sexta-feira, 26 de junho de 2020

Uma Pausa para Avançar

Fernando Gabeira*
Além da pandemia, por décadas vamos sentir os efeitos da passagem de Bolsonaro pelo poder.
A leitura da História da Europa nos anos 30 mostra uma longa tensão bélica entrecortada por pausas que enchiam de esperança os que sonhavam com a paz. Poucos percebiam, como Winston Churchill, quão importante era aproveitar os momentos de tensão para se preparar para um confronto inevitável.
Guardadas as proporções, o Brasil entra numa pausa com a prisão de Fabrício Queiroz. Jogado na defensiva pelos diferentes processos no Supremo, um contra fake news, outro contra manifestações com bandeiras ilegais, Bolsonaro tende a se acalmar por alguns dias.
Toda a sua energia certamente estará concentrada em se defender do pepino do tamanho de um cometa que ronda seu governo. A presença de Fabrício Queiroz na casa do advogado da família Bolsonaro levou, de novo, não só os problemas de Flávio Bolsonaro, mas a incômoda questão das milícias cariocas para o terceiro andar do Palácio do Planalto.
Dificilmente, nesse período, crescerão as manifestações pedindo o fechamento do Congresso e do STF. Muito menos Bolsonaro, Mourão e o ministro da Defesa devem lançar novas notas afirmando que as Forças Armadas não aceitam julgamentos políticos. Isso agora soaria como um blefe.
Muito possivelmente Bolsonaro perdeu terreno nas Forças Armadas e também na faixa de seu eleitorado que esperava a luta contra a corrupção. Nesta última ele já havia perdido com a saída de Sergio Moro do governo denunciando suas tentativas de intervir na Polícia Federal do Rio. E as perdas se acentuaram quando firmou aliança com o Centrão, uma espécie de seguro contra o impeachment, que nem sempre é honrado pelos contratantes.
Quando a prisão de Queiroz apertou o botão “pausa” a sociedade estava se organizando para deter o golpe e fazer frente à política nefasta de Bolsonaro. Manifestações de rua surgiram aos domingos e manifestos brotaram de vários setores, indicando a possibilidade de uma frente democrática em gestação.
Nesse momento também a pandemia atingia seu auge, ultrapassando a casa de 1 milhão de contaminados e 50 mil mortos. O Brasil tornou-se um país a ser evitado. O fracasso no combate à pandemia, impulsionado pelo negativismo de Bolsonaro, afasta os potenciais visitantes.
A destruição da Amazônia, que pode alcançar 16 mil km2 no prazo de um ano, por sua vez, afasta os investidores. Fundos de pensão responsáveis por investimentos gigantescos podem voltar as costas ao Brasil, por causa da destruição da floresta e a cruel política para os povos indígenas.
Bolsonaro não torna o País inviável apenas simbolicamente, arrasando a cultura e atropelando nosso patrimônio histórico. Ele nos coloca nas piores condições possíveis para superar a profunda crise econômica, agravada pela pandemia. Embora o ministro Paulo Guedes veja um futuro brilhante pela frente, grandes economistas brasileiros, ao contrário, veem no horizonte uma das grandes privações por que passará o Brasil em sua História.
Quem se preocupa com a democracia apenas quando se aquecem os motores dos tanques militares pode ter uma falsa sensação de alívio. A democracia continuará exposta a pequenos golpes cotidianos Além disso, quanto menos margem de manobras Bolsonaro encontrar, mais possibilidade de buscar ações .
Enquanto a sociedade se move, ainda lentamente por causa da pandemia, o confronto com as aspirações golpistas concentrou-se na reação do Supremo Tribunal Federal. Infelizmente, o Congresso recuou para segundo plano, talvez temeroso da agressividade da militância bolsonarista.
É preciso que os deputados e senadores superem a fixação numa salvação individual nas eleições. Os deputados da extrema direita, segundo a PGR, usam verbas parlamentares para mobilizar o fechamento do próprio Congresso. Não há como se esconder atrás das togas negras do Supremo. É necessária uma frente democrática no próprio Congresso.
“Somos poucos”, dirão os deputados. Mas não importa tanto o número, o importante é começar. Se a pausa acionada com a prisão de Queiroz for entendida como um momento de distensão, uma época para simplesmente deixar andar o processo judicial, ela pode trazer surpresas desagradáveis…
Naturalmente, os processos legais têm de ser acompanhados. Mas os danos ao País continuam a ocorrer. E a chegada de momentos mais dramáticos da crise econômica pede a construção de redes de solidariedade.
Diz a OMS que o mundo sentirá por décadas os efeitos da pandemia de coronavírus. No caso brasileiro, além da pandemia, vamos também sentir por décadas a passagem de Bolsonaro pelo poder.
No trabalho de reparo dos estragos e reconstrução do futuro não pode haver pausa. Mesmo porque as desgraças não nos abandonam nem no cotidiano. O mínimo que esperamos de novo, nessa pausa, é uma voraz nuvem de gafanhotos que nos invade pelo sul do País.
Um aumento de chances de vitória é uma razão suficiente para intensificar a luta. Quanto menos nos preparamos para ela, mais difícil será o desfecho. Sem necessariamente estabelecer um paralelo com o nazismo, a História dos anos 30 é uma aula sobre as hesitações da democracia diante de um perigo no horizonte.
*Jornalista

quinta-feira, 25 de junho de 2020

ACARAJÉ, patrimônio cultural da Bahia

Mais do que uma comida rápida de rua, o acarajé é indissociável da cultura do candomblé e da história dos africanos no Brasil. Quitute é elemento central de um complexo cultural

Carolina Cantarino
O ofício das baianas do acarajé é patrimônio cultural do Brasil. Quando anunciado, equívocos em torno do “tombamento do acarajé” e outros mal-entendidos esconderam a valorização de uma profissão feminina historicamente presente no país: as baianas de tabuleiro. O orgulho por esse reconhecimento podia ser visto nos rostos das mulheres negras de novas e antigas gerações presentes durante a cerimônia de diplomação de seu ofício.
As baianas  de acarajé que mantém a tradição usam roupas tradicionais cuja peça mais característica é a grande saia rodada, complementada por outros adereços como os chamados panos da costa, o torso na cabeça, a bata e os colares com as cores dos seus orixás pessoais. Nas ruas de Salvador, de outras cidades do estado da Bahia e, mais raramente, em outras regiões do país, as baianas tradicionais encontram-se sempre acompanhadas por seus tabuleiros que contêm não só o acarajé e seus possíveis complementos, como o vatapá e o camarão seco, mas também outras “comidas de santo”: abará, lelê, queijada, passarinha, bolo de estudante, cocada branca e preta. Os tabuleiros de muitas baianas soteropolitanas se sofisticaram: revestidos por paredes de vidro, muitas vezes contêm caras panelas de alumínio junto às colheres de pau.
O acarajé, o principal atrativo no tabuleiro, é um bolinho característico do candomblé. Acarajé é uma palavra composta da língua iorubá: “acará” (bola de fogo) e “jé” (comer), ou seja, “comer bola de fogo”. Sua origem é explicada por um mito sobre a relação de Xangô com suas esposas, Oxum e Iansã. O bolinho se tornou, assim, uma oferenda a esses orixás.
Mesmo ao ser vendido num contexto profano, o acarajé ainda é considerado, pelas baianas, como uma comida sagrada. Para elas, o bolinho de feijão fradinho frito no azeite de dendê não pode ser dissociado do candomblé. Por isso, a sua receita, embora não seja secreta, não pode ser modificada e deve ser preparada apenas pelos filhos-de-santo.
“Pode parecer que estamos dando importância maior ao acarajé do que ao ofício das baianas do acarajé, mas este fato tem um sentido: neste complexo cultural, o acarajé é o elemento central. O ofício não teria a importância que tem se o acarajé fosse apenas um dos alimentos tradicionais”, afirma Roque Laraia, antropólogo da Universidade de Brasília e membro do Conselho Consultivo do Iphan, em seu parecer sobre a proposta de registro do ofício das baianas do acarajé. O inventário que instruiu o processo de registro foi realizado pelo Centro Nacional de Folclore e Cultura Popular.
Raul Lody e Elizabeth de Castro Mendonça foram os antropólogos que realizaram a pesquisa que consistiu na realização de entrevistas; levantamento bibliográfico; registros audiovisuais e, dentre outras coisas, visita a pontos característicos de baianas do acarajé na cidade de Salvador tais como Bonfim, Pelourinho, Barra, Ondina, Rio Vermelho e Piatã. Brotas também foi um dos bairros visitados devido à presença de um “baiano de tabuleiro”, evangélico.
As baianas sofrem, cada vez mais, com a concorrência da venda do acarajé no comércio de bares, supermercados e restaurantes baseados, inclusive, no marketing do bolinho de acarajé como fast food. Essa apropriação do acarajé contraria o seu universo cultural original e a sua venda como “bolinho de Jesus” pelos adeptos de religiões evangélicas – que postam Bíblias em seus tabuleiros - tem causado polêmica.
“Se você tem uma religião que é contrária ao candomblé, por que vender acarajé e não qualquer outro quitute?” indaga Dona Dica diante do seu tabuleiro no Largo Quincas Berro D’Água, no Pelourinho, ressaltando que o acarajé, para a maioria das baianas de tabuleiro, filhas-de-santo, é indissociável do candomblé. Essa indistinção não deixa de ser, também, uma estratégia de diferenciação de seus produtos, num contexto de concorrência cada mais acirrada que é Salvador, uma cidade que atrai muitos turistas por ser considerada como o locus de africanismos no Brasil, a partir dos quais uma inegável comercialização da cultura negra tem se constituído.
Mas se para essas baianas as mudanças em relação ao aspecto religioso são inaceitáveis, outras transformações são bem vindas. “No passado era muito ruim porque a gente tinha que descascar o feijão e quebrá-lo na pedra. Hoje em dia não se tem esse sofrimento porque as meninas usam o moinho elétrico ou mesmo o liqüidificador”. Essa é a opinião de Arlinda Pinto Nery, que trabalhou com seu tabuleiro durante mais de 50 anos e aprendeu o ofício com sua mãe.

Dona Arlinda faz parte da Associação das Baianas de Acarajé e Mingau do Estado da Bahia que existe há 14 anos e conta com dois mil associados dentre baianas e baianos do acarajé e vendedores de outros tipos de comida como mingau, pamonha e cuscuz. O trabalho da associação é voltado para a profissionalização da atividade, que já conta com um selo de qualidade: através de parcerias com o Sebrae e o Senac, os associados têm acesso a cursos sobre manipulação de alimentos, normas de higiene e sobre finanças, para que possam administrar melhor os seus ganhos.

As mulheres de tabuleiro de ontem e de hoje

A comercialização do acarajé tem início ainda no período da escravidão com as chamadas escravas de ganho que trabalhavam, nas ruas, para as suas senhoras (geralmente pequenas proprietárias empobrecidas), desempenhando diversas atividades, dentre elas, a venda de quitutes nos seus tabuleiros. Ainda na costa ocidental da África as mulheres já praticavam um comércio ambulante de produtos comestíveis, o que lhes conferia autonomia em relação aos homens e muitas vezes o papel de provedoras de suas famílias.

O comércio de rua nas cidades brasileiras permitiu às mulheres escravas ir além da prestação de serviços aos seus senhores: elas garantiam, muitas vezes, o sustento de suas próprias famílias, foram importantes para a constituição de laços comunitários entre os escravos urbanos e também para a criação das irmandades religiosas e do candomblé: muitas filhas-de-santo começaram a vender acarajé para poder cumprir com suas obrigações religiosas que precisavam ser renovadas periodicamente.

Devido a essa liberdade de movimento é que as escravas de tabuleiro eram vistas como elementos perigosos, tornando-se, por isso, alvos de posturas e leis repressivas.

A venda do acarajé permaneceu como uma atividade econômica relevante para muitas mulheres mesmo com o fim da escravidão. Hoje, atrás das baianas existem famílias inteiras dependendo dos seus tabuleiros: 70% das mulheres pertencentes à Associação das Baianas de Acarajé e Mingau do Estado da Bahia são chefes de família. A rotina dessas mulheres é caracterizada pela compra dos ingredientes necessários para o preparo do acarajé, um trabalho diário e árduo: precisam levantar cedo, ir à feira, buscar produtos de qualidade a preços acessíveis. O preço do camarão e do azeite de dendê são os que mais variam. Muitas ainda enfrentam problemas para adquirir tabuleiros novos ou mesmo para guardá-los, deixando-os, muitas vezes, na praia.

“Às vezes nos sentimos órfãs porque trabalhamos sozinhas com nosso tabuleiro, de sol a sol, expostas ao frio, ao calor e mesmo à violência. Mas somos mulheres negras e perseverantes: se não vendemos hoje, venderemos amanhã. Somos um símbolo de resistência desde a escravidão”, lembra Maria Lêda Marques, presidente da Associação que, juntamente com o terreiro Ilê Axé Opô Afonjá e o Centro de Estudos Afro Orientais da Universidade Federal da Bahia, fizeram o pedido de registro junto ao Iphan

sábado, 20 de junho de 2020

Um desastre de gerações

O governo de Jair Bolsonaro, ao submeter a saúde e a educação do Brasil a seus propósitos deletérios, compromete o futuro de gerações. Essas duas áreas, mais do que quaisquer outras, são a essência da construção da cidadania. Um país de doentes e semiletrados jamais alcançará um patamar de desenvolvimento considerado satisfatório.
A degradação do Ministério da Educação talvez seja o maior símbolo de um governo cujo espírito é essencialmente destrutivo. O presidente Bolsonaro, que vê comunistas em toda a parte, entende que é preciso arruinar o sistema educacional do País porque este, supostamente, está dominado por doutrinadores de esquerda. Por isso escolheu a dedo seus ministros da Educação.
O primeiro foi Ricardo Vélez Rodriguez, que durou exatos 97 dias no posto. Assumiu o cargo dizendo que “Jair Bolsonaro prestou atenção à voz entrecortada de pais e mães reprimidos pela retórica marxista que tomou conta do espaço educacional”. Sua curta gestão foi marcada por tropeços, mal-entendidos e descontrole, e Vélez Rodriguez acabou demitido por Bolsonaro porque, segundo o presidente, “não tinha essa expertise com ele”. Ou seja, Bolsonaro levou pouco mais de três meses para perceber o que todos já sabiam no instante em que o nome de Vélez Rodriguez foi anunciado – que ele não tinha a menor tarimba para ser ministro da Educação.
Tendo uma segunda chance para acertar em área tão sensível, Bolsonaro dobrou a aposta na mediocridade e no destempero e colocou no Ministério o economista Abraham Weintraub. Ao longo dos 14 meses de sua passagem pela pasta, Weintraub fez exatamente o que o presidente esperava: transformou o Ministério da Educação em cidadela da guerra imaginária do bolsonarismo contra o “marxismo cultural”.
Enquanto se empenhava em desorganizar a educação, Weintraub assombrava o País com suas seguidas grosserias contra universidades, professores e até governos estrangeiros – isso sem falar dos espantosos erros de português em suas diatribes nas redes sociais. Era, portanto, a expressão mais bem acabada do bolsonarismo – tanto que o presidente, em meio à saraivada de críticas ao ministro, disse que, “no meu entender, ele (Weintraub) está sendo excelente” e, “se tem jornalistas criticando, é porque está indo bem”. 
Weintraub fez tão bem seu trabalho, conforme as expectativas de Bolsonaro e dos bolsonaristas, que se indispôs com a República inteira, especialmente com o Supremo Tribunal Federal (STF) – de cujos ministros pediu a prisão, chamando os de “vagabundos” durante infame reunião ministerial. A dura reação do STF contra Weintraub obrigou Bolsonaro a afinal demitir seu fidelíssimo sabujo, para tentar reduzir sua já extensa lista de problemas com a Justiça e com outros Poderes.
Ou seja, Weintraub não foi exonerado por sua gritante incapacidade de exercer a nobre função de ministro da Educação, tampouco por ter tratado a comunidade acadêmica e científica como inimiga; ele perdeu o emprego em razão dos cálculos políticos do acossado presidente. Por isso, nada indica que o próximo ministro venha a ser muito melhor do que Weintraub, porque é improvável que o presidente desista de sua guerra ao intelecto e à razão – sabotando os esforços de milhares de educadores para dar aos jovens brasileiros condições mínimas de participação ativa na vida nacional.
Essa irracionalidade militante do bolsonarismo se reflete também na área de saúde. Temos um presidente que afronta a ciência, estimulando comportamento irresponsável dos seus concidadãos em meio a uma pandemia e recomendando o consumo de remédios sem eficácia comprovada, mas com graves efeitos colaterais. Temos um chefe de governo que demitiu dois ministros da Saúde justamente porque estes se recusaram a cumprir suas ordens irresponsáveis – o atual, um general, aceitou até mesmo manipular números da pandemia para que seu comandante pudesse dizer por aí que o total de mortos é muito menor do que os governos estaduais informam e que o País já deveria ter “voltado ao normal”.
Bolsonaro, em resumo, baseia-se nas fake news que circulam furiosamente nas redes bolsonaristas para nortear a política oficial de saúde.
Enquanto isso, o número de casos confirmados de covid-19 no Brasil passou de 1 milhão.

*

Bolsonaro repete Dilma

Osvaldo Campos Magalhaes*
Para viabilizar a chegada ao poder e evitar uma nova derrota de Lula na disputa pela presidência da República, o Partido da Ética e da Esperança foi transformado por ZéDirceu e Lula numa Organização Criminosa. O assassinato do prefeito petista de Santo André, Celso Daniel, revelava o que viria a acontecer na esfera federal. Ao invés de se aliar a partidos comprometidos com a Ética, o PT optou por cooptar a escória da política brasileira. Enquanto o cenário internacional permitiu, bancado principalmente pela grande demanda da China por commodities, a economia brasileira cresceu gerando recursos para um excelente programa de distribuição de renda que retirou mais de 20 milhões de brasileiros da miséria. Mesmo com o escândalo do Mensalão, que levaria à condenação os principais dirigentes do PT, o excelente quadro econômico do país confere índices de aprovação superiores a 80% a Lula, que não consulta o partido e opta por escolher uma candidata sem tradição dentro do PT e sem qualificações e preparo para exercer a presidência e dar continuidade ao excelente trabalho realizado no seu governo. Com nomes muito mais qualificados dentro do PT, como Patrus Ananias e Tarso Genro, Lula opta por uma candidata que na sua análise séria fácil de controlar e manobrar. Cometendo um segundo erro, ao entregar a vice presidência ao PMDB e a um político ardiloso e maquiavélico, Lula preparou o terreno para o surgimento das forças políticas reacionárias e fascistas. Com a mudança no cenário internacional provocada pela crise do sistema bancário norte americano, de 2008, a partir de 2011, no governo Dilma, foi adotada uma política de incentivo ao consumo, de congelamento dos derivados de petróleo e redução artificial das taxas de juro. No segundo mandato a política econômica entra em colapso, com o crescimento da inflação, da taxa de desemprego e , pela primeira vez na história, dois anos seguidos de recessão. Aproveitando-se da fragilidade do governo, da incapacidade de negociação política de Dilma, o vice presidente com o apoio de seu aliado Eduardo Cunha, articula o impeachment da presidente Dilma. Com a insatisfação popular resultante do aumento das tarifas públicas, do alto índice de desemprego e da volta da inflação, fica fácil para Temer viabilizar o impeachment. O movimento de insatisfação popular faz surgir um vigoroso crescimento de grupos fascistas , fortalecendo a extrema direita, que resultaria na viabilização da candidatura de Jair Bolsonaro, que se fortalece nas mídias sociais como o candidato anti Sistema. Consegue eleger a segunda maior bancada no Congresso e inexpressivos candidatos ao governo em vários Estados da Federação. Com a indicação de qualificados quadros técnicos para as áreas de infraestrutura e economia o governo consegue reverter a tendência de estagnação econômica e inicia um grande programa de desestatização, criando forte expectativa de crescimento econômico, com queda da inflação e das taxas de juros. Contudo, setores estratégicos como educação, relações exteriores, cidadania e direitos humanos, turismo e cultura são entregues a Ministros despreparados sem a devida qualificação para liderarem setores tão importantes, gerando desgastes na imagem do governo. Assim como Dilma, que enfrentou a grave crise econômica de 2008, o governo Bolsonaro é atingido pela crise provocada pela Pandemia do Covid 19. Ambos os presidentes subestimam os efeitos das crises, adotando posturas equivocadas e sofrendo sérios desgastes nas avaliações de desempenho dos respectivos governos. Contudo, o mais grave diz respeito aos indicadores econômicos, com a volta de uma grande recessão econômica com expressiva taxa de desemprego. Bolsonaro se mostra tão despreparado quanto a presidente Dilma, e, ameaçado por um processo de impeachment abandona as promessas de campanha, distribuindo cargos a deputados do Centrão, fortalecendo também a presença de representantes das forças armadas no governo, incentivando grupos de extrema direita e flertando com um novo golpe militar. Sem a Guerra Fria que existia em 64 e com a provável derrota do aliado Donald Trump, a hipótese do Golpe Militar se mostra completamente inexequível.
*Engenheiro Civil e Mestre em Administração (UFBa), é membro do Conselho de Infraestrutura da FIEB

Bolsonaro já tem o seu Tchau Querida


Reinaldo Azevedo*
O governo Bolsonaro acabou. A reforma da Previdência, único marco que ficará destes dias, durem quanto durar, é, na verdade, herança do governo Temer, que só não conseguiu aprovar o texto porque teve de enfrentar o lavajatismo golpista e de porre de Rodrigo Janot. Isso à parte, sobra pregação golpista. E só.
Quanto tempo o “mito” ainda fica por aí? Não sei. Mas é “um cadáver adiado que procria”, para lembrar verso de Fernando Pessoa em caso bem mais nobre. E qualquer coisa que venha à luz, nessas circunstâncias, será necessariamente ruim.
Não temos mais um presidente, mas um refém do fundão do centrão. À medida que a sociedade vai saindo da clausura a que a condenou o coronavírus, cresce o preço político para manter o corpo na sala. Até a hora em que os próprios apoiadores resolvem enterrar o malcheiroso.
Lembram-se do “tchau, querida” de Lula, ao se despedir de Dilma, naquela gravação feita e divulgada ilegalmente por Sergio Moro? Esqueçam o mérito. Fixo-me nas palavras. Elas se transformaram numa espécie de emblema da derrocada do governo. Era também uma senha entre os que defendiam o impeachment.
Bolsonaro já tem os dois vocábulos imortais que servem para carimbar seu fim. E saíram de sua própria boca, em um dos habituais acessos de fúria. Falando a seguidores no Alvorada, deu a entender que, a partir daquele momento, passava a ter o comando das vontades do STF. Vociferou para o TIH (Tribunal da Ironia da História): “Acabou, porra!”.
Pois é... Acabou, porra!
A partir de agora, não há mais como o presidente se ocupar do governo. Enquanto estiver por aí, vai ter de pagar, às custas do futuro do Brasil, o preço para que não se formem os 342 votos na Câmara que o empurrariam para julgamento, e condenação certa!, no Senado por crime de responsabilidade.
Aqui e ali, as pessoas se espantam: “Caramba! O Fabrício Queiroz foi se homiziar justamente no sítio de Frederick Wassef, advogado dos Bolsonaros, que tinha estado no Palácio do Planalto no dia anterior, a convite do presidente, na posse de Fábio Faria, o ministro que simbolizaria a disposição para o diálogo?”.
Meus caros, vocês queriam o quê? De Goethe a Max Weber, estamos diante de uma derivação das chamadas “afinidades eletivas”. A Operação Anjo, no âmbito da qual Fabrício foi garfado, é uma referência ao apelido de Wassef entre os Bolsonaros: anjo. Eles todos devem saber por quê.
Queiroz foi preso no dia seguinte àquele em que Bolsonaro negou a democracia três vezes. O dia 17 de junho entrará para a história. Logo de manhã, o presidente anunciou às portas do Alvorada, referindo-se a magistrados de tribunais superiores: “Eles estão abusando. Está chegando a hora de tudo ser colocado no devido lugar”. À noite, foi ainda mais sombrio: “É igual uma emboscada. Você tem de esperar o cara se aproximar”.
Na sequência, foi arriar a bandeira em companhia do comandante do Exército, Edson Leal Pujol, que caía, ele sim, numa emboscada. Entre uma ameaça e outra, fez a mais grave de todas as afirmações desde que assumiu. E justamente na posse do novo ministro.
Nas barbas de Rodrigo Maia e Dias Toffoli, presidentes, respectivamente, da Câmara e do STF, o mandatário evocou as forças do caos: “Não são as instituições que dizem o que o povo deve fazer. É o povo que diz o que as instituições devem fazer”. Essa é a divisa dos tiranos, não dos democratas. “Povo”, para Bolsonaro, ele já deixou claro, se resume às suas milícias digitais e àqueles que comungam de seus, vá lá, valores, que ele chama “conservadores”, numa distorção miserável do sentido da palavra.
É o passado policial de Bolsonaro que põe fim a seu governo, ainda que o cadáver fique por aí. Mas o que já o impedia de governar é a sua absoluta incompreensão do que é a democracia. Sim, novas ameaças de autogolpe virão nos próximos dias. É de sua natureza.
Bolsonaro quer que acreditemos que os generais podem botar os tanques nas ruas para unir a história das Forças Armadas à de patriotas como Fabrício Queiroz.
*Reinaldo Azevedo. br /> Jornalista, autor de “O País dos Petralhas”.

sexta-feira, 19 de junho de 2020

MORRE JOÃO CARLOS TEIXEIRA GOMES, JOCA, O GRANDE PENA DE AÇO

Fernando Alcoforado*
Faleceu ontem, 18/06/2020, o jornalista, escritor e professor da UFBA, João Carlos Teixeira Gomes. Joca, o Pena de Aço, como era conhecido será cremado hoje, 19, no Bosque da Paz, em cerimônia restrita a pequeno grupo. Poeta, escritor, ensaísta, professor, membro da Academia Baiana de Letras, onde ocupava a cadeira de número 15, Joca fez parte do grupo conhecido como Geração Mapa, ao lado do cineasta Glauber Rocha, do escritor João Ubaldo Ribeiro, do pintor Calazans Neto e do também professor e jornalista Florisvaldo Matos, entre outros.
No Jornal da Bahia, Joca, o Pena de Aço, que ajudou a fundá-lo, ocupou sucessivamente os cargos de repórter, secretário, chefe de reportagem, redator-chefe e editorialista. Joca foi um batalhador pela liberdade da imprensa contra o arbítrio, contra a ditadura militar. Como redator-chefe do Jornal da Bahia, travou uma luta de vida ou morte contra Antônio Carlos Magalhães (ACM), representante da ditadura militar na Bahia, desde o primeiro governo dele durante o regime militar que durou muitos anos. Ele escreveu inclusive um livro, 'Memórias das Trevas', em que conta episódios lamentáveis da vida de ACM.
Joca, o Pena de Aço, também foi colaborador fixo do jornal  ATARDE, publicando artigos quinzenais nas páginas de Opinião. Foi secretário de Comunicação Social do Governo de Waldir Pires em meados dos anos 1980, e diretor do Centro de Estudos Baianos da Universidade Federal da Bahia. Publicou, entre outros, um livro sobre Gregório de Mattos: Gregório de Mattos, o Boca de Brasa, bem recebido por crítica e público. Foi autor também de Camões Contestador e Outros Ensaios e de Glauber Rocha – Esse Vulcão. Participou, como colaborador, dos livros Dezoito Contistas Baianos, Da Ideologia do Pessimismo à Ideologia da Esperança, A Obsessão Barroca da Morte de Manuel Bernardes e Quevedo. E tem três livros de poesias: Ciclo Imaginário, O Domador de Gafanhotos e A Esfinge Contemplada.
Minhas condolências aos familiares desta grande figura humana, Joca, o Pena de Aço,  que fará muita falta em nosso País neste momento grave que o Brasil atravessa de ameaça à democracia e à liberdade de imprensa.
*Engenheiro, Doutor em Planejamento Territorial e Desenvolvimento Regional - Universidade de Barcelona  

Bolsonaro no mesmo caminho de Dilma

Osvaldo Campos Magalhaes*
Para viabilizar a chegada ao poder e evitar uma nova derrota de Lula na disputa pela presidência da República, o Partido da Ética e da Esperança foi transformado por ZéDirceu e Lula numa Organização Criminosa. O assassinato do prefeito petista de Santo André, Celso Daniel, revelava o que viria a acontecer na esfera federal.
Ao invés de se aliar a partidos comprometidos com a Ética, o PT optou por cooptar a escória da política brasileira.
Enquanto o cenário internacional permitiu, bancado principalmente pela grande demanda da China por commodities, a economia brasileira cresceu gerando recursos para um excelente programa de distribuição de renda que retirou mais de 20 milhões de brasileiros da miséria.
Com índices de aprovação superiores a 80%, Lula não consulta o partido e opta por escolher uma candidata sem tradição dentro do PT e sem qualificações e preparo para exercer a presidência e dar continuidade ao excelente trabalho realizado no seu governo. Com nomes muito mais qualificados dentro do PT, como Patrus Ananias e Tarso Genro, Lula opta por uma candidata que na sua análise séria fácil de controlar e manobrar.
Cometendo um segundo erro, ao entregar a vice presidência ao PMDB e a um político ardiloso e maquiavélico, Lula preparou o terreno para o surgimento das forças políticas reacionárias e fascistas.
Com a mudança no cenário internacional provocada pela crise do sistema bancário norte americano, em 2008, Dilma prefere adotar uma política de incentivo ao consumo, de congelamento dos derivados de petróleo e redução artificial das taxas de juro. No segundo mandato a política econômica entra em colapso, com o crescimento da inflação, da taxa de desemprego e , pela primeira vez na história, dois anos seguidos de recessão. Aproveitando-se da fragilidade do governo, da incapacidade de negociação política de Dilma, o vice presidente com o apoio de seu aliado Eduardo Cunha, articula o impeachment da presidente Dilma. Com a insatisfação popular resultante do aumento das tarifas públicas, do alto índice de desemprego e da volta da inflação, fica fácil para Temer viabilizar o impeachment. O movimento de insatisfação popular faz surgir um vigoroso crescimento de grupos fascistas , fortalecendo a extrema direita, que resultaria na viabilização da candidatura de Jair Bolsonaro, que se fortalece nas mídias sociais como o candidato anti Sistema. Consegue eleger a segunda maior bancada no Congresso e inexpressivos candidatos ao governo em vários Estados da Federação.
Com a indicação de qualificados quadros técnicos para as áreas de infraestrutura e economia o governo consegue reverter a tendência de estagnação econômica e inicia um grande programa de desestatização, criando forte expectativa de crescimento econômico, com queda da inflação e das taxas de juros.
Contudo, setores estratégicos como educação, relações exteriores, cidadania e direitos humanos, turismo e cultura são entregues a Ministros despreparados sem a devida qualificação para liderarem setores tão importantes, gerando desgastes na imagem do governo.
Assim como Dilma, que enfrentou a grave crise econômica de 2008, o governo Bolsonaro é atingido pela crise provocada pela Pandemia do Covid 19.
Ambos os presidentes subestimam os efeitos das crises, adotando posturas equivocadas e sofrendo graves desgastes nas avaliações de desempenho dos respectivos governos. Contudo, o mais grave diz respeito aos indicadores econômicos, com a volta de uma grande recessão econômica com expressiva taxa de desemprego. Bolsonaro se mostra tão despreparado quanto a presidente Dilma, e, ameaçado por um processo de impeachment abandona as promessas de campanha, distribuindo cargos a deputados do Centrão, fortalecendo também a presença de representantes das forças armadas no governo, incentivando grupos de extrema direita e flertando com um novo golpe militar.
Com a provável derrota do aliado Donald Trump, diferentemente de 64, não terá o apoio Norte Americano.
*Engenheiro Civil e Mestre em Administração (UFBa).

domingo, 24 de maio de 2020

Ele faria 113 anos

Almir Santos*
Que saudade do tempo que era levado por suas mãos. Das tardes no Campo Grande, das manhãs na praia da Paciência. Que sensação quando o bonde chegava à Vila Matos e sentia o cheiro de praia. Era sinal que o azul do mar estava perto.
De trocar a roupa na casa de Manuel de Lucila. Não se andava nos bondes em trajes de banho.
Tomar leite de vaca de madrugada na cocheira de Joventino no bairro do Binóculo, comprar manga na roça de René na Rua Garibaldi ou manga, laranja, uva e caju na roça de Simões na Federação.
Do veraneio em Amaralina. De olhar o gado beber água na lagoa.
Das manhãs de domingo, das visitas à minha avó Isaura ou meu tio Edmundo. De subir a ladeira de dona Celina.
De andar pelas ruas do bairro da Sé e depois tomar uma gasosa na Pastelaria Centro Popular.
Das cocadas branca e preta, compradas de uma baiana que ficava à porta da Farmácia Minerva.
De vê-lo retornar do trabalho à tardinha e descer do bonde ainda em movimento.
Dos primeiros filmes: O Mágico de OZ, Branca de Neve e os Sete Anões e Idílio nas Selvas.
De sua voz forte gritando “Almir e Ayrton” à frente do colégio da Prof.ª Iazinha.
Do meu primeiro jogo de futebol: 15 de agosto de 1943, Botafogo 2x Galícia 1 no campo da Graça.
Bahia “doente”. Sempre achava que o seu time não merecia ter perdido, o juiz não marcou dois pênaltis a seu favor ou validou um gol em impedimento do adversário.
Não tinha essa de torcer para time de fora. Vitória, Botafogo, Galícia, Ypiranga, Guarani jogando contra time de fora, tinha de torcer pelos times baianos. “Tem de torcer pela Bahia.” O mesmo para times brasileiros jogando contra times estrangeiros. “Tem de torcer para o Brasil.”
O bairrismo sempre foi uma de suas inúmeras qualidades. Isso não era válido somente para o futebol. E nós aprendemos.
Do nosso primeiro dia do Colégio Antônio Vieira: 3 de novembro de 1946.
Dos bailes de carnaval do clube Cruz Vermelha. Da Queima de Judas e das festas de S.João. Dos foguetes e balões. Da história do balão de 16 metros , feito por ele, que foi notícia de jornal. De sua alegria e suas brincadeiras. Do seu vigoroso aperto de mão.
Adorava fazer surpresas.
Das arraias sem linha temperada.
Das latas de goiabadas ganhas no jogo de dominó e das caixas de fósforo ganhas no jogo de agache.
De sua letra. A caligrafia mais bonita do mundo!
Do dia 3 de julho de 1951, quando me apresentou ao Dr. Mário Gomes, meu primeiro diretor.
De 1954. Dia que nos acordou com os olhos brilhantes de alegria com um jornal na mão: “vocês dois passaram no vestibular !!! ”
Da sua capacidade de ser querido pelas pessoas.
Do seu espírito comunitário. Do seu bom relacionamento com as autoridades que lhe permitia, sem ser político, conseguir melhorias e serviços para o nosso bairro.
Lembro-me do dia que, conseguida por ele, a água encanada chegou à rua onde morávamos.
Do seu caráter, da sua honestidade.
Pelos seus méritos foi condecorado pelo Governo do Estado com o grau de Cavaleiro.
Do orgulho e zelo pela sua profissão. Do ouro que por suas mãos ficava mais brilhante. Das joias que sabia fazer e das pedras preciosas, para ele as mais belas que lapidou ao lado de sua Núbia, que foram os seus filhos. De ouvir chamá-la carinhosamente de minha filha. De vê-lo andar grudado com ela na base do “só vou se você for.”
Carinhoso e delicado com todos, mas austero quando necessário.
Álvaro Dezidério dos Santos.
Das festas das suas Bodas de Prata e das suas Bodas Ouro. Dos seus oitenta anos. Dos seus noventa anos. Dos seus noventa e três anos

Do veraneio em Amaralina. De olhar o gado beber água na lagoa.
Das manhãs de domingo, das visitas à minha avó Isaura ou meu tio Edmundo. De subir a ladeira de dona Celina.
De andar pelas ruas do bairro da Sé e depois tomar uma gasosa na Pastelaria Centro Popular.
Das cocadas branca e preta, compradas de uma baiana que ficava à porta da Farmácia Minerva.
De vê-lo retornar do trabalho à tardinha e descer do bonde ainda em movimento.
Dos primeiros filmes: O Mágico de OZ, Branca de Neve e os Sete Anões e Idílio nas Selvas.
De sua voz forte gritando “Almir e Ayrton” à frente do colégio da Prof.ª Iazinha.
Do meu primeiro jogo de futebol: 15 de agosto de 1943, Botafogo 2x Galícia 1 no campo da Graça.
Bahia “doente”. Sempre achava que o seu time não merecia ter perdido, o juiz não marcou dois pênaltis a seu favor ou validou um gol em impedimento do adversário.
Não tinha essa de torcer para time de fora. Vitória, Botafogo, Galícia, Ypiranga, Guarani jogando contra time de fora, tinha de torcer pelos times baianos. “Tem de torcer pela Bahia.” O mesmo para times brasileiros jogando contra times estrangeiros. “Tem de torcer para o Brasil.”
O bairrismo sempre foi uma de suas inúmeras qualidades. Isso não era válido somente para o futebol. E nós aprendemos.
Do nosso primeiro dia do Colégio Antônio Vieira: 3 de novembro de 1946.
Dos bailes de carnaval do clube Cruz Vermelha. Da Queima de Judas e das festas de S.João. Dos foguetes e balões. Da história do balão de 16 metros , feito por ele, que foi notícia de jornal. De sua alegria e suas brincadeiras. Do seu vigoroso aperto de mão.
Adorava fazer surpresas.
Das arraias sem linha temperada.
Das latas de goiabadas ganhas no jogo de dominó e das caixas de fósforo ganhas no jogo de agache.
De sua letra. A caligrafia mais bonita do mundo!
Do dia 3 de julho de 1951, quando me apresentou ao Dr. Mário Gomes, meu primeiro diretor.
De 1954. Dia que nos acordou com os olhos brilhantes de alegria com um jornal na mão: “vocês dois passaram no vestibular !!! ”
Da sua capacidade de ser querido pelas pessoas.
Do seu espírito comunitário. Do seu bom relacionamento com as autoridades que lhe permitia, sem ser político, conseguir melhorias e serviços para o nosso bairro.
Lembro-me do dia que, conseguida por ele, a água encanada chegou à rua onde morávamos.
Do seu caráter, da sua honestidade.
Pelos seus méritos foi condecorado pelo Governo do Estado com o grau de Cavaleiro.
Do orgulho e zelo pela sua profissão. Do ouro que por suas mãos ficava mais brilhante. Das joias que sabia fazer e das pedras preciosas, para ele as mais belas que lapidou ao lado de sua Núbia, que foram os seus filhos. De ouvir chamá-la carinhosamente de minha filha. De vê-lo andar grudado com ela na base do “só vou se você for.”
Carinhoso e delicado com todos, mas austero quando necessário.
Álvaro Dezidério dos Santos.
Das festas das suas Bodas de Prata e das suas Bodas Ouro. Dos seus oitenta anos. Dos seus noventa anos. Dos seus noventa e três anos *Almir Santos é Engenheiro Civil e escritor

sexta-feira, 8 de maio de 2020

Retratos da Salvador que não pode deixar as ruas

Esta é uma série de retratos, todos feitos em Salvador, sobre pessoas que, durante esta pandemia de covid-19, fazem trabalhos essenciais e que não podem ficar em casa durante a quarentena.

São eles que não deixam Salvador parar. Esta série de retratos, todo feitos na capital baiana, registra trabalhadores que, assim como médicos, enfermeiros, técnicos e demais funcionários da saúde, fazem trabalhos essenciais e que não podem ficar em casa durante a quarentena. A série inclui também pessoas que fazem trabalhos informais e não tem alternativa a não ser seguir nas ruas para manter a renda. Na foto, Derivaldo, de 52 anos. Ele trabalha como frentista no posto de gasolina no bairro da Barra, uma das áreas mais turísticas de Salvador. "O fluxo de pessoas caiu bastante nessa aérea. Turistas não vejo mais por aqui, e motoristas também. Espero que tudo volte logo à normalidade."


Larissa, 26 anos, trabalha no Acarajé da Dinha, um dos tabuleiros de baiana de acarajé mais famoso do Brasil. O local passou um período fechado por causa da covid-19 e, agora, abriu de novo. "Tenho um filho de três anos para cuidar e manter, e trabalho em segurança, usando sempre máscara e luvas. Esta é a minha única fonte de renda."


Wilson, 44 anos, é operário de manutenção em estradas e esgotos e trabalha para uma empresa terceirizada pela Prefeitura de Salvador. "Com a chegada do corona o trabalho para nós aumentou. As ruas e as estradas ficam mais vazias, tem menos carros e 'buzus' [ônibus na gíria baiana], então dá para fazer nosso trabalho mais rápido."


Rafael, 24 anos, vendedor de água nos ônibus da orla da cidade. "Diminuiu muito o número de pessoas pegando ônibus. De manhã ainda tem bastante, mas o resto do dia não. Mas ficar em casa é luxo. Não posso fazer isso. Não tenho emprego, não tenho nada."

Pascoal Estevão, 65 anos, tem uma pequena loja onde vende banana na Feira de São Joaquim, o mercado popular mais importante da cidade. "Aqui muitos vendedores fecharam as lojas. Quem é que quer trabalhar nestas condições? Mas eu não tenho alternativa. Não posso ficar em casa. Trabalho aqui há 40 anos e só tenho esta pequena banca de fruta."

Elias, 41 anos, auxiliar técnico, higienizando a sede da FUNDAC, (Fundação da Criança e do Adolescente), o órgão responsável pela gestão dos adolescentes infratores da Bahia, que fica no bairro do Matatu.


Edvania, 36 anos, é a responsável pela reposição nas gôndolas do supermercado Hiper Ideal no bairro de Brotas "Todos nós aqui no supermercado estamos com medo. Não tem como não ter medo, mas ao mesmo tempo estamos com orgulho, sabendo que estamos fazendo a nossa parte. Mercado tem que funcionar, né?"


Edinesia, 26 anos. Atrás está o colega Gilberto, 44 anos. Eles trabalham numa padaria. "Não temos contato direto com os clientes. Eles pegam os pães, os doces e as outras coisas nas prateleiras. Mas sempre temos muito cuidado, usamos máscara e luvas. Às vezes, é uma agonia com este calor mas sabemos muito bem o quanto é importante."


Maria do Soccorro, 53 anos, motorista de ônibus. "Sou motorista há 18 anos. Aconteceu que meu marido estava com problemas financeiros naquela época e fiquei sabendo que estavam precisando de motorista. Vim, fiz o teste e me contrataram. Acordo todo dia entre 4 e 5 da manhã e fico no trânsito por 6 horas. Percebo que com o corona as pessoas estão mais solidárias, vejo sempre alguém dando uma máscara para quem não tem e compartilhando álcool em gel. Tenho muito orgulho de ser motorista."


Margarete, 37 anos, é pizzaiola. Aprendeu a fazer pizza num restaurante italiano e agora trabalha nesta pequena pizzaria em Stella Maris. "Logo que começou o corona os negócios caíram muito, mas agora, felizmente, estamos trabalhando bastante com entrega/delivery. Perdemos mais ou menos uns 30% dos negócios."


quarta-feira, 6 de maio de 2020

Crescem os casos de Covid19 em Salvador

Salvador vai se tornar até o fim de mês uma dos epicentros da pandemia de coronavírus e se posicionar entre as 8 maiores cidades do país em números de casos. O pior é que isso vai significar que a quantidade de leitos de UTI no Sistema Único de Saúde não será suficiente para atender a demanda. Não se trata de pessimismo, ou de trazer com notícia ruim no início da semana, trata-se de dizer a verdade, pois todos os dados apontam para esse caminho. E neste momento mesmo o prefeito ACM Neto admite que o sistema entrará em colapso em 10 dias. (aqui) As projeções foram feitas a partir de ferramenta criada por pesquisadores do Labdec da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) (aqui) indicam que já no dia 18 de maio o sistema de leitos de UTI do Sus na Bahia terá um déficit de 18 casos e no dia 23 de junho haverá um déficit de 1000 leitos de UTI no sistema. Ora, o número de mortes decorrentes dessa previsão vai fazer da Bahia um dos epicentros da crise. Em Salvador, a situação é mais grave e o Secretário Municipal da Saúde, Léo Prates, afirmou que entre 31 de maio e 5 de junho, quando se dará o pico da pandemia na cidade, devem morrer até 900 pessoa, o que significa que morrerão 74 pessoas por dia colapsando o sistema funerário da cidade. Não há dúvida, quanto ao desempenho operante e positivo do governador Rui Costa e do Prefeito ACM Neto e louve-se aqui a forma como ambos vem atuando deixando de lado seus interesses pessoais e unindo-se em ações pela cidade, mas o inimigo que estão enfrentando é muito poderoso e medidas drásticas precisarão ser tomadas. Em Salvador, começa a ficar claro a necessidade de aprofundamento do isolamento. A única forma de reduzir o número de mortos será impondo medidas mais duras, especialmente nos bairros mais pobres. É certo que a busca pela sobrevivência dificulta manter em casa milhares de pessoas que ganham o pão, literalmente a cada dia, mas é verdade também que, mantido no atual patamar, o isolamento não vai achatar a curva o suficiente. Aqui destaca-se a incompetência do governo federal na distribuição do auxílio emergerncial ao não utilizar toda a rede bancária disposnível e concencetrar na Caixa Econômica a distribuição, contribuindo com longas filas para disseminar o vírus. Na Bahia, para alguma cidades, será necessário o mesmo movimento e em algumas delas o lockdown será necessário. Ao mesmo tempo, em outras cidades menos atingidas, como aliás vem ocorrendo, o comércio pode ser aberto desde que adotadas as medidas necessários como o uso de máscara. O fato é que o Brasil e a Bahia entram num mês decisivo no qual estará em jogo a vida de milhares de pessoas.

quarta-feira, 29 de abril de 2020

Amsterdam adota modelo de Economia Circular

A economista Kate Raworth adaptou seu modelo de donut para Amsterdã. A abordagem poderá ajudar o município com sua recuperação pós-pandemia. A cidade de Amsterdã lançou sua estratégia Circular 2020-2025, que descreve as ações para reduzir pela metade o uso de novas matérias-primas até 2030. A cidade pretende ter uma economia completamente circular até 2030. Como estratégia, Amsterdã tem como objetivo reduzir o desperdício de alimentos em 50% até 2030, dos 41 quilos de desperdício anual de alimentos por pessoa hoje, com o excedente sendo encaminhado para os moradores que mais precisam. Amsterdã implementará requisitos mais rigorosos de sustentabilidade em licitações de construção. Por exemplo, os edifícios receberão um 'passaporte de materiais' para que as empresas de demolição possam determinar se os materiais ainda são valiosos e onde materiais reutilizáveis ​​podem ser encontrados. O primeiro bairro circular da cidade a pilotar essa abordagem está sendo desenvolvido na área de Buiksloterham. O município também quer reduzir o próprio uso de novas matérias-primas em 20% e, até 2030, fazer apenas compras circulares. Isso se aplicará não apenas à aquisição de produtos como material de escritório e equipamentos de informática, mas também a projetos de infraestrutura, como construção de estradas. Amsterdã já está trabalhando com empresas e organizações de pesquisa em mais de 200 projetos de economia circular. Isso inclui um piloto na indústria de tintas e brechós, através do qual a tinta descartada de látex é coletada e processada recentemente para revenda. “Estamos pedindo às pessoas e às empresas de Amsterdã que adotem uma abordagem diferente da comida, mudem seus pensamentos sobre bens e façam escolhas diferentes em suas vidas e em seu trabalho. Os benefícios dessas mudanças nem sempre serão visíveis imediatamente - alguns podem ocorrer apenas após algumas décadas - ou ocorrerão no outro lado do mundo, onde muitas de nossas matérias-primas são atualmente extraídas No entanto, acrescenta: “Acreditamos firmemente que Amsterdã está à altura do desafio. Amsterdã é uma cidade progressista e liberal que não tem medo de experimentar ou investir no futuro

quinta-feira, 23 de abril de 2020

Napoleão, Bolsonaro e o Covid 19

Armando Avena* 
Quando as tropas de Napoleão invadiram a Rússia em 1812, Napoleão Bonaparte  comandava o invencível exército da França e desafiava os impetuosos russos para a luta. Mas lutar sem armas contra um inimigo muito mais poderoso seria apenas uma bravata que resultaria em milhões mortos. Por isso, o comandante russo, Marechal Kutuzov, usou a única arma disponível: a racionalidade. E montou uma estratégia: “recuar sem travar batalha”. Assim, quando as tropas napoleônicas chegavam nas cidades russas, prontas para a batalha, elas estavam vazias: o exército e a população recuavam para o interior, não sem antes destruir tudo, deixando as tropas francesas sem água, sem abrigo e sem alimentos. Surpreso e sem poder parar, Napoleão foi em frente buscando desesperadamente  a batalha até encontrar o inverno russo. Com suas tropas longe do ponto de partida, sem abrigo ou alimentação, Napoleão foi obrigado a recuar e a medida que o fazia, agora sim, era atacando sem dó nem piedade pela retaguarda. E milhares de soldados franceses morreram, desertaram ou se entregaram. Napoleão havia perdido a guerra.Essa história deve nos guiar na luta contra o coronavírus, um inimigo que, por enquanto, é tão invencível quanto o exército de Napoleão. Contra esse inimigo, a Covid-19, devemos primeiro recuar, e o isolamento é a forma de retroceder, enquanto preparamos nossas defesas. Se fosse capitão do exército russo, o presidente Bolsonaro estaria propondo enfrentar os franceses de peito aberto, “como homem”, numa impetuosidade ridícula, que resultaria em milhares de mortos. Felizmente, agindo como generais, a maioria do prefeitos e governadores do Brasil estão racionalizando a batalha, preparando-se para guerra, que pode levar um pouco mais de tempo, mas resultará na derrota do vírus e com um número menor de vítimas. A estratégia de Kutuzov quase destruiu a economia russa, assim como o isolamento social vai afetar fortemente nossa economia mas, vencida a guerra, ela florescerá, os negócios serão retomados, os países e estados vão recompor suas finanças e os brasileiros voltarão ao trabalho sem ter na consciência milhares de corpos que sequer tem onde ser sepultados. A lembrança da estratégia russa é adequada, no momento em que a população brasileira parece à beira de abandonar o isolamento social. Não podemos permitir isso, não por causa de um Napoleão de hospício, que terá na Covid-19 sua Santa Helena, mas pela dignidade do Brasil que não pode entrar para a história como o país que aceitou a morte do seu povo em troca de uma duvidosa preservação da economia. * Economista e escritor. Membro da Academia de Letras da Bahia

sábado, 11 de abril de 2020

40 dias de quarentena em Roma

Luiz Mott*
Completam-se 40 dias que permaneço no olho do furacão da pandemia. Ao chegar em Roma eram 29 mortes. Hoje, passam de 18 mil. Felizmente a curva de casos do corona virus começa a baixar. Bravo!
Meu velho corpo, que  completa 74 anos agora em maio, continua resistindo bravamente, sem febre nem problemas respiratórios. Torço que eu e voce, meu  leitor\a continuemos longe dessa “miséra”!
Minha volta à Bahia continua sine die. O voo da Iberia marcado para o dia da mentira, foi efetivamente um engodo da empresa de viagens Edestinos, pois cobraram velozmente o valor da passagem e ainda me empurraram um seguro, mas não fizeram nada até agora para encontrar solução alternativa. Tenho outra reserva pela Air Europa para fim de maio, também essa companhia, outra enrolação: seu telefone 0800 irresponsavelmente deixou de atender.
Enquanto isso, vou fazendo das tripas coração e vivendo essa tristeza de estar  na cidade mais interessante do mundo, com dias deslumbrantes de sol primaveril, sem poder usufruir de suas maravilhas arqueológicas e inigualável arte sacra. E o pior é que aumentou o valor das multas (até 3 mil euros, 15 mil reais!) contra quem é pego batendo perna sem justificativa ou muito distante de sua moradia. Autoridades sanitárias da Lombardia e Vêneto, regiões mais afetadas, determinaram o uso obrigatório de “mascherina” na rua. Apesar de milhões de máscaras continuar sendo importadas da China, não se encontram disponíveis à venda: percorri uma dezena de farmácias sem encontrar álcool líquido. Circula um vídeo mostrando diversos prefeitos italianos dando baixa e escorraçando pessoas rebeldes dos parques e jardins. É perm itido le var cachorro prá passear, só pertinho da residência e fazer-se acompanhar de apenas um filho no supermercado. Pegaram essa semana uma velinha que tinha saído onze vezes no mesmo dia pra fazer compras! A maioria das multas é contra motoristas viajando sem justificativa, gente andando de bicicleta ou fazendo cooper, mas sobretudo, pequenos estabelecimentos comerciais funcionando clandestinamente.
Uma autoridade sanitária advertiu na TV às manicures e cabeleireiras que estavam atendendo clientes a domicílio. Frequentadores de festinhas clandestinas foram multados sem apelação, assim como um adolescente que insistia em visitar sua namorada em bairro distante. Irregularidades sanitárias também têm sido punidas: doentes confirmados que não respeitaram o confinamento residencial, moradores de áreas mais contaminadas mudando-se sorrateiramente para outra região, pior ainda, trambiqueiros oferecendo na internet medicamentos não autorizados ou falsificados.
No jornal das 7 da manhã, tem missa diária do Papa. Semana Santa on line... Amém. Aleluia. *Antropólogo e professor da Ufba

segunda-feira, 16 de março de 2020

Glauber Rocha e Castro Alves - coincidências

Nivaldo Lemos*
A começar pela data e o local de nascimento, 14 de março, na Bahia, as vidas de Castro Alves (1847-1871) e Glauber Rocha (1939-1981), embora separadas no tempo por quase um século, aproximam-se inevitavelmente uma da outra quando se consideram algumas coincidências que marcaram a trajetória de cada um no amor, na arte, na política ou na literatura. Ambos foram intelectuais militantes, modernos ao seu tempo e, de certa forma, românticos que, com sua obra, reafirmaram a condição humana, com paixão e compaixão. Ambos foram poetas, dramaturgos e revolucionários comprometidos com a luta do seu povo – denunciando através da arte seja a escravidão de um Navio Negreiro, seja a miséria de uma Terra em Transe. E, finalmente, ambos viveram as mais intensas e turbulentas paixões de suas vidas com atrizes que acabariam protagonizando suas primeiras obras, no teatro e no cinema: Castro Alves deu a Eugênia Câmara – grande amor de sua vida – o principal papel na sua peça de estréia, Gonzaga ou A Revolução de Minas, assim como Glauber Rocha ofereceu a Helena Ignez – primeira mulher e também sua maior paixão – um papel no curta-metragem O Pátio, igualmente sua obra de estréia como cineasta.


É claro que parte dessas coincidências pode ser atribuída às conjunturas em que viveram, ambas de grande efervescência política, social e cultural. No caso do poeta dos escravos, o surto de industrialização que ocorreu no país entre 1850 e 1860 acentuou as contradições no seio da sociedade brasileira e alimentou as primeiras idéias abolicionistas, que se fortaleceram após a libertação dos escravos nos EUA, em 1862, mesmo ano em que o poeta francês Victor Hugo publicou Os Miseráveis, obra que influenciaria profundamente Castro Alves. Ao recitar seus poemas, o abolicionista sempre falava mais alto e, freqüentemente, inflamava-se com eloqüência hiperbólica e metáforas arrojadas sobre a condição desumana da escravidão. Nessas horas, sua imaginação alçava vôo na amplidão do infinito, o que levou Capistrano de Abreu a chamá-lo de "condoreiro", comparando sua poesia ao vôo de um condor.


No caso de Glauber, a euforia desenvolvimentista de Juscelino Kubitschek (1956-1961), a Revolução Cubana e a utopia trabalhista de Jango, seguidas do golpe militar (1964) e da resistência à ditadura nos anos 60/70, favoreceram o caldo de cultura que alimentaria a maneira dele expressar o mundo, seja através da poesia, do teatro ou, finalmente, da arte cinematográfica. O Cinema Novo – criado por ele e cujo lema era “uma idéia na cabeça, uma câmara na mão” – não apenas rompeu paradigmas na arte de filmar como foi um dos principais movimentos de renovação artística e cultural do Brasil e expressão de militância política para muitos intelectuais que lutavam contra a ditadura que sufocava o país à época. Ou seja, como fizera Castro Alves no século anterior, com sua poesia abolicionista e militante, Glauber também emprestou sua câmera a uma causa, no caso à construção de uma sociedade mais justa e democrática. 


A exemplo das coincidências apontadas, outros traços comuns de suas personalidades podem ser atribuídos à influência do poeta dos escravos sobre o cineasta. Ambos eram geniais, trágicos, polêmicos e arrebatadores e tinham premonição de que morreriam jovens – “Quando eu morrer... não lancem meu cadáver/No fosso de um sombrio cemitério.../Odeio o mausoléu que espera o morto/Como o viajante desse hotel funéreo”, Castro Alves. “Eu sou um apocalíptico que morrerei cedo...”, Glauber Rocha. O mesmo pode-se dizer da coincidência de ambos terem optado pelo curso de direito e abandonado a cátedra para assumir integralmente sua arte; ou de terem participado, ainda bem jovens, de jograis e teatralizações poéticas na escola; ou mesmo de terem colaborado intensamente com publicações culturais: Castro Alves, com o jornal de idéias A Luz, e Glauber, com a revista literária Mapa.  


Há coisas, porém, que fogem inteiramente a uma explicação racional e se enquadram mais no terreno do imponderável ou do fantástico, como por exemplo: ambos nasceram no mesmo dia e mês, no sertão da Bahia, e ainda crianças se mudaram com a família para a capital; ambos foram atingidos por tragédias familiares – José Antônio, irmão de Castro Alves, suicidou-se e a irmã de Glauber, Ana Marcelina, morreu de leucemia. Anos depois outra irmã sua, a atriz Glauce Rocha, que trabalhou no clássico Terra em Transe, também morreu, ao cair no poço de um elevador. Castro Alves morreu em 6 de julho de 1871, pouco tempo depois de amputar um pé por causa de um tiro acidental em uma caçada. E Glauber Rocha, em 22 de agosto de 1981, aos 41, apenas um mês e meio antes de completar 42, quando, segundo dizia, morreria por ser uma reencarnação de Castro Alves, morto com 24 anos (42 ao contrário). Ambos morreram de tuberculose.


Castro Alves foi enterrado no dia seguinte, no Cemitério do Campo Santo, em Salvador-BA. Passados dez anos de sua morte, seu amigo e conterrâneo Ruy Barbosa proferiu o famoso Elogio de Castro Alves, onde resumia as qualidades literárias do poeta: “O que faz a sua grandeza, são essas qualidades superiores a todas as escolas, que, em todos os estados da civilização, constituíram e hão de constituir o ‘poeta’ aquele que, como o pai da tragédia grega, possa dedicar as suas obras ‘ao Tempo’: sentiu a Natureza; teve a inspiração universal e humana; encarnou artisticamente nos seus cantos o grande pensamento de sua época”[BARBOSA, 1995, p. 613].


Glauber também foi sepultado um dia após, no Cemitério São João Batista, Rio de Janeiro, cenário onde anos antes filmara o dumentário Di Glauber - durante o enterro do pintor Di Cavalcanti, seu amigo -, cujo título original era uma citação de Versos íntimos, de Augusto dos Anjos: Ninguém Assistirá Ao Enterro Da Tua Última Quimera, Somente A Ingratidão, Aquela Pantera, Foi Sua Companheira Inseparável. O filme ganhou o Prêmio Especial do Júri no Festival de Cannes, 1977. No enterro de Glauber, o antropólogo e seu amigo Darcy Ribeiro fez o seguinte panegírico: “Glauber passou uma manhã abraçado comigo chorando, chorando, chorando compulsivamente. Eu custei a entender, ninguém entendia que Glauber chorava a dor que nós devíamos chorar, a dor de todos os brasileiros. O Glauber chorava as crianças com fome. O Glauber chorava a brutalidade. O Glauber chorava a estupidez, a mediocridade, a tortura. Ele não suportava, chorava, chorava, chorava. Os filmes do Glauber são isto. É um lamento. É um grito. É um berro. Esta herança que fica de Glauber para nós é de indignação, ele foi o mais indignado de nós. Indignado com o mundo qual tal é. Assim”.


Para encerrar, portanto, arrisco-me a dizer que tanto um como o outro foram – cada um em seu tempo – intelectuais sensíveis e identificados com os ideais revolucionários. E que, a par de contradições e ambivalências, ambos viveram a história de sua época intensamente, devotando-se dialeticamente com a mesma paixão ao amor, à arte, à política e à cultura como um todo, para eles expressões indissociáveis da vida e capazes, per se, de mudar o destino da própria humanidade. 

sábado, 14 de março de 2020

A peste da Bicha e o Coronavírus

Luiz Mott*
Estou em Roma desde 1º de março para uma estadia prevista de 3 meses entre Itália e Portugal. Viagem agendada há meses, apartamentos alugados, como faço duas vezes por ano há uma década. Ao deixar a Bahia, o coronavirus estava concentrado apenas no norte da Itália e como eu ia permanecer no centro-sul, imaginei-me protegido. Em dez dias a desgraça saltou de 29 mortos para 631! Mas, felizmente, os curados também: de 50 para 1004. Agora 4 casos em Roma. Aí no Brasil, hoje (5ª feira) são 34 casos confirmados, 3 na Bahia. Espero ficar imune ao vírus e para tanto, tenho seguido cuidadosamente as regras de prevenção, sem pânico nem paranoia. Continuo assintomático, porém refém das medidas sanitárias do Ministério da Saúde: ainda podemos ir ao supermercado... Também aqui não há álcool nem máscaras à venda em lugar algum. Comenta-se que a situação é tão grave quanto durante a 2ª Guerra! Sem bombardeamento, graças à Madonna!
A humanidade já viveu piores pandemias: a peste de Justiniano, sec.VI, matou 100 milhões na Europa e Oriente; a Peste Negra dizimou 50 milhões no século XIV; em 1591, a peste só em Roma levou à sepultura mais de 60 mil almas, incluindo meu patrono São Luiz Gonzaga, 23 anos, jesuíta, em cujo belo tumulo, ateu oportunista, implorei sua proteção a todos nós.
Em 1686 a Peste da Bicha arrasou nossa Bahia: segundo o Padre Vieira, tratava-se de “um novo gênero de peste nunca visto nem entendido dos médicos, buscando suas vítimas de preferência entre os brancos, os menos adaptados ao clima”. Os sintomas desta terrível peste, popularmente conhecida como “a bicha” e diagnosticada como febre amarela, eram assustadores: “calor tépido, pulso sossegado, delírios, ânsias e grande febre, lançando a vítima copioso sangue pela boca”. Diz Rocha Pita que “os primeiros feridos foram dois homens que jantados em casa de uma meretriz, morreram em 24 horas lançando pela boca copioso sangue. Se contavam os mortos pelos enfermos: houve dia em que caíram 200! Estavam cheias as casas de moribundos, as igrejas de cadáveres, as ruas de tumbas”. Em pouco tempo morreram da bicha o Tenente General, o Capelão do Governador, o Arcebispo D. João da Madre de Deus, cinco Desembargadores e o próprio Governador Matias da Cunha, em 1688.
“Emendemos nossos erros, que Deus porá termo aos males”, sugeriu o devasso Gregório de Matos. Aí nossa Câmara Municipal instituiu São Francisco Xavier o novo patrono da cidade, realizando faustosas procissões e novena implorando o fim dos castigos. Com o tempo, as mortes foram diminuindo e a Bahia voltou à sua normalidade. A relíquia do braço desse santo jesuíta continua em nossa Catedral Basílica.
Oxalá daqui a dois sábados eu assine nova crônica!
*Luis Mott é Antropólogo e professor da UFBA

sábado, 21 de dezembro de 2019

Os culhões de ACM e Mário Cravo

Jolivaldo Freitas*
Pegou fogo, não se sabe como e nem porquê o “Monumento à Cidade do Salvador”, projetado, construído e instalado pelo original artista plástica Mário Cravo Júnior, que morreu ano passado. Um dos últimos artistas plásticos do chamado Grupo de Jorge Amado. A peça de arte era batizada de “Monumento à Cidade do Salvador”, mas os jornalistas à época, ano de 1970, quando foi instalada na Praça Cayru, ali perto do prédio da Marinha chamaram de “Fonte da Rampa do Mercado”. Já o povo não gostou, não entendeu e batizou de “Os Culhões de ACM”. Os artistas locais que sempre se detrataram nos bastidores, por sua vez, chamaram de “Os Culhões de Mário Cravo”. Certo é que era uma obra emblemática que nunca passou desapercebida, embora os guias turísticos tivessem enormes dificuldades para explicar aos de fora e aos mais novos daqui mesmo o que ela queria dizer.
A obra, pelo que se podia perceber, parece ter sofrido uma influência dos desenhos do arquiteto Oscar Niemayer, que construiu Brasília, até porque parecia excertos dos suportes do Palácio da Alvorada, coisa que Mário Cravo nunca admitiu. 
Quem encomendou a obra foi o velho ACM, quando prefeito. Arte no estilo modernista, em fibra de vidro – uma novidade em Salvador principalmente com aquelas dimensões – para contemplar o que estava sendo feito na cidade visando sua atualização urbana. Ali, na Cayru já não tinha mais o terminal de bondes e ônibus fazia tempo. Anos antes tinha sido inaugurada a Avenida Contorno ligando a Cidade Baixa à orla Sul e Salvador passava por um surto de modernização sem precedentes. 
Pois é estranho, muito estranho este fogaréu destruindo a incompreendida obra que competia com o Elevador Lacerda. Como diz dona Milu em Tieta do Agreste, obra de Jorge Amado, amigo do escultor Mário Cravo: “Mistério”.
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*Jornalista a escritor. Autor de Histórias da Bahia – Jeito Baiano e “Baianidade...”