terça-feira, 4 de maio de 2010

Urbanismo Sustentável

Lourenço Mueller*
Em princípios de abril os jornais anunciaram a chegada a esta cidade [Salvador], para uma conferência, da urbanista May East, ex-roqueira, hoje dirigente de uma fundação ecológica escocesa que prega a minimização das cidades e sua entronização ecológica.
Foi publicado este ano o livro Diários de Bicicleta (SP: Manole, 2010) do conhecido band leader do Talking Heads, David Byrne, também escocês, com prefácio de Tom Zé: forte conteúdo crítico sobre certas cidades e visão de futuro do urbanismo dito sustentável.
Pergunto-me porque artistas – neste caso ligados à música – demonstram essa preocupação com o urbano. Porque mudam de profissão, ou escrevem livros sobre o tema ecologia urbana, mostrando o perigo do aquecimento global ou o equívoco do automóvel nas grandes cidades. Porque “saem na frente” de outros profissionais, até mesmo dos urbanistas e arquitetos, que já deveriam ter levantado esta bandeira há mais tempo e sobretudo dos políticos, que não conseguem perceber a incondicional, superlativa importância do urbano.
Talvez a arte, em sua sensibilidade a situações concretas, faculte aos que a praticam essa noção aguda de perigo iminente, como no conhecido conteúdo imagético da pintura Guernica (1937) de Pablo Picasso (1881-1973), prévia antifascista do horror da guerra civil espanhola.
Sem a mesma genialidade do pintor fica difícil ilustrar a imanência perigosa que as cidades modernas representam para a humanidade, mas tal esforço merece crítica dialética e elogios.
Entrevistei May East, fui à sua conferência e li o livro de Byrne.
Posso dizer que as ecovilas propostas por ela pecam pela questão dimensional. É uma solução para pequenos núcleos, não para grandes cidades; malgrado possam ser uma semente – existem já algumas no mundo – guardam na sua concepção os limites da ideologia conservadora contra os avanços das tecnologias construtivas da verticalidade mesmo que defendam cidades compactas e densas, e ao mesmo tempo cercadas por cinturões verdes hortifrutigranjeiros.
Isso só foi possível em pequeníssimas aldeias, com um forte substrato espiritualista, como pareceu transparecer nos fluidos vocais e figurativos que precederam a palestra, onde se distribuíram folhetos do Partido Verde.
Admito o viés esotérico dessas iniciativas desde que equacionem a problemática do crescimento urbano desordenado e cruel de forma a que se desenhe – aliás, exorbitam na palavra design – uma perspectiva de solução.
O poder público desistiu de re-assentar populações em áreas de risco e resolveu relocá-las: é possível começar a desestimular a ocupação urbana em alguns pontos onde as densidades já estão exageradas e a infraestrutura viária já é insuficiente, incentivando novas edificações em zonas planejadas, previamente pautadas em um novo modelo de cidade, mais ou menos seguindo as premissas ecológicas das ecovilas de East, mas sem a ingenuidade das mesmas; quem vai construí-las são os mesmos incorporadores que escolhem pontos da cidade e concentram seus empreendimentos sem se preocupar com o depois, na mesma linha de um Luís XIV contemporâneo, pensando: depois de vendidos os condomínios que se lixem os compradores…
David Byrne faz a apologia da bicicleta. Vem usando-a ao longo de anos como forma de deslocamento e “percepção dos ritmos e dinâmicas características” das metrópoles e cidades que atravessou. O livro já virou best seller.
Em determinado trecho escreve que “opções sustentáveis, transportes públicos e ciclovias não são mais alvos de piada” e mais adiante: ”…A economia afundou, os Estados Unidos podem perder seu lugar como potência número um do mundo, mas isso não significa que muitas destas cidades não possam se tornar ainda mais habitáveis.”
No fim, defende Jane Jacobs, a jornalista que se meteu a urbanista e fez sucesso propondo cidades que misturam comércio e moradias como modelo, enquanto condenava, como o próprio Byrne, as cidades americanas.
*Lourenço Mueller é arquiteto e urbanista
Publicado no blog Jeito baiano

segunda-feira, 3 de maio de 2010

Sou Tântrica

Ludmilla Rohr*
Estou num momento bem interessante da minha vida. Essa semana volto a Salvador pela primeira vez desde nossa mudança para os EUA em dezembro. Nunca fiquei tanto tempo longe da minha cidade. Nunca fiquei tanto tempo longe das pessoas que amo e do meu trabalho. Hoje já não acho que foi muito tempo...nem tenho noção desse tempo...hoje acho que só existe o hoje.
Me sinto feliz aqui em Houston. Tive pouquíssimos momentos de tristeza ou de falta desde que cheguei aqui, e isso devo a minha forma de encarar a vida. Sou Tântrica. Definitivamente sou Tântrica.
Existe uma frase que amo muito que define o Tantrismo. Ela é assim: "O que existe aqui, existe lá. O que não existe aqui, não existe em lugar algum."....Adoro essa frase...penso exatamente assim. Por que pensar que minha felicidade está em outro lugar que não esse que estou? Não é um perda de tempo pensar que a vida seria melhor se fosse assim..ou assado...se estivesse ali, ou acolá...? Não é estupidez pensar que existe alguma coisa que me faria feliz ou completa, que não esteja aqui e agora?
Penso que o Tântra me deu uma visão muito clara de realidade, desfazendo ilusões e fantasias de algo que seja melhor do que aquilo que tenho ou que posso fazer agora.
Pensar assim, não me faz uma pessoa pobre de sonhos..sonho muito...desejo até mais do que gostaria, muito pelo contrário...exatamente porque tenho uma noção (que penso ser boa) de realidade, posso sonhar sonhos possíveis..e posso desejar muito...
Quem me conhece sabe que nunca penso pequeno..é estranho dizer isso, mas é verdade. Nunca acho nada inalcansável ou impossível. Não existe nada que eu não pense ser possível realizar. As vezes fico aborrecida e até mesmo entediada quando vejo pessoas colocando dificuldade na realização de coisas tão simples....acho um desperdício de energia, pensar nas dificuldades..sempre penso nas possibilidades...sou assim.
O Tântra me ensinou que não existe lugar mais completo e perfeito que esse aqui, esse agora. Esse é o lugar da realização, esse é o lugar da força e do Poder. Tudo só é possível a partir desse lugar...e se concentro minhas forças nele..tudo mais se desenrola...tudo mais, como uma Rede (essa é tradução da palavra Tântra)...como uma Teia...Trama...vai se construindo em todas as direções...e para sempre...porque o sempre é hoje..o sempre é agora.
Hoje filosofava virtualmente com uma amiga sobre a necessidade de se "trocar de pele", de não nos prendermos a aparências ou mesmo a rótulos e adjetivos. Sempre tive muita aversão a isso. É muito comum estar vestida de saia indiana de manhã e à tarde com scarpin vermelho..., ou quando alguém faz um comentário dizendo algo tipo: "Você é calma!" , ou, "Como você é corajosa!"..e eu sempre respondo: "Também!"..Essa é minha resposta libertadora. Dizer que sou "também", me libera da obrigação de ser aquilo. Por que no fundo no fundo..quero poder ser qualquer coisa..quero poder ser o meu hoje, o meu presente..o meu agora..
No fundo não quero me sentir na obrigação de ser qualquer coisa que seja projeção do outro sobre mim, quero ser eu mesma, e ser eu mesma, é ser um dia de cada vez...ou melhor, um momento de cada vez.
O meu presente agora, é que descobri que tenho duas casas..que moro em Salvador e também em Houston (foto)...
que tenho muitas amigas lá e aqui também...que posso ser feliz aqui, acolá..em qualquer lugar!!!
Meu coração e minhas vísceras estão nesse momento muito excitadas, por que amo viver assim, porque tenho uma excelente sensação a meu respeito...minhas vísceras falam de mim agora..e elas dizem que estou feliz!
Namastê
*Ludmila é psicoterapeuta e professora de yoga

domingo, 2 de maio de 2010

A bença, Mãe Stella

Baiana de Salvador, nascida a 2 de maio de 1925, está completando 85 anos de vida, neste domingo, a cidadã Maria Stella de Azevedo Santos, enfermeira de profissão e Ialorixá por fadário, querer de Deus, escolha dos Orixás.
Trata-se de Mãe Stella, a Ialorixá Stella de Oxóssi, consagrada, iniciada há 71 anos como Odé Kayodé, nome iniciático que quer dizer ‘Caçador de Alegria’, seu Oxóssi. Ela é a sacerdotisa maior, desde 1976, do trono de Xangô do terreiro de nação iorubá – Keto/Nagô, conhecido como o Ilê Axé Opô Afonjá, a roça de São Gonçalo do Retiro, assentada em 1910 pela notável Mãe Aninha, a lendária Obá Biyi, antecessora de Mãe Senhora. A roça do Opô Afonjá comemora 100 anos de fundação, neste 2010.
Mãe Stella é a Yá da Mãe-Preta Bahia. Antenada, moderna e ao mesmo tempo rigorosa na prática e na defesa dos fundamentos da religião, ela tem marcado seu tempo à frente da comunidade Keto Afonjá cuidando da preservação do culto e também, de forma pioneira, da transmissão por escrito do conhecimento e dos princípios aprendidos com os antepassados e transmitidos oralmente pelo mais velhos, há gerações. “O que não se registra o vento leva”, costuma repetir.
Com o propósito de disseminar ensinamentos escreveu Meu Tempo é Agora, um manual indispensável à compreensão da religião dos Orixás. Depois, lançou Oxóssi, O Caçador de Alegrias, livro dedicado ao Orixá que rege sua cabeça, com mitologias e reflexões sobre o guardião dos terreiros baianos de nação Keto. Mais recentemente, escreveu um livreto de antigos ditos, relembrando provérbios guardados na memória desde os tempos de criança: Owé – Provérbios, em português e iorubá. Por último, lançou o ilustrado Epé Laiyé –Terra Viva, uma parábola para crianças (de todas as idades) em defesa da mãe-natureza, fundamento da religião dos Orixás.
Nosso carinho, nossa homenagem a Mãe Stella de Oxóssi, em seus 85 anos de vida, desejando-lhe Axé, saúde e luz, sabedoria, sempre.
texto de zédejesusbarreto*

sexta-feira, 30 de abril de 2010

Viver no Centro Histórico de Salvador

Dimitri Ganzelevitch*
Voltando ao mau uso do Centro Histórico de Salvador. A rejeição deste bairro pela classe média baiana é uma realidade cultural. Ninguém quer saber se aqui moraram os poderosos, clérigo e nobreza de outras épocas. Nem os responsáveis pela conservação do bairro, seja de primeiro ou segundo escalão, nem o próprio arcebispo, apesar do magnífico palácio arquiepiscopal da Praça da Sé.
Quem manda seus filhos passar férias em Miami e Orlando dificilmente aceitará viver em moldura histórica sem o glamour dos condomínios com playground, zelador e garagem de controle remoto. O escudo invocado sempre é “por causa dos filhos”. Mas lamentar não adianta.
O Centro Histórico necessita de leque sociocultural mais amplo se quiser sobreviver. Há muitos anos defendo a implantação de repúblicas de estudantes, como houve antes da reforma, antes das vaias a um irascível governador. Sangue novo, risos, violões, atitudes rebeldes fazem parte da qualidade de vida de antigos bairros onde espíritos irrequietos e contestadores encontraram refúgio.
Que seria de Salamanca sem suas tunas ou de Coimbra sem suas estudantinas?
Que também fique aqui registrada minha sugestão aos governantes de atribuir, talvez na forma de prêmio, uns ateliês amplos e arejados a alunos recém-diplomados das Escolas de Música, Dança, Antropologia, Belas-Artes etc. Poderia ser sob forma de convênio para um mínimo de dois ou três anos, sem ônus para o contemplado, incluindo luz e água. Uma bolsa-artista. Por que não? Sairia muito mais barato que campanhas publicitárias na televisão e outdoors na Paralela.
Pequenos eventos com programação regular como feiras livres de produtos orgânicos no Terreiro de Jesus e no Largo de Santo Antônio, apresentações semanais de mamulengos e tantas outras formas de atrair e manter uma qualidade de vida diferenciada poderiam mudar os preconceitos da sociedade soteropolitana.
Precisamos reintegrar o Centro Histórico à cidade que dele nasceu. O que não se pode é imaginar que a abertura de um shopping no Santo Antônio ou shows de rock ou de pagode no Pelô solucionarão a previsível decadência do bairro.
Tombado pela Unesco no final do século XX, ou tombando pela falta de visão nos primórdios do século XXI?
*Dimitri Ganzelevitch – Presidente da Associação Cultural Viva Salvador

terça-feira, 27 de abril de 2010

Escolas Espremidas

Ilustração de Aziz
Nelson Pretto*
Tenho saudade de uma Salvador dos espaços generosos. Não imagino que o tempo tenha que parar, que o chamado progresso e o avanço do cimento e do asfalto tenham que ser contidos na marra. Mesmo que nestes últimos tempos de chuvas fortes eles tenham dificultado o movimento da água para seu lugar natural, longe de mim pensar em simplesmente voltar para o passado.
Também não quero falar do tempo das praças sem grades, dos chafarizes, fontes de água, casas sem muros ou com eles ainda baixinhos, onde podíamos sentar para prosear e matar o tempo. Para estes temas, os arquitetos, urbanistas, engenheiros, todos os articulistas de várias áreas já vêm escrevendo em A Tarde desde muito.
Quero falar, no entanto, de um espaço que para mim é muito caro: o das escolas.
Nossas escolas encolheram. E muito. Acabaram-se os amplos campos para o futebol, babas, garrafão ou similares, acabaram as áreas para o tão esperado recreio, também esse espremido entre os poderosos 50 minutos da sequência de aulas. Aulas que normalmente acontecem em salas que, praticamente, mantêm a mesma configuração de muitos anos, quem sabe séculos, e, o que é pior, também elas encolhidas.
São os mesmos móveis, a distribuição das cadeiras, o quadro negro – depois verdes e, nas mais modernas, até digitais –, estes quase todos colocados na frente, para que uma “plateia” de estudantes possa acompanhar as “emissões” dos professores.
No campo de interseção da arquitetura com a educação pouca coisa mudou e Bahia é repleta de experiências nessa área.
De um lado, com a triste proposta de se construir grandes escolas, todas iguaizinhas, replicadas pelo interior do Estado, e ainda por cima com o mesmo nome, antecedido do terrível adjetivo “modelo”. Nada a ver com educação, que precisa mesmo é ir para além dos modelos e caminhar em busca da criação.
De outro lado, tivemos uma rica experiência que não deveria ser esquecida, como a Escola Parque, implantada no bairro da Caixa D’Água por educadores e arquitetos baianos. Idealizada pelo educador Anísio Teixeira em conjunto com o arquiteto Diógenes Rebouças e o engenheiro Hélio Duarte, ali podemos ver, de forma cristalina, uma clara compreensão da importante relação da educação com a arquitetura. Relação essa que nós, da Faculdade de Educação da UFBA, insistimos ser básica para pensarmos a educação no presente e para o futuro.
Tentamos – com sucesso muito pequeno, é bem verdade – uma maior aproximação com a nossa Escola de Arquitetura, para montar um grande projeto para se estudar a relação entre essas duas grandes áreas. Um programa que fosse buscar em Anísio, Diógenes e Hélio inspiração e resgate histórico. Mas que não ficasse só neles. Que fosse também estudar e aprender, por exemplo, com Charles Mackintosh, o arquiteto da Escola de Artes de Glasgow, idealizador de um projeto de escola básica denominado Scotland Street School, hoje belíssimo museu sobre a história da educação na Escócia, onde é possível ver como eram as salas de aula e o funcionamento da escola ao longo dos anos naquele país.
A Escola Parque, pensada por Anísio (ver Revista Muito de 25/04), era um conjunto generoso de espaços livres, que incluía, com uma incrível centralidade, um enorme campo de futebol, rodeado de um teatro a la Teatro Castro Alves, uma magnífica biblioteca a la Brasília, um pavilhão para oficinas, repletos de obras de arte de Jenner Augusto, Carybé, Mario Cravo (aliás, como estão esses painéis, alguém sabe?!) e uma ala administrativa com refeitório, padaria e espaço para professores e alunos. Tudo, absolutamente tudo, imerso numa área verde de frondosas mangueiras que, felizmente, ainda lá estão.
Nesse complexo educacional, dizia Anísio, os filhos dos pobres teriam acesso àquilo que os filhos dos ricos têm nas suas casas. Ali estaria sendo formada uma juventude para fazer diferença.
Aqui, num hoje espremido no tempo e no espaço, nossa juventude é deformada para caber, literalmente, nas grades, curriculares e das salas de aulas. Quebrar estas amarras, na busca de uma formação mais ampla, é algo que demanda ações mais corajosas. E isso, não pode mais ser protelado para amanhã.
*Nelson Pretto – professor da Faculdade de Educação da UFBA – www.pretto.info
(artigo publicado originalmente na editoria de Opinião do jornal A Tarde, de Salvador-BA, em 25.4.2010)

quinta-feira, 22 de abril de 2010

Um centro de convenções no centro histórico

Dimitri Ganzelevitch*
Na década de 90 discordei do espírito que liderou a restauração do Centro Histórico de Salvador. Continuo discordando do aproveitamento leviano que ainda vitimiza este pedaço de cultura e história, ora confundido com um banal Wet’n Wild, ora palco de folclorizações para turismo de massa.
Não me conformo com as “baianas de receptivo”, suas roupas e torços, verdadeira traição à elegância das vestimentas tradicionais. Você conhece cariocas, sevilhanas ou cusquenhas de receptivo? Não me conformo com um monte de erros de como se deve usar este bairro.
Há uns dois anos mandei pela internet uma sugestão de centro de convenções no Pelourinho. Receptividade excelente. De que se trata? Simplesmente de mapear e usar as possibilidades – e são numerosas – para atrair um público variado de profissionais oriundos de todas as partes do mundo.
Temos salas de reunião e auditórios suficientes, hotéis e pousadas para todos os bolsos, restaurantes, bares, sorveterias e teatros para o laser. E mais: não será preciso construir um monstrengo de ferro e concreto para abrigar seminários e congressos. Por que concentrar todos os serviços no mesmo espaço?
Em 1999, fui convidado pela Unesco a um congresso sobre Turismo Cultural em Puebla, no México, cidade tombada como patrimônio mundial. O centro de convenções fica a cinco minutos a pé do Zócalo, coração da cidade. Adaptaram, com desmedido talento, um conjunto de antigas usinas, respeitando os edifícios originais e até as ruínas, levando os participantes a andar de uma sala a outra por jardins, áreas descobertas e velhos depósitos. Passeios para ninguém criticar ou achar penoso. Muito pelo contrário, todos apreciam o aproveitamento da memória material e cultural da região.
Para mudar o perfil do mau uso de nosso Centro Histórico, basta fazer um levantamento exaustivo de suas possibilidades. Senac, Teixeira Leal, Faculdade de Medicina, Ipac (Instituto do Patrimônio Artístico Cultural da Bahia), igrejas…
E assim poderia também se programar a reabilitação dos cinemas Excelsior, Jandaia e Pax, espaços ideais para grandes audiências e exposições. Não, instrumentos de trabalho e bons operários não faltam. O que falta são bons empreiteiros.
* Francês nascido no Marrocos e radicado na Bahia desde 1975. Dimitri fundou a Associação Viva Salvador, que desenvolve ações de educação para a arte. Colecionador de peças de arte popular, ele transformou sua residência, situada no Centro Histórico de Salvador, na Casa Museu Solar Santo Antônio, que reúne seu acervo particular.

terça-feira, 20 de abril de 2010

O trânsito e o uso do solo urbano

Hernani Santos*
As funções básicas do homem moderno, expressas através da habitação, trabalho e o lazer, que crescem em incontida explosão demográfica, provocando um avanço continuado por novos espaços urbanos, tornaram-se cada dia mais distantes, se elasteceram, e por conta dessa nova configuração passaram a exigir da circulação – antes, mero fator integrante – uma posição de dependência quase vital, situando-a dentro do sistema, numa condição de superfunção urbana. Em virtude desse fenômeno, grandes e surpreendentes transformações, notadamente nos setores do desenvolvimento urbano e transportes de massa têm sido observadas nas principais cidades brasileiras, modificando de maneira expressiva as suas configurações físicas, o comportamento do uso do solo, e até mesmo a qualidade de vida dos seus habitantes.
Até o início da década de 50, o problema dos movimentos urbanos era geralmente encarado em termos de volume de tráfego, e o método largamente aceito para avaliar a demanda futura de movimentos em uma determinada via era o de examinar ou contar o fluxo existente e extrapolá-lo para alguma data futura, aplicando um fator de crescimento apropriado. Em 1953 surgiu nova filosofia, tendo como base a influência do uso do solo na formação dos movimentos viários.
Dentro dessa premissa e a consistência adquirida ao longo do tempo, configurou-se em definitivo que toda essa interação, para que venha propiciar as melhores condições possíveis, seja feita através de processo de planejamento contínuo e integrado, do uso do solo e dos transportes.
Salvador, diante da sua história, e em período recente, lamentavelmente, jamais conviveu com o mínimo processo de planejamento voltado para o trânsito, o transporte e o uso do solo. Em fins da década de 60, quando todas as atenções, interesses e fatos convergiam e aconteciam no seu centro tradicional, mais precisamente na Rua Chile, e ainda quando Itapuã era um aprazível e maravilhoso local de veraneio, eis que de repente surgem as avenidas de vale que provocam extraordinária expansão da cidade no sentido norte. Subsequentemente tivemos a construção da Av. Paralela, do Centro Administrativo da Bahia e no terreno onde ia ser erguido o estádio do Bahia, diante e na expectativa de expressivo negócio, foi construido o Shopping Center Iguatemi.
Salvador passou da condição de cidade para metrópole. De forma continuada, surgiram o sistema de viadutos do Acesso Norte, a Estação da Lapa, a segunda pista da Av. Paralela, outros viadutos e as famosas passarelas. Somente no início da década de 80, com a criação da Secretaria Municipal dos Transportes, tornou-se possível imaginar a possibilidade de se poder realizar um trabalho de planejamento mais próximo do ideal admitido e preconizado para a época. Isso porque a prefeitura, já responsável pelo planejamento urbano e gerenciamento dos transportes, passou também a administrar o trânsito.
No entanto, para infelicidade da nossa cidade, em dois períodos administrativos Salvador foi governada por cerca de nove prefeitos.
Pelas condições efêmeras de suas presenças, nada foi feito. As administrações subsequentes não encontraram nada a continuar e pouco puderam fazer, agravado pelo fato de que vieram atreladas e condicionadas à política e suas práticas nocivas, instalando-se dentro do sistema.
Atualmente, além da implantação de novos shoppings, temos em processo de construção o questionável metrô, que agrediu de forma violenta toda a paisagem no trecho por onde deve passar, sobretudo nas proximidades da Fonte Nova, além de Via Portuária, também bastante questionada. Num processo continuado, o que se vê hoje na Av. Paralela é a fixação de expressivos equipamentos geradores de tráfego, além da presença fortíssima da especulação imobiliária que provocam de forma inevitável, grandes congestionamentos e que, mantendo-se a mesma continuada omissa e descontrolada política, certamente viremos a ter no futuro, maiores e mais preocupantes problemas.
Por fim, sem nenhum controle do uso do solo nessas novas áreas de expansão como legado mais expressivo, surgiram e se fixaram grandes e expressivas invasões, favelas: Malvinas e Saramandaia.
*Arquiteto e engenheiro de transportes

quinta-feira, 15 de abril de 2010

Qual a solução para as enchentes?

Enchente em Salvador
Sérgio Teperman*
Enchentes são acontecimentos inevitáveis. Por mais que a humanidade se esforce, a natureza pode até ser contrariada, mas acaba triunfando. A história também, a menos de Stalin e de Tarso Genro, não pode ser alterada. E ela relata que, ao longo dos séculos, as cidades se formaram no cruzamento de eixos comerciais, em torno de colinas fortificadas e principalmente ao lado de rios, ao mesmo tempo fonte de água e lugar para os dejetos, mas, também, grandes eixos de transporte.
As cidades, portanto, estão lá, não dá para mudá-las de lugar nem mudar sua principal conformação urbanística. Tampouco adianta lembrar que as antigas várzeas não eram ocupadas e que ali os ingleses jogavam "football". Muito embora algumas cidades tenham afastado as construções das margens dos rios criando parques, o ganho paisagístico e de imagem de ter um edifício ao lado do rio, com a visão da água e com as perspectivas abertas que as larguras dos rios oferecem torna essa posição imbatível. Reclamar que não se devem fazer avenidas nas margens e que as deveriam transformar em parques, depois que as cidades se estruturaram sobre essas diretrizes, é saudosismo do futuro. Ou mesmo argumentar que não se devem retificar rios, depois que todas as cidades do mundo já usaram essa solução, é o mesmo que dizer que não se devem fazer aglomerações junto aos terrenos fertilíssimos dos vulcões, ou que uma dezena de países deveria sair do círculo de fogo (e água) do Pacífico.
Há casos em que um país é tão inviável, que a solução seria mesmo fechar eternamente para balanço, mandar a população embora e apagar a luz, como no Haiti ou Bangladesh.
Mas há também o caso oposto, o da extrema engenhosidade humana para, mesmo morando em condições previsivelmente catastróficas, ultrapassá-las e se tornar um dos países de maior qualidade de vida e riqueza. É o caso dos Países Baixos. À exceção da cidade de Maastricht, na fronteira da Bélgica e da Alemanha, que atinge a altitude de 300 metros em uma colina fora de lugar, a maior parte dos Países Baixos está abaixo do nível do mar e aí foi criada uma das grandes civilizações da história. Esse país inteiro (pequeno é verdade) possui um planejamento territorial elaborado no meio do século passado, fielmente obedecido, governante após governante. E assim se criaram diques, estradas, portos e várias cidades em "terrenos" que eram água. E são tão capazes de admitir erros, que agora estão relocando cidades para permitir que não o mar (o que seria uma catástrofe), mas que os rios Reno e Maas, em seu delta, extravasem, ocupando áreas que eram cidades. Perceberam que o custo econômico e humano sairia mais barato.
Uma vez perguntei a um holandês qual era o ponto mais alto do país e me respondeu que ficava no Norte, a 4 metros de "altitude". Espantei-me mais ao ser informado de que um país tão pequeno tinha até Norte!
Uma das obras que protege a entrada do canal que leva a Rotterdam, o maior porto do mundo, tem um portão metálico de duas folhas de abrir com 2,5 km de comprimento e comportas que deixam passar o nível de maré alta conveniente ao porto, mas prevenindo inundações.
Naturalmente há também os casos opostos em que a Bushice (ou burrice) do presidente americano deixou praticamente à morte um patrimônio da humanidade, o berço do jazz, New Orleans. A inteligência pode ser incomensurável, mas como se dizia nos tempos da nossa ditadura, a burrice Medí-ci. Mas nenhum local, por mais famoso, escapa de inundações. Falando em Médicis, a cidade de Firenze sofreu em 1966 uma enchente que devastou em sua área central totalmente plana museus, palácios e igrejas, com um "Tsunami" de 6 metros de altura. Aí se percebeu, talvez pela primeira vez, que barragens destinadas a fornecer energia elétrica são em geral totalmente opostas como finalidade, para controle hidráulico. São incompatíveis.
As inundações previsíveis que atingem todos os verões a cidade de São Paulo, os desabamentos de terra nos contrafortes da Serra do Mar, as repetidas catástrofes no vale do Itajaí e tantas outras são inevitáveis.
O que é impensável, inconcebível, é que nada seja feito, previsto, seja como solução viária e urbanística alternativa, ou que, no caso de São Paulo, não seja realmente prevenida e severamente reprimida a atitude vergonhosa da população, de atirar tudo aos rios, colaborando decisivamente para o agravamento das causas das enchentes.
Temos em São Paulo o hábito de ver as enchentes pela impossibilidade de nos locomover, mas o dano é infinitamente maior. Inundações fazem parte da vida e da morte, a diferença está em prever soluções de proteção, alternativas viárias e principalmente planejamento urbanístico e territorial adequado, como sempre. Os governantes dos municípios em torno da Grande São Paulo, por exemplo, recusaram-se a se associar à Companhia de Saneamento Básico do Estado, que faria estações de tratamento de esgoto nos seus municípios, porque preferem gastar dinheiro com fontes luminosas a pagar as tarifas da companhia.
A solução, a meu ver, é extremamente simples: construir um tampão de concreto nos córregos dos municípios vizinhos a São Paulo, na divisa entre os dois municípios e cada um cuida dos seus problemas.
Com a mente curta de atitude corrupta, os nossos políticos só pensam em seus interesses pessoais e de seus companheiros. Quando muito constróem pontes em locais desnecessários e lembram, sempre adaptando o título, Paul Simon nas suas "water under troubled bridges".
* Arquiteto

segunda-feira, 12 de abril de 2010

Agressão a Terreiros

EMILIANO JOSÉ*
Num momento da história, tragédia. Noutro, farsa. Lembro-me de Marx, justo dele, um materialista convicto, quando vejo movimentos da Prefeitura de Salvador contra as religiões de matriz africana. Por que esses movimentos, por que essa má vontade com o candomblé? Quais as motivações? Poderia dizer que é como se a atual administração ouvisse ecos do passado escravocrata ou, até mesmo, do século XX, quando a religião dos negros ainda tinha que pedir licença policial para realizar seus ritos.
Fico aqui a matutar sobre como reagiram os religiosos do Ilê Odô Ogê, terreiro também conhecido como Pilão de Prata, ao receberem um jovem fiscal da prefeitura, no dia 18 de março deste ano. Constrangido, notificava a casa religiosa pelo barulho provocado pelos “instrumentos de percussão”, que era como ele se referia aos atabaques. A notificação dizia que a “emissão sonora gerada em atividades não residenciais” somente poderia ocorrer se autorizada pela prefeitura. Incrível, mas verdadeiro. Penso na lei, na isonomia, e constato a óbvia discriminação. Com essa atitude, agride-se notoriamente o dispositivo constitucional da liberdade de culto.
Ao fiscal, explicou-se que a roça do Ilê Odô Ogê nascera lá pelos idos de 1963, que o terreiro fora tombado em 2004. Tratava-se de um templo já tradicional. Ao jovem fiscal foram mostrados o Museu e a Biblioteca do terreiro. Não havia diálogo, não se admitia conversa. Ele tinha que lavrar o auto. Por que isso só ocorre apenas com as religiões de matriz africana? Por que essa perseguição à religião dos negros, assumidamente religião de negros? Por que essa dificuldade em lidar com a diversidade religiosa? Por que essa intolerância que não cessa? Por que não se aplica o princípio de que toda religião tem que ser igualmente respeitada? A prefeitura – ou se quisermos o Estado, em sentido amplo – tem obrigação de ser laica e na sua laicidade fazer respeitar toda e qualquer religião.
Provavelmente, embora seja quase inacreditável, haja quem, na prefeitura, ainda queira obrigar os terreiros de candomblé a tirar licença para cumprir os seus rituais, procedimento que foi abolido na Bahia em 1975. Tardiamente, mas abolido. A atitude do jovem fiscal evidencia que o ovo da serpente da discriminação, do preconceito ainda tem acolhimento, e não tão disfarçadamente. O espectro da Casa Grande continua a nos rondar. Eu me pergunto se o prefeito João Henrique tem conhecimento disso. Seguramente, o culpado não pode ser encontrado no jovem fiscal. Ele apenas obedece ordens.
A prefeitura vem agindo de modo rotineiramente perverso com as religiões de matriz africana. Falar apenas em erros denotaria ingenuidade. São vários episódios. Lembro-me de outro, recente. Em 2008, a agressão atingiu o Ilê Axé Iyá Nassô Oká, o célebre terreiro da Casa Branca do Engenho Velho, o mais antigo templo afro-brasileiro em funcionamento, cuja fundação remonta ao início do século XIX, tido como uma espécie de “mãe de todas as casas” de santo do Brasil. É uma casa respeitadíssima. O então governador Waldir Pires, em 1987, declarou de utilidade pública para fins de desapropriação o posto de gasolina que ocupava área da Casa Branca, e aí surgiu então a Praça de Oxum, cujo projeto de urbanização foi de Oscar Niemeyer.
Pois bem, em 2008 a prefeitura pediu o arresto do imóvel onde se encontra o terreiro da Casa Branca, depois de autuar uma sacerdotisa falecida há 80 anos por uma suposta dívida relativa ao IPTU. Seria cômico, não fosse trágico. Claro que um terreiro como a Casa Branca, visitado por governadores e presidentes, respeitado por outros credos não pode ser agredido assim impunemente, e a prefeitura teve que recuar diante das reações. Se, no entanto, fazem isso com a Casa Branca, imaginemos o que continuarão a fazer com os demais terreiros, muitos deles pequenos, sem a notoriedade do Ilê Axé Iyá Nassô Oká. Creio que se impõe a todos os que defendem o respeito à diversidade religiosa, que se impeça o crescimento dessa atitude odiosa por parte da administração municipal em relação ao candomblé. Viva a liberdade religiosa.
*Emiliano José – Jornalista, escritor. Site:
www.emilianojose.com.br

quinta-feira, 1 de abril de 2010

A Utopia Urbana de Salvador

Lourenço Mueller*
Utopia é sinônimo de projeto irrealizável, quase um sonho. Não obstante, a esfera do sonho, da fantasia, antecipa o real; não há realização construída se esta concretude não for em algum momento sonhada, imaginada ou projetada.
Por isso gostei quando ouvi um representante do governo dizer que precisamos TER a nossa utopia urbana. Talvez tenha sido uma afirmação inócua mas toda realidade ocupacional desta metrópole leva `a conclusão de que Salvador não pode mais resolver os seus problemas urbanos dentro dos limites territoriais do município, e deveria lançar mão de terrenos exteriores a este, promover urgentemente um plano diretor metropolitano e adaptar as sedes dos municípios limítrofes ao crescimento acelerado da sede metropolitana.
Seguindo regras universais do urbanismo, empregos devem estar localizados próximos às moradias, pois assim podem-se, digamos todos em coro, minimizar custos e tempo de deslocamento.
Repensando a Região Metropolitana de Salvador (RMS), alguns municípios como Camaçari, Lauro de Freitas, Simões Filho e Candeias emergem como geradores de emprego e renda, seja pelas indústrias instaladas, seja pelo setor terciário já desenvolvido com destaque para a localização de empreendimentos de hotelaria na Estrada do Coco e na Linha Verde.
Estes municípios estão na área de influencia da via CIA-Aeroporto, que interliga a baía ao litoral leste. Perpendicular a esta, estudada pela urbanista Maria Elisa Costa, filha de Lúcio, uma nova via denominada “Linha Viva” atravessaria Salvador longitudinalmente, configurando uma espécie de “T”. As duas vias têm natural vocação para o desenvolvimento de atividades urbanas e para o assentamento populacional, podendo abrigar nas suas margens a expansão demográfica metropolitana por muitos anos… Se bem projetadas.
A oportunidade de se agregar sustentabilidade a esse sistema é agora, ao promover a organização de variáveis físicas, econômico-sociais e político-institucionais.
Experiências históricas na direção das utopias urbanas, de Ebenezer Howard a Le Corbusier, não favorecem muito a condição da utopia aplicada ao planejamento urbano. Mas Brasília sim. Há 50 anos, num país que não dominava tecnologias, sonhou-se uma cidade a partir de um sinal gráfico no dizer do célebre urbanista e ela reúne muitas das utopias anteriores.
Ao mesmo tempo em que se afirmou a arquitetura personalíssima de Niemeyer perdeu-se, no plano diretor de Brasília, a oportunidade única de inaugurar e incentivar um modelo de cidade auto-sustentável no país inteiro. Mas não poderiam adivinhar que o automóvel, inquestionável herói da década de 60, quando o Brasil começou a produzi-lo, se transformaria no vilão do século 21 e se tornasse capaz de desestruturar qualquer plano diretor bem intencionado. Oscar e Lúcio estão perdoados.
Poderíamos, agora, aproveitar a oportunidade da “Linha Viva” e da CIA-Aeroporto para desenvolver a nossa utopia urbana : a partir de um modelo paradigmático de tendências mundiais em que é valorizada a mobilidade assim como a ênfase ao transporte publico não poluente, o privilegio do pedestre e do ciclista sobre os automóveis e legislando o solo como uma propriedade estatal, incorporando ideias de urbanistas do passado.
Precisamos dar forma a essas intenções e redesenhar as margens desse T: dimensionar um programa, seguir critérios onde a densidade liquida não exceda 500 habitantes por hectare com uma densidade bruta de 50 mil habitantes por km2 na zona intensamente urbanizada ao longo da faixa das vias onde os terrenos, desapropriados, só poderiam voltar a ser ocupados mediante concessão de uso pelos poderes públicos.
A ocupação obedeceria a uma configuração de zoneamento adaptada a condicionamentos legíferos e geomorfológicos existentes com setores de densidade maior nas centralidades e rarefeita nos extremos, passível de ser atravessada por pedestres em menos de uma hora nos oito rumos da rosa-dos-ventos e permanecendo com os pavimentos térreos vazados.
*Lourenço Mueller – Arquiteto e urbanista

terça-feira, 30 de março de 2010

461 anos de São Salvador da Bahia

praia do farol da barra
zédejesusbarrêto*
Era uma sexta-feira de dia claro, aquele 29 de março de 1549, quando despontou no azul infindo de céu e mar, na entrada norte da Baía de Todos-os-Santos, a armada portuguesa de três naus, duas caravelas e um bergantim com mais de mil pessoas a bordo, sob o comando do fidalgo Thomé de Souza, a serviço do rei D.João III.
Chegavam com uma missão estabelecida, a cumprir: a fundação de uma cidade, porto e fortaleza, planejada para ser (e seria) a primeira capital do Brasil-Colônia, sede do governo, base de toda a administração e do povoamento das terras portuguesas d’além mar recém descobertas nessa costa atlântica da América do Sul.
Tinham embarcado em Lisboa, com a bênção real, em 1º de fevereiro e vinham determinados, sabiam muito bem onde aportar e o que queriam. Entre a tripulação, alguns nobres, seis jesuítas, navegadores, mais de uma centena de artífices – entre pedreiros, carpinteiros, calafates, oleiros, ferreiros, serralheiros, barbeiros, até cirurgiões… –, trabalhadores braçais e degredados, homens fortes jovens e destemidos aventureiros.
Entre eles, destacava-se uma figura especial, pela missão que lhe fora confiada: o mestre de obras Luis Dias, que trazia consigo um esboço traçado em Portugal do que seria “a cidade do Salvador da Baía de Todos os Santos, que foi a Lisboa da América e competiu, como empório, com Goa e Malaca, erguida por ordem régia, pormenorizada e clara” (cito o autor português Luis Silveira, na obra ‘Ensaio de Iconografia das Cidades Portuguesas do Ultramar’).
A Chegada
Thomé de Souza, o primeiro governador-geral do Brasil, trazia com ele também, naquele longínquo 29 de março, um roteiro detalhado, por escrito e datado de 17 de dezembro de 1548, do que fazer quando aqui chegasse. Todas as instruções de D. João III em forma de um Regimento.
Como estava previsto, Thomé de Souza desembarcou na enseada de águas mansas do Porto da Barra, onde foi recebido de forma cortês e pacífica por um grupo de algumas dezenas de moradores da Povoação do Pereira (ou Vila Velha) – um aldeamento que se estendia pela costa até o alto da Graça criado por Caramuru (Diogo Álvares Correia), seus amigos tupinambás, e pelo inábil capitão donatário Pereira Coutinho (da capitania hereditária da Bahia) que, à chegada da armada, já havia sido enxotado de lá pelos nativos.
À frente do grupo receptivo estava o experimentado capitão-cavaleiro da Casa Real, Gramatão Teles, que já fora enviado antes por D. João III no intuito de preparar o ambiente para a chegada da armada real, ao lado de Caramuru – um portuga que aqui naufragou, bem jovem, por volta de 1510, deu na praia, caiu nas graças dos nativos, casou-se com uma filha do chefe tubinambá, estabeleceu-se e tornou-se um pioneiro no comércio ultramarino do Pau Brasil, dando início também ao processo de miscigenação dos baianos/brasileiros.
O Local
Mas ali, naquele porto tão próximo da entrada norte da baía, não seria o local ideal para a construção da nova cidade – que haveria de ser um porto e fortaleza. Era preciso achar um local mais apropriado, mais protegido, mais estratégico, mais para o interior da baía.
O achado do local exato, hoje a rampa do antigo Mercado Modelo, aquelas águas diante de Igreja da Conceição da Praia, deu-se alguns dias depois do 29 de março de 1549.
Essa data que hoje se comemora, de fato, é a data da chegada de Thomé de Souza com sua armada e não a data da fundação do novo sítio, pois demorou meses até que se erguessem casas e fizessem os arruamentos pioneiros.
A nova urbe seria, assim, construída bem no alto, no cume do morro, cimo de uma escarpa de mais de 60 metros acima do nível das águas, num local de onde se descortinava o horizonte do mar. O sítio escolhido foi cercado de uma forte paliçada de madeira, para evitar o ataque dos índios, e tudo foi erguido a mão em pedra, barro, cal e madeira, sob a diretriz do ‘arquiteto e engenheiro’ Luis Dias, tal e qual fora traçado em Lisboa.
Poderíamos dizer que o traçado original cercado tinha como limites: a Barroquinha, o rio das Tripas que hoje passa por baixo da Baixa dos Sapateiros, o Taboão e a escarpa, com o marzão batendo nas pedras, lá embaixo, onde hoje é o Comércio (o aterro foi feito bem depois).
As Águas E essa é a história verdadeira desta cidade-mãe que tem como referência o mar, as águas, o azul do céu, a luminosidade do infinito. Vocação de mar.
Aqui nessa bacia kirimurê (o nome como os nativos tupinambás chamavam o caldeirão de águas da Baía de Todos-os-Santos) de águas limpas, tépidas e plácidas, doces e salgadas, misturadas, deu-se a grande mescla humana de caboclos nativos, negros africanos, brancos europeus… e depois asiáticos, árabes, judeus… todos que aqui aportaram e bem contribuíram com suas crenças, costumes e fazeres para essa nossa baianidade ou baianice, como queiram.
Porque a Bahia é fruto de mistura. Com muito tempero africano, porque tudo que aqui se fez tem o suor dos negros – construções, comida, hábitos, religião, alegrias, manhas…
A Cidade da Bahia tornou-se uma acolhedora mãe-preta (ou mulata) de colo farto e braços sempre abertos para o mundo. Uma cidade das águas, sempre porto e sempre fortaleza.
Como cantam Gerônimo e Vevé Calazans: ‘Nesta cidade todo mundo é d’Oxum’. Oxum, a divindade das águas doces, das nascentes, da fecundidade. Os aqui nascidos trazem em si a força, a luz, o axé das águas. Disso sejamos cientes. E cuidemos.
O Porto
Durante séculos, Salvador foi o maior entreposto comercial do Atlântico Sul, parada obrigatória dos navegadores que faziam o Caminho das Índias, ida e volta, pelo entorno sul da África. A vida girava em torno do porto. Caravelas, naus de todas as bandeiras, saveiros, mercadorias das índias, novidades da Europa, especiarias, açúcar, fumo, frutas, pescados, a fartura do Recôncavo… E as notícias, as futricas, o sobe e desce dos carregadores, o suor e a sabedoria dos negros. A vida ocorria em função do porto, das águas e dos ventos do mar.
Assim foi se escrevendo a nossa história.
Salvador foi também o ponto mais concorrido da costa brasileira em função do tráfico de escravos africanos – ativo de 1551 à segunda metade dos anos 1800, três séculos desse comércio infame. No início do século XIX a população escrava e afrodescendente era absoluta maioria na cidade. Os negros formigavam pelas ladeiras. Daí ter sido chamada por muitos historiadores europeus de ‘a Roma Negra’ .
A escravidão foi uma ignomínia e deixou nódoas, ainda hoje indeléveis, bem visíveis. Mas, quem sabe, veio da Mãe África também a nossa graça, a nossa diferença, pois a negritude fez de nós uma gente muito especial. Malditas, benditas heranças.
Sim sinhô, e que os orixás, inquices e voduns, divindades ancestrais, todos os encantados das matas e santos do céu nos guardem e protejam… E conservem sã essa Mãe tão amada e tão prenhe de pecados. Preservem suas coisas boas, quantas! Que ela seja sempre um abrigo de encontro das diversidades, todas. Seja essa a nossa singularidade, tão plural.
Espaço de respeitosa convivência humana, de fortes e igrejas barrocas, sobrados e casebres, terreiros e regaços, palácios e shoppings, modernidades e tradições, tantas traduções, quantos ritmos, cores, cheiros, crenças, sentimentos…
Que as diferenças e dessemelhanças aqui se achem em harmonia, sempre.
O Espaço
A Salvador de hoje é uma metrópole. Mais de 3 milhões de habitantes. Uma cidade moderna e desigual. Opulenta para uns e injusta para muitos. A mancha urbana espalhou-se sobre toda a grande península, com duas faces: uma voltada para o mar aberto, atlântica; outra para as águas interiores da baía, maré mansa, áreas de mangue, cênica.
A velha cidade perdeu, sim, alguns encantos, mas preserva íntimos mistérios. Anda à volta com novos costumes, tormentos.
Sem mais espaço disponível ao tranquilo bem viver, sem ter mais para onde crescer, a histórica cidade enfrenta, aos seus 461 anos, todos os problemas de uma metrópole superpovoada, inchada, sem infraestrutura suficiente para todos os seus filhos e agregados, sem planejamento e pobre de recursos. Com muitos a padecer, por falta do que fazer, por não saber onde morar, por carência do que comer.
* Jornalista e escritor
Artigo originalmente publicado no blog jeito baiano

segunda-feira, 29 de março de 2010

Aniversário de Salvador: 461anos

Andreia Santana*
Nesta segunda, 29 de março, Salvador completará 461 anos de fundação. A cidade, atual terceira maior capital do país, foi planejada com a perfeição de engenharia naval a qual os portugueses estavam habituados desde o século XV, quando dominaram os mares, senhores absolutos do tráfico de escravos e do comércio de especiarias entre oriente e ocidente.
O processo de colonização no Brasil foi lento e desordenado. Diversos modelos foram testados, um deles, o das capitanias hereditárias, perduraria por séculos -, a última capitania foi extinta apenas em 1763. No entanto, foi preciso organizar um Governo Geral para zelar pelas capitanias, o que ocorreu em 1549, justamente com a fundação de Salvador. A cidade foi planejada para ser o centro do poder da colônia, o braço administrativo do império português neste lado do Atlântico. Sua função principal, como sede, era fortalecer e organizar as capitanias, até então desunidas e desorganizadas, com raras exceções.
I – Das feitorias às capitanias hereditárias:
Do desembarque de Pedro Alvarez Cabral em Porto Seguro, em 22 de abril de 1500, até o início do processo de colonização no Brasil, foram gastos mais de 30 anos em que a coroa portuguesa não sabia o que fazer com a imensidão de terras ocupadas. Não sabia e também não queria fazer nada, porque dava trabalho e custava dinheiro. O Brasil, nos seus 30 primeiros anos de colonização, servia como entreposto para extração de pau-brasil, a madeira usada para tingir tecidos, que valia muito na Europa. Em Porto Seguro, nesse período, havia um ou dois engenhos de açúcar muito primitivos. Serviam como teste da coroa portuguesa, que já havia instituido a indústria açucareira em Cabo Verde, nas Antilhas e nos Açores. Era uma garantia de futuro, descobrir se a nova colônia realmente fazia jus à descrição do escrivão Pero Vaz de Caminha: “nessa terra, em se plantando, tudo dá”. O litoral imenso do Brasil era terra de ninguém. Piratas e corsários infestavam. Extraiam pau-brasil sem autorização de Portugal. Praticavam escambo com os índios. A coroa não queria gastar para mandar povoar o Brasil, não queria gastar para mandar guardar a costa brasileira. Nas colônias espanholas (no restante do que hoje conhecemos como América Central e América do Sul), jorrava ouro e prata do solo. Enquanto no Brasil, nem uma pepita para amenizar o “prejuízo” português. O Brasil era um abacaxi de dimensões continentais para a coroa descascar. Não tinha pedras preciosas ou metais visíveis, estava infestado de piratas e de índios, que eram os ocupantes legítimos da terra. Privatizar a colonização era a solução para impedir que o vasto território fosse invadido por holandeses, franceses, espanhois. E se, realmente houvesse outras riquezas aqui além do pau-brasil? Valia a pena manter a posse da terra, disso a coroa não duvidava, o problema era quem pagaria a conta.
Donatários em ação - Na teoria era bem simples. O rei dividiria o território brasileiro em 15 grandes lotes, doados para 12 fidalgos da coroa. Alguns receberam mais de um lote. Esses nobres, por sua vez, seriam responsáveis por colonizar o Brasil, cada um faria as benfeitorias no seu pedaço de território. Os donos da terra teriam direito de fundar vilas, conceder sesmarias (que eram como grandes fazendas), cobrar impostos, distribuir justiça, legar sua terra aos filhos, netos e bisnetos…Seriam obrigados a pagar uma taxa dos impostos ao rei e não poderiam explorar os produtos que fossem monopólio da coroa. Cada donatário traria seus próprios colonos, gastaria do próprio bolso, investiria no projeto do rei e garantiria para ele a posse do Brasil, dando lucro, ainda por cima. Mas, não foi bem assim que a coisa aconteceu. Da teoria para a prática, houve uma sucessão de poréns que transformou o processo todo numa grande bagunça. Territórios imensos, que deveriam ser povoados e gerar receita, transformaram-se em gigantescos latifúndios. Os donos nem tomavam conhecimento.
Francisco Pereira Coutinho escapou de um naufrágio............................
....................para ser morto pelos tupinambás
Para começo de conversa, alguns donatários não se interessavam em deixar o conforto da corte e se lançar numa aventura marítima. A travessia de Portugal para o Brasil naquela época era um suplício: dois meses no mar, sem água e comida frescas, sem banho, com as gengivas sangrando de escorbuto, piolhos e pulgas fazendo morada nos corpos e cabelos. Depois, uma vez no Brasil, tomar posse da capitania significava pacificar ou exterminar os índios, que não sairiam de sua terra assim tão facilmente. Erguer uma vila não era tão simples, arrumar moradores para ela, instituir uma rotina de povoamento eram processos lentos. Alguns nobres simplesmente acreditavam que o Brasil era um tremendo presente de grego e não apareceram por aqui. Justiça seja feita, houve donatários que até tentaram, mas navegaram numa maré de azar de dar pena. Quatro capitães perderam suas fortunas investindo na colonização brasileira. Aires da Cunha, dono do Maranhão, além de ficar na miséria, morreu em um naufrágio; Francisco Pereira Coutinho (o dono da capitania da Baía de Todos os Santos) foi morto pelos tupinambás da ilha de Itaparica, depois de sobreviver a um naufrágio; Pero de Campo Tourinho (Porto Seguro) foi preso pela Inquisição, acusado de heresia. E Vasco Fernandes Coutinho (do Espirito Santo) virou alcoolatra, gastou o dinheiro todo e voltou para Portugal reduzido a mendicância.
As capitanias que deram certo foram as de São Vicente e Pernambuco, dos donatários Martin Afonso de Souza e Duarte Coelho. Deram certo, lógico, sob a ótica do colonizador, porque para os índios o negócio resultou em morte e escravidão. Quando Thomé de Souza chegou ao Brasil, com a missão expressa de fundar uma capital para o governo geral e botar ordem nas capitanias, essas duas eram as únicas que se mantinham sólidas, prosperando e rendendo dividendos. O resto todo do território, continuava a ser terra de ninguém. Coube a um senhor de 48 anos, de obediência cega a El Rei D. João III, mas de vontade de ferro no comando da colônia, instituir o que hoje conhecemos por Brasil.
A última capitania foi extinta no século XVIII, mas a origem da unidade territorial brasileira está nessa forma primitiva de administração. Como escreve o professor Luiz Henrique Dias Tavares, na sua História da Bahia, “as capitanias deram início à ocupação efetiva da terra, enquanto o governo geral instituiu oficialmente o poder de Portugal na colônia”. As estruturas de poder vigentes hoje no país, também têm origens naquela época. A divisão do Brasil em estados e municípios, que têm nomes herdados das suas capitanias de origem, é um exemplo dessa herança de quase 500 anos.
* Jornalista e editora do blog " Conversa de Menina" http://conversademenina.wordpress.com/

Fontes de pesquisa para este post:
“Donos da Terra”, reportagem publicada na edição de domingo, 06 de abril de 2003, do caderno Correio Repórter (jornal Correio da Bahia);
História da Bahia; do jornalista e historiador Luis Henrique Dias Tavares
Regimento do Governador e Capitão-General Thomé de Souza; coleção Documentos de Salvador, Fundação Gregório de Mattos, 1998
Os donos do poder – Governo Geral no Brasil de 1549 até 1808; Raimundo Faoro, Rio de Janeiro

domingo, 28 de março de 2010

Manuel Pinto de Aguiar, o homem de sete instrumentos

Consuelo Novais Sampaio*
Uns dizem que ele era o mago das finanças; outros, um construtor de bairros; para muitos, um inovador incansável; professor incomparável. Tão diversificada e abrangente foi a capacidade de realização de Manuel Pinto de Aguiar, que o homem do povo, na sua imbatível sabedoria, sentenciou: ele é um homem de sete instrumentos.
Posso garantir que a todos tocava com grande maestria e soberba harmonia, como se fora a reencarnação do próprio Rachmaninoff, seu compositor favorito. Suas obras são visíveis. O Parque Cruz Aguiar, que ergueu no barro do Rio Vermelho; o Jardim Lobato, na região petrolífera; os Barris, beirando o dique, cujo projeto de urbanização deixou pronto, e o Alto do Garcia foram algumas de suas criações na Secretaria de Finanças de Salvador. Por tanto realizar numa Prefeitura que encontrou falida, o seresteiro popular afirmou que ele era o mago das finanças -- ao invés de coelhos, tirava dinheiro da cartola! Qual o truque? Estranhou: “Não houve truque algum. Apenas bom senso, absoluta isenção e equilíbrio no tratamento de todos os casos. Junto a uma pequena base teórica e experiência prática, recuperamos a confiança do contribuinte”.
Partidário ferrenho do planejamento, criou a Comissão de Plano da Cidade, para tratar do crescimento ordenado de Salvador, órgão que hoje arquitetos e engenheiros pressionam o Prefeito para por em ação. Logo foi fisgado para a esfera nacional, a Diretoria Financeira da Petrobrás e, depois, da Eletrobrás. Teve de afastar-se da Faculdade de Economia da UFBA, que ajudara a criar; abandonou os seus negócios particulares, inclusive a Editora Progresso, instrumento de divulgação de muitos escritores baiano, à qual amava devotadamente. No Rio de Janeiro, dedicou-se por inteiro aos negócios do petróleo. Tornou-se um dos homens mais entendidos no assunto, em todo o País, como ficou provado. A ele devemos o Conjunto Petroquímico da Bahia (COPEB), que dizia ser a menina dos seus olhos; as articulações iniciais para a implantação da Usina Siderúrgica da Bahia (USIBA), para não falar na conclusão do terminal de Ilhéus, e na instalação de vários outros projetos, inclusive de refinarias em Minas Gerais, São Paulo, Rio Grande do Sul. Com base nos estudos técnicos que de perto acompanhava, e nos resultados que a Inglaterra vinha obtendo no Mar do Norte, afirmou: “as mais promissoras perspectivas de produção de óleo, no Brasil, estão na plataforma continental; esses campos poderão dar a auto-suficiência ao Brasil”. Obviamente referia-se à hoje cantada e decantada camada do pré-sal. Na Eletrobrás, graças à estrutura econômico-financeira por ele implantada, pôde-se executar o Plano Nacional de Eletrificação. Também a ele deve-se a definição, bastante complicada, da organização bi-nacional da Eletrobrás. E porque há muito para registrar sobre este inovador e progressista baiano, decidi concluir neste 7 de março de 2010, quando se comemora o centenário do seu nascimento, a sua biografia que vinha escrevendo e espero seja publicada neste ano. Menos para que sirva de exemplo e mais para ficar claro que o homem, ainda em condições adversas como as que viveu Pinto de Aguiar, pode influenciar e mesmo promover mudanças na sociedade em que vive.Dentre tantas realizações, Pinto de Aguiar foi, acima de tudo, um homem feito de livros, como disse o jornalista Luiz Guilherme Tavares. Além da sua notável produção intelectual, publicou mais de 500 livros na Progresso, para a qual fez 27 traduções, do inglês, italiano, francês, além de escrever orelhas, prefácios, introduções etc. Vivia cercado de livros. Livro na mão, na cabeça, no coração. Creio mesmo que o seu coração tinha a forma de livro, cujas páginas eram preenchidas por gotas de sangue sob a forma de letras que, ao ritmo de suas batidas, enchiam-lhe as veias. Organizavam-se no cérebro, em linhas, páginas e mais páginas, formando livros que lhe chegavam às mãos para serem distribuídos Brasil afora, levando escritores baianos a quantos quisessem ler e saber. Assim foi esse brasileiro. Que sempre viva entre nós.
* Consuelo Novais, integra a Academia de Letras da Bahia

sábado, 27 de março de 2010

Aniversário de Salvador - A cidade fortaleza

Andreia Santana*
A fundação exata de Salvador, com direito a inauguração oficial e discurso é uma incógnita da história. Ninguém sabe exatamente quando a cidade, construída para ser a sede do Governo Geral português no Brasil, ficou pronta. Acredita-se que foi no final de abril. Por convenção, os membros do Instituto Geográfico e Histórico definiram como aniversário da cidade o dia 29 de março, provável data, em 1549, do desembarque de Thomé de Souza na enseada atualmente conhecida como Porto da Barra.
A missão do primeiro governador geral era bem difícil: construir uma “fortaleza grande e forte”; percorrer todas as capitanias apaziguando a ambição dos donatários mais espertos, como Duarte Coelho, o dono das terras de Pernambuco; combater a pirataria na costa; escravizar os indios e usá-los para desenvolver a lavoura canavieira.
O que não deu certo e provocou o início da exploração africana no Brasil.
Tudo isso em três anos, o tempo máximo que a coroa havia instituido para que o poder se mantivesse nas mãos de um único homem. Apesar da restrição, houve governadores que ficaram no cargo até 15 anos, como Mem de Sá. E, ao contrário do que muita gente pensa, não tivemos apenas três governadores-gerais. Essa forma de administração durou até 1808, com a chegada da família real portuguesa. Quarenta e nove homens exerceram a função, mas a partir de 1763, eles eram conhecidos como vice-reis.
D. João III, o rei colonizador
O rei D. João III havia entendido que o sistema de capitanias hereditárias só daria certo se houvesse um representante da coroa por perto para dar suporte e também fiscalizar os donatários. Além disso, quando as noticias dos ataques indigenas e de piratas chegaram à Portugal, juntamente com a informação das mortes de alguns donatários, o soberano percebeu que deixar a colonização unicamente nas mãos da iniciativa privada era ilusão. Se vivesse nos dias de hoje, D. João III seria o pai das PPPs (Parcerias Público Privadas).
Insatisfeito com a falta de rumo na administração do Brasil, ele instituiu o Governo Geral e autorizou a construção de uma cidade-fortaleza para servir de sede administrativa. Mandou planejar a cidade inteira, com base nas antigas construções fortificadas medievais e inspiração na obra do arquiteto romano Vitrúvio, de quem era fã. Também mandou que fosse redigido um regimento de 40 itens, com todos os direitos e deveres da função de governador, bem como as normas para a construção da cidade fortaleza, regras de conduta dos colonos, procedimentos para cobrança de impostos e aplicação da justiça. O regimento é considerado um esboço do que no futuro seria a Constituição, guardadas as devidas proporções. Com todos os planos traçados, faltava eleger um representante e essa escolha recaiu sobre…
Thomé de Souza, o soldado do rei
Thomé de Souza era um experiente militar de 48 anos, com serviços prestados na África e nas Índias, quando recebeu o convite para fundar Salvador (a fortaleza grande e forte de que falava o regimento) e implantar o Governo Geral, literalmente botando ordem no caos que imperava no Brasil. Homem duro, de poucas palavras, com fama de sensato e dotado de muita energia, era filho ilegítimo do prior (um tipo de padre) José de Souza e irmão do donatário da capitania de São Vicente, Martin Afonso de Souza. Veio para cá com um salário de 400 mil réis anuais e trazendo na bagagem o regimento, as plantas baixas para construção da cidade-fortaleza, padres jesuitas, degredados para servir de peão-de-obra, alguns soldados para guarnecer a cidade e a disposição de tratar os tupinambás a bala. Não houve meio-termo durante os anos de colonização, os índios que não se submeteram foram mortos ou morreram de fome ao ser expulsos de suas terras.
“A cidade, ou fortaleza de povoação grande e forte, deverá ser o braço do Estado nas terras a colonizar; o espaço fisico onde se implantaria, de forma direta, a vigilância real sobre colonos, a repressão oficial sobre gentios (índios), a força armada para evitar o avanço dos estrangeiros. “
Na sua chegada à enseada da Barra, encontrou os moradores da antiga Vila Velha do Pereira. Aldeia fundada pelo donatário da capitania da Baía de Todos os Santos, Francisco Pereira Coutinho, morto pelos tupinambás no ano anterior. A vila era também a morada do casal Catarina Paraguaçu, filha de um chefe tupinambá, e Diogo Alvarez Correa, conhecido como Caramuru, um branco que vivia entre os índios, falava sua língua e que seria de grande ajuda ao processo civilizatório de Thomé de Souza.
A posição vulnerável da vila velha, levou Thomé de Souza a organizar uma expedição para encontrar o local ideal onde a cidade-fortaleza deveria ser construída. Após a inspeção, o governador escolheu o topo de uma montanha que, além de segura, oferecia visão privilegiada da baía.
Salvador construída em dois níveis
Considerada uma espécie de Lisboa dos trópicos, Salvador foi construída em dois níveis desde a sua origem. Na região onde hoje está o bairro do Comércio, ficavam o porto, os armazéns, a igreja de Nossa Senhora da Conceição (construída em madeira na sua origem).
Diogo Alvarez Correa, o Caramuru.
Há quem defenda que ele foi pirata, os que dizem que era um náufrago resgatado pelos índios e ainda os que juram que ele foi "plantado" como espião português, para facilitar a colonização e o processo de pacificação dos tupinambás.
No topo da montanha, a cidade propriamente dita não passava de um punhado de ruas estreitas e organizadas em forma de labirinto, na área entre as atuais praça da Sé e praça Municipal. No centro da praça ficava o palácio de Thomé de Souza, feito em madeira e palha, porque não havia pedras disponíveis. Para quem ainda não se situou geograficamente, a sede do poder instituito no Brasil era o atual endereço do Elevador Lacerda. Mais especificamente, a moradia e local de trabalho de Thomé de Souza ficava onde hoje existe o palácio Rio Branco. Nessa região, também havia a Vereança, atual Câmara dos Vereadores.
O que conhecemos por Centro Histórico, que inclui Pelourinho, Terreiro de Jesus, Santo Antonio Além do Carmo e São Bento, são as expansões extra-muros da cidade. Ou seja, nos primeiros anos de fundação, Salvador, que era cercada por muros de taipa e tinha portões que se fechavam à noite, desenvolveu-se tanto que precisou ser ampliada para acomodar a população cada vez mais numerosa.
A cidade de Thomé de Souza, um arruado medieval minúsculo, um posto militar com função administrativa, por ser a sede da coroa nas Américas, teve um impulso de crescimento espantoso.
No final do século XVI, era a mais importante cidade colonial portuguesa. Antes da construção de Salvador, não havia cidades no Brasil. Existiam vilas como a de São Vicente, que era próspera, mas não uma cidade, com status de sede governamental.
A índia Paraguaçu foi convertida ao catolicismo e adotou o nome Catarina. Diz a lenda que ela sonhou com Nossa Senhora das Graças e por causa desse sonho, mandou construir uma igreja para a santa.
Durante mais de 200 anos, a cidade foi capital do Brasil, até 1763, quando o governo geral ganhou o nome de vice-reinado e a sede administrativa passou a ser o Rio de Janeiro, que se manteve como capital até a fundação de Brasilia, em 1961.
Mesmo não sendo mais a capital a partir do século XVIII, a antiga Cidade da Bahia, como Salvador era conhecida, manteve o status de importante extreposto comercial até meados do século XIX, graças especialmente aos mil quilômetros quadrados da baía de Todos os Santos.
*Andreia Santana nasceu em Salvador, tem 36 anos e é jornalista. Uma frase de Fernando Pessoa a define: "Se depois de eu morrer, quiserem escrever a minha biografia, não há nada mais simples. Tem só duas datas - a de minha nascença e a de minha morte. Entre uma e outra, todos os dias são meus".

quinta-feira, 25 de março de 2010

24 de março de 1924

Rua Chile , na era do rádio
Almir Santos*
Aos 86 anos da sua fundação reporto-me à minha infância ouvindo programas da única emissora de rádio na época de Salvador. Lembro-me como se fosse hoje: meu pai, meu tio Lopes, Seu Arnaldo, Arnaldo de Dona Vitória, ao pé do rádio ouvindo as irradiações (transmissões) dos jogos de futebol. Ouvia nomes de times como Botafogo, Galícia, Vitória, Ypiranga, Bahia, Guarani, Flamengo, Fluminense Vasco e jogadores, alguns com apelidos engraçados: Popó, Batatais, Cacuá, Zizinho, Curto, Carapicu, Pequeno, Dunga, Petróleo, Baixa, Incêndio, Palito, Heleno, Dois Lados, Biguá, Vareta, Domingos da Guia, Cacetão, Leônidas, Bengalinha, Perácio, Manteiga, Siri e outros (deveria ser Ciri, pois era derivado de Ciridião).
A emissora era a PRA-4, Rádio Sociedade da Bahia e o speaker (locutor), Ubaldo Câncio de Carvalho, que narrava os jogos do Estádio Artur Morais, Campo da Graça. Lembro dos também locutores Álvaro Raimundo, Gabriel Castilho, Antônio Maria, Genésio Ramos, Fernando José e dos comentaristas Barbosa Filho e Luiz Sampaio. A Rádio Sociedade da Bahia foi criada por uma sociedade constituída por 200 associados. A sua primeira Diretoria foi constituída justamente pelos seus idealizadores, Agenor Augusto de Miranda, Caio Moura, Cesário de Andrade, Arquimedes Gonçalves, Oscar Carrascosa e Filinto de Mello, que assumiram as funções executivas, enquanto os apoiadores assumiram cargos na comissão técnica e fiscal. Os primeiros podem ser considerados os legítimos fundadores, já que coube a eles a iniciativa da instalação da emissora e as gestões em todas as instâncias de poder.
Uma das três emissoras pioneiras do Brasil. Integrante da rede Diários Associados. E os seus personagens ao longo do tempo?Lembro-me de Chico Fulô e Zé Trindade no programa Você Precisa, que abria a programação da emissora às sete da manhã. Do Programa Vamos Acordar com J. Luna. Do Boca de Forno de Luiz Sampaio, Levante a Cabeça de Nilton Moura Costa. Do Elias Alves. Do Diga o Que Sabe, Faça o Que Pode de Renato Mendonça. Do programa Audições Clacic que ia ao ar aos domingos meio-dia apresentando música erudita. Dos cantores Arlindo Soares, O sambista Que Não Respeita Patente. Silvio Roberto, a Cigarra Boêmia, Jurandir Chamusca, José Canário e Roberto Santos. Das cantoras Inalva Pires, Shirley Saldanha, Carmem Beda, Miriam Tereza. Da Orquestra de Valdemar da Paixão. Dos violões de João da Matança e Clodoaldo Brito, o Codó. Do baterista Galo Cego. Das suas instalações no Passeio Público e na Rua Portugal. Dos programas de auditório na Rua Carlos Gomes 57, com Armando Chaves. Dos programas de calouros. Dos seus Gritos do Carnaval Da Hora da Criança, idealizada e dirigida pelo Prof. Adroaldo Ribeiro Costa, Dos seus alunos Fred Castro, Irmãs Berenger, Irlanda Menezes... Da mais bela voz do locutor noticiarista Manoel Canário, hoje freqüentador assíduo do Shopping Barra e das Segundas do Chorinho no Cabaré dos Novos. Também de Reinaldo Moura. Da Resenha do Meio-dia com o irreverente personagem Zé Veneno Do saudoso Armando Oliveira que nos deixou recentemente.
Nossas homenagens no seu aniversário aos que fizeram e fazem a RÁDIO SOCIEDADE DA BAHIA

* Almir Santos, é Engenheiro Civil e Consultor de Transportes.
Frequentador assíduo da praia do porto da Barra, Almir conhece e localiza todas as ruas da cidade do Salvador de memória. Participou da equipe que elaborou o primeiro plano estratégico de logística e transportes, de longo prazo e visão multimodal , o PELTBAHIA, quando, ao lado do amigo e engenheiro Benjamim Fontes, foi o responsável pelo modal rodoviário.

quarta-feira, 24 de março de 2010

A Cara da Boa Viagem

JOLIVALDO FREITAS*

O bairro da Boa Viagem foi palco de lutas sangrentas entre os índios tupinambás e os portugueses. Entre os tupinambás e os tupiniquins. E entre portugueses e baianos. Até hoje o boaviagiano estufa o peito de orgulho por nunca ter sido dominado por ninguém e ter colocado para correr até franceses (estes nem de tanta importância assim, guerreiros acavaleirados que são, do tipo de fazer uma reverência antes de enfiar a espada e com isso levar bodurna no cocurutu) e holandeses (estes sim, guerreadores raciados com Thor que matavam sem pena nem dó e sem remorso). Claro que os maledicentes e invejosos da Massaranduba, Uruguai e Ribeira dizem que tudo não passa de ficção, mesmo que o Mont Serrat seja nome francês e o forte que empresta o seu nome – embora os mais íntimos o chamem de Castelo de Tapagipe – tenha sido onde os holandeses foram postos para correr. São provas das lutas incessantes de que o povo da Cidade Baixa participou, ganhando sempre. É justamente esta mania de ganhar que às vezes cria problemas para os boaviagianos.

Agora mesmo estão batendo de frente com o prefeito João Henrique. O homem fez um projeto de reurbanização da área – que convenhamos está degradada – mas como não explicou direito vem recebendo bordoadas de todos os lados, pois o pessoal da área, acostumado a lutar, não se conforma em ficar passivo quando se trata de uma boa luta e ainda mais se for por uma boa causa. Como eu disse, o orgulho do povo da área vem também de outras questões que não somente as vitórias acachapantes sobre invasores, piratas, bucaneiros ou homens do Império Português. Tem também o fato de ser o bairro onde aconteceu a primeira experiência socialista no Brasil, que foi a fábrica de tecidos e a Vila Operária implantadas pelo industrial Luiz Tarquínio. O homem botou na cabeça que o empregado tinha de levar uma vida modesta mas respeitosa, e montou o primeiro núcleo habitacional baiano com casas de dois andares, creche, clube, urgência médica, delegacia, jardins, água encanada, luz elétrica de gerador próprio, mercadinho e até uma escola de primeira linha. Mas o boaviagiano tem orgulho extremo mesmo é dos seus filhos que ficaram famosos. São muitos, dentre os quais Laurinha, Vicente Salles, os jogadores campeões brasileiros pelo glorioso Bahia, como Leguelé e Xaxa, a cantora Margareth Menezes e muitos desembargadores, escritores e artistas plásticos. A Boa Viagem sempre misturou porrada com arte e esportes.

*Jolivaldo Freitas – Jornalista, escritor, editor do blog Joli: http://www.jolivaldo.blogspot.com/. Artigo originalmente publicado no blog Jeito Baiano

segunda-feira, 22 de março de 2010

Escolho a beleza das flores

Ludmila Rohr*
Moro em Houston, no Texas, desde dezembro, (alguns de voces sabem disso). Sou baiana, nasci e me criei em Salvador. Adoro minha cidade apesar de todo o seu caos. Muitas vezes falo mal de Salvador e do Brasil, mas só eu posso falar, sou como uma mãe de bandido, sei das coisas ruins da minha cidade, mas se alguém falar mal dela, vou defendê-la.
Tenho viajado e conhecido alguns lugares no mundo e não tenho uma visão romântica com relação a nenhum deles. Estou gostando muito da minha experiência aqui nesse país, mas também consigo ver coisas, que para mim, são assustadoras. Não gosto da padronização das casas, das lojas, dos ambientes..não gosto de como as regras estão acima das pessoas, embora reconheça o quanto isso funciona, mas vejo também o quanto aniquila o indivíduo.
No Brasil o individualismo está tão acima do coletivo, que vivemos o caos da esperteza que gera o desrespeito aos direitos de todos. O ditado que mais odeio e que representa tão bem isso é: "Farinha pouca, meu pirão primeiro". As pessoas querem se dar bem, em detrimento do coletivo. Querem se dar bem, mesmo que tenham que passar na frente do outro. A pessoa acha que pode estar acima das regras, e isso é assustador também.
Nunca achei que existisse um lugar no mundo que fosse perfeito. Nunca tive a ilusão da existência de Shangrilá, e nunca o busquei fora de mim, porque sempre soube que o meu Shangrilá está dentro de mim, e esse, só eu posso acessar! Então posso ter uma visão tranqüila dos lugares que conheço e desse que moro agora sem paixões, porque o que conta pra mim são as experiências e não as paisagens.Posso inclusive, tranquilamente mudar de paisagens, pois não procuro nelas, nada que já não tenha encontrado dentro de mim.
Esse é o tema deste artigo, porque cada vez fica mais claro pra mim, o quanto as paisagens são semelhantes, mas o quanto as experiências são absolutamente diferentes! Posso viver no mesmo lugar com outra pessoa e descrever esse lugar de forma absolutamente oposta da outra pessoa, porque minhas experiências foram diferentes, porque meu olhar sempre virá carregado do meu perfume interno, das minhas paisagens internas...
Não temos poder sobre as paisagens externas, mas temos muito poder sobre as experiências. Não posso mudar o lugar que estou, mas posso mudar o meu olhar, posso decidir buscar experiências que me enriqueçam, posso escolher crescer e aprender coisas, ao invés de julgar e criticar.
Não é a melhor escolha, olhar outra cultura e julgá-la com o olhar da minha cultura, em sociologia isso chama-se etnocêntrismo. Perco tempo quando julgo outra cultura, ou mesmo outra pessoa a partir dos meus valores. Posso olhar as "paisagens" (lugares, pessoas..tudo que está fora de mim), e perceber como elas reverberam dentro de mim...como as percebo...como as sinto. Isso é bom, mas isso não produz uma verdade absoluta, isso é apenas minha experiência.
A primavera chegou nos EUA. Nunca morei em lugar que houvesse primavera, então tem sido uma experiência mágica. As flores simplesmente começaram a brotar por todos os lugares. As cores são lindas. Tudo muito encantador... Fico muito feliz de ver algo assim e de poder falar sobre isso. A primavera é linda! Junto com a beleza da primavera, vieram meus espirros. Espirro o tempo todo. Percebo que tem algo a ver com as flores que estão em todo lugar. Percebo também que posso começar a culpá-las pelos meus espirros...e transformar a linda primavera em uma vilã na minha vida. Calma...., pois definitivamente, não farei isso.
Que venham as flores, e se o preço pra ver esse espetáculo for espirrar muito, que venham os espirros! Cada vez que eu espirrar pensarei nas flores e o quanto elas estão encantando minha alma e saberei que é um preço justo...justíssimo!
Namastê
*Ludmila Rohr é psicoterapeuta e professora de Hatha Yoga

domingo, 21 de março de 2010

Salvemos o Hotel da Bahia

NIVALDO ANDRADE*
Quando foi governador da Bahia, entre 1947 e 1951, Octávio Mangabeira executou inúmeras obras de porte na capital do Estado, como a Praça de Esportes e a estrada Pituba-Itapuã (que posteriormente tiveram seus nomes alterados para homenageá-lo), o Aeroporto Dois de Julho e o Fórum Ruy Barbosa, e deu início às obras de construção do Teatro Castro Alves.
Neste conjunto de grandes iniciativas, merece destaque o Hotel da Bahia, finalizado na gestão de Mangabeira – ainda que inaugurado somente em 24 de maio de 1952 – e que rapidamente se consolidou como o principal espaço de encontro da high-society baiana e dos vips de passagem por Salvador.
O Hotel da Bahia, projetado pelos arquitetos Diógenes Rebouças e Paulo Antunes Ribeiro, teve sua construção financiada “meio a meio” por empresários locais e pelo governo Octávio Mangabeira, tendo como objetivo dotar a capital do Estado de um hotel que pudesse receber de forma adequada empresários, políticos e artistas vindos de outras capitais brasileiras e do exterior.
Cenário de importantes acontecimentos na afirmação da arte moderna baiana, como o I Salão Baiano de Belas Artes e a primeira exposição individual de Mário Cravo Junior, ambos realizados em 1949 no edifício ainda em obras, o Hotel da Bahia foi a residência, nos anos 1950, de ilustres personagens da nossa história, como o próprio Octávio Mangabeira e a arquiteta Lina Bo Bardi, então diretora do Museu de Arte Moderna da Bahia.
Além disso, o Hotel da Bahia é um dos mais importantes marcos arquitetônicos e urbanos da paisagem de Salvador. Poucos edifícios brasileiros tiveram o mesmo reconhecimento nacional e internacional: foi divulgado nos principais periódicos especializados brasileiros e estrangeiros da época e só na prestigiosa revista francesa L’Architecture d’Aujourd’hui foi publicado duas vezes, em 1949 e 1954.
Na década de 1970, visando adaptá-lo às novas demandas do turismo, foi executado um primeiro projeto de reforma no hotel, que incluiu a construção de duas piscinas e a renovação da decoração. Esta reforma não foi, contudo, capaz de evitar o processo de decadência do hotel, que foi fechado em 1978.
Entre 1980 e 1984, Diógenes Rebouças e Lourenço do Prado Valladares foram contratados para elaborar um projeto de reforma e ampliação do edifício, tendo como objetivo atualizar a sua estrutura física para que pudesse ser reaberto na categoria “cinco estrelas”.
O hotel foi reinaugurado em 1º de dezembro de 1984 com área construída praticamente duplicada: haviam sido construídos três pavimentos de apartamentos, previstos no projeto original, bem como de uma garagem coberta com dois andares e diversas salas de convenções.
Além disso, passava a oferecer aos seus hóspedes uma série de comodidades, como ar condicionado central e sistema de aquecimento solar para água. Com novas obras de arte integradas assinadas por Carybé, o Hotel da Bahia voltava a ser um dos mais importantes e exclusivos empreendimentos hoteleiros de Salvador.
Nas últimas décadas, Salvador voltou seu crescimento urbano e desenvolvimento econômico para a Orla Atlântica, onde foram inaugurados diversos hotéis, com maior número de vagas de estacionamento, de salões de eventos e de equipamentos de lazer e mais próximos do aeroporto e das praias mais visadas. Perdendo em competitividade, o Hotel da Bahia foi, pouco a pouco, perdendo também seu papel de destaque no cenário turístico. No último dia 7 de março, o golpe de misericórdia: o seu repentino fechamento.
A população baiana espera que este segundo fechamento seja temporário, como foi aquele de 1978, e que os órgãos e associações de empresas de turismo, os proprietários do imóvel e o IPAC (responsável pela preservação do mural tombado de autoria de Genaro de Carvalho, localizado no restaurante do hotel) se articulem e encontrem, com brevidade, uma saída que evite o desaparecimento definitivo do Hotel da Bahia e que o permita renascer uma segunda vez, de preferência mantendo o uso hoteleiro, fundamental em uma cidade que se pretende turística.
*Nivaldo Andrade – Arquiteto, vice-presidente do Departamento da Bahia do Instituto dos Arquitetos do Brasil (IAB-BA)