segunda-feira, 25 de abril de 2011

Devolvam minha parte

Para Liane Born, idealizadora da ONG Rua Viva, ao ocupar 70% da cidade para transportar apenas 20% da população, os automóveis estão privatizando o espaço público
Priscilla Santos*


Eram mais de mil pessoas no auditório, ávidas por descobrir por que o pessoal de uma das comissões da Associação Nacional de Transporte Público (ANTP) havia convidado Fernando Gabeira como seu porta-voz num congresso de engenharia. Os integrantes da tal comissão só não levaram tomatadas porque não estavam no palco. “Fomos chamados de doidos”, lembra Liane Born, engenheira especialista em transporte público. O motivo do rebuliço, que ocorreu há cerca de duas décadas, foi a apresentação da teoria do não-transporte, que propunha um novo paradigma para a apropriação do espaço e do tempo na circulação de pessoas nas cidades. Em vez de mais meios de transporte, menos distâncias e menor necessidade de deslocamento. No lugar de usar o carro, pedalar, bater perna e, quando necessário, tomar o ônibus ou o metrô.
A idéia era priorizar a acessibilidade e a mobilidade de pessoas, e não de veículos. “Hoje isso se tornou um conceito na engenharia de tráfego”, diz Liane, idealizadora da ONG Rua Viva, uma das maiores defensoras da teoria do não-transporte. Loucura, atualmente, são os dados que só dão mais força à teoria. Nas duas maiores cidades brasileiras, Rio de Janeiro e São Paulo, os congestionamentos representam 506 milhões de horas gastas a mais por ano pelos usuários de transporte coletivo, 258 milhões de litros de combustível a mais e 123 mil toneladas de monóxido de carbono espalhadas pelo ar a cada ano. Chegamos, definitivamente, à era do automóvel. Pouco a pouco, praças, parques e locais históricos perdem espaço para avenidas e estacionamentos. Por isso, hoje a idéia do não-transporte parece mais lúcida do que nunca. Nesta entrevista – sem medo de tomatadas –, Liane fala sobre os problemas e as soluções para o ir e vir nas cidades do nosso país.
Quais as principais propostas da teoria do não-transporte?
O não-transporte trabalha uma outra lógica de planejamento urbano. Em vez de pensar a cidade segmentada, com zonas industriais, residenciais etc., prioriza o fortalecimento dos centros dos bairros de modo a diminuir a necessidade de deslocamento e aumentar o acesso aos bens e serviços. É preciso oferecer emprego, comércio, serviços públicos nos bairros. Não tem sentido a pessoa se deslocar até o centro para tirar carteira de identidade, por exemplo. E não é necessário começar uma cidade do zero. Você vai acumulando políticas e, a longo prazo, as coisas mudam.
Que tipo de políticas?
Uma é baratear o transporte dentro do próprio bairro. Hoje, em Belo Horizonte, as linhas de ônibus mais usadas são as regionais, em que o usuário paga apenas 30% da tarifa para circular dentro do bairro e redondezas. Aí, passa a ser mais barato fazer o supermercado ou a feira ali mesmo, na região. O empregador passa a contratar gente dali, porque a tarifa do vale-transporte vai sair só 30% do que sairia se ele contratasse em outro bairro. É a lógica do transporte não apenas como o meio com que as pessoas se deslocam, mas como indutor de um novo padrão de comportamento. O transporte público pode impulsionar o desenvolvimento ao mudar a movimentação na cidade.
Qual é o grande entrave da mobilidade sustentável hoje?
O automóvel. A começar pela questão ambiental: os veículos são os maiores poluidores de São Paulo, mais que a indústria. No Brasil, eles estão entre as maiores causas do aquecimento global, atrás apenas das queimadas. Entopem-se 40% dos leitos de prontos-socorros do país por causa de acidentes de trânsito. O Brasil gasta 5 bilhões de reais por ano com acidentes de trânsito em centros urbanos, de despesas com saúde a indenizações. A situação é tão grave que, no ano passado, a Organização Mundial da Saúde escolheu o acidente de trânsito como tema.
E a ocupação do espaço da cidade, como fica?
Cerca de 80% da população do Brasil anda a pé ou de transporte público. Porém, os outros 20%, que se locomovem em automóvel particular, ocupam mais de 70% do espaço da cidade. Isso é privatização do espaço público. São Paulo, por exemplo, não teria problema de transporte se não tivesse tanto estacionamento para carro. Existe uma briga por espaço. As pessoas acham que a cidade está no plano do infinito, tem lugar para tudo, mas não tem, o espaço é limitado.
A melhoria do transporte público é a solução?
Muita gente acha que o Brasil tem problema de trânsito apenas porque não investe em transporte público, mas isso não é uma realidade. Mesmo se investir, muita gente vai resistir pela questão do status. Paris tem a melhor rede de transporte público do mundo: a maior rede de metrô, um transporte por ônibus muito bom, subsidiado – o usuário só paga 30% do custo –, e, mesmo assim, 70% das viagens na cidade são feitas de carro. É preciso fazer um esforço de educação generalizado. Temos que parar e repensar valores. O automóvel está muito vinculado ao psicológico do ser humano, à questão do conforto, da liberdade, do status. O carro tem a vantagem do porta-a-porta (isso quando a pessoa não tem que ficar procurando estacionamento), é individual, a pessoa fecha a janela, bota ar-condicionado, escuta música...
Como começar essa mudança?
Temos que priorizar o transporte público, não tem jeito, não adianta você fazer campanhas e não dar opções. Paris está na frente porque tem opção. Mas acabou essa idéia de só aumentar a oferta de transporte público e baratear o custo que, assim, as pessoas vão usá-lo espontaneamente. É preciso haver medidas restritivas, o conceito de uso responsável do automóvel, com pedágio urbano, áreas e horários proibidos à circulação de veículos, estacionamento sobretaxado. É o que já estão fazendo algumas capitais da Europa. Lá, essas ações surgiram da discussão do patrimônio histórico.
Como o patrimônio histórico se relaciona com a locomoção na cidade?
Não dá para ter automóvel passando, trepidando, poluindo, destruindo, estacionando, em lugares em que existe um patrimônio a ser preservado. E esse é um grande problema nas cidades históricas do Brasil também. Em Ouro Preto, já foram feitas três tentativas de proibir a circulação de veículos automotores na área central, mas o comércio não aceitou.
E a bicicleta, como fica nessa história?
No Brasil, a bicicleta é meio de transporte da maioria excluída do transporte coletivo porque não tem dinheiro para pagar ônibus. E muita gente anda quilômetros para ficar com o dinheiro do vale-transporte. Ainda não existe infra-estrutura suficiente para muito mais gente usar a bicicleta como meio de transporte: paraciclos, bicicletários, ciclovias, chuveiro na empresa para tomar banho quando se chega ao trabalho. A primeira coisa é criar infra-estrutura e, paralelamente, trabalhar a cultura.
*Priscilla Santos é jornalista da Revista Vida Simples - Especial Vá de Bicicleta - 09/2008

Um comentário:

  1. O transporte público faz parte da solução, na medida em que se torna um vetor de desenvolvimento da solução regional (bairro). Por outro lado, não existe sustentabilidade em meio à pobreza. A maioria das soluções indicadas passam, necessariamente, por uma melhor distribuição de renda, este sim o maior problema de todos. Por fim, a visão neoliberal de proteção dos mercados tem que dar lugar à visão de bem estar social.

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