sábado, 25 de maio de 2019

Meu pai, minha herança

Almir Santos*
Que saudade do tempo que era levado por suas mãos. Das tardes no Campo Grande, das manhãs na praia da Paciência. Que sensação quando o bonde chegava à Vila Matos e sentia o cheiro de praia. Era sinal que o azul do mar estava perto.
De trocar a roupa na casa de Manuel de Lucila. Não se andava nos bondes em trajes de banho.
Tomar leite de vaca de madrugada na cocheira de Joventino no bairro do Binóculo, comprar manga na roça de René na Rua Garibaldi ou manga, laranja, uva e caju na roça de Simões na Federação.
Do veraneio em Amaralina. De olhar o gado beber água na lagoa.
Das manhãs de domingo, das visitas à minha avó Isaura ou meu tio Edmundo. De subir a ladeira de dona Celina.
De andar pelas ruas do bairro da Sé e depois tomar uma gasosa na Pastelaria Centro Popular.
Das cocadas branca e preta, compradas de uma baiana que ficava à porta da Farmácia Minerva.
De vê-lo retornar do trabalho à tardinha e descer do bonde  ainda em movimento.
Dos  primeiros filmes: O Mágico de OZ, Branca de Neve e os Sete Anões e Idílio nas Selvas.
De sua voz forte gritando “Almir e Ayrton” à frente do colégio da Prof.ª Iazinha.
Do meu primeiro jogo de futebol: 15 de agosto de 1943, Botafogo 2x Galícia 1 no campo da Graça.
Bahia “doente”. Sempre achava que o seu time não merecia ter perdido, o juiz não marcou dois pênaltis a seu favor ou validou um gol em impedimento do adversário.
Não tinha essa de torcer para time de fora. Vitória, Botafogo, Galícia, Ypiranga, Guarani jogando contra time de fora, tinha de torcer pelos times baianos. “Tem de torcer pela Bahia.” O mesmo para times brasileiros jogando contra times estrangeiros. “Tem de torcer para o Brasil.”
O bairrismo sempre foi uma  de suas inúmeras qualidades. Isso não era válido somente para o futebol. E nós aprendemos.
Do nosso primeiro dia do Colégio Antônio Vieira: 3 de novembro de 1946.
Dos bailes de carnaval do clube Cruz Vermelha. Da Queima de Judas e das festas de S.João. Dos foguetes e balões. Da história do balão de 16 metros , feito por ele, que foi notícia de jornal. De sua alegria e suas brincadeiras. Do seu vigoroso aperto de mão.
Adorava fazer surpresas.
Das arraias sem linha temperada.
Das latas de goiabadas ganhas no jogo de dominó e das caixas de fósforo ganhas no jogo de agache.
De sua letra. A caligrafia mais bonita do mundo!
Do dia 3 de julho de 1951, quando me apresentou ao Dr. Mário Gomes, meu primeiro diretor.
De 1954. Dia que nos acordou com os olhos brilhantes de alegria com um jornal na mão: “vocês dois passaram no vestibular !!! ”
Da sua capacidade de ser querido pelas pessoas.
Do seu espírito comunitário. Do seu bom relacionamento com as autoridades que lhe permitia, sem ser político, conseguir melhorias e serviços para o nosso bairro.
Lembro-me do dia que, conseguida por ele, a água encanada chegou à rua onde morávamos.
Do seu caráter, da sua honestidade.
Do orgulho e zelo pela sua profissão. Do ouro que por suas mãos ficava mais brilhante. Das joias que sabia fazer e das pedras preciosas, para ele as mais belas que lapidou ao lado de sua Núbia, que foram os seus filhos. De ouvir chamá-la carinhosamente de minha filha. De vê-lo andar grudado com ela na base do “só vou se você for.”
Carinhoso e delicado com todos, mas austero quando necessário.
Das festas das suas Bodas de Prata e das suas Bodas Ouro. Dos seus oitenta anos. Dos seus noventa anos. Dos seus noventa e três anos.
* Almir Santos é engenheiro civil e escritor. Filho de Álvaro Desidério dos Santos

quinta-feira, 23 de maio de 2019

A obra de Jorge Amado que retrata Salvador

Conhecer Salvador através dos olhos de Jorge Amado. O autor de clássicos da literatura brasileira como Gabriela, Cravo e Canela, Jubiabá e Capitães da Areia viveu em Salvador por muitos anos e a cultura da cidade foi fonte inspiradora de varias de suas obras. Um dos responsáveis por projetar costumes, belezas e mistérios do povo baiano, o escritor, que nasceu em Itabuna, sul do estado, reúne no livro Bahia de Todos os Santos o convite ideal para se apaixonar pela cidade da Bahia, como chamava Salvador.
Autor
Jorge Amado nasceu em 10 de agosto de 1912, na fazenda Auricídia, distrito de Ferradas, em Itabuna, sul da Bahia. O pai, fazendeiro de cacau, João Amado de Faria, e a mãe, Eulália Leal Amado, levaram o escritor com um ano de idade para viver na cidade de Ilhéus, também no sul do estado, onde passou a infância e depois mudou para Salvador.
Se dedica à escrita ainda jovem, quando começa a trabalhar em jornais e participa da vida literária. Em 1931 lança o primeiro romance, O País do Carnaval, aos 18 anos, e no mesmo ano entra para a Faculdade de Direito do Rio de Janeiro, onde passa a morar. Jorge Amado nunca exerceu a profissão de advogado.
Com atuação política marcante, traduzida em obras como Seara Vermelha (1946), Jorge Amado foi eleito deputado federal pelo Partido Comunista Brasileiro (PCB), como representante de São Paulo, em 1945. O escritor foi casado duas vezes, a primeira com Matilde Garcia Rosa, em 1933, com quem viveu durante 11 anos e teve uma filha, Eulália Dalila Amado, que morreu em 1949. Viveu exilado na Argentina e Uruguai, entre 1941 e 1942, e separa de Matilde ao retornar, em 1944.
Em frente à Fundação Casa de Jorge Amado, no Largo do Pelourinho, em Salvador, os eternos companheiros Jorge Amado e Zélia Gattai (Foto: Acervo Zélia Gattai/Fundação Jorge Amado)Em frente à Fundação Casa de Jorge Amado,
os eternos companheiros Jorge Amado e Zélia
Gattai (Foto: Acervo Zélia Gattai/
Fundação Jorge Amado)
Após a separação, já em 1945, Jorge Amado casa com Zélia Gattai, companheira até os últimos dias de vida e com quem teve João Jorge e Paloma.
A partir de 1955 se afasta da política e passa a se dedicar exclusivamente à literatura. Assume a cadeira 23 da Academia Brasileira de Letras em 1961. Ateu, graças a Deus, Jorge Amado era obá do Ilê Axé Opó Afonjá, terreiro de candomblé que fica no bairro do Cabula, em Salvador.
Jorge Amado morreu em Salvador, dia 6 de agosto de 2011, aos 89 anos. A casa de número 33, na Rua Alagoinhas, do tradicional bairro do Rio Vermelho,  em Salvador, foi transformada em museu e abriga as cinzas e memórias do escritor que apresentou a Bahia ao mundo, em especial Salvador, no livro Bahia de Todos os Santos, com todas as qualidades e defeitos. Com mais de quarenta títulos, a obra de Jorge Amado já foi traduzida para 49 idiomas e teve adaptações para a televisão, cinema e teatro.
Capa da 1ª edição do livro Bahia de Todos os Santos, de 1945 (Foto: Acervo Zélia Gattai/Fundação Jorge Amado)Capa da 1ª edição do livro Bahia de Todos os
Santos, de 1945 (Foto: Acervo Zélia Gattai/
Fundação Jorge Amado)
Bahia de Todos os Santos
“A Bahia te espera para sua festa mais quotidiana. Teus olhos se encharcarão de pitoresco, mas se entristecerão também ante a miséria que sobra nestas ruas coloniais onde começam a subir, magros e feios, os arranha-céus modernos”.
O trecho acima do livro Bahia de Todos os Santos - Guia das Ruas e dos Mistérios da Cidade do Salvador, que teve a primeira edição em 1945, convida o leitor a conhecer a capital baiana e compreender belezas e contrastes do ano de 1944.
A publicação perpassa por ruas, costumes, segredos, personalidades, gastronomia, religião, festas, praias, entre outros aspectos e locais pertencentes à cidade e ao povo. Com requinte e simplicidade do autor, Bahia de Todos os Santos é um roteiro da cidade da Bahia, a Salvador.
O guia foi atualizado para a 19ª edição em 1970, devido ao crescimento da cidade. Apesar de mudanças sofridas com o tempo e em franca expansão, Jorge Amado retrata no livro o espírito do baiano que ainda é percebido nos dias atuais. No início e fim da publicação, o autor dirige o convite a conhecer prazeres e dores da cidade a uma leitora imaginária. Em Bahia de Todos os Santos, Jorge ainda destaca a música do amigo, também baiano, Dorival Caymmi: “Você já foi à Bahia, nêga? Não! Então vá...”. A escrita do autor é o retrato fiel da Bahia...de Jorge e de todos os santos.

segunda-feira, 20 de maio de 2019

Salvador, cidade do futuro

Paulo Câmara*
Comecei a fazer este artigo para falar do meu encantamento pela formação singular de Salvador. A ideia era passar uma vista sobre alguns momentos da história, desde a Kirymure dos tupinambás, passando pela aldeia já mestiça e religiosa de Caramuru, até chegar a Salvador como cidade. Lembrar que a coroa portuguesa ergueu aqui uma capital do novo mundo, planejada e construída como tal, muito antes que Brasília. Mostrar que a primeira capital do Brasil, desde o início, é uma cidade voltada para o futuro.
Mas esta cidade miscigenada que se insinua e seduz pelo relevo em dois andares - cidade alta e cidade baixa - tem uma força de atração que merece ser melhor sentida, e assim melhor compreendida e cuidada, como uma mãe que pede atenção permanente dos seus filhos. E nesse ponto resolvi mudar a direção do que escrevia. Salvador aniversaria em março, mês da mulher, certamente por uma coincidência afirmativa do seu resplendor, do seu brilho, dessa luz e desse mar únicos, e o quanto isso nos obriga a um firme compromisso com essa senhora, que faz 466 anos, e merece muito mais respeito e consideração.
De certo que temos resgatado o entusiasmo e a responsabilidade com a cidade. Nos mobilizamos para que a política possa ser mais transparente e participativa. Mostramos que não aceitamos passivamente o que estão fazendo com o nosso país, como não aceitamos o que antes fizeram com nossa cidade. E isso me dá uma enorme esperança.
Salvador merece que façamos tudo por ela. Apenas começamos a dar um jeito nas coisas, e, em nome das melhores tradições, vamos nos mobilizar e unir mais ainda, somar apoios. A hora é de aglutinar protestos e vozes pontuais em torno desse projeto que resgata a capital. É hora de Salvador insistir no que é lindo e mostrar seu talento e criatividade ao mundo - como já fizemos em outros momentos. Vamos bater no peito com orgulho e voltar a ser modelo para a Bahia e para o Brasil, como farol apontado para o futuro desde 1549.
*Deputado, foi presidente da Câmara Municipal de Salvador