salvador se transformara, na virada da década de 40, num intenso canteiro de obras. A capital conquistava vales, rasgava avenidas e abria estradas à beira de suas praias. As instalações hidrelétricas da Companhia Valença Industrial, viadutos da Avenida Centenário, o edifício do Ministério da Fazenda e a estação de passageiros do aeroporto de Salvador, terminada em menos de um ano, são algumas das obras significativas realizadas pela Odebrecht neste período.
As grandes inovações propostas pela Construtora Norberto Odebrecht exigiram uma mudança radical no sistema de trabalho tradicionalmente praticado no setor. Norberto não hesitou em deixar sob a responsabilidade dos próprios mestres-de-obras tarefas como pedidos, compras e admissão de pessoal, em geral entregues aos escritórios centrais das construtoras. Era uma forma de motivar as pessoas e estimular sua criatividade. Havia um planejamento global capaz de acelerar a execução de projetos e uma sadia disputa entre equipes para ver qual era a mais produtiva.
A delegação plena e a descentralização das decisões era o que permitia à empresa tocar um número muito maior de obras que a concorrência. Dependendo do acordo prévio, a autonomia do encarregado da obra era total, e este, ainda hoje, é um dos princípios preservados e aperfeiçoados em todas as empresas da Odebrecht. Isto permite o relacionamento direto com os clientes, o que proporciona um conhecimento mais completo de suas necessidades e torna possível servi-los melhor.
Os primeiros anos de atuação da Construtora no mercado baiano mostraram transformações substanciais nas relações de trabalho da época e que continuaram a ser praticadas nas décadas seguintes. Há 60 anos, quando quase nada se falava sobre participação nos lucros, os Integrantes da Construtora Norberto Odebrecht eram sócios do líder da empresa. Tinham a produtividade estimulada por meio de recompensa financeira e repartiam os resultados alcançados em cada obra. Esta e outras práticas foram sistematizadas por Norberto Odebrecht na década de 70 na Tecnologia Empresarial Odebrecht.
Para Norberto Odebrecht, falecido no dia 18 de julho, a empresa para garantir a perpetuidade, necessitava desenvolver novos lideres pois serão estes os responsáveis por levar a organização para as próximas gerações. Na opinião de Odebrecht, a atuação do líder na condução do seu negócio pode ser resumida em três pontos básicos: coordenação das ações, integração dos resultados e educação dos seus liderados.
Crescer e se perpetuar era o lema adotado por Norberto Odebrecht que soube conduzir a sucessão na Organização que criou. Na foto, Norberto, Emílio , o pai (gravura) e Emílio o filho e ex presidente, ao lado de Marcelo, o atual presidente da empresa, seu neto e sucessor.
*Fonte: odebrecht on line 

segunda-feira, 21 de julho de 2014

Cidades : A Escala Humana

O filme explora o impacto ao redor do mundo das ideias de Jhan Gehl (ao centro na foto), o arquiteto dinamarquês que transformou Copenhague e que promulgou a necessidade de um olhar para a vida das cidades além dos edifícios e dos automóveis. 
Uma visão semelhante foi defendida pelo ex-prefeito de Nova York, Michael Bloomberg, que colocou a qualidade de vida - e o bom espaço público - no centro do palco em suas tomadas de decisões. Um de seus maiores sucessos foi a transformação do Times Square, cuja média diária de 356.000 visitantes tiveram, até 2009, apenas 11% do espaço, que eram destinados preferencialmente aos automóveis. O documentário capta essa abordagem, explorando o que acontece quando colocamos as pessoas no centro das nossas equações urbanas. Num um ponto, vemos o trabalho das ONGs para uma melhor Bangladesh, que foi inspirado por Gehl, lutando para manter as autoridades do país focado na criação de soluções sustentáveis ​​para todas as pessoas, e não apenas aqueles que podem pagar um carro. Para reduzir o congestionamento de veículos - causada principalmente por estacionamento caótico, não regulamentada - o governo proibiu rickshaws, em vez de focar as atenções nos automóveis. De um só golpe esta condenado 600.000 condutores de riquixás à pobreza, deixando milhões de pessoas sem transporte acessível.
  

Helsinque quer estar livre dos automóveis


A capital finlandesa, Helsinque, pretende estar praticamente livre dos carros até 2025. A saída para alcançar este objetivo: tornar o transporte público tão eficiente, que os moradores não terão vontade de tirar seus automóveis particulares da garagem.
O projeto pretende transformar o transporte coletivo em uma estrutura mais personalizada e prática, conforme informado pelo jornal britânico The Guardian. Todos os diferentes modais oferecidos pelas autoridades públicas devem ser interligados, ao mesmo tempo em que os usuários conseguem ter acesso aos horários, trajetos e demais informações por um aplicativo no celular.
A tecnologia não servirá apenas para informar, mas ela também deve permitir que os passageiros solicitem paradas de ônibus fora dos pontos, para maior comodidade. Através do aplicativo, a população também pode pedir, usar e pagar por outros tipos de serviços, como táxis, bicicletas e até carros de aluguel.
Atualmente a cidade europeia já possui um serviço de micro-ônibus em que os usuários especificam seus próprios pontos através do aplicativo e a informação é transmitida ao motorista. Mas, Helsinque pretende ir ainda mais longe.
Mesmo que a proposta seja promissora, ainda existem críticos que enxergam a medida como um tanto segregadora, a partir do momento em que restringe as facilidades às pessoas que possuem smartphones. Independente disso, a proposta de tornar o sistema mais eficaz já é um exemplo para outras cidades do mundo que precisam de renovações no sistema de transporte coletivo para atrair ainda mais a população.
Redação CicloVivo

domingo, 20 de julho de 2014

Meu amigo Ildásio

João Ubaldo Ribeiro* 
Depois dos quarenta, mais ou menos, a gente dificilmente faz amigos. Faz companheiros, aliados, cúmplices, sócios, correligionários, o que lá for, mas amigos mesmo, desses que conhecem a alma da gente, desses com quem às vezes a gente conversa sem precisar falar, desses que, mesmo sem nos dar razão, ficam do nosso lado, desses que carregam com eles lances fundamentais de nossa história, amigos que se abraçam com calor depois de uma longa ausência, amigos com quem se quer partilhar todas as alegrias, nossas e deles, amigos de raiz, esses amigos se fazem ainda cedo. A vida afasta alguns, talvez muitos, mas os que permanecem são suficientes para provar o valor supremo da amizade, o sentimento mais nobre que podemos abrigar. Quanto mais velhos ficamos, menos desses amigos fazemos e mais nos reaproximamos dos antigos. Com a idade se vão as ilusões que nos arrebatavam na juventude, juntam-se os desenganos, brota um certo cinismo tido na conta de sabedoria, cresce talvez o ceticismo quanto à natureza humana. E fazer uma nova amizade dá muito trabalho, não é uma empresa simples, enquanto os dois candidatos a amigos passam um ao outro o seu perfil e a biografia que querem ter, se familiarizam com a personalidade de cada um, decidem sobre concessões mútuas e, enfim, se entregam a um período de sintonia que frequentemente não se completa, dá mesmo muito trabalho. Também quanto mais velhos ficamos, vamos compreendendo com maior vividez como os amigos são importantes, muito mais importantes do que imaginávamos antes. Os amigos compõem a nossa identidade, quem entende nossos amigos nos entende um pouco, quem conhece nossos amigos nos conhece um pouco. Somos vistos e avaliados não apenas pelo que temos de individual, mas também pelo que nossos amigos nos acrescentam, até porque aprendemos com eles, e eles conosco. E, a par disso, como é bom contar com um interlocutor que nos ouve e quer genuinamente o nosso bem, que desperta em nós o que de melhor temos, que nos traz lembranças alegres e cuja convivência nos deixa um pouco mais em paz com a vida, e nos torna a existência menos solitária. Como, por tudo isso, são raros e preciosos os amigos, mais raros e mais preciosos a cada instante. Quando morre um amigo assim, morremos também um pouco. Por ser lugar-comum, não deixa de ser verdade. Acabo de morrer um pouco, acabo de morrer bastante, porque morreu meu amigo Ildásio Marques Tavares, de quem jamais vou deixar de sentir grande saudade e cuja memória procurarei sempre honrar. As amizades não se explicam, acontecem espontaneamente e amadurecem com o convívio. Minha amizade com Ildásio veio de afinidades descobertas desde a adolescência e se fortaleceu ao longo dos anos, culminando em compadragem, porque ele me convidou para batizar seu filho Gil Vicente. Lemos juntos, escrevemos juntos, fizemos farras juntos, viramos noites estudando juntos, aprontamos happenings juntos, juntos reformamos o Brasil e o mundo. Sua memória certeira guardava praticamente todos os momentos dessa convivência — e tudo agora lá se foi, lá me fui eu também um pouco, a recuperação é impossível. Perda pessoal muita dura de enfrentar, é difícil estimar sua extensão, o vazio que vai deixar. Só sei que uma grande referência minha desaparece, uma das mais importantes, desde que Glauber morreu. Ildásio não tinha nada a ver com Glauber, mas com ambos eu podia aparecer de peito aberto, mostrar fraqueza, pedir palpite, conversar desguarnecido, abrir segredos. E ambos seguraram minha barra, quando enfrentei vicissitudes para as quais não estava preparado, me acudiram quando precisei de força. Até hoje não me habituei à ausência de Glauber e sei que não vou habituar-me à ausência de Ildásio, o mundo ficou desfalcado. E a Bahia também ficou desfalcada. Ildásio era um intelectual superior, conhecedor íntimo do ofício das letras, de senso crítico aguçado e erudito. Talvez isso não se percebesse com facilidade, por trás de seu comportamento muitas vezes desabusado, sua poesia satírica (de magnífica qualidade e da qual nem amigos como eu escapavam), seus modos informais e irreverentes. Escritor de cultura sólida, ensaísta informado e sensível, poeta laureado, meu compadre Ildásio era, além disso, um homem bom, de belos sentimentos e apego a causas nobres. E, para mim, sobretudo um velho amigo de fé, um grande amigo, insubstituível amigo, querido amigo, saudoso amigo, que Deus o tenha em Sua glória.

sábado, 19 de julho de 2014

A elite branca

João Ubaldo Ribeiro*
Como já deve ter previsto o pugilo de bravos que me lê com assiduidade, de novo as Parcas me fizeram a grande maldade de marcar para anteontem (tempo de vocês, este domingo) o jogo com a Colômbia, mais uma vez impossibilitando que eu leve o resultado em conta. Eu pelo menos podia ter conversado com a Sociedade Interamericana de Imprensa, a fim de ver se ela pressionava a Fifa para corrigir a grave injustiça e mudava a tabela, mas é tarde. E, se eu houvesse feito a besteira de escrever, como cheguei a pensar, que o jogo tinha sido moleza, como sempre acontecia com o freguês Chile? Teria quebrado a cara, como quase quebro no boteco, quando pulei na hora em que, já no fim da prorrogação, o Chile botou aquela bola na trave e dei com a testa na tabuleta que anunciava o chope em promoção. Esqueçamos, esqueçamos.
O jeito é voltar-me para os últimos acontecimentos extra-Copa. Quase todos eles se relacionam com o edificante espetáculo democrático deste ano de eleições. Lá e cá, por todo o país, como que se ouvem gritinhos pressurosos pululando nos ares — cadê o meu, cadê o meu, tenho que me fazer, tenho que me fazer! — enquanto estadistas e líderes se digladiam no embate inflamado de ideias, planos e projetos de ascensão pessoal e grupal e os partidos se empenham por caracterizar nitidamente suas posições, embora, assistindo-se a seus anúncios na televisão, seja um pouco difícil distinguir identidades e programas próprios. Todos eles pregam a justiça social, o combate à exclusão, os investimentos em saúde, educação, segurança, coisas com as quais, de tão vagas, qualquer um concorda. Nenhum deles mostra como e o que fará para avançar nesses campos. Isto fica para depois e, pelo visto, sempre ficará.
Cada vez mais abusadas certas palavras perdem sentido. Quase ninguém é capaz de fazer uma distinção teórica, ou abstrata, entre direita e esquerda políticas, e por exemplo, o ex-presidente Lula as emprega pra lá e pra cá,conforme a necessidade do momento. OU seja, direita, assim como esquerda, é o que convém. Nega que seja de esquerda e em seguida vocifera contra as manobras da direita como se fosse o porta voz da esquerda. Alías, é interessante esta conversa de direita e esquerda, considerando-se que Lula  é ex aluno da Universidade John Hopkins (isto mesmo) da venerável , prestigiosa e cara universidade americana, onde estudou no início da década de setenta, e quem sabe recebeu ( não tenho certeza disto) um diplomazinho ou certificado , que teria precedido o diploma de presidente, o qual lhe foi conferido, ocasião em que proclamou que o primeiro diploma de operário sem estudo e filho de mãe analfabeta recebia era o de presidente da República. Eu, se tivesse tido ao menos uma das duas parcas semaninhas de seminário na John Hopkins, me gabaria de vez em quando, mas esta vida é assim mesmo, tudo é muito relativo. Talvez ele queira esquecer seu período de estudo em Baltimore. Lá de fato,faz muito frio, embora eu tenha lido em algum lugar na internet, que ele, como sempre simpático,descontaido e boa praça, fez muito sucesso e deixou  amigos e admiradores. Pode ser que não queira encher a bola da AFL-CIO, poderosa organização sindical americana sob cujos auspícios estudou na John Hopkins, e, antes, em São paulo mesmo.O homem não é só doutor honoris causa não, tem outras láureas acadêmicas conquistadas nos bancos escolares de que ele, na sua proverbial modéstia, não fala. 
Outra palavra que já merece uma pesquisa semântica é "elite". Lula também faz embaixadinhas com ela a torto e a direito e é preciso estar atento. Assim mesmo é difícil entendê-la a começar pela circunstância de que desde a época em que foi chamado como promissor talento para a temporada de estudos americana patrocinada pela AFL-CIO, formada de quadros sindicais presente, respeitada e temida em todo mundo, ele é elite.Foi elite dos sindicalista, é elite no partido que está no poder, exerceu o posto mais alto da elite governante, num país onde o presidente é um monarca tratado com subserviência e vassalagem.Viaja esplendidamente para palestras e lobbing, como do bom e bebe do melhor, é amigo pessoal e companheiro de lazer de ricos e poderosos, se trata nos mais respeitados hospitais, com os mais renomados médicos, não entra em filas, não pega transporte público, não paga aluguel de casa nem prestação de automóvel, não se aporrinha com providências do cotidiano, não tem preocupações com o futuro, ganha mais que todos os professores do primeiro grau da rede pública do Maranhão  juntos, manda pra lá, desmanda pra cá, e ainda por cima é cultuado por grande parte do povo. Então ele não é elite? Do que mais se precisa para ser elite?
Uma aparente novidade não altera a situação dele, e até a faz mais difícil de compreender. Trata-se da expressão "elite branca". Se bem me lembro e até conferí nuns clipes e guardo no computador, Lula tinha até os cabelo bem crespo, antes de sua completa ascenção política. Como sua pele não é alva poderia talvez por causa do cabelo ter sido considerado pardo, ou como se dizia antigamente, mulato. Ou até negro pelos critérios americanos que agradam a tantos. Mas hoje, como o nome de Conceição, o cabelo dele mudou. Alguém que nunca o tivesse visto antes, nem em fotografia, te-lo-ia na conta de branco de nascença . Branco latino americano, hispânico para os americanos, mas, em última análise, branco. De resto, elite branca mesmo, no Brasil só as famílias mais prósperas das comunidadesde origem europeia, do Sul. Vai ver que elas acham que Die Eschculambaizon foi longe demais e vão chamar Angela Merkel para derrubar o governo e o PT.
* João Ubaldo Ribeiro (1941-2014), nasceu em Itaparica e faleceu dia 18/07/2014, no Rio de Janeiro. Escritor membro da Academia Brasileira de Letras, foi agraciado em 2001 com o Prêmio Camões.
  

sexta-feira, 18 de julho de 2014

O escritor e o seu duplo

 Tom Cardoso | Para o Valor, do Rio

O pânico tomou conta do repórter. Ele havia entrado no apartamento errado. Por certo, a diarista, imersa nos seus afazeres, contribuíra para a gafe, autorizando a entrada do estranho. Ali dificilmente moraria João Ubaldo Ribeiro. As duas estantes da sala, de frente ao sofá, estavam abarrotadas de pelo menos 30 miniaturas de heróis e vilões de HQs, do Coringa ao Surfista Prateado, da Mulher Maravilha ao Lanterna Verde. O romancista e cronista baiano, autor de "Viva o Povo Brasileiro", clássico da literatura brasileira, agraciado com o Prêmio Camões, imortal da Academia Brasileira de Letras (ABL), teria sido acometido, aos 73 anos, por uma espécie de síndrome de Peter Pan? E o que fazia aquele retrato de Elvis Presley apoiado em Conan, o Bárbaro? Não há registros de seu entusiasmo pelo rock americano dos anos 50. "A foto de Elvis foi um presente dado a Berenice, minha mulher." A voz, de trovão, de preto velho baiano, vinda do alto da escada, que liga o primeiro ao segundo andar do apartamento, era inconfundível. De bermuda, camisa xadrez e chinelo de couro, surge Ubaldo. O arquétipo do homem nascido em Itaparica, pelo menos, estava preservado.
O mal-entendido é desfeito rapidamente. Não há chance de Ubaldo levar as miniaturas para os chás da tarde na ABL. Ele continua não tendo o menor interesse por super-heróis. Muito menos por vilões. A coleção pertence ao filho Bento Ribeiro, ator, humorista e aficionado por brinquedos - até hoje, aos 32 anos. As miniaturas estão no apartamento do pai até que Bento, de mudança de São Paulo para o Rio, ache um novo lar para Batman, Robin e companhia. Outro pai, provavelmente, não aceitaria transformar o espartano apartamento numa espécie de Sala de Justiça da Marvel. Mas Ubaldo não é de dizer não. Nunca foi. O que explica a demora para concluir o novo romance, prometido, há anos, à editora Objetiva. Além de acatar o pedido do coadjuvante do romance, que exigiu virar protagonista, insurreição que obrigou o escritor a começar tudo de novo, ele tem que suportar as aporrinhações do dia a dia.
"O livro desanda quando a gente deixa de tomar conta", diz Ubaldo. "E tem uns cinco, seis anos que eu não consigo trabalhar. Dou conta apenas da minha coluna semanal [publicada nos jornais 'O Globo' e 'O Estado de S. Paulo']. Também credita a falta de tempo ao aumento do número de feiras literárias. "Toda cidade com mais de dez mil habitantes tem sua feira literária. Até Xique-Xique [município do semiárido baiano] tem a sua", diz. "Parece mentira, mas tenho como provar: recebo um ou dois convites por dia para palestras."
Ubaldo recusa todos. Vai abrir uma pequena exceção em breve: viajará a Paris a convite da Universidade Sorbonne. Pretende começar para valer o romance assim que puder - se os telefonemas cessarem. Para um homem que tem dificuldades em dizer não, cada ligação é um tormento. Mesmo que o convite seja dos mais absurdos, facilmente recusável, como no dia em que recebeu a proposta de João Alves, então deputado pela Bahia, para escrever sua biografia. Na época, em 1993, Alves era o chefe do esquema conhecido como Anões do Orçamento, um dos maiores escândalos de corrupção do país. Alves justificava o enriquecimento repentino, incompatível com sua renda de parlamentar, pelas dezenas de vezes que ganhara na loteria.
Acuado na época, em meio ao tiroteio, o deputado ligou pessoalmente para Ubaldo. Apresentou-se como amigo do pai do escritor, o professor e político baiano Manuel Ribeiro, e pediu que Ubaldo escrevesse um livro contando "a verdadeira história do caso". Pagaria o que fosse preciso. "Ele não era amigo do meu pai coisa nenhuma e, mesmo que fosse, é claro que eu não aceitaria escrever, por dinheiro nenhum, um livro como aquele", afirma Ubaldo, que recusou, com a elegância de sempre, a oferta de Alves. Não foi suficiente: "Para ele desistir foi um saco. Um dia, calhou de a minha irmã estar aqui em casa. Ela, sempre decidida, pegou o telefone e encerrou a conversa".
A diarista serve o café. Com certo ar de tédio, Ubaldo revela que, se pudesse, recusaria não só o convite da palestra em Xique-Xique como também o da Sorbonne. "Sabe jornalista que sai da redação e vai bater papo sobre jornalismo ou o médico que vai para o boteco falar sobre cirurgia? Eu escrevo, mas não sou ligado ao métier", comenta. "Acho papo literário muito chato. Eu vou porque é necessário, mas eu não gosto, não. Não é um sacrifício, mas prefiro ficar quieto no meu canto." O canto, um apartamento simples no Leblon, onde Caetano Veloso morou nos anos 70 e abrigou também o amigo e jornalista Tarso de Castro, é o lugar onde ele se protege dos chatos. Como a maioria dos amigos já se foi - e continuam indo -, o escritor tem saído cada vez menos de casa. Só arreda o pé dali aos sábados e domingos, quase sempre para ir ao Tio Sam, o boteco da esquina. Na sua mesa, fala-se sobre tudo, menos de literatura. Nenhum dos amigos é escritor. "É gente normal: de ex-comandante da Varig a contador", conta Ubaldo. "Ao contrário do que se diz por aí, amizade de boteco é algo muito bom."
Depois de 11 anos bebendo guaraná diet no Tio Sam, Ubaldo voltou a beber uísque. Ele considera o seu caso raríssimo: o do ex-alcoólatra que, ao voltar a beber, depois de tantos anos, volta bebendo menos. "Bem menos", assegura. "Bebo só quando viajo, o que é raro, e quando encontro os amigos no Tio Sam, no fim de semana. Não tem bebida aqui em casa. Antes bebia até dormindo, quase morri", relata. "Eu sei que o fanático de AA [Alcoólatras Anônimos] vai dizer que estou mentindo, mas o fato é que a bebida deixou de ser um problema para mim." Antes, lembra o escritor, era duro conviver com a doença. Não só por uma questão de saúde - acometido por uma pancreatite, passou 15 dias lutando contra a morte no hospital. "Depois que saí na capa de uma revista com a cara inchada, passei a ser o único cachaceiro do país. Se um bêbado atropelava alguém na rua, ligavam imediatamente para mim."
O cada vez mais recluso Ubaldo só não deixa de ir a Itaparica, sempre que pode - e deixam. Os amigos continuam por lá. Ele poderia, teoricamente, escrever as crônicas e livros na ilha baiana, mas a mulher, Berenice, não acha prudente. Ubaldo também não. "Minha velha [Berenice] fica, com razão, preocupada de eu ter um treco em pleno inverno (sic) de Itaparica, época em que chove muito - depois das 9 da noite a ilha fica deserta, não há um poste de luz aceso." A idade, como se vê, impôs algumas limitações a Ubaldo, mas também permitiu que se livrasse mais facilmente dos aborrecimentos diários - ou de se preocupar exageradamente com as coisas, a imagem ou o desempenho profissional. "É claro que não tem muita graça você ficar lidando com o enfraquecimento do organismo, mas velho tem uma coisa que é muito boa: não paga mico", comenta. "Como não tenho mais nada para provar, dificilmente me meto em encrenca. Já os jovens não, esses, por pura ansiedade, vivem pagando mico."
Ubaldo cita o avô materno, o "coronel" Osório Pimentel, que a certa da altura da vida já não fazia a menor questão de manter a compostura. O escritor era criança quando o avô recebeu em casa o então governador da Bahia, Régis Pacheco (1895-1987), e alguns secretários de Estado. Depois do banquete, da banda de música, dos discursos, conta Ubaldo, todos se sentaram no sofá para jogar conversa fora. "Assim que começaram a papear, meu avô, cercado de puxa-sacos do governador, soltou uma sinfonia de puns. Minha avó o cutucou e levou uma bronca ali mesmo, na frente do governador e dos secretários 'Me deixe em paz, mulher! Faz um mal tremendo ficar prendendo essas coisas! Àquela altura ele não tinha nada a perder", lembra-se Ubaldo. "Eu não faço esse tipo de coisa em público, mas não ficaria mortificado se tivesse que fazer." Talvez, no máximo, ele levasse um pito do "Grande Ubaldo".
São duas personalidades convivendo, nem sempre de forma harmônica, numa mesma pessoa: o Grande Ubaldo e o Pequeno Ubaldo. O primeiro é disciplinado, educado e cordial. O segundo, hedonista, indolente e irascível. Ubaldo detesta o Pequeno, que o impede de trabalhar, de fazer o que é preciso ser feito, mas no fundo o escritor não saberia viver apenas com o Grande Ubaldo. Nada mais insuportável que uma personalidade metódica. "O problema é que o Pequeno se sobrepõe cada vez mais ao Grande. Ele é chato pra caramba, uma coisa horrorosa, não larga do meu pé. Um preguiçoso", afirma Ubaldo. "Essas duas entidades vivem em permanente guerra dentro de mim. No fundo eu preciso desse equilíbrio de forças, todos nós precisamos."
Por enquanto, com o Pequeno Ubaldo vencendo a batalha, os fãs do escritor têm que se contentar com uma edição comemorativa de 30 anos de "Viva o Povo Brasileiro", que será lançada em breve pela Objetiva com prefácio do cineasta Cacá Diegues. Ao contrário de outras obras, como "Sargento Getúlio", que virou filme, em 1983, dirigido por Hermano Penna; "O Sorriso do Lagarto", minissérie da TV Globo, adaptada em 1991 por Walter Negrão; e "A Casa dos Budas Ditosos", sucesso no teatro com Fernanda Torres, até hoje o seu livro mais cultuado não foi adaptado para nenhum formato, apesar de a história ser cobiçada por vários diretores ao longo dos anos - Walter Avancini (1935-2001) sempre sonhou em dirigir um longa-metragem sobre "Viva o Povo Brasileiro". "Ele [Avancini] queria muito, mas, infelizmente morreu antes", diz Ubaldo, que gosta das adaptações de "Sargento Getúlio" e de "A Casa dos Budas Ditosos". A minissérie da Globo Ubaldo começou a ver, mas desistiu logo nos primeiros capítulos: "Não tem um negro no elenco. E no 'Sorriso do Lagarto' tem - como em todos os meus outros livros - negro a dar com um pau".
Depois do café, o escritor sobe vagarosamente a escada que liga o primeiro ao segundo andar do apartamento, onde fica o escritório, território dos acirrados embates entre o Pequeno e o Grande Ubaldo. O Pequeno certamente é responsável pela bagunça: pilhas e pilhas de livros misturados a jornais e revistas, sem nenhuma ordem. Já o Grande Ubaldo responde pela organizada parafernália tecnológica, capaz de causar inveja ao mais nerd dos escritores: dezenas de aplicativos e um computador de última geração que roda seis dicionários ao mesmo tempo, além de um programa que avisa - com a voz da mulher, Berenice - a hora que ele deve tomar os remédios, caso seja dia do indisciplinado Pequeno Ubaldo. O autor lembra que ele foi um dos primeiros da sua geração a adotar o computador. Na época, morando em Berlim, um amigo o alertou que o uso do computador - e o abandono da máquina de escrever -- alteraria para sempre o estilo de seus romances.
"Eu achei uma bobagem, mas com o tempo passei a concordar com esse amigo", diz Ubaldo. Ele cita como exemplo a feitura do próprio "Viva o Povo Brasileiro", nascido de uma provocação do editor Pedro Paulo de Sena Madureira, que dizia que "brasileiro só sabia escrever livros 'fininhos', para ser lidos na ponte aérea". O escritor baiano, possuído pelo Grande Ubaldo, escreveu um romance bem extenso, grosso, denso, "para esfregar na cara de Pedro Paulo". E sem a ajuda do computador. "Deu 6 quilos e 700 gramas de papel", lembra-se. Se Ubaldo decidisse alterar algo na página 600, tinha que, automaticamente, mudar uma passagem na página 320. E outra na 195. E mais uma na 56, o que implicava revirar a enorme pilha de papel. Um trabalho braçal que nem o esforçado Grande Ubaldo estava disposto a encarar. "Quase sempre eu desistia de fazer as alterações", diz. Com o surgimento do computador, o escritor passou a dividir o mesmo espaço com o "editor". "Não tenho dúvida de que essa facilidade tirou um pouco da espontaneidade dos meus livros."

Leo Pinheiro/Valor
Ubaldo, que em breve vai a Paris a convite da Sorbonne e só depois retomará novo livro: “Acho papo literário muito chato. Eu vou porque é necessário. Não é um sacrifício, mas prefiro ficar quieto no meu canto”
Que deixem, agora, Ubaldo trabalhar. É com os seus aplicativos - e a disciplina do Grande Ubaldo - que o romancista espera contar a partir de abril, quando pretende, finalmente, dar rumo ao esperado livro. Ele continua um tanto cético, porém, quanto ao destino do romance, que voltou, pelos já sabidos motivos, à estaca zero - o autor nem sabe se serão várias histórias interligadas ou uma só. A única certeza que tem é que será ambientado no Rio. Para chegar lá, Ubaldo faz um pedido: que parem de pedir-lhe opinião sobre tudo. Nos últimos anos, ele falou incontáveis vezes sobre os mesmos assuntos. No topo da lista, o polêmico projeto da ponte que liga Salvador à ilha de Itaparica. "Falei 5.437 vezes sobre o tema." Seguido pela não menos controversa discussão sobre trechos racistas na obra de Monteiro Lobato. Ele lembra que durante uma semana inteira, todos os dias, também falou sobre a sua recusa a ir à Festa Literária Internacional de Paraty (Flip), em 2004 (ele desistiu de participar alegando que a feira priorizava os autores da Companhia das Letras).
Atualmente, diz Ubaldo, a moda é perguntar a ele sobre a polêmica da lei das biografias e a atuação de Joaquim Barbosa na presidência do Supremo Tribunal Federal (STF), como se sua opinião sobre o julgamento do mensalão - e sobre a censura prévia - já não tenha sido expressa diversas vezes na coluna semanal.
Ubaldo é um crítico feroz do governo Dilma, assim como já era do governo Lula, a ponto de receber um e-mail do ex-deputado José Dirceu pedindo o seu endereço. "Ele disse que desejava que eu conhecesse a versão dele de toda a história e me mandou um livro, que eu nunca li. Não me sinto obrigado", alega. "Não acho que ele [José Dirceu] seja santo nem que deva ser banido da sociedade. Não sinto ódio por ele. Aliás, não sinto ódio de ninguém, não faz parte do meu temperamento." E - para não perder o costume - o que ele acha da atuação de Joaquim Barbosa na presidência do STF? "Não há dúvida que ele tem desempenhado um papel importante", responde. "Mas me formei em Direito. Na minha época, ministro do Supremo era uma figura quase sagrada, não saía dando entrevista por aí ou batendo boca com o colega ao vivo na televisão."
Antes de voltar à sala, para o terceiro café deste discreto "À Mesa com o Valor", Ubaldo acomoda-se na cadeira do escritório para o ensaio fotográfico. O fotógrafo pede que o escritor faça "pose de erudito", no estilo "gênio trabalhando", logo ele que detesta esse tipo de coisa - mão no queixo nem pensar. Por fim, Ubaldo é convencido a retirar um livro da estante e abri-lo numa página qualquer. Ele pede que repórter desça à sala e pegue o seu atual livro de cabeceira. É o romance "Fim", da atriz e amiga Fernanda Torres (ela dedica o livro a Ubaldo). "Estou gostando muito. Ela já é uma escritora pronta, madura." O ensaio é feito. Ubaldo esforça-se para atender a todos os pedidos do fotógrafo. É um homem cordial (o novo romance, pelo jeito, não sairá tão cedo). Antes da despedida, vamos à cozinha para mais um café. Há um pote de jaca, fruta muito apreciada pelos baianos, na mesa. O repórter faz a última indagação: "Você gosta de jaca mole ou de jaca dura"? Ubaldo abre um grande sorriso. "De jaca dura", diz. "Está aí uma pergunta que nunca me fizeram."

Notícias da Bahia

João Ubaldo Ribeiro*
Quando eu morava em Itaparica, me dava pena ver aquela geração de jovens fortes, dispostos, boa gente, bem formados, com duas opções de futuro: ou migrar de lá, e nunca mais aparecer, ou cair na cachaça, no desemprego, na saúde precária já aos quarenta anos. Ficam uns cacos. As moças, tão bonitas, cada princesa que você vê assim aos doze, treze, quatorze anos, você chega uns cinco anos mais tarde já encontra aquela velhota de quarenta e cinco. Já sem dente, por causa da gravidez precoce, aquela tristeza que a miséria produz. Eu então chamei o pessoal e falei: ´aqui tem uma certa infra-estrutura, vamos bolar um calendário para a ilha? Por exemplo, um festival de pesca de peixe miúdo; em setembro, que é época de vento, empinar arraia, fazer um festival disso… Um festival de música qualquer, uma onda.. Inventar coisas, bolar…´. Rapaz, foi um negócio! Criaram comissão, já queriam botar jeton pra mim (algum dinheiro), eu disse, ´eu não quero jeton nenhum, eu não sou de comissão, ainda mais vindo do imposto pago pelo povo, que é miserável…´ (risos). Foi tal confusão e apresentação de planos. As pessoas entravam, cada qual com seu ´peixe´ pra vender. As pessoas falavam e não se ouviam, esperavam a própria vez – mesmo que fosse pra repetir o que foi dito na fala anterior (risos). Acabou que parte da Câmara Municipal de lá se reuniu e, se pudesse revogar um registro civil, eles revogavam o meu. Começaram a se referir a um bando de ´forasteiros´. Aí mandei todo mundo pra puta que pariu: ´vocês vão ficar na merda, mesmo, se quiserem´. Porque lá dizem que eu ´nunca fiz nada pela ilha´. Quando eu fui escrever para O Globo, pela primeira vez, já há uns vinte anos, escrevi logo mencionando Itaparica. Aí vieram me lembrar que eu estava escrevendo para um jornal carioca, que não botasse ´esse negócio de Itaparica, ninguém nunca ouviu falar, fica melhor direcionar sua crônica para o público carioca e tal…´. Deram a mim uma orientação amigável à qual eu não dei a menor importância. E Itaparica hoje, ao ser mencionada, não precisa que ninguém mais explique que é uma ilha, antigamente tinha que botar: ´Itaparica (ilha localizada na Baía de Todos-os-Santos)´. Hoje não precisa. No entanto, dizem que eu nunca fiz ´nada pela Ilha´. É igual dizer que Dorival Caymmi, porque nunca fundou um asilo com o próprio nome, nunca fez nada pela Bahia
 *Notícias da Bahia, Feira de Santana, maio de 1999
João Ubaldo, faleceu hoje, 18/07, no Rio de Janeiro

quinta-feira, 17 de julho de 2014

Economia criativa em alta

Adriana Guarda*
Como as pessoas podem fazer dinheiro com ideias? Foi respondendo a essa pergunta que o jornalista britânico John Howkins conseguiu formular um dos conceitos mais difundidos do que é a chamada economia criativa. O termo é utilizado para agrupar atividades econômicas que usam a criatividade e a exploração da propriedade intelectual como base de seu negócio. Assim, figuram na lista cultura, comunicação, artes, tecnologia, moda, design, fotografia e tantas outras.
No mundo, ela já representa 7% do Produto Interno Bruto (PIB) e se destaca em países desenvolvidos como Inglaterra, Estados Unidos e Austrália. O conceito ganhou destaque durante o governo do primeiro-ministro britânico (1997 a 2007), Tony Blair, com uma série de incentivos a atividades que envolvem a criatividade, como software, design e mídia”, explica o professor do Departamento de Economia da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), José Carlos Cavalcanti.
A Inglaterra é o país de maior crescimento da economia criativa, com taxa de 8% ao ano, além de participação de 8,2% no PIB e 6,4% da força de trabalho empregada na área. No Brasil ainda existe pouca estatística disponível e o uso do conceito é recente. Mas na experiência mundial já surgiu até faculdade de indústria criativa, a exemplo da Austrália”, compara Cavalcanti.
Na tentativa de identificar como o Recife poderá se posicionar diante do novo ciclo da economia pernambucana, a prefeitura decidiu encomendar um estudo prospectivo sobre cadeias produtivas com potencial de inovação. Nossa intenção foi mapear que cadeias são essas para fomentar o desenvolvimento de setores vocacionados, afirma o secretário de Ciência, Tecnologia e Desenvolvimento Econômico do Recife, José Bertotti Júnior. O Centro de Gestão e Estudos Estratégicos (CGEE) fez o levantamento de dez cadeias produtivas e contratou a consultoria Porto Marinho para elaborar o capítulo sobre indústria criativa.

Nos próximos anos o que vai bombar é a economia criativa. O futuro está na indústria de serviços modernos, que tem maior empregabilidade e agrega mais investimentos. Por isso, é necessário mudar a maneira como a gestão pública vê esses setores. Suape é importante, mas uma refinaria de petróleo gera poucos empregos na fase de operação”, analisa o consultor Cláudio Marinho, da Porto Marinho. Ele alerta, ainda, sobre a importância de inovar no modelo de negócio, que necessita de um arcabouço diferente do praticado pela economia conservadora.
O consultor também compara que o crescimento da economia criativa é superior ao da economia tradicional. Segundo ele, entre 2006 e 2009, a expansão da indústria criativa foi de 21%, diante de 6% da formal. A base de dados sobre o setor ainda é escassa, mas a estimativa é de que a atividade empregue 7.573 pessoas no Estado.
EXPERTISE
O Porto Digital poderá alavancar a criação de um polo de economia criativa em Pernambuco, com sua experiência de dez anos como um parque tecnológico urbano de sucesso. A proposta é criar um Centro de Excelência em Tecnologia para a Economia Criativa e Inovação do Porto Digital (Cetec). O projeto já parte com recurso de R$ 5 milhões de emendas parlamentares no orçamento do Ministério de Ciência e Tecnologia.
O centro teria três eixos principais: formação de profissionais em tecnologia, experimentação, por meio de uma estrutura de laboratórios e estúdios, e empreendedorismo e incubação, a partir de fomento à criação de negócios inovadores. O presidente do Porto Digital, Francisco Saboya, está negociando um casarão no Recife Antigo para abrigar o Cetec. O centro teria uma estrutura com edifício empresarial para locação de espaço para as empresas, uma área para instalação de laboratórios e estúdios, um prédio para pesquisa, desenvolvimento e inovação, além de um museu do futuro imaginário.
A Porto Marinho também sugeriu a criação de um Centro de Multilinguagem da Economia Shopping da Música, com estúdios e auditórios para ensaios de bandas, bares e lanchonetes, áreas de convivência e lojas de produtos relacionados à música pernambucana”, adianta Cláudio Marinho.
*Jornalista - adrianaguarda@jc.com.br

quarta-feira, 16 de julho de 2014

Opção pela economia criativa

A cada ano, a criatividade e o capital intelectual movimentam US$ 3 trilhões em negócios e já são responsáveis por 10% da economia mundial. Para ampliar sua participação neste filão, Curitiba aposta na economia criativa, que inclui cultura, economia, tecnologia e sustentabilidade em seu leque de atividades.
"Nossa tarefa é fazer com que a cidade chegue ao modelo de Economia Criativa", diz a presidente da Agência Curitiba de Desenvolvimento, Gina Paladino. A ideia é distribuir pela cidade os benefícios que até recentemente eram destinados a conglomerados. O nicho econômico planejado tem como essência a valorização da cultura, elemento presente nas 13 áreas previstas de atuação: arquitetura, publicidade, design, artes, antiguidades, artesanato, moda, cinema e vídeo, televisão, editoração e publicações, artes cênicas e performáticas, rádio e softwares de lazer e música.
A estratégia municipal de transformação de Curitiba em uma smart city econômica é ousada, mesmo porque rompe com um modelo que tinha nos clusters - os aglomerados empresariais - o centro da atividade econômica. Em certas áreas, antigos clusters dão lugar a uma nova configuração. O caso clássico é o do Rebouças, distrito industrial curitibano por décadas. O antigo Moinho Paranaense foi transformado na charmosa sede da Fundação Cultural e a planta industrial do Matte Leão dará lugar a um gigantesco templo evangélico.
O caso da Cidade Industrial de Curitiba (CIC) é bem diferente, mesmo porque concentra gigantes industriais como a Bosch e a Volvo. Ainda assim, esse cluster "ortodoxo" também dá sinais de flexibilidade. Gina Paladino observa que, já nos anos 1980, a CIC teve influência do movimento tecnológico direcionado à matriz produtiva de software, algo que, na época, era muito novo.
O Parque de Software, que atraiu indústrias do setor eletroeletrônico, seguiu com o fortalecimento da ideia do Tecnoparque, que saiu do papel em 2007. A ideia, então, era fugir dos limites da CIC, o que foi estimulado por benefícios em IPTU e ISS para a implantação de empresas na área que segue a Marechal Floriano Peixoto no sentido Rebouças. "O chamado ISS Tecnológico combina o zoneamento produtivo com a política urbana de zoneamento", observa Gina.
Ou seja: o grande projeto econômico de Curitiba para os próximos anos - tão ousado quanto a revolução urbana da década de 70 - pretende estimular e acelerar um movimento que já existe, que pode ser visto nos próprios clusters e em nossos designers, programadores, agitadores culturais, artistas, confeiteiros, arquitetos…
Plataforma
A aposta da agência para Curitiba está na "cidade digital", que só vai funcionar com a constituição de uma poderosa infraestrutura tecnológica baseada em meios digitais de alta capacidade de transmissão de dados e que tenha segurança e qualidade. "Essa será a porta e o elo para que Curitiba produza e faça valer os seus talentos sem barreiras físicas e geográficas", sintetiza Gina.
A partir da plataforma digital, diversos segmentos econômicos podem decolar. Arte, criação e artesanato são setores promissores em Curitiba para a difusão da economia criativa. "Temos talentos individuais reconhecidos e a missão de transformar os talentos em empreendimentos. Não há gargalos para competências e talentos com o suporte da dimensão tecnológica. Podemos produzir aqui ou atrair talentos e produções que possam ser complementados em Curitiba", projeta.
Inspiração
A proposta defendida por Gina Paladino se assemelha à do arquiteto inglês Richard Rogers, autor do livro ¨Cidades para um pequeno planeta", e vencedor do prêmio Pritzker, para as áreas urbanas. Conhecedor de Curitiba, ele foi o responsável pela obra do Centro Georges Pompidou, em Paris, que transformou um museu de formato clássico e estanque em um dos pontos culturais mais vibrantes do mundo. "A cidade tem uma razão primária de ser que é para o encontro de pessoas. Para o encontro de pessoas e para fazer negócios e cultura. Então, se você não pode se encontrar, a cidade desmorona."
Curitiba, segundo Rogers, caminha na direção certa. "Achei Curitiba uma cidade humana, com seus parques, o sistema de ônibus expresso e qualidade de vida. Passei três dias emocionantes em Curitiba com Jaime Lerner e sua equipe. Jaime tem me ensinado muito como estruturar uma cidade existente. Curitiba é uma cidade modelo."
Ele prega que a cidade deve ser justa e ter uma boa distribuição econômica, o que rima com a proposta de uma economia criativa e democrática. "A distribuição de riqueza é um dos pontos-chave para uma cidade compacta. No fim, estamos falando de uma cidade sustentável e socialmente funcional. Uma cidade sustentável, socialmente viável."
Cuidado com a "criatividade de araque"
"Há a preocupação de especialistas em não se deixar levar pela ingenuidade de acreditar que tudo é economia criativa. Digamos que, tendo a criatividade como uma capacidade humana, todas as atividades estariam no limiar da economia criativa, mas não é bem assim", afirma Patrizia Bittencourt Pereira, do Comitê Gestor da Rede de Economia Criativa do Paraná (Redec). O diferencial da economia criativa, segundo ela, está em dimensão simbólica e isso não é tão evidente de ser captado em produtos, processos e cidades.
"A singularidade do processo é importante. Um exemplo é Berlim, que se organiza e dá espaço para que as pessoas revivam as dores do Holocausto de maneira reflexiva, valorizando a sua história, construindo a memória coletiva, conservando o patrimônio material e imaterial." Isso também acontece quando marcas se diferenciam com a abordagem de aspectos éticos e estéticos ou quando espaços ganham funções incomuns - como um restaurante familiar que agrega espaço para a literatura infantil.
Outra preocupação é a de cuidar para que a criatividade não vire moeda de negociação, de forma que não se permita que os talentos fujam do estado ou que sua criatividade seja apropriada por grupos empresariais, mas que sejam valorizados e retidos na região. "Assim, todos poderão beneficiar-se da tendência que vemos hoje. Ou seja: a sociedade de consumo se sofisticou e sinaliza a tendência de desejo por produtos de valor agregado cada vez maior", observa Patrizia.