segunda-feira, 31 de agosto de 2009

Crise urbana: não é o fim do mundo

Antonio Risério*
De uns tempos para cá, é cada vez maior o número de pessoas que me dizem que, em matéria de crise urbana, chegamos a um beco sem saída. Estaríamos vivendo em cidades definitivamente encalacradas, à beira do colapso final.
A propósito, costumo lembrara posição de Peter Hall contra a perspectiva apocalíptica de Lewis Mumford. Em The culture of cities, Mumford argumentou que a megacidade mais não era do que uma parada ou estação na estrada para Necrópole, a cidade dos mortos. Por seu gigantismo disforme, terminaria estrangulada em suas próprias tripas urbanas. Esta visão da macrocidade estrangulada em seus próprios intestinos é retomada em A Cidade na história. “A desintegração de Roma foi o resultado final de seu supercrescimento, que resultou numa falta de função e numa perda de controle dos fatores econômicos e agentes humanos que eram essenciais à continuação de sua existência”, escreve Mumford. Para ele, “a principal contribuição de Roma ao desenvolvimento da cidade é a lição negativa de seu próprio super crescimento patológico”.
Vejam: “Todo centro megalopolitano supercrescido, hoje em dia, e toda província, fora dele, que é tocada por sua vida, exibe os mesmos sintomas de violência e desmoralização.Aqueles que fecham os olhos para estes fatos estão repetindo, com mímica exótica, justamente os atos e palavras, igualmente cegos, de seus predecessores romanos”. E ainda: “Em toda parte onde se reúnem multidões em números sufocantes... Necrópole está perto, embora não tenha ruído sequer uma pedra”.
Escrevendo seis décadas mais tarde, Peter Hall diz, em Cities in civilization, que não pode partilhar a perspectiva mumfordiana, pelo fato de que “estamos mais longe do que nunca de assistir à destruição da cidade gigante. Pelo contrário: rebatizada de Cidade Global, ela atrai desproporcionalmente as organizações que comandam e controlam a nova economia global, tanto quanto as agências de serviço especializado que as atendem; por esta razão, continua a atrair os talentosos e ambiciosos; e, justamente por isso, permanece um crisol único de criatividade”. Em Cities in civilization, Hall defende que “nenhuma espécie de cidade, ou qualquer tamanho de cidade, tem o monopólio da criatividade ou do bem viver; mas que as cidades maiores e mais cosmopolitas, apesar de todas as suas desvantagens evidentes e óbvios problemas, têm sido, através da história, os lugares que acenderam a chamas agrada da inteligência e da imaginação humanas”.
Para lembrar o milenar conceito védico, podemos dizer que Mumford aponta para o advento da kali yuga, o mais tenebroso e desgraçado entre todos os ciclos das épocas humanas. E que Hall, ao contrário, acena para uma futura idade de ouro da vida urbana, a partir da articulação ou da união de arte, tecnologia e organização. Por isso mesmo, Kotkin fala, a propósito de Hall, em The city: a global history, de um “novo otimismo”, fundado na passagem da economia industrial para uma economia baseada na informação.
Penso que o melhor é ter um olho mumfordiano e um olho halliano. E cruzá-los, sistematicamente, diante da realidade. Mas, em última análise, tendo mais para o ponto de vista de Peter Hall. Coisas decaem, sim. Cidades gigantescas, inclusive. Mas é preciso cultivar uma desconfiança essencial diante do elenco de teses que a armadilha e a realidade, simultaneamente inscritas na palavra decadência, têm gerado.
Num livro intitulado, justamente, A ideia de decadência na história ocidental, o historiador Arthur Herman escreveu: “Gostaria de salientar que, apesar de os intelectuais andarem prevendo o iminente colapso da civilização ocidental por mais de um século e meio, sua influência aumentou mais, durante este período, do que em qualquer outra época na história. Hoje, as instituições e os conceitos culturais (do Ocidente) gozam de mais prestígiodo que durante o apogeu do império europeu e suas colonizações”. Do mesmo modo que a cultura ocidental não decaiu, o grande núcleo urbano não experimentou o colapso. Nem acredito que vá experimentar. Mas também não se tem dúvida de que a crise atual das grandes cidades é complexa, tremenda eassustadora. Pode não ser o fim do mundo. Mas, com certeza, é o fim de um mundo.
* Escritor, poeta e antropólogo.
Artigo publicado no jornal A Tade de 31/08/2009

2 comentários:

  1. Balisando-se entre Mumford e Hall,que somados dão mais de 1000 paginas de "Cultura das Cidades" e "Cities in civilization" é obvio que não se pode aprofundar muito num artigo de 4 mil caracteres com espaços.
    Mas gosto do aporte e elogio pessoas que, mesmo sem estar na universidade, essa torre da Inveja, estudam os melhores autores sobre o urbano.
    So acho que Riserio, com o conhecimento que tem e os "conhecimentos" tb ( Lelé, OAS, Kertesz, etc,etc) poderia sacrificar o tempo de algumas doses para promover uma discussão pra valer sobre o assunto, porque a RMS está entre aquelas que são "o fim do mundo" MESMO...
    Lourenço Mueller

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  2. Além de leitor voraz e inteligência aguda, Antônio Risério vem demonstrando ao longo de sua vida uma invejável capacidade de formular propostas, não se limitando apenas à crítica.

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