quarta-feira, 12 de agosto de 2009

Cravo Neto transgrediu códigos da fotografia

Eder Chiodetto
Artista, que morreu domingo, buscava manifestações cósmicas no cotidiano
Um momento de beleza é um momento de encontro", escreveu o artista Mario Cravo Neto, morto no último domingo em Salvador, aos 62 anos. E a beleza de sua arte, de fato, se explica em boa parte pela criação de um espaço simbólico de celebração de encontros. Sua fotografia promove de forma singular a junção entre realidades visíveis e as fronteiras do ficcional, entre mito, vida e arte. Sua percepção aguçada o levou a perceber, nos gestos cotidianos, manifestações cósmicas onde se podia entrever a origem do universo. O ancestral embutido no banal.Esse caráter metafísico de seu trabalho foi gestado, não há como negar, pelo ambiente artístico e sincrético de Salvador, na Bahia, onde nasceu, foi criado, viveu e, por fim, transformou no pano de fundo de sua obra. "Na Bahia encontra-se o que a gente tem carinhosamente em comum e não agressivamente o que tem de diferente", escreveu nos agradecimentos do livro "Laróyè" (Áries Editora, 2000), sem dúvida, um dos mais belos, importantes e vigorosos livros de fotografia já editado no Brasil. "Laróyè" é uma saudação em iorubá para o exu, entidade controversa adorada por Cravo Neto.Além do cenário, havia a família e seu entorno a contribuir. O escultor Mario Cravo Junior, seu pai, ao saber naquele abril de 1947 que sua mulher estava em trabalho de parto no hospital, optou por ficar em casa, de frente para o mar, ouvindo "Prélude à l'Après-midi d'un Faune", de Claude Debussy. Depois, levaria seu pequeno "fauno" para conviver com artistas e intelectuais de sua geração como Jorge Amado, Pierre Verger, Carybé e Pietro e Lina Bo Bardi, entre outros tantos.Trabalhando em paralelo com a escultura e a fotografia desde os 17 anos, Mariozinho, como seria sempre chamado pelos mais íntimos, aprimorou seus estudos após morar em Berlim com o pai e rodar a Europa. Estudou com o fotógrafo Max Jacob e com o pintor modernista italiano Emilio Vedova (1919-2006). Em 1968, estudou na Arts Students League, em Nova York.Num dado momento da carreira, percebeu que seria impossível manter em paralelo as atividades de escultor e fotógrafo. Optou pela segunda. "Jorge Amado, assim como outros, gostavam de minhas fotos e diziam que eu devia me dedicar só a ela", contou.Um sério acidente de carro em 1975 o deixou com as duas pernas quebradas e sobre uma cama por cerca de um ano, levando-o à fotografia de estúdio. Iniciou assim as séries em preto e branco "O Fundo Neutro" e "Meus Personagens", as mais conhecidas de sua trajetória e que constam nas mais prestigiadas coleções particulares e públicas do mundo como a do MoMA (Museu de Arte Moderna de Nova York), a do Tokyo Institute of Polytechnics, a da Fundação Cartier (Paris), entre muitas outras.Arte colecionávelNo contexto da fotografia de arte brasileira, Cravo Neto tem uma importância fundamental: foi um dos primeiros a ter sua obra valorizada pelo mercado de arte internacional, a introduzir no Brasil a ideia da fotografia como objeto de arte colecionável, a discutir tiragem, qualidade de cópia etc.Para além desse aspecto, a obra de Cravo Neto continuará a ser uma chave fundamental para se discutir um tipo de arte que utiliza elementos mínimos para expressar a ancestralidade do homem, seu lugar no universo, a poética que envolve a noção de passado e futuro etc.Foi assim, por exemplo, que se deu sua incursão no candomblé. Ao fotografar os ícones ritualísticos da religião afro-brasileira, Cravo Neto buscava de forma muito peculiar conectar objetos, pessoas, atmosfera, símbolos e mitos organizados em sua beleza escultórica para celebrar a pulsão de vida da matéria. A morte como parte dessa pulsão, um ciclo que não cessa.Com Cravo Neto, a fotografia transgrediu códigos e ampliou suas possibilidades de representação. São raros os artistas que conseguem ampliar o repertório de sua arte dessa maneira. E raros artistas não morrem jamais. Laróyè!
Publicado na Folha de São paulo , em 11/08/09

Um comentário:

  1. Conheci Mario Cravo numa noite em Salvador nos inícios da sua fotografia...naquela noite ele estava acompanhado de uma moça-mulher-baiana daquelas, muito além do que podemos achar ser especial que só na Bahia pode existir...

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