segunda-feira, 21 de março de 2011

Reflexões de cinzas

Pedro Tourinho*
Como na mitologia, a criatura voltou-se contra o criador. (Na foto: Ivete Sangalo e seu camarote)
A solução das micaretas enlatadas (festas indoor, trio parado+abadá, criadas pela industria do carnaval para continuar faturando com os carnavais fora-de-época pelo país) estão dominando uma festa essencialmente popular, que é o carnaval de Salvador. A tónica da folia, que sempre foi a mistura, a diversidade, foi pasteurizada. Mesmos abadás, mesmas músicas, mesmas estratégias. O que são os grandes camarotes senão bolhas de micaretas indoor dentro da folia? A industria do carnaval, seja por preguiça, por limitação, ou por falta de solução mesmo, se viciou neste modelo.
Só que este modelo, é ruim. É predador. Mata a inovação. Satura o público. Não é sustentável. Pode durar mais 2 anos, mais 5 anos, mas não vai nos levar a lugar algum. Lembro de um amigo paulista, que sempre vinha passar o carnaval na cidade. No meio do bloco Eva, ainda com Ivete, chegando ali na praça Castro Alves, ele me disse: nas micaretas em São Paulo tem mais mulher, mais bebida e mais segurança, mas não tem Salvador, essa energia daqui é diferente. Pois é. Essa energia, meu amigo, é o povo, a mistura. Mas a micaretização do carnaval, a mi-caretização, está deixando o povo fora da festa, e nossa festa, de fato, mais careta.
Deixamos de ser acarajé para virar McDonald's.
O Carnaval de Salvador tornou-se uma arena bizarra, de uma batalha grotesca das marcas por espaço de merchandising.
Briga-se por cada centimetro de lona impressa. Por cada poste, ou sacada da cidade. Homens segurando balões, vestidos de lata de cerveja, de pernas de pau... Mulheres com os corpos pintados. Brindes, bonés, bandanas, bate-bates, batecas. É uma fábrica de horrores, onde, mais uma vez, o povo, o folião, fica em segundo plano. O importante é ter um bom pós-venda para apresentar na semana seguinte e estar entre os 5 no ranking de exposição de marcas. Isso é insano.
A presença das marcas no Carnaval tem de ser menos merchandising e mais comunicação. Menos relatórios de exposição e mais pesquisa de satisfação.
Como Nizan disse uma vez, não é investir, e sim, retribuir.
As marcas deveriam proporcionar conteúdo e atrações para o carnaval como um todo, baianos e turistas. E não espaço publicitário em blocos. Ouvi dizer que um banco este ano só patrocinou trios elétricos que tocassem sem cordas. Penso que é por aí. Imagine se as grandes atrações, financiadas por grandes marcas, pudessem tocar de graça para o povo?
O povo está espremido entre marcas, placas e cordas. E todo mundo acha isso normal e, até mesmo, positivo. Não faz sentido.
Concluindo, a lógica está invertida, o Carnaval hoje é uma terra sem dono, é um velho oeste tropical onde políticos e empresários fazem o que querem tanto com o povo, quanto com os artistas. E isso tem que mudar.
Pior ainda é o argumento muito utilizado pela industria de que o "carnaval da Bahia é o mais democrático do mundo, porque o rico paga para o pobre." Isso é um jogo de palavras bizarro e manipulador, que institucionaliza a injustiça social e para mim equivale a idéia de que o rico faz bem em jogar lixo no chão para criar o sub-emprego do pobre que tem de limpar.
O carnaval é maior, é do povo e dos artistas, não pode se resumir a uma industria. É preciso uma mudança estrutural na gestão do Carnaval e de quem investe no Carnaval. Não é impossível, mas todos envolvidos, principalmente marcas e artistas, têm de querer comprar essa briga por um carnaval mais sustentável.
* Publicitário e especialista em entretenimento

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