segunda-feira, 29 de julho de 2019

Entrevista com Antônio Risério

Guilherme Evelin - O Estado de S.Paulo
 Entre os antropólogos brasileiros, o baiano Antonio Risério pertence a uma linhagem rara. Enquanto boa parte de seus colegas, como ele destaca, se dedicou a escrever sobre “pretos e índios” em leituras etnográficas do Brasil, Risério resolveu enveredar seus estudos para a vida nas cidades brasileiras. Nos últimos anos, publicou a trilogia de livros composta por A Cidade no Brasil, Mulher, Casa e Cidade e A Casa do Brasil – este último recém-lançado pela editora Topbooks – com o objetivo de entender “a maior crise urbana da história do país. O olhar antropológico sobre a casa e seu lugar nas cidades brasileiras, diz Risério, pode ajudar a entender como “nossas desigualdades sociais se manifestam em cada centímetro do chão” e a encontrar saídas para a atual encruzilhada em que os dramas urbanos são amplificados pela questão ambiental. À visão do antropólogo, se somam também a do romancista, ensaísta e ex-marqueteiro de campanhas políticas. Ao mesmo tempo que detona programas como o Minha Casa, Minha Vida, concebido pelos governos do PT, Risério prega que a vida nas cidades precisa de um “conjunto de regras que incorpore rotineiramente o acaso”. “Se só houver regras, é o totalitarismo. Se não houver regras, é a anomia”, diz ele, em entrevista ao Aliás.
1. Por que você - antropólogo, ensaísta, romancista - resolveu se dedicar ao estudo do urbanismo no Brasil?
R: Existe uma tradição brasileira de vínculos e trabalhos conjuntos entre antropólogos, engenheiros e arquitetos-urbanistas, que pode ser retraçada a Euclydes da Cunha, o engenheiro-antropólogo saindo da Escola Politécnica para mergulhar em leituras etnográficas do Brasil. E isso vem atravessando os tempos, como vemos com o arquiteto-urbanista João Filgueiras Lima fazendo dupla com o antropólogo Darcy Ribeiro. Me orgulho de ser  um subproduto dessa tradição. No meu caso, além do fascínio existencial e intelectual pelas cidades, houve o engajamento em administrações municipais, quando me envolvi até à medula com questões urbanas. Existia, também, certa escassez de estudos de antropologia urbana no Brasil. Nossos antropólogos escreviam sobre índios e pretos, nossos sociólogos sobre classe operária e populismo – poucos pensavam o urbano como tal. Mas, como determinação maior, está o fato de que atravessamos hoje a maior crise urbana de toda a história do país. E o olhar socioantropológico sobre as cidades não só nos ajuda a nos entender histórica e culturalmente, como revela nossas desigualdades sociais se manifestando em cada centímetro do chão das cidades.
2. Que relação você estabelece entre o seu mais novo livro - A Casa no Brasil - e o livro anterior - A Cidade no Brasil?
R: São livros que dialogam entre si. Na verdade, compus um “triálogo”. Entre “A Cidade no Brasil” e “A Casa no Brasil”, publiquei “Mulher, Casa e Cidade”, analisando lugares e desempenhos femininos no espaço doméstico e urbano em geral. “A Cidade no Brasil” é uma releitura das visões sobre o processo urbano em nossos trópicos, inclusive para contestar o mestre Sérgio Buarque de “Raízes do Brasil”, que considero equivocado e sem fundamentação histórica. “A Casa no Brasil” contextualiza a casa na desorganização espacial de nossas cidades, em percurso diacrônico que vem das senzalas aos flats. Para finalizar, examino a encruzilhada em que nos encontramos, sob desigualdades sociais e crimes ambientais.
3. Você escreve que a "sociedade brasileira, do século XVI aos dias de hoje, flats à parte, só conheceu, na verdade, um tipo de moradia: a casa escravista". Não é uma afirmação demasiadamente forte? Você entende que as relações sociais pouco mudaram no Brasil desde os tempos da Colônia? O que a "casa brasileira" mostra sobre a "sociedade brasileira"?
R: As relações sociais mudaram muito. Mas a gente não pode esquecer o passado escravista. E nem sequer que o Brasil foi um país onde a primeira coisa que um ex-escravo fazia era comprar um escravo para lhe servir. Machado de Assis retrata isso no “Brás Cubas”, na cena em que mostra o ex-escravo Prudêncio açoitando um escravo que acabara de comprar. Compare um apartamento europeu de classe média e um brasileiro também de classe média. Embora os europeus tivessem situação material superior à nossa, vivíamos como se fôssemos mais ricos que eles. Inexistiam dependências para empregados domésticos no apartamento europeu. No Brasil, tinham quartos de empregada que são sucedâneos das senzalas. Eles nem sequer atendiam a exigências mínimas de códigos de obras e por isso apareciam oficialmente, nas plantas, como despensas. As coisas só começaram a mudar recentemente. Moças pobres hoje preferem ser exploradas num ponto comercial qualquer do que serem servas pessoais de outros. E ficou caro ter empregadas domésticas, hoje implicando deveres trabalhistas. A tendência é chegar a uma situação mais europeia. Na Europa, só apartamentos de luxo possuem dependências para serviçais. Caminhamos para isso.

4. Você faz uma crítica feroz ao programa Minha Casa, Minha Vida, que descreve como "edificações fundamentalmente vagabundas" que constroem as "favelas de amanhã". Qual é o cerne do problema desse programa, que você afirma que tem "nome ridículo de programa de auditório de televisão"?


5. Em outro ponto do livro, você escreve que nenhum governo social-democrata no Brasil - nem os de Fernando Henrique Cardoso, nem as gestões petistas - se preocuparam em fazer um programa de habitação popular eficiente e com casas modernas do ponto de vista arquitetônico. O último governante com sensibilidade para a questão teria sido  Getúlio Vargas. Por que isso ocorre? Moradia popular não dá voto?

R: Vargas foi o primeiro – e, até aqui, o único – a pensar a habitação popular em termos de qualidade. É interessante observar uma coisa, na mesma década de 1930. Nessa época, a socialdemocracia nórdica partiu para fazer casas de qualidade para trabalhadores. Na Suécia, o sociólogo Gunnar Myrdal se aproximou de Corbusier e do ideário da vanguarda arquitetônica internacional. E o mesmo aconteceu no Brasil com Vargas, embora os suecos vivessem numa democracia e aqui a gente se movesse na ditadura estadonovista. Mas é que o populismo getulista voltou as costas para a democracia política, ao tempo em que se abriu para a democracia social. Vargas apostou no primeiro time da arquitetura brasileira para produzir moradias populares de alta qualidade, como no conjunto do Pedregulho, no Rio, elogiado por Corbusier e Max Bill. Mas esta sua lição foi desprezada. Fernando Henrique não se preocupou com moradia popular. E os governos petistas, em vez de retomar o legado de Vargas, preferiram ir na linha medíocre do BNH da ditadura militar. Moradia popular dá voto, sim – não tanto quanto os neocurrais eleitorais do Bolsa Família, mas dá. O problema é que o povo, na sua carência, acha que qualquer bolacha quebrada é um palacete. E os governantes, mesmo que façam pose “de esquerda”, se aproveitam disso.

6. O que acha de movimentos como o Movimento dos Trabalhadores Sem Teto (MTST), liderado por Guilherme Boulos? Vê nesse tipo de movimento algum caminho para tornar nossas cidades menos desiguais e ecologicamente mais equilibradas, como defende em seu livro?

R: Não conheço quem discorde do princípio de que todos devem ter direito a um abrigo onde morar. Se a burguesia da construção civil, o empresariado em geral e os governantes quisessem, eles já teriam acabado com o déficit habitacional. Eles têm poder e recursos para fazer cumprir o que reza a Constituição de 1988, com sua ênfase na função social da cidade e da propriedade. Mas não fazem. A suruba de empreiteiros e governantes no Brasil nunca teve sentido social. Logo, a desgraça habitacional popular prossegue. Não se faz uma ofensiva para acabar com isso. Então, é a sociedade que tem de se mover. De partir para o combate. Daí, a necessidade de coisas como o MTST, que é crítico duro e lúcido do Minha Casa, Minha Vida. Agora, quanto a Boulos, especificamente, não me entusiasma. É um “replay” de Lula, mas caricatural. Trazendo Marx para o plano do indivíduo: Boulus repete Lula como farsa.

7. Você escreve como passou a depender de uma bengala depois de ter tido um AVC em 2012 e como sentiu na pele como as cidades brasileiras são um inferno para os pedestres. A discussão sobre a questão da mobilidade urbana no Brasil, como você observa no livro, não leva em conta os interesses do pedestre, ao contrário do que acontece em países mais desenvolvidos como os da Europa. Por que involuímos nessa questão?

R: Falei antes da concordância geral em torno do princípio de que todos têm direito a um lugar onde morar. Não é só nesse tópico que a sociedade brasileira chega à unanimidade. Pensamos o mesmo sobre educação e saúde, assim como sobre a necessidade de respeitar o pedestre. Então, costumo dizer que, no Brasil, existe um elenco razoável de coisas e princípios que classifico como “consensos subversivos”. Porque todo mundo concorda que é preciso fazer – logo, consenso. E subversivo porque, no dia em que essas coisas forem feitas, teremos realizado uma nova revolução social no país. Mas vamos esquecer governantes e empresários. O mercado não é um deus que mereça confiança. E nossos políticos profissionais degradaram o Ministério das Cidades ao plano de peça de troca no balcão das barganhas nacionais. A sociedade tem de tocar o barco. O problema é que estamos muito pulverizados. E, para transformar a vida urbana brasileira, precisamos de uma heresia comum, compartilhável.

8. Você frisa que andar a pé é um dos principais meios de desfrutar uma das riquezas de morar em cidades: trombar com o acaso. E que as cidades devem se equilibrar entre o acaso e a necessidade - ou seja, estabelecer regras, sem as quais a vida urbana se torna um caos, mas ao mesmo tempo dar a chance para o imprevísivel. Que cidades já conseguiram achar esse equilíbrio?

R: Parti de um jogo verbal de Platão, na “República”, entre “polis” (cidade) e “polis” (um gamão grego), para falar que a cidade precisa de um conjunto de regras que incorpore rotineiramente o acaso. Se só houver regras, é o totalitarismo. Se não houver regras, é a anomia. No primeiro caso, de regras asfixiantes, tínhamos cidades no leste europeu. Hoje, no mundo islâmico. Mesmo em Teerã, onde é permitida a existência de sinagoga, quase tudo corre por debaixo do pano. No avesso, a Cidade do México e as grandes cidades brasileiras beiram a anomia. Equilíbrio? Regra geral, em cidades das democracias ricas do Atlântico Norte. Mas isso tudo vai mudando no tempo. Paris, por exemplo, caminha para empalmar um novo título. Será a maior cidade muçulmana do mundo.

9. O que acha do panorama geral das cidades brasileiras hoje em relação às principais cidades do mundo? As cidades brasileiras, em geral, nunca aparecem nos rankings de melhores cidades para morar do mundo? Gosta de alguma delas?

R: Estamos na contramão do movimento urbano planetário. Brasileiros dificilmente hesitam antes de cometer barbaridades ecológicas, violar princípios básicos de convivência e urbanidade, privilegiar automóveis e viadutos, em detrimento das pessoas. E aqui até me lembro da pergunta de Shakespeare: “o que é a cidade, a não ser as pessoas?”. Mas, apesar de tudo, gosto sim de algumas cidades brasileiras. Adoro São Paulo. Me sinto à vontade. Gosto, inclusive, de andar a pé à noite. De comer e beber no Copan, flanar na Paulista, ir ao Ibirapuera. E isso em nada diminui minhas críticas à cidade. Não tenho admiração por Haddad como político, mas ele teve um bom desempenho na prefeitura. Era o prefeito brasileiro que tinha uma visão da cidade como fenômeno socioespacial. E isso se perdeu. Gosto também do Recife, do Rio hoje tão humilhado, de São Luís, de Belo Horizonte, com a delícia daquele mercado municipal, etc. Enfim, embora não pare de reclamar, gosto de muita coisa.

10. O que acha de Brasília, razão de eternas polêmicas? Embora elogie a beleza da cidade, você admite já ter sido mais fã da capital e reconhece que algumas críticas à monumentalidade e à pouca densidade das relações sociais tem sua razão de ser.

R: Há muito o quê falar de Brasília, que é uma joia da arquitetura e do urbanismo brasileiros. E curto mais a cidade do que a critico. Mas algumas coisas não me parecem confortáveis. Brasília é uma cidade definida pela especialização de funções, com seus setores bem demarcados. Eu não aplaudo esta morfologia espacial. Penso que as mesclas funcionais e sociais concorrem para o bem-estar urbano. Outra coisa é que não vingou a nova sociabilidade vistosa que se esperava nascer do próprio plano da cidade. Como digo no livro, o que vemos é a falta de volume, frequência e intensidade na teia dos relacionamentos interpessoais. No desenho morfológico setorializante, a existência também se atomizou, aprofundando ainda mais o isolamento social candango.

11. Viver em condomínios fechados, como Alphaville, em São Paulo, parece já ter gozado de maior apreço junto às classes sociais brasileiras mais abastadas. Vê alguma mudança na relação das elites brasileiras com a vida na cidade? Vê algum razão para otimismo em relação à perspectiva de uma reforma urbana no Brasil que leve a cidades mais equilibradas tanto do ponto de vista social como ambiental?

R: A conduta das elites brasileiras, com relação às cidades, me parece mais um caso de polícia do que qualquer outra coisa. Invadem e privatizam o espaço público. Chegam a privatizar até a praia, que tem de estar sempre aberta a todos. Ao mesmo tempo, penso que a época de preferir isto ou aquilo está passando. O espectro das escolhas se estreita à medida que temos de pensar uma cidade que não consuma tão descontroladamente os recursos naturais. Seremos obrigados a mudar, se não quisermos perecer. É neste sentido que digo que hoje a cidade ideal está se transformando em cidade necessária. No livro, lembro que Goethe/Fausto, na tradução do “Evangelho Segundo João”, contraria a Bíblia e escreve: “no princípio, era a ação”. Mas, ainda no âmbito do próprio romantismo alemão, Heinrich Heine respondeu: “no princípio, era o rouxinol”. Goethe celebra a energia, a práxis. Heine celebra as canções da natureza. E o que eu digo é que temos de partir desse diálogo, caminhando idealmente para alguma síntese entre a ação de Goethe e o rouxinol de Heine.

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