quarta-feira, 29 de abril de 2020
Amsterdam adota modelo de Economia Circular
A economista Kate Raworth adaptou seu modelo de donut para Amsterdã. A abordagem poderá ajudar o município com sua recuperação pós-pandemia. A cidade de Amsterdã lançou sua estratégia Circular 2020-2025, que descreve as ações para reduzir pela metade o uso de novas matérias-primas até 2030.
A cidade pretende ter uma economia completamente circular até 2030.
Como estratégia, Amsterdã tem como objetivo reduzir o desperdício de alimentos em 50% até 2030, dos 41 quilos de desperdício anual de alimentos por pessoa hoje, com o excedente sendo encaminhado para os moradores que mais precisam. Amsterdã implementará requisitos mais rigorosos de sustentabilidade em licitações de construção. Por exemplo, os edifícios receberão um 'passaporte de materiais' para que as empresas de demolição possam determinar se os materiais ainda são valiosos e onde materiais reutilizáveis podem ser encontrados. O primeiro bairro circular da cidade a pilotar essa abordagem está sendo desenvolvido na área de Buiksloterham. O município também quer reduzir o próprio uso de novas matérias-primas em 20% e, até 2030, fazer apenas compras circulares. Isso se aplicará não apenas à aquisição de produtos como material de escritório e equipamentos de informática, mas também a projetos de infraestrutura, como construção de estradas. Amsterdã já está trabalhando com empresas e organizações de pesquisa em mais de 200 projetos de economia circular. Isso inclui um piloto na indústria de tintas e brechós, através do qual a tinta descartada de látex é coletada e processada recentemente para revenda.
“Estamos pedindo às pessoas e às empresas de Amsterdã que adotem uma abordagem diferente da comida, mudem seus pensamentos sobre bens e façam escolhas diferentes em suas vidas e em seu trabalho. Os benefícios dessas mudanças nem sempre serão visíveis imediatamente - alguns podem ocorrer apenas após algumas décadas - ou ocorrerão no outro lado do mundo, onde muitas de nossas matérias-primas são atualmente extraídas No entanto, acrescenta: “Acreditamos firmemente que Amsterdã está à altura do desafio. Amsterdã é uma cidade progressista e liberal que não tem medo de experimentar ou investir no futuro
quinta-feira, 23 de abril de 2020
Napoleão, Bolsonaro e o Covid 19
Armando Avena*
Quando as tropas de Napoleão invadiram a Rússia em 1812, Napoleão Bonaparte comandava o invencível exército da França e desafiava os impetuosos russos para a luta. Mas lutar sem armas contra um inimigo muito mais poderoso seria apenas uma bravata que resultaria em milhões mortos. Por isso, o comandante russo, Marechal Kutuzov, usou a única arma disponível: a racionalidade. E montou uma estratégia: “recuar sem travar batalha”. Assim, quando as tropas napoleônicas chegavam nas cidades russas, prontas para a batalha, elas estavam vazias: o exército e a população recuavam para o interior, não sem antes destruir tudo, deixando as tropas francesas sem água, sem abrigo e sem alimentos. Surpreso e sem poder parar, Napoleão foi em frente buscando desesperadamente a batalha até encontrar o inverno russo. Com suas tropas longe do ponto de partida, sem abrigo ou alimentação, Napoleão foi obrigado a recuar e a medida que o fazia, agora sim, era atacando sem dó nem piedade pela retaguarda. E milhares de soldados franceses morreram, desertaram ou se entregaram. Napoleão havia perdido a guerra.Essa história deve nos guiar na luta contra o coronavírus, um inimigo que, por enquanto, é tão invencível quanto o exército de Napoleão. Contra esse inimigo, a Covid-19, devemos primeiro recuar, e o isolamento é a forma de retroceder, enquanto preparamos nossas defesas. Se fosse capitão do exército russo, o presidente Bolsonaro estaria propondo enfrentar os franceses de peito aberto, “como homem”, numa impetuosidade ridícula, que resultaria em milhares de mortos. Felizmente, agindo como generais, a maioria do prefeitos e governadores do Brasil estão racionalizando a batalha, preparando-se para guerra, que pode levar um pouco mais de tempo, mas resultará na derrota do vírus e com um número menor de vítimas. A estratégia de Kutuzov quase destruiu a economia russa, assim como o isolamento social vai afetar fortemente nossa economia mas, vencida a guerra, ela florescerá, os negócios serão retomados, os países e estados vão recompor suas finanças e os brasileiros voltarão ao trabalho sem ter na consciência milhares de corpos que sequer tem onde ser sepultados. A lembrança da estratégia russa é adequada, no momento em que a população brasileira parece à beira de abandonar o isolamento social. Não podemos permitir isso, não por causa de um Napoleão de hospício, que terá na Covid-19 sua Santa Helena, mas pela dignidade do Brasil que não pode entrar para a história como o país que aceitou a morte do seu povo em troca de uma duvidosa preservação da economia. * Economista e escritor. Membro da Academia de Letras da Bahia
Quando as tropas de Napoleão invadiram a Rússia em 1812, Napoleão Bonaparte comandava o invencível exército da França e desafiava os impetuosos russos para a luta. Mas lutar sem armas contra um inimigo muito mais poderoso seria apenas uma bravata que resultaria em milhões mortos. Por isso, o comandante russo, Marechal Kutuzov, usou a única arma disponível: a racionalidade. E montou uma estratégia: “recuar sem travar batalha”. Assim, quando as tropas napoleônicas chegavam nas cidades russas, prontas para a batalha, elas estavam vazias: o exército e a população recuavam para o interior, não sem antes destruir tudo, deixando as tropas francesas sem água, sem abrigo e sem alimentos. Surpreso e sem poder parar, Napoleão foi em frente buscando desesperadamente a batalha até encontrar o inverno russo. Com suas tropas longe do ponto de partida, sem abrigo ou alimentação, Napoleão foi obrigado a recuar e a medida que o fazia, agora sim, era atacando sem dó nem piedade pela retaguarda. E milhares de soldados franceses morreram, desertaram ou se entregaram. Napoleão havia perdido a guerra.Essa história deve nos guiar na luta contra o coronavírus, um inimigo que, por enquanto, é tão invencível quanto o exército de Napoleão. Contra esse inimigo, a Covid-19, devemos primeiro recuar, e o isolamento é a forma de retroceder, enquanto preparamos nossas defesas. Se fosse capitão do exército russo, o presidente Bolsonaro estaria propondo enfrentar os franceses de peito aberto, “como homem”, numa impetuosidade ridícula, que resultaria em milhares de mortos. Felizmente, agindo como generais, a maioria do prefeitos e governadores do Brasil estão racionalizando a batalha, preparando-se para guerra, que pode levar um pouco mais de tempo, mas resultará na derrota do vírus e com um número menor de vítimas. A estratégia de Kutuzov quase destruiu a economia russa, assim como o isolamento social vai afetar fortemente nossa economia mas, vencida a guerra, ela florescerá, os negócios serão retomados, os países e estados vão recompor suas finanças e os brasileiros voltarão ao trabalho sem ter na consciência milhares de corpos que sequer tem onde ser sepultados. A lembrança da estratégia russa é adequada, no momento em que a população brasileira parece à beira de abandonar o isolamento social. Não podemos permitir isso, não por causa de um Napoleão de hospício, que terá na Covid-19 sua Santa Helena, mas pela dignidade do Brasil que não pode entrar para a história como o país que aceitou a morte do seu povo em troca de uma duvidosa preservação da economia. * Economista e escritor. Membro da Academia de Letras da Bahia
sábado, 11 de abril de 2020
40 dias de quarentena em Roma
Luiz Mott*
Completam-se 40 dias que permaneço no olho do furacão da pandemia. Ao chegar em Roma eram 29 mortes. Hoje, passam de 18 mil. Felizmente a curva de casos do corona virus começa a baixar. Bravo!
Meu velho corpo, que completa 74 anos agora em maio, continua resistindo bravamente, sem febre nem problemas respiratórios. Torço que eu e voce, meu leitor\a continuemos longe dessa “miséra”!
Minha volta à Bahia continua sine die. O voo da Iberia marcado para o dia da mentira, foi efetivamente um engodo da empresa de viagens Edestinos, pois cobraram velozmente o valor da passagem e ainda me empurraram um seguro, mas não fizeram nada até agora para encontrar solução alternativa. Tenho outra reserva pela Air Europa para fim de maio, também essa companhia, outra enrolação: seu telefone 0800 irresponsavelmente deixou de atender.
Enquanto isso, vou fazendo das tripas coração e vivendo essa tristeza de estar na cidade mais interessante do mundo, com dias deslumbrantes de sol primaveril, sem poder usufruir de suas maravilhas arqueológicas e inigualável arte sacra. E o pior é que aumentou o valor das multas (até 3 mil euros, 15 mil reais!) contra quem é pego batendo perna sem justificativa ou muito distante de sua moradia. Autoridades sanitárias da Lombardia e Vêneto, regiões mais afetadas, determinaram o uso obrigatório de “mascherina” na rua. Apesar de milhões de máscaras continuar sendo importadas da China, não se encontram disponíveis à venda: percorri uma dezena de farmácias sem encontrar álcool líquido. Circula um vídeo mostrando diversos prefeitos italianos dando baixa e escorraçando pessoas rebeldes dos parques e jardins. É perm itido le var cachorro prá passear, só pertinho da residência e fazer-se acompanhar de apenas um filho no supermercado. Pegaram essa semana uma velinha que tinha saído onze vezes no mesmo dia pra fazer compras! A maioria das multas é contra motoristas viajando sem justificativa, gente andando de bicicleta ou fazendo cooper, mas sobretudo, pequenos estabelecimentos comerciais funcionando clandestinamente.
Uma autoridade sanitária advertiu na TV às manicures e cabeleireiras que estavam atendendo clientes a domicílio. Frequentadores de festinhas clandestinas foram multados sem apelação, assim como um adolescente que insistia em visitar sua namorada em bairro distante. Irregularidades sanitárias também têm sido punidas: doentes confirmados que não respeitaram o confinamento residencial, moradores de áreas mais contaminadas mudando-se sorrateiramente para outra região, pior ainda, trambiqueiros oferecendo na internet medicamentos não autorizados ou falsificados.
No jornal das 7 da manhã, tem missa diária do Papa. Semana Santa on line... Amém. Aleluia. *Antropólogo e professor da Ufba
Completam-se 40 dias que permaneço no olho do furacão da pandemia. Ao chegar em Roma eram 29 mortes. Hoje, passam de 18 mil. Felizmente a curva de casos do corona virus começa a baixar. Bravo!
Meu velho corpo, que completa 74 anos agora em maio, continua resistindo bravamente, sem febre nem problemas respiratórios. Torço que eu e voce, meu leitor\a continuemos longe dessa “miséra”!
Minha volta à Bahia continua sine die. O voo da Iberia marcado para o dia da mentira, foi efetivamente um engodo da empresa de viagens Edestinos, pois cobraram velozmente o valor da passagem e ainda me empurraram um seguro, mas não fizeram nada até agora para encontrar solução alternativa. Tenho outra reserva pela Air Europa para fim de maio, também essa companhia, outra enrolação: seu telefone 0800 irresponsavelmente deixou de atender.
Enquanto isso, vou fazendo das tripas coração e vivendo essa tristeza de estar na cidade mais interessante do mundo, com dias deslumbrantes de sol primaveril, sem poder usufruir de suas maravilhas arqueológicas e inigualável arte sacra. E o pior é que aumentou o valor das multas (até 3 mil euros, 15 mil reais!) contra quem é pego batendo perna sem justificativa ou muito distante de sua moradia. Autoridades sanitárias da Lombardia e Vêneto, regiões mais afetadas, determinaram o uso obrigatório de “mascherina” na rua. Apesar de milhões de máscaras continuar sendo importadas da China, não se encontram disponíveis à venda: percorri uma dezena de farmácias sem encontrar álcool líquido. Circula um vídeo mostrando diversos prefeitos italianos dando baixa e escorraçando pessoas rebeldes dos parques e jardins. É perm itido le var cachorro prá passear, só pertinho da residência e fazer-se acompanhar de apenas um filho no supermercado. Pegaram essa semana uma velinha que tinha saído onze vezes no mesmo dia pra fazer compras! A maioria das multas é contra motoristas viajando sem justificativa, gente andando de bicicleta ou fazendo cooper, mas sobretudo, pequenos estabelecimentos comerciais funcionando clandestinamente.
Uma autoridade sanitária advertiu na TV às manicures e cabeleireiras que estavam atendendo clientes a domicílio. Frequentadores de festinhas clandestinas foram multados sem apelação, assim como um adolescente que insistia em visitar sua namorada em bairro distante. Irregularidades sanitárias também têm sido punidas: doentes confirmados que não respeitaram o confinamento residencial, moradores de áreas mais contaminadas mudando-se sorrateiramente para outra região, pior ainda, trambiqueiros oferecendo na internet medicamentos não autorizados ou falsificados.
No jornal das 7 da manhã, tem missa diária do Papa. Semana Santa on line... Amém. Aleluia. *Antropólogo e professor da Ufba
segunda-feira, 16 de março de 2020
Glauber Rocha e Castro Alves - coincidências
Nivaldo Lemos*
A começar pela data e o local de nascimento, 14 de março, na Bahia, as vidas de Castro Alves (1847-1871) e Glauber Rocha (1939-1981), embora separadas no tempo por quase um século, aproximam-se inevitavelmente uma da outra quando se consideram algumas coincidências que marcaram a trajetória de cada um no amor, na arte, na política ou na literatura. Ambos foram intelectuais militantes, modernos ao seu tempo e, de certa forma, românticos que, com sua obra, reafirmaram a condição humana, com paixão e compaixão. Ambos foram poetas, dramaturgos e revolucionários comprometidos com a luta do seu povo – denunciando através da arte seja a escravidão de um Navio Negreiro, seja a miséria de uma Terra em Transe. E, finalmente, ambos viveram as mais intensas e turbulentas paixões de suas vidas com atrizes que acabariam protagonizando suas primeiras obras, no teatro e no cinema: Castro Alves deu a Eugênia Câmara – grande amor de sua vida – o principal papel na sua peça de estréia, Gonzaga ou A Revolução de Minas, assim como Glauber Rocha ofereceu a Helena Ignez – primeira mulher e também sua maior paixão – um papel no curta-metragem O Pátio, igualmente sua obra de estréia como cineasta.
É claro que parte dessas coincidências pode ser atribuída às conjunturas em que viveram, ambas de grande efervescência política, social e cultural. No caso do poeta dos escravos, o surto de industrialização que ocorreu no país entre 1850 e 1860 acentuou as contradições no seio da sociedade brasileira e alimentou as primeiras idéias abolicionistas, que se fortaleceram após a libertação dos escravos nos EUA, em 1862, mesmo ano em que o poeta francês Victor Hugo publicou Os Miseráveis, obra que influenciaria profundamente Castro Alves. Ao recitar seus poemas, o abolicionista sempre falava mais alto e, freqüentemente, inflamava-se com eloqüência hiperbólica e metáforas arrojadas sobre a condição desumana da escravidão. Nessas horas, sua imaginação alçava vôo na amplidão do infinito, o que levou Capistrano de Abreu a chamá-lo de "condoreiro", comparando sua poesia ao vôo de um condor.
No caso de Glauber, a euforia desenvolvimentista de Juscelino Kubitschek (1956-1961), a Revolução Cubana e a utopia trabalhista de Jango, seguidas do golpe militar (1964) e da resistência à ditadura nos anos 60/70, favoreceram o caldo de cultura que alimentaria a maneira dele expressar o mundo, seja através da poesia, do teatro ou, finalmente, da arte cinematográfica. O Cinema Novo – criado por ele e cujo lema era “uma idéia na cabeça, uma câmara na mão” – não apenas rompeu paradigmas na arte de filmar como foi um dos principais movimentos de renovação artística e cultural do Brasil e expressão de militância política para muitos intelectuais que lutavam contra a ditadura que sufocava o país à época. Ou seja, como fizera Castro Alves no século anterior, com sua poesia abolicionista e militante, Glauber também emprestou sua câmera a uma causa, no caso à construção de uma sociedade mais justa e democrática.
A exemplo das coincidências apontadas, outros traços comuns de suas personalidades podem ser atribuídos à influência do poeta dos escravos sobre o cineasta. Ambos eram geniais, trágicos, polêmicos e arrebatadores e tinham premonição de que morreriam jovens – “Quando eu morrer... não lancem meu cadáver/No fosso de um sombrio cemitério.../Odeio o mausoléu que espera o morto/Como o viajante desse hotel funéreo”, Castro Alves. “Eu sou um apocalíptico que morrerei cedo...”, Glauber Rocha. O mesmo pode-se dizer da coincidência de ambos terem optado pelo curso de direito e abandonado a cátedra para assumir integralmente sua arte; ou de terem participado, ainda bem jovens, de jograis e teatralizações poéticas na escola; ou mesmo de terem colaborado intensamente com publicações culturais: Castro Alves, com o jornal de idéias A Luz, e Glauber, com a revista literária Mapa.
Há coisas, porém, que fogem inteiramente a uma explicação racional e se enquadram mais no terreno do imponderável ou do fantástico, como por exemplo: ambos nasceram no mesmo dia e mês, no sertão da Bahia, e ainda crianças se mudaram com a família para a capital; ambos foram atingidos por tragédias familiares – José Antônio, irmão de Castro Alves, suicidou-se e a irmã de Glauber, Ana Marcelina, morreu de leucemia. Anos depois outra irmã sua, a atriz Glauce Rocha, que trabalhou no clássico Terra em Transe, também morreu, ao cair no poço de um elevador. Castro Alves morreu em 6 de julho de 1871, pouco tempo depois de amputar um pé por causa de um tiro acidental em uma caçada. E Glauber Rocha, em 22 de agosto de 1981, aos 41, apenas um mês e meio antes de completar 42, quando, segundo dizia, morreria por ser uma reencarnação de Castro Alves, morto com 24 anos (42 ao contrário). Ambos morreram de tuberculose.
Castro Alves foi enterrado no dia seguinte, no Cemitério do Campo Santo, em Salvador-BA. Passados dez anos de sua morte, seu amigo e conterrâneo Ruy Barbosa proferiu o famoso Elogio de Castro Alves, onde resumia as qualidades literárias do poeta: “O que faz a sua grandeza, são essas qualidades superiores a todas as escolas, que, em todos os estados da civilização, constituíram e hão de constituir o ‘poeta’ aquele que, como o pai da tragédia grega, possa dedicar as suas obras ‘ao Tempo’: sentiu a Natureza; teve a inspiração universal e humana; encarnou artisticamente nos seus cantos o grande pensamento de sua época”[BARBOSA, 1995, p. 613].
Glauber também foi sepultado um dia após, no Cemitério São João Batista, Rio de Janeiro, cenário onde anos antes filmara o dumentário Di Glauber - durante o enterro do pintor Di Cavalcanti, seu amigo -, cujo título original era uma citação de Versos íntimos, de Augusto dos Anjos: Ninguém Assistirá Ao Enterro Da Tua Última Quimera, Somente A Ingratidão, Aquela Pantera, Foi Sua Companheira Inseparável. O filme ganhou o Prêmio Especial do Júri no Festival de Cannes, 1977. No enterro de Glauber, o antropólogo e seu amigo Darcy Ribeiro fez o seguinte panegírico: “Glauber passou uma manhã abraçado comigo chorando, chorando, chorando compulsivamente. Eu custei a entender, ninguém entendia que Glauber chorava a dor que nós devíamos chorar, a dor de todos os brasileiros. O Glauber chorava as crianças com fome. O Glauber chorava a brutalidade. O Glauber chorava a estupidez, a mediocridade, a tortura. Ele não suportava, chorava, chorava, chorava. Os filmes do Glauber são isto. É um lamento. É um grito. É um berro. Esta herança que fica de Glauber para nós é de indignação, ele foi o mais indignado de nós. Indignado com o mundo qual tal é. Assim”.
Para encerrar, portanto, arrisco-me a dizer que tanto um como o outro foram – cada um em seu tempo – intelectuais sensíveis e identificados com os ideais revolucionários. E que, a par de contradições e ambivalências, ambos viveram a história de sua época intensamente, devotando-se dialeticamente com a mesma paixão ao amor, à arte, à política e à cultura como um todo, para eles expressões indissociáveis da vida e capazes, per se, de mudar o destino da própria humanidade.
sábado, 14 de março de 2020
A peste da Bicha e o Coronavírus
Estou em Roma desde 1º de março para uma estadia prevista de 3 meses entre Itália e Portugal. Viagem agendada há meses, apartamentos alugados, como faço duas vezes por ano há uma década. Ao deixar a Bahia, o coronavirus estava concentrado apenas no norte da Itália e como eu ia permanecer no centro-sul, imaginei-me protegido. Em dez dias a desgraça saltou de 29 mortos para 631! Mas, felizmente, os curados também: de 50 para 1004. Agora 4 casos em Roma. Aí no Brasil, hoje (5ª feira) são 34 casos confirmados, 3 na Bahia. Espero ficar imune ao vírus e para tanto, tenho seguido cuidadosamente as regras de prevenção, sem pânico nem paranoia. Continuo assintomático, porém refém das medidas sanitárias do Ministério da Saúde: ainda podemos ir ao supermercado... Também aqui não há álcool nem máscaras à venda em lugar algum. Comenta-se que a situação é tão grave quanto durante a 2ª Guerra! Sem bombardeamento, graças à Madonna!
A humanidade já viveu piores pandemias: a peste de Justiniano, sec.VI, matou 100 milhões na Europa e Oriente; a Peste Negra dizimou 50 milhões no século XIV; em 1591, a peste só em Roma levou à sepultura mais de 60 mil almas, incluindo meu patrono São Luiz Gonzaga, 23 anos, jesuíta, em cujo belo tumulo, ateu oportunista, implorei sua proteção a todos nós.
Em 1686 a Peste da Bicha arrasou nossa Bahia: segundo o Padre Vieira, tratava-se de “um novo gênero de peste nunca visto nem entendido dos médicos, buscando suas vítimas de preferência entre os brancos, os menos adaptados ao clima”. Os sintomas desta terrível peste, popularmente conhecida como “a bicha” e diagnosticada como febre amarela, eram assustadores: “calor tépido, pulso sossegado, delírios, ânsias e grande febre, lançando a vítima copioso sangue pela boca”. Diz Rocha Pita que “os primeiros feridos foram dois homens que jantados em casa de uma meretriz, morreram em 24 horas lançando pela boca copioso sangue. Se contavam os mortos pelos enfermos: houve dia em que caíram 200! Estavam cheias as casas de moribundos, as igrejas de cadáveres, as ruas de tumbas”. Em pouco tempo morreram da bicha o Tenente General, o Capelão do Governador, o Arcebispo D. João da Madre de Deus, cinco Desembargadores e o próprio Governador Matias da Cunha, em 1688.
“Emendemos nossos erros, que Deus porá termo aos males”, sugeriu o devasso Gregório de Matos. Aí nossa Câmara Municipal instituiu São Francisco Xavier o novo patrono da cidade, realizando faustosas procissões e novena implorando o fim dos castigos. Com o tempo, as mortes foram diminuindo e a Bahia voltou à sua normalidade. A relíquia do braço desse santo jesuíta continua em nossa Catedral Basílica.
Oxalá daqui a dois sábados eu assine nova crônica!
*Luis Mott é Antropólogo e professor da UFBA
sábado, 21 de dezembro de 2019
Os culhões de ACM e Mário Cravo
Jolivaldo Freitas*
Pegou fogo, não se sabe como e nem porquê o “Monumento à Cidade do Salvador”, projetado, construído e instalado pelo original artista plástica Mário Cravo Júnior, que morreu ano passado. Um dos últimos artistas plásticos do chamado Grupo de Jorge Amado. A peça de arte era batizada de “Monumento à Cidade do Salvador”, mas os jornalistas à época, ano de 1970, quando foi instalada na Praça Cayru, ali perto do prédio da Marinha chamaram de “Fonte da Rampa do Mercado”. Já o povo não gostou, não entendeu e batizou de “Os Culhões de ACM”. Os artistas locais que sempre se detrataram nos bastidores, por sua vez, chamaram de “Os Culhões de Mário Cravo”. Certo é que era uma obra emblemática que nunca passou desapercebida, embora os guias turísticos tivessem enormes dificuldades para explicar aos de fora e aos mais novos daqui mesmo o que ela queria dizer.
A obra, pelo que se podia perceber, parece ter sofrido uma influência dos desenhos do arquiteto Oscar Niemayer, que construiu Brasília, até porque parecia excertos dos suportes do Palácio da Alvorada, coisa que Mário Cravo nunca admitiu.
Quem encomendou a obra foi o velho ACM, quando prefeito. Arte no estilo modernista, em fibra de vidro – uma novidade em Salvador principalmente com aquelas dimensões – para contemplar o que estava sendo feito na cidade visando sua atualização urbana. Ali, na Cayru já não tinha mais o terminal de bondes e ônibus fazia tempo. Anos antes tinha sido inaugurada a Avenida Contorno ligando a Cidade Baixa à orla Sul e Salvador passava por um surto de modernização sem precedentes.
Pois é estranho, muito estranho este fogaréu destruindo a incompreendida obra que competia com o Elevador Lacerda. Como diz dona Milu em Tieta do Agreste, obra de Jorge Amado, amigo do escultor Mário Cravo: “Mistério”.
-------------------------------
*Jornalista a escritor. Autor de Histórias da Bahia – Jeito Baiano e “Baianidade...”
Pegou fogo, não se sabe como e nem porquê o “Monumento à Cidade do Salvador”, projetado, construído e instalado pelo original artista plástica Mário Cravo Júnior, que morreu ano passado. Um dos últimos artistas plásticos do chamado Grupo de Jorge Amado. A peça de arte era batizada de “Monumento à Cidade do Salvador”, mas os jornalistas à época, ano de 1970, quando foi instalada na Praça Cayru, ali perto do prédio da Marinha chamaram de “Fonte da Rampa do Mercado”. Já o povo não gostou, não entendeu e batizou de “Os Culhões de ACM”. Os artistas locais que sempre se detrataram nos bastidores, por sua vez, chamaram de “Os Culhões de Mário Cravo”. Certo é que era uma obra emblemática que nunca passou desapercebida, embora os guias turísticos tivessem enormes dificuldades para explicar aos de fora e aos mais novos daqui mesmo o que ela queria dizer.
A obra, pelo que se podia perceber, parece ter sofrido uma influência dos desenhos do arquiteto Oscar Niemayer, que construiu Brasília, até porque parecia excertos dos suportes do Palácio da Alvorada, coisa que Mário Cravo nunca admitiu.
Quem encomendou a obra foi o velho ACM, quando prefeito. Arte no estilo modernista, em fibra de vidro – uma novidade em Salvador principalmente com aquelas dimensões – para contemplar o que estava sendo feito na cidade visando sua atualização urbana. Ali, na Cayru já não tinha mais o terminal de bondes e ônibus fazia tempo. Anos antes tinha sido inaugurada a Avenida Contorno ligando a Cidade Baixa à orla Sul e Salvador passava por um surto de modernização sem precedentes.
Pois é estranho, muito estranho este fogaréu destruindo a incompreendida obra que competia com o Elevador Lacerda. Como diz dona Milu em Tieta do Agreste, obra de Jorge Amado, amigo do escultor Mário Cravo: “Mistério”.
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*Jornalista a escritor. Autor de Histórias da Bahia – Jeito Baiano e “Baianidade...”
quinta-feira, 28 de novembro de 2019
OS MISTÉRIOS DA BARRA
Armando Avena*
Quando se chega ao Cristo e os olhos percorrerem a praia até chegarem ao Farol da Barra, a certeza é imediata: estamos diante de uma das mais belas vistas do mundo. E, no entanto, a medida que se anda pelo calçadão um mistério começa a tomar forma, pois, ao invés de casas e apartamentos milionários e hotéis cinco estrelas, como se vê em Copacabana, Nápoles ou Fortaleza, o que se vê são casas abandonadas, restaurantes e pousadas de quinta categoria, agencias bancárias e estacionamentos. E tudo piora a medida que se chega ao Porto, quando a barra começa a ficar pesada e as sub habitações se misturam ao tráfico de drogas. A Prefeitura requalificou toda a região e o projeto tendo como base uma tendência internacional de “espaço compartilhado” deu cara nova ao bairro e, no entanto, a degradação continua. O que explica o mistério da Barra? Dez entre dez especialistas põem a culpa no Carnaval. E eles tem razão. Não só porque os proprietários deixam os imóveis se degradando e no fim do ano ganham milhões alugando-os para os camarotes, mas também porque não faz sentido manter um mega carnaval de trios elétricos num bairro residencial. E suspender o alvará desses imóveis, como fez a Prefeitura, é mero paliativo.
Na verdade, é preciso tirar da Barra o mega carnaval de trios elétricos e camarotes, deixando ali apenas o Fuzuê e o Furdunço e o carnaval de blocos. A montagem de toda estrutura do carnaval e dos enormes camarotes inviabilizam a Barra como bairro residencial e trazem poucos benefícios para a cidade. Os camarotes são verdadeiros enclaves, já que muito pouco deixam em termos de investimentos e benefícios, criam uns poucos empregos e lucram muito se beneficiando das atrações pagas pelas empresas ou pelo poder público.
Está na hora do carnaval sair da Barra que nunca teve tradição carnavalesca”, afinal o carnaval foi parar ali porque em 1996 Daniela Mercury resolveu levar o Crocodilo para desfilar no Farol. E, vale lembrar, que o impacto na economia será pequeno, já que os milhares de turistas que vem à Salvador para o carnaval continuarão vindo não importa onde ele seja, os hotéis continuarão cheios em toda a parte, os blocos seguirão desfilando e os mesmos os donos de camarotes continuarão colocando suas mega estruturas em outro lugar.
*Armando Avena, é economista. Foi Secretário de Planejamento do Governo da Bahia. Artigo originalmente publicado no jornal A Tarde
Quando se chega ao Cristo e os olhos percorrerem a praia até chegarem ao Farol da Barra, a certeza é imediata: estamos diante de uma das mais belas vistas do mundo. E, no entanto, a medida que se anda pelo calçadão um mistério começa a tomar forma, pois, ao invés de casas e apartamentos milionários e hotéis cinco estrelas, como se vê em Copacabana, Nápoles ou Fortaleza, o que se vê são casas abandonadas, restaurantes e pousadas de quinta categoria, agencias bancárias e estacionamentos. E tudo piora a medida que se chega ao Porto, quando a barra começa a ficar pesada e as sub habitações se misturam ao tráfico de drogas. A Prefeitura requalificou toda a região e o projeto tendo como base uma tendência internacional de “espaço compartilhado” deu cara nova ao bairro e, no entanto, a degradação continua. O que explica o mistério da Barra? Dez entre dez especialistas põem a culpa no Carnaval. E eles tem razão. Não só porque os proprietários deixam os imóveis se degradando e no fim do ano ganham milhões alugando-os para os camarotes, mas também porque não faz sentido manter um mega carnaval de trios elétricos num bairro residencial. E suspender o alvará desses imóveis, como fez a Prefeitura, é mero paliativo.
Na verdade, é preciso tirar da Barra o mega carnaval de trios elétricos e camarotes, deixando ali apenas o Fuzuê e o Furdunço e o carnaval de blocos. A montagem de toda estrutura do carnaval e dos enormes camarotes inviabilizam a Barra como bairro residencial e trazem poucos benefícios para a cidade. Os camarotes são verdadeiros enclaves, já que muito pouco deixam em termos de investimentos e benefícios, criam uns poucos empregos e lucram muito se beneficiando das atrações pagas pelas empresas ou pelo poder público.
Está na hora do carnaval sair da Barra que nunca teve tradição carnavalesca”, afinal o carnaval foi parar ali porque em 1996 Daniela Mercury resolveu levar o Crocodilo para desfilar no Farol. E, vale lembrar, que o impacto na economia será pequeno, já que os milhares de turistas que vem à Salvador para o carnaval continuarão vindo não importa onde ele seja, os hotéis continuarão cheios em toda a parte, os blocos seguirão desfilando e os mesmos os donos de camarotes continuarão colocando suas mega estruturas em outro lugar.
*Armando Avena, é economista. Foi Secretário de Planejamento do Governo da Bahia. Artigo originalmente publicado no jornal A Tarde
segunda-feira, 25 de novembro de 2019
Risério: Sobre o Relativismo Pós moderno e a Fantasia Fascista da Esquerda Identitária
P: Você faz uma analogia entre as patrulhas ideológicas dos anos 70 e o que chama de comportamento fascista da esquerda identitária dos dias atuais. O que aproxima e o que diferencia os dois fenômenos?
R: Penso que há duas diferenças básicas: a diferença mental e a diferença comportamental. A diferença mental diz respeito ao seguinte: apesar do sectarismo e da estreiteza política e cultural, aqueles esquerdistas das patrulhas ideológicas ainda tinham uma visão de conjunto da sociedade que pretendiam mudar. Hoje, não: os identitários não têm uma percepção global da sociedade. Só sabem ver baias, guetos, nichos, escaninhos. Perderam a percepção da totalidade. Pensam e operam de forma fragmentária, canonizando seus próprios guetos. Suas reivindicações não levam em conta a população brasileira, mas apenas os desejos e interesses deles mesmos. Por exemplo: os neonegros se conduzem como se o problema do desemprego não fosse social, mas étnico; as neofeministas, por sua vez, se conduzem como se todo problema trabalhista fosse sexual. Não estão nem aí para o fato de o desemprego ser um problema geral da população brasileira. Já no plano comportamental, a diferença está no grau de violência. O grau de violência das patrulhas ideológicas era relativamente baixo. Mas as milícias identitárias são brutais, truculentas. O que aproxima as antigas patrulhas e as atuais milícias é a intolerância. Com a diferença de que os identitários levam essa intolerância ao extremo. Se tivessem poder, promoveriam banimentos e fuzilamentos. Digamos, por assim dizer, que as patrulhas eram fascistoides, ao passo que os identitários são fascistas de cabo a rabo, fascistas totais.
P: Você escreve que a esquerda identitária se sente moralmente superior aos mortais comuns, mas também que ela promove a "politização do ressentimento". De que forma essa esquerda capitaliza o ressentimento de determinados grupos?
R: Eles se veem como a própria encarnação do Bem. Comportam-se como se o “oprimido” fosse, apenas por ser “oprimido”, um ente sagrado, moralmente superior. Mais: o “oprimido”, só por ser “oprimido”, é o portador da verdade, do sentido e do destino histórico da humanidade. Ora, quem se vê assim, não tem o que aprender no mundo. Daí que a esta autoconsagração se alie a mais rude ignorância – ignorância filosófica, histórica, estética, política, cultural. O militante identitário, regra geral, é um obtuso, incapaz de enxergar um palmo além do seu nariz ou do seu quintal. Daí que, quando questionados mais seriamente, reajam não com argumentos, mas com xingamentos e ataques histéricos, acusando quem os questiona de canalha, desonesto, fascista, machista, escória moral da espécie humana, etc. Ou seja: não estão interessados em nenhum conversa; trata-se apenas de calar e asfixiar qualquer discordância, qualquer dissenso, qualquer dissidência. E fazem isso reunidos em bandos, em “coletivos” que, na verdade, não passam de milícias. E o mais curioso é que adotam essa postura moral justamente para atropelar raivosamente os mais elementares princípios éticos. Veja então qual é a estratégia discursiva do identitário: a afirmação de “status” através da afirmação da inferioridade social. É a sua autodefinição como “excluído” ou “oprimido”que lhe confere “status”. Ou seja: a autovitimização é um atalho para a autonobilitação na figura sofrida e heroica do “oprimido”, que agora veio cobrar a conta do “Ocidente Branco”. Até parece coisa de desenho animado. De certa forma, havia algo disso já na esquerda tradicional, num certo endeusamento do proletariado, contrariando, nesse caso, a visão do próprio Marx (em “A Ideologia Alemã”, por exemplo) ou mesmo a de Trótski, em “Literatura e Revolução”. A diferença é que a esquerda tradicional endeusava o proletariado, enquanto os identitários endeusam-se a si próprios.
P: A destruição de reputações com base em acusações levianas de racismo, homofobia ou misoginia vem se tornando um fenômeno frequente e assustador. A que interesses atendem as pessoas que se unem nas redes sociais para destruir o outro, sem medir consequências, em um verdadeiro tribunal inquisitorial? Não é paradoxal que essa prática venha ancorada em um discurso de defesa da tolerância?
R: Vamos caminhar com vagar. Os identitários acham que são donos absolutos da verdade, que são moralmente superiores ao resto da espécie humana e querem dominar o mundo. Ora, quando uma pessoa é capaz de chegar ao ponto de se convencer de uma coisa dessas, ela se converte em fanática. É isso o que está acontecendo à nossa volta, e já há algum tempo, com nossos políticos, artistas, intelectuais, salvo exceções realmente honrosas, apoiando ou fazendo vista grossa para o fato E o fanatismo se guia por uma perversão lógica tão insustentável quanto inflexível, tão patológica quanto implacável. Acha que vale tudo. Que tudo é legítimo para impor o “bem” e destruir o “mal”. É uma postura imediatamente comparável à dos evangélicos combatendo o candomblé. E é por isso mesmo que os identitários não demonstram a mínima hesitação em falsificar a história, em desprezar a realidade factual, em investir violenta e mentirosamente sobre quem não concorda com eles. Podemos listar facilmente exemplos de cada uma dessas coisas. Veja-se como os racialistas neonegros fecham os olhos para o fato dos negros de Palmares e dos negros malês terem sido escravistas. Fecham os olhos para o fato de que, no sistema escravista brasileiro, até escravos compravam escravos. Do mesmo modo, as neofeministas se concentram exclusivamente no ataque a um Ocidente que não mais existe: um Ocidente “patriarcal”. E não dizem nada sobre o resto do mundo: fecham os olhos para a barra pesada que as mulheres sofrem sob a opressão islâmica; fecham os olhos para a prática da extração do clitóris em culturas tradicionais africanas; fecham os olhos para a cruel dominação masculina sobre as mulheres que vemos no mundo indiano e mesmo ainda no mundo chinês. E assim por diante. É por isso mesmo que Camile Paglia diz que os identitários deveriam ser obrigados a ter cursos de história comparada – e também, acrescento, de antropologia e sociologia de sociedades e culturas extraocidentais. Se tivessem um mínimo de noção disso, saberiam que a escravidão não é um karma branco, mas um karma da humanidade. Assim como não dariam atestados de estupidez ao considerar que hoje a mulher é mais oprimida no Ocidente do que em sociedades muçulmanas, por exemplo. Mesmo em nossa antiga sociedade tupinambá, onde desfrutavam temporariamente de alguma liberdade sexual, as mulheres eram mercadoria, moedas de troca, dadas de presente a chefes e guerreiros – e, enquanto um homem podia ter várias mulheres, a mulher que cometesse adultério podia ser punida com a morte. Como os identitários se recusam a ver essas coisas, agridem e execram quem quer que chame a atenção para elas. Na verdade, para lembrar aquele slogam da polícia novaiorquina, a política deles é de “tolerância zero”.
P: Por medo, covardia ou complacência, são raríssimos os intelectuais que ousam criticar a perseguição promovida por essas novas milícias, na universidade e fora dela. Como romper essa espiral de silêncio?
P: O silêncio e a covardia dos políticos são atestados de cinismo, evidentemente, mas também é até mais compreensível do que o silêncio e a covardia dos intelectuais, já que o cinismo é uma das peças principais da “caixa de mágica” deles. Os intelectuais, ao contrário e ao menos em princípio, deveriam se manifestar com clareza contra o fascismo identitário e suas ações persecutórias. Mas essa história do “em princípio” dificilmente é confirmada pelos fatos. Renato Janine Ribeiro e outros intelectuais “de esquerda” falaram do fascismo de direita tentando impedir e impedindo pessoas críticas ao atual governo de falarem em feiras literárias como a de Paraty, que hoje mais sugerem arraiais juninos do identitarismo. Mas eles silenciam quando a mesma coisa é feita pela esquerda. E olha que a esquerda identitária começou a fazer isso bem antes, entre nós. Já em 2013, na feira literária de Cachoeira do Paraguaçu, no Recôncavo Baiano, não deixaram o geógrafo Demétrio Magnoli falar, atirando inclusive uma cabeça de porco ensanguentada em direção à mesa de onde ele falaria e praticamente o expulsando da cidade. É hilário, mas, apesar de Stálin-Mao Zedong-Pol Pot, a esquerda encena a farsa de que se acha imune ao fascismo. É muito cinismo, também. Quando ouço ou vejo essas coisas, não resisto e acabo lembrando a seguinte história. Em 1932, na Alemanha, Adolf Hitler lançou sua candidatura a chanceler. Em oposição a ele, a chamada “coalizão de Weimar” (reunindo sociais democratas, católicos e liberais) apoiou a tentativa de reeleição do marechal Hindenburg. E os comunistas lançaram candidato próprio. A parada ficou para ser decidida então no segundo turno, entre Hitler e Hindenburg. Neste segundo turno, os comunistas votaram maciçamente em Hitler. Adiante, como sempre me lembra um amigo, o Pacto Molotov-Ribentrop consagrou o parentesco entre os dois totalitarismos... No meu livro, digo que os stalinistas que levaram Maiakóvski ao suicídio são monstruosamente idênticos aos nazistas que levaram Benjamin ao suicídio. E ponto final. Agora, como romper a “espiral do silêncio”? Entrando em campo com clareza e firmeza, sem abrir mão dos fatos, sem temor, botando os pingos nos ii. Não se faz isso porque, ao contrário do que nossos professores querem nos fazer crer, a covardia intelectual é coisa mais do que comum, coisa rotineira mesmo, no dia a dia do ambiente acadêmico.
P: Você não tem receio de se tornar vítima de um linchamento por parte daqueles que detêm o virtual monopólio da fala na academia? Em outras palavras, não teme se tornar mais um alvo do fenômeno que seu livro denuncia?
R: Não, não tenho medo de nada. E essa gente já me xinga de todo jeito, sempre que tem oportunidade. Me chamam de canalha, fascista, racista, etc. Eles fazem de tudo para me intimidar, me silenciar. Na Bahia, onde moro, não só os identitários, o PT me cerca, me ameaça, me fecha todas as portas, complicando muito, inclusive, minha sobrevivência material. Cheguei a ser colunista de um jornal lá e o governo petista, que controla tudo na província com os mesmos métodos de Antonio Carlos Magalhães, exigiu minha demissão. Deixei de escrever no jornal, na imprensa local. Mas não adianta. Não vou parar de pensar, nem de dizer o que penso. No meu doce exílio na Ilha de Itaparica, sob os signos de José de Anchieta e do meu amigo João Ubaldo Ribeiro, montei uma plataforma de lançamento de mísseis político-culturais. E não vou parar de lançá-los. Esta é, na verdade, minha principal diferença com meu amigo Francisco Bosco, autor de “A Vítima Tem Sempre Razão?”. Bosco, no fundo, tem um pé plantado fundo no identitarismo. Parece mesmo acreditar na legitimidade intelectual e política do binarismo maniqueísta. Quer convencer identitários e trazê-los a outro aprisco, num horizonte mais moderado. É uma coisa de aparar arestas e promover a conciliação. Não acredito nisso. Não acredito que seja possível reconverter fanático. E não escrevo com essa intenção. Eles são irrecuperáveis. Logo, vou para a guerra. Não escrevo para eles, mas para o conjunto da sociedade, que é onde eles podem ser derrotados.
P: Você afirma que o sistema educacional brasileiro se tornou uma fábrica de ignorância. Por quê?
R: É uma constatação. Só. Antigamente, a gente dizia que era preciso ensinar os analfabetos a ler e escrever. Hoje, podemos dizer que é preciso ensinar os universitários (e professores universitários) a ler e escrever. É tão simples assim.
P: Você acredita que artistas de esquerda foram cooptados por um projeto de poder em troca da dependência crescente de recursos públicos? Fale sobre isso. Você concorda com a frase de Millôr Fernandes que recomenda desconfiarmos do idealista que lucra com seu ideal?
R: É impressionante a atração da “classe artística” (de direita, de centro, de esquerda, de tudo) por dinheiros estatais. Querem que o governo – vale dizer, o país, a sociedade – financiem todas as suas fantasias. Pensam que o Estado é uma vaca e que deve assegurar-lhes o direito de, sempre que desejarem, entrar no curral para ordenhá-la. De um modo geral, dá vontade de repetir para essa gente, ligeiramente alterada, a célebre frase de John Kennedy: não pergunte o que o Estado pode fazer por você, pergunte o que você pode fazer pelo Brasil... Mas isso não foi – nem precisa ser – sempre assim. Para não recuar muito na história, podemos nos limitar à segunda metade do século XX. A bossa nova, a poesia concreta, o cinema novo e o tropicalismo – vale dizer, nossas maiores e mais brilhantes criações estético-culturais – aconteceram sem editais, sem patrocínio oficial, sem leis de incentivo. E dou também um pequeno, recente e bem significativo exemplo. Quando Ana de Holanda era ministra da Cultura, seu irmão Chico Buarque decidiu corretamente que não seria recomendável buscar patrocínio do MinC. Percorreu o país inteiro com um belo show, sem qualquer incentivo fiscal do Estado. Um outro aspecto, que acho de alta relevância: desenvolver políticas públicas para a cultura, no Brasil, não significa bancar uma clientela preferencial, financiar artistas e intelectuais. Atuando na esfera da administração pública na Bahia, por exemplo, criei e coordenei um programa de preservação da integridade territorial e física dos terreiros de candomblé. Mais tarde, entre Brasília e São Paulo, formulei o projeto geral para a implantação do Museu da Língua Portuguesa. Além disso, boa parte dos órgãos públicos “de cultura” hoje, no Brasil, vai derrapando solenemente na maionese identitária: o que importa não é a qualidade do que se faz, mas a ação afirmativa. Ou seja, para lembrar uma expressão perfeita da socióloga Lúcia Lippi, caíram no conto do vigário da “institucionalização da compaixão”.
P: Os movimentos em defesa das minorias começaram para defender a diferença, a "outridade". Como foi possível que esses movimentos se tenham tornado tão intolerantes com a divergência? A que fatores você atribui esse processo, resumidamente?
R: O melhor é recontar a história porque aí a deformação identitária vira fratura exposta. Esses movimentos (gays, mulheres, pretos, etc.) surgiram ou ressurgiram ao longo da década de 1970, no horizonte de nossa luta geral pela reconquista da democracia no Brasil. Todas essas movimentações (na época, “de minorias”; hoje, identitárias) se projetaram então, ganharam visibilidade política e social, no contexto da luta em defesa do outro. Da luta pelo reconhecimento do outro, pelo respeito ao outro. Foi o momento maior, pelo menos em nossa história recente, de defesa e afirmação da outridade. Agora, aí vem a contradição: vitoriosos em nome do reconhecimento do outro, a primeira coisa que esses identitários fizeram, ao se afirmarem vitoriosamente na cena brasileira, foi justamente negar e combater o outro. Promover um ataque feroz e sem tréguas à outridade. Assim, negros (fenotípicos ou simbólicos) não querem saber de conversa com não-negros. Mulheres (heterossexuais ou lésbicas), desde que “radfems”, não querem saber de homens palpitando em assuntos femininos. Etc. O que começou como uma luta pelo reconhecimento do outro termina agora como uma luta que rejeita o outro, a diferença, a outridade. É uma negação muito estranha, mas que deve ser entendida também como a luta por um monopólio da fala que se traduz, objetivamente, em reserva de mercado: só negros podem falar de assuntos negros; só mulheres podem abordar questões femininas. É a guetificação e a celebração da guetificação, inclusive porque isso assegura verbas, fontes de financiamento, controle político-ideológico, etc. Toma-se então o outro, caricaturalmente, como inimigo. E assim as movimentações se encorpam numericamente, ampliando o número de seus fiéis. Claro: sabemos muito bem que o caminho mais curto para conquistar a massa não é o da complexidade, das nuances, dos matizes enriquecedores. É o caminho do binarismo maniqueísta, que gera leituras tão fáceis quanto falsas da realidade envolvente.
P: De forma sintética, quais são as suas críticas ao "racialismo neonegro"?
R: O problema principal do nosso racialismo neonegro é pretender substituir a experiência histórica e social de um povo pela experiência histórica e social de outro povo. E assim substituem a formação histórico-social brasileira pela norte-americana, numa típica conduta de colonizados. Nossos processos configuradores são totalmente distintos. Além disso, em matéria de relações interraciais, os Estados Unidos não são exemplo nenhum para o mundo. Muito pelo contrário, são uma anomalia planetária: o único país do mundo a não reconhecer oficialmente a existência de mestiços de branco e preto. Outra coisa é que nossos racialistas fecham os olhos para a realidade do assassinato espiritual do negro africano nos Estados Unidos, sob a poderosíssima pressão do poder puritano branco. Tanto que lá inexistiam orixás, terreiros, babalaôs, etc., até que eles começaram a chegar pelas migrações antilhanas, pela perseguição à “santería” cubana, promovida por Fidel Castro. No Brasil, religião negra é candomblé. Nos Estados Unidos, é a variante negra do protestantismo branco. Martinho Lutero (em inglês, Martim Luther) King era um pastor evangélico, não um babalorixá. Sempre digo que, se tivesse acontecido, no Brasil e em Cuba, o que aconteceu nos Estados Unidos e na Argentina, não teríamos hoje um só deus africano, um só orixá, em toda a extensão continental das Américas... Outra coisa é que os racialistas neonegros idealizam ao extremo a tal da “Mama África”. Daí, ficam surpresos quando dão de cara com a realidade mais ostensiva atualmente de países como a Nigéria e Angola, que é a realidade da exploração do negro pelo negro. A África Negra se tornou um rosário de ditaduras corruptas, com elites negras multimilionárias e o povo negro na miséria. Nossas feministas neonegras também fecham os olhos para um aspecto essencial da vida de Ginga, a rainha de Matamba, que não só tinha escravas pretas, como as usava como poltronas, sentando-se durante horas sobre seus dorsos nus, enquanto fazia tratativas políticas, comerciais ou militares. Apenas para tocar mais uma tecla, nossos neonegros, que são todos variavelmente mulatos, ficam perplexos, quando tomam conhecimento do fortíssimo preconceito contra os mulatos que vigora em boa parte da África Negra. Costumo observar que Barack Obama jamais ganharia uma eleição na Nigéria ou em Angola: seria rejeitado pelas massas negras pelo simples fato de não ser preto, mas mulato. Aliás, em Angola, os mulatos são tratados pejorativamente como “latons”. Bem, “latons” é como seriam classificadas por lá figuras como Nei Lopes, por exemplo. E “latonas” são, na terminologia popular dos pretos angolanos, Camila Pitanga e Thaís Araújo.
P: O feminismo estaria passando pelo mesmo processo de cooptação política e sectarização?
R: O feminismo contracultural de Betty Freedan, Germaine Greer e Gloria Steinen degringolou no neofeminismo puritano-fanático de Andrea Dworkin e similares. Elas assumiram um discurso maluco que abole totalmente a história. Imaginam um estupro original, ocorrido às primeiras luzes da história da espécie e congelam tudo aí: acreditam que aquele suposto estupro pré-histórico se repete sempre, até aos dias atuais, sempre que um homem e uma mulher vão para a cama. Qualquer relação heterossexual é colocada então sob suspeita. Catherine Deneuve e algumas intelectuais e artistas francesas reagiram contra isso, defendendo o livre exercício da sexualidade e condenando o neofeminismo norte-americano que trata o homem como inimigo. E outra mulher, Camile Paglia, definiu bem: essas neofeministas são puritanas fanáticas. Como se não bastasse, também muitas neofeministas se fazem de cegas, a depender da conveniência. Veja-se o caso do “black panther” Eldridge Cleaver, relatado por ele mesmo em seu livro “Soul on Ice”. Cleaver conta aí que estuprou uma mulher branca como “um ato de insurreição”, a fim de “sujar” as mulheres do homem branco. Mais ainda: Cleaver escreve, com a maior tranquilidade do mundo, que, antes de estuprar brancas, treinou no gueto, currando pretas pobres! E as neofeministas nunca disseram nada sobre isso. Nem contra o estupro, nem contra o racismo de Cleaver diante das moças pobres do gueto. Angela Davis preferiu não tocar no assunto. É impressionante. E mostra a que ponto as coisas podem chegar: identitários não condenam crimes cometidos por identitários. É uma noção muito estranha de justiça.
P: Que avaliação você faz das políticas de cotas e dos movimentos de ação afirmativa, como conceito e como resultados práticos? As cotas alimentam o vitimismo? O que pensa do conceito de "dívida histórica"?
R: Não acho que cotas sejam realmente necessárias e digo isso a partir da realidade dos asiáticos e seus descentes na sociedade brasileira. Não existem cotas para “amarelos”. No entanto, a ascensão social dos amarelos, no Brasil, é um fato notável. Mas, se querem implantar políticas de cotas, elas não devem ser étnicas, raciais. A razão é simples. Nem todo preto é pobre, nem todo pobre é preto. No Brasil, há pobres de todas as cores. Entre numa favela em Santa Catarina que isso fica bem explícito. E penso que não temos o direito de privilegiar, em meio às massas pobres do país, apenas um determinado segmento étnico. Isso não tem nada a ver com democracia ou justiça social. Então, se é para ter cotas, que elas não sejam simplesmente “étnicas”, mas sociais. Agora, essa conversa de “dívida histórica” é picaretagem. Se quiserem, comecem a cobrar, primeiramente, da classe dominante negra lá na África, que encheu as burras com sua participação decisiva no tráfico de escravos. Os nagôs e os orixás só foram parar na Bahia porque foram derrotados em guerras contra os daomeanos, sendo então escravizados e vendidos para cá. Reis do Daomé chegaram, inclusive, a enviar embaixadas à Bahia, na tentativa de assegurar para eles o monopólio da venda de escravos para os baianos. Agora, até hoje, as classes dominantes na África Negra gostam de fazer esse truque, de enganar o povo, dizendo que todos eles foram vítimas do “homem branco”. É mentira. Recorrem a esse expediente de botar tudo na conta da “exploração branca” a fim de esconder a exploração a que elas mesmas submeteram (e ainda hoje submetem) os povos negros. As classes dominantes negras não foram vítimas, foram sócias dos brancos no comércio transatlântico de carne humana.
P: Que análise você faz das políticas públicas racialistas promovidas pelos governos de FHC e Lula? De que forma elas contribuíram para o fortalecimento do que você chama de fascismo identitário?
R: A minha impressão é que eles não entenderam bem ou não prestaram a devida atenção, lá no início, no que estava começando a acontecer. Nem pensaram nas consequências de muitas coisas. De Sarney a Lula, porque a política racialista de caráter “compensatório” começa com Sarney e ganha extrema visibilidade com a criação da Fundação Palmares, que foi a entidade que, com seus procedimentos enviesados, criou mais quilombos no Brasil do que Zumbi seria capaz de sonhar. Fernando Henrique não se tocou com a grande deformação pedagógica realizada sob seu nariz, com a gravação de uma contra-história esquerdista do Brasil, invertendo tudo da primeira história oficial de Varnhagen e companheiros, nos parâmetros curriculares do ensino. No caso de Lula e do PT, penso o seguinte. Lula, Dirceu, etc., estavam concentrados em política e em caminhos para chegar ao poder. Não tinham qualquer interesse específico ou especial em discursos de “minorias”, como então se dizia. Eles apenas abrigaram essas minorias no partido e deixaram que elas se movessem por conta própria. Como não tinham tempo ou disposição para discutir seus discursos, tomaram uma atitude curiosa: sacralizaram os discursos dos “oprimidos”. Dentro do PT, tudo que índio, preto, veado ou mulher dissesse, não se discutia. O negócio era celebrar os oprimidos, dar voz aos que nunca tiveram voz, etc. E isso está mesmo na base da formação do fascismo identitário.
P: Que caminhos você visualiza para que a sociedade brasileira saia desse apartheid maniqueísta e dessa guerra de narrativas que nos divide a ponto de rompermos relações com amigos e familiares?
R: Temos a polarização político-ideológica e as polarizações identitárias. No primeiro caso, só há uma saída. Deixar petistas e bolsonaristas de parte – e partir para fortalecer o campo democrático. O problema é que esse próprio “campo democrático” não parece realmente disposto a fazer isso, no sentido simples de que, na prática, se recusa a empreender uma releitura crítica rigorosa de sua trajetória e do entendimento do processo que veio das manifestações de junho de 2013 à vitória eleitoral da extrema direita na eleição presidencial de 2018. No segundo caso, é preciso dessacralizar os identitários. Desmantelar aura e auréola de vítimas e mártires que pretendem se colocar acima de tudo, como juízes e algozes implacáveis das coisas da vida e do mundo. Combater seus “tribalismos”, sua glorificação do gueto, seus expedientes fascistas. Deixemos de parte as exacerbações particularistas, setoriais, e vamos voltar a nos mover no campo da maioria, nas águas mais vivas do conjunto da sociedade brasileira. O que digo é isso: precisamos superar o “apartheid” identitário e reencontrar a democracia. Em todos os campos do pensar, do sonhar, do imaginar e do fazer.” *Sobre o Relativismo Pós- moderno e a Famtasia Fascista da Esquerda Identitária - Entrevista a Luciano Trigo
terça-feira, 12 de novembro de 2019
CONGRESSO INÉDITO MARCA PROJETOS PARA A BAÍA DE TODOS OS SANTOS
Ontem, na Academia Baiana de Letras, a Baia de Todos os Santos foi o tema principal do COMARK: Congresso de Kirimurê, BTS e capital da Amazônia Azul. O evento inédito foi uma iniciativa do Grupo Kirimurê, que reúne personalidades, políticos, intelectuais e representantes dos mais diversos segmentos ligados ao mar da Bahia.
O congresso teve como patrocinadores a Fundação Aleixo Belov e a Fundação Baia Viva.
O objetivo foi discutir projetos de desenvolvimento sustentável para a Baia de Todos os Santos, sendo apresentada ainda uma Carta de Intenções.
Dentre os destaques da programação palestras do navegador Aleixo Belov, dos professores Paulo Ormindo e Lourenço Müller, Eduardo Ataíde, Waldeck Ornelas, Roberto Malaca, dos secretários André Fraga e Fausto Franco, além de membros de universidades.
Dentre os destaques da programação palestras do navegador Aleixo Belov, dos professores Paulo Ormindo e Lourenço Müller, Eduardo Ataíde, Waldeck Ornelas, Roberto Malaca, dos secretários André Fraga e Fausto Franco, além de membros de universidades.
Entre as diversas propostas apresentadas, o saneamento urbano das cidades do entorno da baía, a ênfase na denominação de capital da Amazônia Azul e a revitalização dos saveiros , tanto para o transporte como para turismo foram apoiadas por unanimidade dos presentes.
Foram constituídos diversos grupos para aprofundarem as discussões e apresentarem propostas a serem trabalhadas pelo grupo KIRIMURE.
quarta-feira, 2 de outubro de 2019
Hidroporto da Ribeira , o primeiro da Bahia
Nelson Cadena*
Em 10 de dezembro de 1935, amerissou, no aeroporto de Itapagipe, o gigantesco hidroavião Trininad Clipper, com oito tripulantes, sob a chefia do comandante Charles Lorber, trazendo, entre os passageiros, o ex-governador Antônio Muniz Sodré de Aragão. Entre os que embarcariam em direção ao Rio de Janeiro, estavam os políticos Lauro de Freitas, João Pacheco de Oliveira e o jornalista Altamirando Requião.
O amerrissar na Ribeira de Itapagipe se constituía um verdadeiro espetáculo para centenas de baianos que até lá se dirigiam, para ver os hidroaviões descer e flutuar. O píer de atracação, inicialmente de madeira, tinha sido construído em 1922, como auxiliar para uma escala dos pilotos portugueses Sacadura Cabral e Gago Coutinho, que realizaram em um hidroavião, partindo de Lisboa, a primeira travessia aérea do Atlântico Sul, no âmbito das comemorações do Primeiro Centenário da Independência do Brasil. Provavelmente, teria também servido de apoio ao piloto espanhol Antenor Navarro no seu histórico voo pelo centro de Salvador, em 1923, observado por autoridades e convidados, reunidos na cúpula do Hotel Meridional.
Foi no hidroporto da Ribeira de Itapagipe que o presidente Getúlio Vargas desembarcou, em 1939, para as comemorações da descoberta de petróleo em Lobato. Durante a II Guerra Mundial, o hidroporto serviu de base de apoio aos hidroaviões americanos que faziam o patrulhamento da costa brasileira. Depois de operar com regularidade durante toda a década de 1940, utilizado pela empresa de aviação Nyrba do Brasil, denominada, a seguir, Panair do Brasil, foi, aos poucos, sendo relegado a um segundo plano, em função de as companhias aéreas passarem a optar pelos aviões de pouso em terra, de maior porte e mais seguros.* Jornalista e escritor
Texto do livro de minha autoria “A Cidade da Bahia”). Editora P55. Realização ALBA, TCE, TCM. Salvador, 2017. Fotos do acervo da Fundação Gregório de Mattos-FGM)
segunda-feira, 29 de julho de 2019
Entrevista com Antônio Risério
Guilherme Evelin - O Estado de S.Paulo
Entre os antropólogos brasileiros, o baiano Antonio Risério pertence a uma linhagem rara. Enquanto boa parte de seus colegas, como ele destaca, se dedicou a escrever sobre “pretos e índios” em leituras etnográficas do Brasil, Risério resolveu enveredar seus estudos para a vida nas cidades brasileiras. Nos últimos anos, publicou a trilogia de livros composta por A Cidade no Brasil, Mulher, Casa e Cidade e A Casa do Brasil – este último recém-lançado pela editora Topbooks – com o objetivo de entender “a maior crise urbana da história do país. O olhar antropológico sobre a casa e seu lugar nas cidades brasileiras, diz Risério, pode ajudar a entender como “nossas desigualdades sociais se manifestam em cada centímetro do chão” e a encontrar saídas para a atual encruzilhada em que os dramas urbanos são amplificados pela questão ambiental. À visão do antropólogo, se somam também a do romancista, ensaísta e ex-marqueteiro de campanhas políticas. Ao mesmo tempo que detona programas como o Minha Casa, Minha Vida, concebido pelos governos do PT, Risério prega que a vida nas cidades precisa de um “conjunto de regras que incorpore rotineiramente o acaso”. “Se só houver regras, é o totalitarismo. Se não houver regras, é a anomia”, diz ele, em entrevista ao Aliás.
1. Por que você - antropólogo, ensaísta, romancista - resolveu se dedicar ao estudo do urbanismo no Brasil?
R: Existe uma tradição brasileira de vínculos e trabalhos conjuntos entre antropólogos, engenheiros e arquitetos-urbanistas, que pode ser retraçada a Euclydes da Cunha, o engenheiro-antropólogo saindo da Escola Politécnica para mergulhar em leituras etnográficas do Brasil. E isso vem atravessando os tempos, como vemos com o arquiteto-urbanista João Filgueiras Lima fazendo dupla com o antropólogo Darcy Ribeiro. Me orgulho de ser um subproduto dessa tradição. No meu caso, além do fascínio existencial e intelectual pelas cidades, houve o engajamento em administrações municipais, quando me envolvi até à medula com questões urbanas. Existia, também, certa escassez de estudos de antropologia urbana no Brasil. Nossos antropólogos escreviam sobre índios e pretos, nossos sociólogos sobre classe operária e populismo – poucos pensavam o urbano como tal. Mas, como determinação maior, está o fato de que atravessamos hoje a maior crise urbana de toda a história do país. E o olhar socioantropológico sobre as cidades não só nos ajuda a nos entender histórica e culturalmente, como revela nossas desigualdades sociais se manifestando em cada centímetro do chão das cidades.
2. Que relação você estabelece entre o seu mais novo livro - A Casa no Brasil - e o livro anterior - A Cidade no Brasil?
R: São livros que dialogam entre si. Na verdade, compus um “triálogo”. Entre “A Cidade no Brasil” e “A Casa no Brasil”, publiquei “Mulher, Casa e Cidade”, analisando lugares e desempenhos femininos no espaço doméstico e urbano em geral. “A Cidade no Brasil” é uma releitura das visões sobre o processo urbano em nossos trópicos, inclusive para contestar o mestre Sérgio Buarque de “Raízes do Brasil”, que considero equivocado e sem fundamentação histórica. “A Casa no Brasil” contextualiza a casa na desorganização espacial de nossas cidades, em percurso diacrônico que vem das senzalas aos flats. Para finalizar, examino a encruzilhada em que nos encontramos, sob desigualdades sociais e crimes ambientais.
3. Você escreve que a "sociedade brasileira, do século XVI aos dias de hoje, flats à parte, só conheceu, na verdade, um tipo de moradia: a casa escravista". Não é uma afirmação demasiadamente forte? Você entende que as relações sociais pouco mudaram no Brasil desde os tempos da Colônia? O que a "casa brasileira" mostra sobre a "sociedade brasileira"?
R: As relações sociais mudaram muito. Mas a gente não pode esquecer o passado escravista. E nem sequer que o Brasil foi um país onde a primeira coisa que um ex-escravo fazia era comprar um escravo para lhe servir. Machado de Assis retrata isso no “Brás Cubas”, na cena em que mostra o ex-escravo Prudêncio açoitando um escravo que acabara de comprar. Compare um apartamento europeu de classe média e um brasileiro também de classe média. Embora os europeus tivessem situação material superior à nossa, vivíamos como se fôssemos mais ricos que eles. Inexistiam dependências para empregados domésticos no apartamento europeu. No Brasil, tinham quartos de empregada que são sucedâneos das senzalas. Eles nem sequer atendiam a exigências mínimas de códigos de obras e por isso apareciam oficialmente, nas plantas, como despensas. As coisas só começaram a mudar recentemente. Moças pobres hoje preferem ser exploradas num ponto comercial qualquer do que serem servas pessoais de outros. E ficou caro ter empregadas domésticas, hoje implicando deveres trabalhistas. A tendência é chegar a uma situação mais europeia. Na Europa, só apartamentos de luxo possuem dependências para serviçais. Caminhamos para isso.
4. Você faz uma crítica feroz ao programa Minha Casa, Minha Vida, que descreve como "edificações fundamentalmente vagabundas" que constroem as "favelas de amanhã". Qual é o cerne do problema desse programa, que você afirma que tem "nome ridículo de programa de auditório de televisão"?
5. Em outro ponto do livro, você escreve que nenhum governo social-democrata no Brasil - nem os de Fernando Henrique Cardoso, nem as gestões petistas - se preocuparam em fazer um programa de habitação popular eficiente e com casas modernas do ponto de vista arquitetônico. O último governante com sensibilidade para a questão teria sido Getúlio Vargas. Por que isso ocorre? Moradia popular não dá voto?
R: Vargas foi o primeiro – e, até aqui, o único – a pensar a habitação popular em termos de qualidade. É interessante observar uma coisa, na mesma década de 1930. Nessa época, a socialdemocracia nórdica partiu para fazer casas de qualidade para trabalhadores. Na Suécia, o sociólogo Gunnar Myrdal se aproximou de Corbusier e do ideário da vanguarda arquitetônica internacional. E o mesmo aconteceu no Brasil com Vargas, embora os suecos vivessem numa democracia e aqui a gente se movesse na ditadura estadonovista. Mas é que o populismo getulista voltou as costas para a democracia política, ao tempo em que se abriu para a democracia social. Vargas apostou no primeiro time da arquitetura brasileira para produzir moradias populares de alta qualidade, como no conjunto do Pedregulho, no Rio, elogiado por Corbusier e Max Bill. Mas esta sua lição foi desprezada. Fernando Henrique não se preocupou com moradia popular. E os governos petistas, em vez de retomar o legado de Vargas, preferiram ir na linha medíocre do BNH da ditadura militar. Moradia popular dá voto, sim – não tanto quanto os neocurrais eleitorais do Bolsa Família, mas dá. O problema é que o povo, na sua carência, acha que qualquer bolacha quebrada é um palacete. E os governantes, mesmo que façam pose “de esquerda”, se aproveitam disso.
6. O que acha de movimentos como o Movimento dos Trabalhadores Sem Teto (MTST), liderado por Guilherme Boulos? Vê nesse tipo de movimento algum caminho para tornar nossas cidades menos desiguais e ecologicamente mais equilibradas, como defende em seu livro?
R: Não conheço quem discorde do princípio de que todos devem ter direito a um abrigo onde morar. Se a burguesia da construção civil, o empresariado em geral e os governantes quisessem, eles já teriam acabado com o déficit habitacional. Eles têm poder e recursos para fazer cumprir o que reza a Constituição de 1988, com sua ênfase na função social da cidade e da propriedade. Mas não fazem. A suruba de empreiteiros e governantes no Brasil nunca teve sentido social. Logo, a desgraça habitacional popular prossegue. Não se faz uma ofensiva para acabar com isso. Então, é a sociedade que tem de se mover. De partir para o combate. Daí, a necessidade de coisas como o MTST, que é crítico duro e lúcido do Minha Casa, Minha Vida. Agora, quanto a Boulos, especificamente, não me entusiasma. É um “replay” de Lula, mas caricatural. Trazendo Marx para o plano do indivíduo: Boulus repete Lula como farsa.
7. Você escreve como passou a depender de uma bengala depois de ter tido um AVC em 2012 e como sentiu na pele como as cidades brasileiras são um inferno para os pedestres. A discussão sobre a questão da mobilidade urbana no Brasil, como você observa no livro, não leva em conta os interesses do pedestre, ao contrário do que acontece em países mais desenvolvidos como os da Europa. Por que involuímos nessa questão?
R: Falei antes da concordância geral em torno do princípio de que todos têm direito a um lugar onde morar. Não é só nesse tópico que a sociedade brasileira chega à unanimidade. Pensamos o mesmo sobre educação e saúde, assim como sobre a necessidade de respeitar o pedestre. Então, costumo dizer que, no Brasil, existe um elenco razoável de coisas e princípios que classifico como “consensos subversivos”. Porque todo mundo concorda que é preciso fazer – logo, consenso. E subversivo porque, no dia em que essas coisas forem feitas, teremos realizado uma nova revolução social no país. Mas vamos esquecer governantes e empresários. O mercado não é um deus que mereça confiança. E nossos políticos profissionais degradaram o Ministério das Cidades ao plano de peça de troca no balcão das barganhas nacionais. A sociedade tem de tocar o barco. O problema é que estamos muito pulverizados. E, para transformar a vida urbana brasileira, precisamos de uma heresia comum, compartilhável.
8. Você frisa que andar a pé é um dos principais meios de desfrutar uma das riquezas de morar em cidades: trombar com o acaso. E que as cidades devem se equilibrar entre o acaso e a necessidade - ou seja, estabelecer regras, sem as quais a vida urbana se torna um caos, mas ao mesmo tempo dar a chance para o imprevísivel. Que cidades já conseguiram achar esse equilíbrio?
R: Parti de um jogo verbal de Platão, na “República”, entre “polis” (cidade) e “polis” (um gamão grego), para falar que a cidade precisa de um conjunto de regras que incorpore rotineiramente o acaso. Se só houver regras, é o totalitarismo. Se não houver regras, é a anomia. No primeiro caso, de regras asfixiantes, tínhamos cidades no leste europeu. Hoje, no mundo islâmico. Mesmo em Teerã, onde é permitida a existência de sinagoga, quase tudo corre por debaixo do pano. No avesso, a Cidade do México e as grandes cidades brasileiras beiram a anomia. Equilíbrio? Regra geral, em cidades das democracias ricas do Atlântico Norte. Mas isso tudo vai mudando no tempo. Paris, por exemplo, caminha para empalmar um novo título. Será a maior cidade muçulmana do mundo.
9. O que acha do panorama geral das cidades brasileiras hoje em relação às principais cidades do mundo? As cidades brasileiras, em geral, nunca aparecem nos rankings de melhores cidades para morar do mundo? Gosta de alguma delas?
R: Estamos na contramão do movimento urbano planetário. Brasileiros dificilmente hesitam antes de cometer barbaridades ecológicas, violar princípios básicos de convivência e urbanidade, privilegiar automóveis e viadutos, em detrimento das pessoas. E aqui até me lembro da pergunta de Shakespeare: “o que é a cidade, a não ser as pessoas?”. Mas, apesar de tudo, gosto sim de algumas cidades brasileiras. Adoro São Paulo. Me sinto à vontade. Gosto, inclusive, de andar a pé à noite. De comer e beber no Copan, flanar na Paulista, ir ao Ibirapuera. E isso em nada diminui minhas críticas à cidade. Não tenho admiração por Haddad como político, mas ele teve um bom desempenho na prefeitura. Era o prefeito brasileiro que tinha uma visão da cidade como fenômeno socioespacial. E isso se perdeu. Gosto também do Recife, do Rio hoje tão humilhado, de São Luís, de Belo Horizonte, com a delícia daquele mercado municipal, etc. Enfim, embora não pare de reclamar, gosto de muita coisa.
10. O que acha de Brasília, razão de eternas polêmicas? Embora elogie a beleza da cidade, você admite já ter sido mais fã da capital e reconhece que algumas críticas à monumentalidade e à pouca densidade das relações sociais tem sua razão de ser.
R: Há muito o quê falar de Brasília, que é uma joia da arquitetura e do urbanismo brasileiros. E curto mais a cidade do que a critico. Mas algumas coisas não me parecem confortáveis. Brasília é uma cidade definida pela especialização de funções, com seus setores bem demarcados. Eu não aplaudo esta morfologia espacial. Penso que as mesclas funcionais e sociais concorrem para o bem-estar urbano. Outra coisa é que não vingou a nova sociabilidade vistosa que se esperava nascer do próprio plano da cidade. Como digo no livro, o que vemos é a falta de volume, frequência e intensidade na teia dos relacionamentos interpessoais. No desenho morfológico setorializante, a existência também se atomizou, aprofundando ainda mais o isolamento social candango.
11. Viver em condomínios fechados, como Alphaville, em São Paulo, parece já ter gozado de maior apreço junto às classes sociais brasileiras mais abastadas. Vê alguma mudança na relação das elites brasileiras com a vida na cidade? Vê algum razão para otimismo em relação à perspectiva de uma reforma urbana no Brasil que leve a cidades mais equilibradas tanto do ponto de vista social como ambiental?
R: A conduta das elites brasileiras, com relação às cidades, me parece mais um caso de polícia do que qualquer outra coisa. Invadem e privatizam o espaço público. Chegam a privatizar até a praia, que tem de estar sempre aberta a todos. Ao mesmo tempo, penso que a época de preferir isto ou aquilo está passando. O espectro das escolhas se estreita à medida que temos de pensar uma cidade que não consuma tão descontroladamente os recursos naturais. Seremos obrigados a mudar, se não quisermos perecer. É neste sentido que digo que hoje a cidade ideal está se transformando em cidade necessária. No livro, lembro que Goethe/Fausto, na tradução do “Evangelho Segundo João”, contraria a Bíblia e escreve: “no princípio, era a ação”. Mas, ainda no âmbito do próprio romantismo alemão, Heinrich Heine respondeu: “no princípio, era o rouxinol”. Goethe celebra a energia, a práxis. Heine celebra as canções da natureza. E o que eu digo é que temos de partir desse diálogo, caminhando idealmente para alguma síntese entre a ação de Goethe e o rouxinol de Heine.
Entre os antropólogos brasileiros, o baiano Antonio Risério pertence a uma linhagem rara. Enquanto boa parte de seus colegas, como ele destaca, se dedicou a escrever sobre “pretos e índios” em leituras etnográficas do Brasil, Risério resolveu enveredar seus estudos para a vida nas cidades brasileiras. Nos últimos anos, publicou a trilogia de livros composta por A Cidade no Brasil, Mulher, Casa e Cidade e A Casa do Brasil – este último recém-lançado pela editora Topbooks – com o objetivo de entender “a maior crise urbana da história do país. O olhar antropológico sobre a casa e seu lugar nas cidades brasileiras, diz Risério, pode ajudar a entender como “nossas desigualdades sociais se manifestam em cada centímetro do chão” e a encontrar saídas para a atual encruzilhada em que os dramas urbanos são amplificados pela questão ambiental. À visão do antropólogo, se somam também a do romancista, ensaísta e ex-marqueteiro de campanhas políticas. Ao mesmo tempo que detona programas como o Minha Casa, Minha Vida, concebido pelos governos do PT, Risério prega que a vida nas cidades precisa de um “conjunto de regras que incorpore rotineiramente o acaso”. “Se só houver regras, é o totalitarismo. Se não houver regras, é a anomia”, diz ele, em entrevista ao Aliás.
1. Por que você - antropólogo, ensaísta, romancista - resolveu se dedicar ao estudo do urbanismo no Brasil?
R: Existe uma tradição brasileira de vínculos e trabalhos conjuntos entre antropólogos, engenheiros e arquitetos-urbanistas, que pode ser retraçada a Euclydes da Cunha, o engenheiro-antropólogo saindo da Escola Politécnica para mergulhar em leituras etnográficas do Brasil. E isso vem atravessando os tempos, como vemos com o arquiteto-urbanista João Filgueiras Lima fazendo dupla com o antropólogo Darcy Ribeiro. Me orgulho de ser um subproduto dessa tradição. No meu caso, além do fascínio existencial e intelectual pelas cidades, houve o engajamento em administrações municipais, quando me envolvi até à medula com questões urbanas. Existia, também, certa escassez de estudos de antropologia urbana no Brasil. Nossos antropólogos escreviam sobre índios e pretos, nossos sociólogos sobre classe operária e populismo – poucos pensavam o urbano como tal. Mas, como determinação maior, está o fato de que atravessamos hoje a maior crise urbana de toda a história do país. E o olhar socioantropológico sobre as cidades não só nos ajuda a nos entender histórica e culturalmente, como revela nossas desigualdades sociais se manifestando em cada centímetro do chão das cidades.
2. Que relação você estabelece entre o seu mais novo livro - A Casa no Brasil - e o livro anterior - A Cidade no Brasil?
R: São livros que dialogam entre si. Na verdade, compus um “triálogo”. Entre “A Cidade no Brasil” e “A Casa no Brasil”, publiquei “Mulher, Casa e Cidade”, analisando lugares e desempenhos femininos no espaço doméstico e urbano em geral. “A Cidade no Brasil” é uma releitura das visões sobre o processo urbano em nossos trópicos, inclusive para contestar o mestre Sérgio Buarque de “Raízes do Brasil”, que considero equivocado e sem fundamentação histórica. “A Casa no Brasil” contextualiza a casa na desorganização espacial de nossas cidades, em percurso diacrônico que vem das senzalas aos flats. Para finalizar, examino a encruzilhada em que nos encontramos, sob desigualdades sociais e crimes ambientais.
3. Você escreve que a "sociedade brasileira, do século XVI aos dias de hoje, flats à parte, só conheceu, na verdade, um tipo de moradia: a casa escravista". Não é uma afirmação demasiadamente forte? Você entende que as relações sociais pouco mudaram no Brasil desde os tempos da Colônia? O que a "casa brasileira" mostra sobre a "sociedade brasileira"?
R: As relações sociais mudaram muito. Mas a gente não pode esquecer o passado escravista. E nem sequer que o Brasil foi um país onde a primeira coisa que um ex-escravo fazia era comprar um escravo para lhe servir. Machado de Assis retrata isso no “Brás Cubas”, na cena em que mostra o ex-escravo Prudêncio açoitando um escravo que acabara de comprar. Compare um apartamento europeu de classe média e um brasileiro também de classe média. Embora os europeus tivessem situação material superior à nossa, vivíamos como se fôssemos mais ricos que eles. Inexistiam dependências para empregados domésticos no apartamento europeu. No Brasil, tinham quartos de empregada que são sucedâneos das senzalas. Eles nem sequer atendiam a exigências mínimas de códigos de obras e por isso apareciam oficialmente, nas plantas, como despensas. As coisas só começaram a mudar recentemente. Moças pobres hoje preferem ser exploradas num ponto comercial qualquer do que serem servas pessoais de outros. E ficou caro ter empregadas domésticas, hoje implicando deveres trabalhistas. A tendência é chegar a uma situação mais europeia. Na Europa, só apartamentos de luxo possuem dependências para serviçais. Caminhamos para isso.
4. Você faz uma crítica feroz ao programa Minha Casa, Minha Vida, que descreve como "edificações fundamentalmente vagabundas" que constroem as "favelas de amanhã". Qual é o cerne do problema desse programa, que você afirma que tem "nome ridículo de programa de auditório de televisão"?
5. Em outro ponto do livro, você escreve que nenhum governo social-democrata no Brasil - nem os de Fernando Henrique Cardoso, nem as gestões petistas - se preocuparam em fazer um programa de habitação popular eficiente e com casas modernas do ponto de vista arquitetônico. O último governante com sensibilidade para a questão teria sido Getúlio Vargas. Por que isso ocorre? Moradia popular não dá voto?
R: Vargas foi o primeiro – e, até aqui, o único – a pensar a habitação popular em termos de qualidade. É interessante observar uma coisa, na mesma década de 1930. Nessa época, a socialdemocracia nórdica partiu para fazer casas de qualidade para trabalhadores. Na Suécia, o sociólogo Gunnar Myrdal se aproximou de Corbusier e do ideário da vanguarda arquitetônica internacional. E o mesmo aconteceu no Brasil com Vargas, embora os suecos vivessem numa democracia e aqui a gente se movesse na ditadura estadonovista. Mas é que o populismo getulista voltou as costas para a democracia política, ao tempo em que se abriu para a democracia social. Vargas apostou no primeiro time da arquitetura brasileira para produzir moradias populares de alta qualidade, como no conjunto do Pedregulho, no Rio, elogiado por Corbusier e Max Bill. Mas esta sua lição foi desprezada. Fernando Henrique não se preocupou com moradia popular. E os governos petistas, em vez de retomar o legado de Vargas, preferiram ir na linha medíocre do BNH da ditadura militar. Moradia popular dá voto, sim – não tanto quanto os neocurrais eleitorais do Bolsa Família, mas dá. O problema é que o povo, na sua carência, acha que qualquer bolacha quebrada é um palacete. E os governantes, mesmo que façam pose “de esquerda”, se aproveitam disso.
6. O que acha de movimentos como o Movimento dos Trabalhadores Sem Teto (MTST), liderado por Guilherme Boulos? Vê nesse tipo de movimento algum caminho para tornar nossas cidades menos desiguais e ecologicamente mais equilibradas, como defende em seu livro?
R: Não conheço quem discorde do princípio de que todos devem ter direito a um abrigo onde morar. Se a burguesia da construção civil, o empresariado em geral e os governantes quisessem, eles já teriam acabado com o déficit habitacional. Eles têm poder e recursos para fazer cumprir o que reza a Constituição de 1988, com sua ênfase na função social da cidade e da propriedade. Mas não fazem. A suruba de empreiteiros e governantes no Brasil nunca teve sentido social. Logo, a desgraça habitacional popular prossegue. Não se faz uma ofensiva para acabar com isso. Então, é a sociedade que tem de se mover. De partir para o combate. Daí, a necessidade de coisas como o MTST, que é crítico duro e lúcido do Minha Casa, Minha Vida. Agora, quanto a Boulos, especificamente, não me entusiasma. É um “replay” de Lula, mas caricatural. Trazendo Marx para o plano do indivíduo: Boulus repete Lula como farsa.
7. Você escreve como passou a depender de uma bengala depois de ter tido um AVC em 2012 e como sentiu na pele como as cidades brasileiras são um inferno para os pedestres. A discussão sobre a questão da mobilidade urbana no Brasil, como você observa no livro, não leva em conta os interesses do pedestre, ao contrário do que acontece em países mais desenvolvidos como os da Europa. Por que involuímos nessa questão?
R: Falei antes da concordância geral em torno do princípio de que todos têm direito a um lugar onde morar. Não é só nesse tópico que a sociedade brasileira chega à unanimidade. Pensamos o mesmo sobre educação e saúde, assim como sobre a necessidade de respeitar o pedestre. Então, costumo dizer que, no Brasil, existe um elenco razoável de coisas e princípios que classifico como “consensos subversivos”. Porque todo mundo concorda que é preciso fazer – logo, consenso. E subversivo porque, no dia em que essas coisas forem feitas, teremos realizado uma nova revolução social no país. Mas vamos esquecer governantes e empresários. O mercado não é um deus que mereça confiança. E nossos políticos profissionais degradaram o Ministério das Cidades ao plano de peça de troca no balcão das barganhas nacionais. A sociedade tem de tocar o barco. O problema é que estamos muito pulverizados. E, para transformar a vida urbana brasileira, precisamos de uma heresia comum, compartilhável.
8. Você frisa que andar a pé é um dos principais meios de desfrutar uma das riquezas de morar em cidades: trombar com o acaso. E que as cidades devem se equilibrar entre o acaso e a necessidade - ou seja, estabelecer regras, sem as quais a vida urbana se torna um caos, mas ao mesmo tempo dar a chance para o imprevísivel. Que cidades já conseguiram achar esse equilíbrio?
R: Parti de um jogo verbal de Platão, na “República”, entre “polis” (cidade) e “polis” (um gamão grego), para falar que a cidade precisa de um conjunto de regras que incorpore rotineiramente o acaso. Se só houver regras, é o totalitarismo. Se não houver regras, é a anomia. No primeiro caso, de regras asfixiantes, tínhamos cidades no leste europeu. Hoje, no mundo islâmico. Mesmo em Teerã, onde é permitida a existência de sinagoga, quase tudo corre por debaixo do pano. No avesso, a Cidade do México e as grandes cidades brasileiras beiram a anomia. Equilíbrio? Regra geral, em cidades das democracias ricas do Atlântico Norte. Mas isso tudo vai mudando no tempo. Paris, por exemplo, caminha para empalmar um novo título. Será a maior cidade muçulmana do mundo.
9. O que acha do panorama geral das cidades brasileiras hoje em relação às principais cidades do mundo? As cidades brasileiras, em geral, nunca aparecem nos rankings de melhores cidades para morar do mundo? Gosta de alguma delas?
R: Estamos na contramão do movimento urbano planetário. Brasileiros dificilmente hesitam antes de cometer barbaridades ecológicas, violar princípios básicos de convivência e urbanidade, privilegiar automóveis e viadutos, em detrimento das pessoas. E aqui até me lembro da pergunta de Shakespeare: “o que é a cidade, a não ser as pessoas?”. Mas, apesar de tudo, gosto sim de algumas cidades brasileiras. Adoro São Paulo. Me sinto à vontade. Gosto, inclusive, de andar a pé à noite. De comer e beber no Copan, flanar na Paulista, ir ao Ibirapuera. E isso em nada diminui minhas críticas à cidade. Não tenho admiração por Haddad como político, mas ele teve um bom desempenho na prefeitura. Era o prefeito brasileiro que tinha uma visão da cidade como fenômeno socioespacial. E isso se perdeu. Gosto também do Recife, do Rio hoje tão humilhado, de São Luís, de Belo Horizonte, com a delícia daquele mercado municipal, etc. Enfim, embora não pare de reclamar, gosto de muita coisa.
10. O que acha de Brasília, razão de eternas polêmicas? Embora elogie a beleza da cidade, você admite já ter sido mais fã da capital e reconhece que algumas críticas à monumentalidade e à pouca densidade das relações sociais tem sua razão de ser.
R: Há muito o quê falar de Brasília, que é uma joia da arquitetura e do urbanismo brasileiros. E curto mais a cidade do que a critico. Mas algumas coisas não me parecem confortáveis. Brasília é uma cidade definida pela especialização de funções, com seus setores bem demarcados. Eu não aplaudo esta morfologia espacial. Penso que as mesclas funcionais e sociais concorrem para o bem-estar urbano. Outra coisa é que não vingou a nova sociabilidade vistosa que se esperava nascer do próprio plano da cidade. Como digo no livro, o que vemos é a falta de volume, frequência e intensidade na teia dos relacionamentos interpessoais. No desenho morfológico setorializante, a existência também se atomizou, aprofundando ainda mais o isolamento social candango.
11. Viver em condomínios fechados, como Alphaville, em São Paulo, parece já ter gozado de maior apreço junto às classes sociais brasileiras mais abastadas. Vê alguma mudança na relação das elites brasileiras com a vida na cidade? Vê algum razão para otimismo em relação à perspectiva de uma reforma urbana no Brasil que leve a cidades mais equilibradas tanto do ponto de vista social como ambiental?
R: A conduta das elites brasileiras, com relação às cidades, me parece mais um caso de polícia do que qualquer outra coisa. Invadem e privatizam o espaço público. Chegam a privatizar até a praia, que tem de estar sempre aberta a todos. Ao mesmo tempo, penso que a época de preferir isto ou aquilo está passando. O espectro das escolhas se estreita à medida que temos de pensar uma cidade que não consuma tão descontroladamente os recursos naturais. Seremos obrigados a mudar, se não quisermos perecer. É neste sentido que digo que hoje a cidade ideal está se transformando em cidade necessária. No livro, lembro que Goethe/Fausto, na tradução do “Evangelho Segundo João”, contraria a Bíblia e escreve: “no princípio, era a ação”. Mas, ainda no âmbito do próprio romantismo alemão, Heinrich Heine respondeu: “no princípio, era o rouxinol”. Goethe celebra a energia, a práxis. Heine celebra as canções da natureza. E o que eu digo é que temos de partir desse diálogo, caminhando idealmente para alguma síntese entre a ação de Goethe e o rouxinol de Heine.
sábado, 27 de julho de 2019
Neojibá de roupa nova
Paulo Ormindo de Azevedo*
No último dia nove foi inaugurado a nova sede do Neojibá, no Parque do Queimado, situado entre a Lapinha e a Caixa d’Água. Trata-se de um projeto de inclusão social de jovens e crianças através da música, idealizado pelo maestro Ricardo Castro, em 2007, e que por sua teimosia se estende hoje por 29 municípios baianos e beneficia 6,5 mil jovens e crianças. O projeto se inspira na experiencia do maestro José Antônio Abreu, que fundou em 1975 o Sistema Nacional de Orquestras e Coros Juvenis da Venezuela, que compreende 180 orquestras, e foi reproduzido em muitos países latino-americanos e nos EUA. Ricardo Castro é pianista premiado na Europa e professor de um grupo de jovens pianistas profissionais na Haute École de Musique de Friburgo, Suíça, mas preocupado com a fragilidade social dos jovens e crianças de sua terra natal.
O Parque do Queimado tem uma longa história. Sua fonte é conhecida desde o século XVII e foi remodelada em 1838 em estilo neoclássico. No mesmo ano foi iniciada a construção da Fábrica de Tecidos Santo Antônio do Queimado, movida a força hidráulica e depois a vapor, que produzia 1000 varas de pano dia. Foi uma das duas primeiras fabricas de tecidos da Bahia, conjuntamente com a de Valença dos Lacerdas. Em 1852, o Barão de Cotegipe conseguiu a concessão do abastecimento d’água de Salvador e funda a Cia. de Abastecimento de Água do Queimado, que começou a funcionar em 1856 e chegou a ter 22 chafarizes e fontes na cidade. Como a primeira do gênero no Brasil foi visitada pela família Imperial em 1º/11/1859. A preservação do parque, pertencente a Embasa, muito se deve ao escultor Astor Lima que criou em 1991 o Centro Memória da Água e o acervo Arte/Natureza, com obras doadas pelos mais importantes artistas baianos. O tombamento da fonte e do parque pelo IPHAN, em 1997, se deve a sua persistência.
O projeto de adaptação dos pavilhões da antiga fábrica e Cia. do Queimado à sede do Neojibá é do Studio Butikofer, Oliveira e Vernay, da Suíça, com assessoria do Nagata Acustics, do Japão, responsável pela nova Filarmônica de Paris e o Disney Hall. Custou R$12 milhões, sendo oito do BNDES e quatro do Estado. Melhor que enterrar bilhões em concreto armado. O conjunto compreende um auditório de 140 lugares e cinco salas de ensaios. A boa execução do projeto se deve ao monitoramento do arquiteto baiano Sergio Ekerman. Ainda não foi possível realizar o paisagismo do parque, que deverá diminuir sua área pavimentada em favor de sombras verdes.
Como arquiteto sinto falta de cor e integração com outras artes, com esculturas e o Acervo Arte/Natureza. A nova sede do Nejibá será uma usina musical, com sua chaminé nos despertando todas as manhãs, para cantarmos com Noel: “Quando o apito da fábrica de tecidos/ vem ferir os meus ouvidos/ eu me lembro de você”.
*Professor Catedrático da UFBA
SSA: A Tarde de 28/07/19
No último dia nove foi inaugurado a nova sede do Neojibá, no Parque do Queimado, situado entre a Lapinha e a Caixa d’Água. Trata-se de um projeto de inclusão social de jovens e crianças através da música, idealizado pelo maestro Ricardo Castro, em 2007, e que por sua teimosia se estende hoje por 29 municípios baianos e beneficia 6,5 mil jovens e crianças. O projeto se inspira na experiencia do maestro José Antônio Abreu, que fundou em 1975 o Sistema Nacional de Orquestras e Coros Juvenis da Venezuela, que compreende 180 orquestras, e foi reproduzido em muitos países latino-americanos e nos EUA. Ricardo Castro é pianista premiado na Europa e professor de um grupo de jovens pianistas profissionais na Haute École de Musique de Friburgo, Suíça, mas preocupado com a fragilidade social dos jovens e crianças de sua terra natal.
O Parque do Queimado tem uma longa história. Sua fonte é conhecida desde o século XVII e foi remodelada em 1838 em estilo neoclássico. No mesmo ano foi iniciada a construção da Fábrica de Tecidos Santo Antônio do Queimado, movida a força hidráulica e depois a vapor, que produzia 1000 varas de pano dia. Foi uma das duas primeiras fabricas de tecidos da Bahia, conjuntamente com a de Valença dos Lacerdas. Em 1852, o Barão de Cotegipe conseguiu a concessão do abastecimento d’água de Salvador e funda a Cia. de Abastecimento de Água do Queimado, que começou a funcionar em 1856 e chegou a ter 22 chafarizes e fontes na cidade. Como a primeira do gênero no Brasil foi visitada pela família Imperial em 1º/11/1859. A preservação do parque, pertencente a Embasa, muito se deve ao escultor Astor Lima que criou em 1991 o Centro Memória da Água e o acervo Arte/Natureza, com obras doadas pelos mais importantes artistas baianos. O tombamento da fonte e do parque pelo IPHAN, em 1997, se deve a sua persistência.
O projeto de adaptação dos pavilhões da antiga fábrica e Cia. do Queimado à sede do Neojibá é do Studio Butikofer, Oliveira e Vernay, da Suíça, com assessoria do Nagata Acustics, do Japão, responsável pela nova Filarmônica de Paris e o Disney Hall. Custou R$12 milhões, sendo oito do BNDES e quatro do Estado. Melhor que enterrar bilhões em concreto armado. O conjunto compreende um auditório de 140 lugares e cinco salas de ensaios. A boa execução do projeto se deve ao monitoramento do arquiteto baiano Sergio Ekerman. Ainda não foi possível realizar o paisagismo do parque, que deverá diminuir sua área pavimentada em favor de sombras verdes.
Como arquiteto sinto falta de cor e integração com outras artes, com esculturas e o Acervo Arte/Natureza. A nova sede do Nejibá será uma usina musical, com sua chaminé nos despertando todas as manhãs, para cantarmos com Noel: “Quando o apito da fábrica de tecidos/ vem ferir os meus ouvidos/ eu me lembro de você”.
*Professor Catedrático da UFBA
SSA: A Tarde de 28/07/19
quarta-feira, 10 de julho de 2019
A cidade porto

Osvaldo Campos Magalhães*
Quando os portugueses
localizaram no dia primeiro de novembro de 1501 a enorme ‘Kirimurê’, ou grande
mar, na língua tupinambá, com águas profundas e abrigadas e 233 quilômetros de
litoral, logo escolheram o local como porto natural e local adequado para a
construção da primeira grande metrópole lusitana no novo continente.
O porto cresceu e antes do surgimento dos navios
a vapor e da construção do Canal de Suez chegou a ser o mais movimentado do
Hemisfério Sul. A cidade do Salvador, acompanhando o crescimento do seu porto,
também cresceu e se desenvolveu como grande centro logístico, comercial e
político, tornando-se a primeira capital do Brasil.
O porto natural se constituiu em porto organizado e, através de concessão pública datada do final do século XIX, foi ampliado com o aterro de extensa área que ampliou o bairro do Comércio e possibilitou a construção de armazéns e retro áreas para armazenagem de cargas.
A modernização das embarcações, a transferência da capital para o Rio de Janeiro e as construções dos canais do Suez e Panamá contribuíram para a perda de importância econômica e comercial do porto e da cidade, que passa a crescer em direção ao litoral norte e, literalmente, dá as costas para seu porto.
Apesar de representar uma das principais atividades econômicas e geradoras de emprego numa cidade sem atividades industriais relevantes, o porto nunca recebeu a importância que merece por parte das administrações municipais e estaduais que se sucederam nos últimos 50 anos, chegando-se ao absurdo de se propor a desativação do porto para a movimentação de cargas, proposta seguidamente apresentada por Secretários da Prefeitura de Salvador. Ainda em 18 de junho, as obras de ampliação do Terminal de Conteineres do porto de Salvador foram novamente embargadas pela Prefeitura de Salvador.
O porto natural se constituiu em porto organizado e, através de concessão pública datada do final do século XIX, foi ampliado com o aterro de extensa área que ampliou o bairro do Comércio e possibilitou a construção de armazéns e retro áreas para armazenagem de cargas.
A modernização das embarcações, a transferência da capital para o Rio de Janeiro e as construções dos canais do Suez e Panamá contribuíram para a perda de importância econômica e comercial do porto e da cidade, que passa a crescer em direção ao litoral norte e, literalmente, dá as costas para seu porto.
Apesar de representar uma das principais atividades econômicas e geradoras de emprego numa cidade sem atividades industriais relevantes, o porto nunca recebeu a importância que merece por parte das administrações municipais e estaduais que se sucederam nos últimos 50 anos, chegando-se ao absurdo de se propor a desativação do porto para a movimentação de cargas, proposta seguidamente apresentada por Secretários da Prefeitura de Salvador. Ainda em 18 de junho, as obras de ampliação do Terminal de Conteineres do porto de Salvador foram novamente embargadas pela Prefeitura de Salvador.
A desativação do Porto de
Salvador, não leva em conta a enorme importância econômica do porto para a
cidade e todo o estado da Bahia e que é perfeitamente conciliável a manutenção
da atividade operacional no porto, com ênfase nas operações de contêineres,
equipamentos, trigo e navios de cruzeiros marítimos. Desconhece que o porto de
Salvador possui os melhores acessos terrestre e marítimo entre todos os portos
brasileiros e também a existência de um contrato de concessão recentemente
prorrogado, entre o porto e a empresa Tecon, responsável pela operação de
contêineres, que tem longo prazo de vigência, com vultosos investimentos em
execução e enorme relevância econômica.
Quem conhece algumas cidades portuárias e turísticas como Barcelona, Buenos Aires e Hamburgo sabe que a atividade portuária é vital para a economia dessas cidades e que é perfeitamente conciliável com a atividade turística em áreas do porto, que foram revitalizadas e expandidas.
Lembremos que a atual legislação portuária brasileira permite ao município assumir a gestão do porto, como se verifica nos principais portos europeus e que já ocorre com sucesso no Brasil, mais especificamente em Itajaí, Santa Catarina.
Um dos principais entraves ao crescimento do Porto de Salvador está justamente no desconhecimento por parte do governo da Bahia e da prefeitura de Salvador do enorme potencial econômico representado pela atividade portuária.
Enquanto a administração dos portos públicos baianos está ainda vinculada à administração federal e subordinada ao loteamento político dos cargos de direção da Codeba, os estados de Pernambuco e Ceará colocaram a atividade portuária como estratégica para o desenvolvimento, constituíram enxutas e eficientes empresas estatais que construíram os complexos portuários de Suape e Pecém, fatores de atração de novos empreendimentos industriais para aqueles estados e importantes vetores do crescimento da economia nordestina.
Em vez de propor a desativação do porto, a prefeitura de Salvador deveria reivindicar e assumir a concessão do mesmo, colocando a atividade portuária como estratégica para o desenvolvimento econômico da cidade.
* Osvaldo Campos Magalhães é engenheiro e Mestre em Administração. Membro do Conselho de Infraestrutura da Fieb e do Conselho de Administração da Codeba, escreveu a Tese "Portos & Competitividade", NPGA/Ufba, 1994.
** Artigo também publicado no jornal Correio da Bahia
Quem conhece algumas cidades portuárias e turísticas como Barcelona, Buenos Aires e Hamburgo sabe que a atividade portuária é vital para a economia dessas cidades e que é perfeitamente conciliável com a atividade turística em áreas do porto, que foram revitalizadas e expandidas.
Lembremos que a atual legislação portuária brasileira permite ao município assumir a gestão do porto, como se verifica nos principais portos europeus e que já ocorre com sucesso no Brasil, mais especificamente em Itajaí, Santa Catarina.
Um dos principais entraves ao crescimento do Porto de Salvador está justamente no desconhecimento por parte do governo da Bahia e da prefeitura de Salvador do enorme potencial econômico representado pela atividade portuária.
Enquanto a administração dos portos públicos baianos está ainda vinculada à administração federal e subordinada ao loteamento político dos cargos de direção da Codeba, os estados de Pernambuco e Ceará colocaram a atividade portuária como estratégica para o desenvolvimento, constituíram enxutas e eficientes empresas estatais que construíram os complexos portuários de Suape e Pecém, fatores de atração de novos empreendimentos industriais para aqueles estados e importantes vetores do crescimento da economia nordestina.
Em vez de propor a desativação do porto, a prefeitura de Salvador deveria reivindicar e assumir a concessão do mesmo, colocando a atividade portuária como estratégica para o desenvolvimento econômico da cidade.
* Osvaldo Campos Magalhães é engenheiro e Mestre em Administração. Membro do Conselho de Infraestrutura da Fieb e do Conselho de Administração da Codeba, escreveu a Tese "Portos & Competitividade", NPGA/Ufba, 1994.
** Artigo também publicado no jornal Correio da Bahia
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