Jolivaldo Freitas*
Pegou fogo, não se sabe como e nem porquê o “Monumento à Cidade do Salvador”, projetado, construído e instalado pelo original artista plástica Mário Cravo Júnior, que morreu ano passado. Um dos últimos artistas plásticos do chamado Grupo de Jorge Amado. A peça de arte era batizada de “Monumento à Cidade do Salvador”, mas os jornalistas à época, ano de 1970, quando foi instalada na Praça Cayru, ali perto do prédio da Marinha chamaram de “Fonte da Rampa do Mercado”. Já o povo não gostou, não entendeu e batizou de “Os Culhões de ACM”. Os artistas locais que sempre se detrataram nos bastidores, por sua vez, chamaram de “Os Culhões de Mário Cravo”. Certo é que era uma obra emblemática que nunca passou desapercebida, embora os guias turísticos tivessem enormes dificuldades para explicar aos de fora e aos mais novos daqui mesmo o que ela queria dizer.
A obra, pelo que se podia perceber, parece ter sofrido uma influência dos desenhos do arquiteto Oscar Niemayer, que construiu Brasília, até porque parecia excertos dos suportes do Palácio da Alvorada, coisa que Mário Cravo nunca admitiu.
Quem encomendou a obra foi o velho ACM, quando prefeito. Arte no estilo modernista, em fibra de vidro – uma novidade em Salvador principalmente com aquelas dimensões – para contemplar o que estava sendo feito na cidade visando sua atualização urbana. Ali, na Cayru já não tinha mais o terminal de bondes e ônibus fazia tempo. Anos antes tinha sido inaugurada a Avenida Contorno ligando a Cidade Baixa à orla Sul e Salvador passava por um surto de modernização sem precedentes.
Pois é estranho, muito estranho este fogaréu destruindo a incompreendida obra que competia com o Elevador Lacerda. Como diz dona Milu em Tieta do Agreste, obra de Jorge Amado, amigo do escultor Mário Cravo: “Mistério”.
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*Jornalista a escritor. Autor de Histórias da Bahia – Jeito Baiano e “Baianidade...”
sábado, 21 de dezembro de 2019
quinta-feira, 28 de novembro de 2019
OS MISTÉRIOS DA BARRA
Armando Avena*
Quando se chega ao Cristo e os olhos percorrerem a praia até chegarem ao Farol da Barra, a certeza é imediata: estamos diante de uma das mais belas vistas do mundo. E, no entanto, a medida que se anda pelo calçadão um mistério começa a tomar forma, pois, ao invés de casas e apartamentos milionários e hotéis cinco estrelas, como se vê em Copacabana, Nápoles ou Fortaleza, o que se vê são casas abandonadas, restaurantes e pousadas de quinta categoria, agencias bancárias e estacionamentos. E tudo piora a medida que se chega ao Porto, quando a barra começa a ficar pesada e as sub habitações se misturam ao tráfico de drogas. A Prefeitura requalificou toda a região e o projeto tendo como base uma tendência internacional de “espaço compartilhado” deu cara nova ao bairro e, no entanto, a degradação continua. O que explica o mistério da Barra? Dez entre dez especialistas põem a culpa no Carnaval. E eles tem razão. Não só porque os proprietários deixam os imóveis se degradando e no fim do ano ganham milhões alugando-os para os camarotes, mas também porque não faz sentido manter um mega carnaval de trios elétricos num bairro residencial. E suspender o alvará desses imóveis, como fez a Prefeitura, é mero paliativo.
Na verdade, é preciso tirar da Barra o mega carnaval de trios elétricos e camarotes, deixando ali apenas o Fuzuê e o Furdunço e o carnaval de blocos. A montagem de toda estrutura do carnaval e dos enormes camarotes inviabilizam a Barra como bairro residencial e trazem poucos benefícios para a cidade. Os camarotes são verdadeiros enclaves, já que muito pouco deixam em termos de investimentos e benefícios, criam uns poucos empregos e lucram muito se beneficiando das atrações pagas pelas empresas ou pelo poder público.
Está na hora do carnaval sair da Barra que nunca teve tradição carnavalesca”, afinal o carnaval foi parar ali porque em 1996 Daniela Mercury resolveu levar o Crocodilo para desfilar no Farol. E, vale lembrar, que o impacto na economia será pequeno, já que os milhares de turistas que vem à Salvador para o carnaval continuarão vindo não importa onde ele seja, os hotéis continuarão cheios em toda a parte, os blocos seguirão desfilando e os mesmos os donos de camarotes continuarão colocando suas mega estruturas em outro lugar.
*Armando Avena, é economista. Foi Secretário de Planejamento do Governo da Bahia. Artigo originalmente publicado no jornal A Tarde
Quando se chega ao Cristo e os olhos percorrerem a praia até chegarem ao Farol da Barra, a certeza é imediata: estamos diante de uma das mais belas vistas do mundo. E, no entanto, a medida que se anda pelo calçadão um mistério começa a tomar forma, pois, ao invés de casas e apartamentos milionários e hotéis cinco estrelas, como se vê em Copacabana, Nápoles ou Fortaleza, o que se vê são casas abandonadas, restaurantes e pousadas de quinta categoria, agencias bancárias e estacionamentos. E tudo piora a medida que se chega ao Porto, quando a barra começa a ficar pesada e as sub habitações se misturam ao tráfico de drogas. A Prefeitura requalificou toda a região e o projeto tendo como base uma tendência internacional de “espaço compartilhado” deu cara nova ao bairro e, no entanto, a degradação continua. O que explica o mistério da Barra? Dez entre dez especialistas põem a culpa no Carnaval. E eles tem razão. Não só porque os proprietários deixam os imóveis se degradando e no fim do ano ganham milhões alugando-os para os camarotes, mas também porque não faz sentido manter um mega carnaval de trios elétricos num bairro residencial. E suspender o alvará desses imóveis, como fez a Prefeitura, é mero paliativo.
Na verdade, é preciso tirar da Barra o mega carnaval de trios elétricos e camarotes, deixando ali apenas o Fuzuê e o Furdunço e o carnaval de blocos. A montagem de toda estrutura do carnaval e dos enormes camarotes inviabilizam a Barra como bairro residencial e trazem poucos benefícios para a cidade. Os camarotes são verdadeiros enclaves, já que muito pouco deixam em termos de investimentos e benefícios, criam uns poucos empregos e lucram muito se beneficiando das atrações pagas pelas empresas ou pelo poder público.
Está na hora do carnaval sair da Barra que nunca teve tradição carnavalesca”, afinal o carnaval foi parar ali porque em 1996 Daniela Mercury resolveu levar o Crocodilo para desfilar no Farol. E, vale lembrar, que o impacto na economia será pequeno, já que os milhares de turistas que vem à Salvador para o carnaval continuarão vindo não importa onde ele seja, os hotéis continuarão cheios em toda a parte, os blocos seguirão desfilando e os mesmos os donos de camarotes continuarão colocando suas mega estruturas em outro lugar.
*Armando Avena, é economista. Foi Secretário de Planejamento do Governo da Bahia. Artigo originalmente publicado no jornal A Tarde
segunda-feira, 25 de novembro de 2019
Risério: Sobre o Relativismo Pós moderno e a Fantasia Fascista da Esquerda Identitária
P: Você faz uma analogia entre as patrulhas ideológicas dos anos 70 e o que chama de comportamento fascista da esquerda identitária dos dias atuais. O que aproxima e o que diferencia os dois fenômenos?
R: Penso que há duas diferenças básicas: a diferença mental e a diferença comportamental. A diferença mental diz respeito ao seguinte: apesar do sectarismo e da estreiteza política e cultural, aqueles esquerdistas das patrulhas ideológicas ainda tinham uma visão de conjunto da sociedade que pretendiam mudar. Hoje, não: os identitários não têm uma percepção global da sociedade. Só sabem ver baias, guetos, nichos, escaninhos. Perderam a percepção da totalidade. Pensam e operam de forma fragmentária, canonizando seus próprios guetos. Suas reivindicações não levam em conta a população brasileira, mas apenas os desejos e interesses deles mesmos. Por exemplo: os neonegros se conduzem como se o problema do desemprego não fosse social, mas étnico; as neofeministas, por sua vez, se conduzem como se todo problema trabalhista fosse sexual. Não estão nem aí para o fato de o desemprego ser um problema geral da população brasileira. Já no plano comportamental, a diferença está no grau de violência. O grau de violência das patrulhas ideológicas era relativamente baixo. Mas as milícias identitárias são brutais, truculentas. O que aproxima as antigas patrulhas e as atuais milícias é a intolerância. Com a diferença de que os identitários levam essa intolerância ao extremo. Se tivessem poder, promoveriam banimentos e fuzilamentos. Digamos, por assim dizer, que as patrulhas eram fascistoides, ao passo que os identitários são fascistas de cabo a rabo, fascistas totais.
P: Você escreve que a esquerda identitária se sente moralmente superior aos mortais comuns, mas também que ela promove a "politização do ressentimento". De que forma essa esquerda capitaliza o ressentimento de determinados grupos?
R: Eles se veem como a própria encarnação do Bem. Comportam-se como se o “oprimido” fosse, apenas por ser “oprimido”, um ente sagrado, moralmente superior. Mais: o “oprimido”, só por ser “oprimido”, é o portador da verdade, do sentido e do destino histórico da humanidade. Ora, quem se vê assim, não tem o que aprender no mundo. Daí que a esta autoconsagração se alie a mais rude ignorância – ignorância filosófica, histórica, estética, política, cultural. O militante identitário, regra geral, é um obtuso, incapaz de enxergar um palmo além do seu nariz ou do seu quintal. Daí que, quando questionados mais seriamente, reajam não com argumentos, mas com xingamentos e ataques histéricos, acusando quem os questiona de canalha, desonesto, fascista, machista, escória moral da espécie humana, etc. Ou seja: não estão interessados em nenhum conversa; trata-se apenas de calar e asfixiar qualquer discordância, qualquer dissenso, qualquer dissidência. E fazem isso reunidos em bandos, em “coletivos” que, na verdade, não passam de milícias. E o mais curioso é que adotam essa postura moral justamente para atropelar raivosamente os mais elementares princípios éticos. Veja então qual é a estratégia discursiva do identitário: a afirmação de “status” através da afirmação da inferioridade social. É a sua autodefinição como “excluído” ou “oprimido”que lhe confere “status”. Ou seja: a autovitimização é um atalho para a autonobilitação na figura sofrida e heroica do “oprimido”, que agora veio cobrar a conta do “Ocidente Branco”. Até parece coisa de desenho animado. De certa forma, havia algo disso já na esquerda tradicional, num certo endeusamento do proletariado, contrariando, nesse caso, a visão do próprio Marx (em “A Ideologia Alemã”, por exemplo) ou mesmo a de Trótski, em “Literatura e Revolução”. A diferença é que a esquerda tradicional endeusava o proletariado, enquanto os identitários endeusam-se a si próprios.
P: A destruição de reputações com base em acusações levianas de racismo, homofobia ou misoginia vem se tornando um fenômeno frequente e assustador. A que interesses atendem as pessoas que se unem nas redes sociais para destruir o outro, sem medir consequências, em um verdadeiro tribunal inquisitorial? Não é paradoxal que essa prática venha ancorada em um discurso de defesa da tolerância?
R: Vamos caminhar com vagar. Os identitários acham que são donos absolutos da verdade, que são moralmente superiores ao resto da espécie humana e querem dominar o mundo. Ora, quando uma pessoa é capaz de chegar ao ponto de se convencer de uma coisa dessas, ela se converte em fanática. É isso o que está acontecendo à nossa volta, e já há algum tempo, com nossos políticos, artistas, intelectuais, salvo exceções realmente honrosas, apoiando ou fazendo vista grossa para o fato E o fanatismo se guia por uma perversão lógica tão insustentável quanto inflexível, tão patológica quanto implacável. Acha que vale tudo. Que tudo é legítimo para impor o “bem” e destruir o “mal”. É uma postura imediatamente comparável à dos evangélicos combatendo o candomblé. E é por isso mesmo que os identitários não demonstram a mínima hesitação em falsificar a história, em desprezar a realidade factual, em investir violenta e mentirosamente sobre quem não concorda com eles. Podemos listar facilmente exemplos de cada uma dessas coisas. Veja-se como os racialistas neonegros fecham os olhos para o fato dos negros de Palmares e dos negros malês terem sido escravistas. Fecham os olhos para o fato de que, no sistema escravista brasileiro, até escravos compravam escravos. Do mesmo modo, as neofeministas se concentram exclusivamente no ataque a um Ocidente que não mais existe: um Ocidente “patriarcal”. E não dizem nada sobre o resto do mundo: fecham os olhos para a barra pesada que as mulheres sofrem sob a opressão islâmica; fecham os olhos para a prática da extração do clitóris em culturas tradicionais africanas; fecham os olhos para a cruel dominação masculina sobre as mulheres que vemos no mundo indiano e mesmo ainda no mundo chinês. E assim por diante. É por isso mesmo que Camile Paglia diz que os identitários deveriam ser obrigados a ter cursos de história comparada – e também, acrescento, de antropologia e sociologia de sociedades e culturas extraocidentais. Se tivessem um mínimo de noção disso, saberiam que a escravidão não é um karma branco, mas um karma da humanidade. Assim como não dariam atestados de estupidez ao considerar que hoje a mulher é mais oprimida no Ocidente do que em sociedades muçulmanas, por exemplo. Mesmo em nossa antiga sociedade tupinambá, onde desfrutavam temporariamente de alguma liberdade sexual, as mulheres eram mercadoria, moedas de troca, dadas de presente a chefes e guerreiros – e, enquanto um homem podia ter várias mulheres, a mulher que cometesse adultério podia ser punida com a morte. Como os identitários se recusam a ver essas coisas, agridem e execram quem quer que chame a atenção para elas. Na verdade, para lembrar aquele slogam da polícia novaiorquina, a política deles é de “tolerância zero”.
P: Por medo, covardia ou complacência, são raríssimos os intelectuais que ousam criticar a perseguição promovida por essas novas milícias, na universidade e fora dela. Como romper essa espiral de silêncio?
P: O silêncio e a covardia dos políticos são atestados de cinismo, evidentemente, mas também é até mais compreensível do que o silêncio e a covardia dos intelectuais, já que o cinismo é uma das peças principais da “caixa de mágica” deles. Os intelectuais, ao contrário e ao menos em princípio, deveriam se manifestar com clareza contra o fascismo identitário e suas ações persecutórias. Mas essa história do “em princípio” dificilmente é confirmada pelos fatos. Renato Janine Ribeiro e outros intelectuais “de esquerda” falaram do fascismo de direita tentando impedir e impedindo pessoas críticas ao atual governo de falarem em feiras literárias como a de Paraty, que hoje mais sugerem arraiais juninos do identitarismo. Mas eles silenciam quando a mesma coisa é feita pela esquerda. E olha que a esquerda identitária começou a fazer isso bem antes, entre nós. Já em 2013, na feira literária de Cachoeira do Paraguaçu, no Recôncavo Baiano, não deixaram o geógrafo Demétrio Magnoli falar, atirando inclusive uma cabeça de porco ensanguentada em direção à mesa de onde ele falaria e praticamente o expulsando da cidade. É hilário, mas, apesar de Stálin-Mao Zedong-Pol Pot, a esquerda encena a farsa de que se acha imune ao fascismo. É muito cinismo, também. Quando ouço ou vejo essas coisas, não resisto e acabo lembrando a seguinte história. Em 1932, na Alemanha, Adolf Hitler lançou sua candidatura a chanceler. Em oposição a ele, a chamada “coalizão de Weimar” (reunindo sociais democratas, católicos e liberais) apoiou a tentativa de reeleição do marechal Hindenburg. E os comunistas lançaram candidato próprio. A parada ficou para ser decidida então no segundo turno, entre Hitler e Hindenburg. Neste segundo turno, os comunistas votaram maciçamente em Hitler. Adiante, como sempre me lembra um amigo, o Pacto Molotov-Ribentrop consagrou o parentesco entre os dois totalitarismos... No meu livro, digo que os stalinistas que levaram Maiakóvski ao suicídio são monstruosamente idênticos aos nazistas que levaram Benjamin ao suicídio. E ponto final. Agora, como romper a “espiral do silêncio”? Entrando em campo com clareza e firmeza, sem abrir mão dos fatos, sem temor, botando os pingos nos ii. Não se faz isso porque, ao contrário do que nossos professores querem nos fazer crer, a covardia intelectual é coisa mais do que comum, coisa rotineira mesmo, no dia a dia do ambiente acadêmico.
P: Você não tem receio de se tornar vítima de um linchamento por parte daqueles que detêm o virtual monopólio da fala na academia? Em outras palavras, não teme se tornar mais um alvo do fenômeno que seu livro denuncia?
R: Não, não tenho medo de nada. E essa gente já me xinga de todo jeito, sempre que tem oportunidade. Me chamam de canalha, fascista, racista, etc. Eles fazem de tudo para me intimidar, me silenciar. Na Bahia, onde moro, não só os identitários, o PT me cerca, me ameaça, me fecha todas as portas, complicando muito, inclusive, minha sobrevivência material. Cheguei a ser colunista de um jornal lá e o governo petista, que controla tudo na província com os mesmos métodos de Antonio Carlos Magalhães, exigiu minha demissão. Deixei de escrever no jornal, na imprensa local. Mas não adianta. Não vou parar de pensar, nem de dizer o que penso. No meu doce exílio na Ilha de Itaparica, sob os signos de José de Anchieta e do meu amigo João Ubaldo Ribeiro, montei uma plataforma de lançamento de mísseis político-culturais. E não vou parar de lançá-los. Esta é, na verdade, minha principal diferença com meu amigo Francisco Bosco, autor de “A Vítima Tem Sempre Razão?”. Bosco, no fundo, tem um pé plantado fundo no identitarismo. Parece mesmo acreditar na legitimidade intelectual e política do binarismo maniqueísta. Quer convencer identitários e trazê-los a outro aprisco, num horizonte mais moderado. É uma coisa de aparar arestas e promover a conciliação. Não acredito nisso. Não acredito que seja possível reconverter fanático. E não escrevo com essa intenção. Eles são irrecuperáveis. Logo, vou para a guerra. Não escrevo para eles, mas para o conjunto da sociedade, que é onde eles podem ser derrotados.
P: Você afirma que o sistema educacional brasileiro se tornou uma fábrica de ignorância. Por quê?
R: É uma constatação. Só. Antigamente, a gente dizia que era preciso ensinar os analfabetos a ler e escrever. Hoje, podemos dizer que é preciso ensinar os universitários (e professores universitários) a ler e escrever. É tão simples assim.
P: Você acredita que artistas de esquerda foram cooptados por um projeto de poder em troca da dependência crescente de recursos públicos? Fale sobre isso. Você concorda com a frase de Millôr Fernandes que recomenda desconfiarmos do idealista que lucra com seu ideal?
R: É impressionante a atração da “classe artística” (de direita, de centro, de esquerda, de tudo) por dinheiros estatais. Querem que o governo – vale dizer, o país, a sociedade – financiem todas as suas fantasias. Pensam que o Estado é uma vaca e que deve assegurar-lhes o direito de, sempre que desejarem, entrar no curral para ordenhá-la. De um modo geral, dá vontade de repetir para essa gente, ligeiramente alterada, a célebre frase de John Kennedy: não pergunte o que o Estado pode fazer por você, pergunte o que você pode fazer pelo Brasil... Mas isso não foi – nem precisa ser – sempre assim. Para não recuar muito na história, podemos nos limitar à segunda metade do século XX. A bossa nova, a poesia concreta, o cinema novo e o tropicalismo – vale dizer, nossas maiores e mais brilhantes criações estético-culturais – aconteceram sem editais, sem patrocínio oficial, sem leis de incentivo. E dou também um pequeno, recente e bem significativo exemplo. Quando Ana de Holanda era ministra da Cultura, seu irmão Chico Buarque decidiu corretamente que não seria recomendável buscar patrocínio do MinC. Percorreu o país inteiro com um belo show, sem qualquer incentivo fiscal do Estado. Um outro aspecto, que acho de alta relevância: desenvolver políticas públicas para a cultura, no Brasil, não significa bancar uma clientela preferencial, financiar artistas e intelectuais. Atuando na esfera da administração pública na Bahia, por exemplo, criei e coordenei um programa de preservação da integridade territorial e física dos terreiros de candomblé. Mais tarde, entre Brasília e São Paulo, formulei o projeto geral para a implantação do Museu da Língua Portuguesa. Além disso, boa parte dos órgãos públicos “de cultura” hoje, no Brasil, vai derrapando solenemente na maionese identitária: o que importa não é a qualidade do que se faz, mas a ação afirmativa. Ou seja, para lembrar uma expressão perfeita da socióloga Lúcia Lippi, caíram no conto do vigário da “institucionalização da compaixão”.
P: Os movimentos em defesa das minorias começaram para defender a diferença, a "outridade". Como foi possível que esses movimentos se tenham tornado tão intolerantes com a divergência? A que fatores você atribui esse processo, resumidamente?
R: O melhor é recontar a história porque aí a deformação identitária vira fratura exposta. Esses movimentos (gays, mulheres, pretos, etc.) surgiram ou ressurgiram ao longo da década de 1970, no horizonte de nossa luta geral pela reconquista da democracia no Brasil. Todas essas movimentações (na época, “de minorias”; hoje, identitárias) se projetaram então, ganharam visibilidade política e social, no contexto da luta em defesa do outro. Da luta pelo reconhecimento do outro, pelo respeito ao outro. Foi o momento maior, pelo menos em nossa história recente, de defesa e afirmação da outridade. Agora, aí vem a contradição: vitoriosos em nome do reconhecimento do outro, a primeira coisa que esses identitários fizeram, ao se afirmarem vitoriosamente na cena brasileira, foi justamente negar e combater o outro. Promover um ataque feroz e sem tréguas à outridade. Assim, negros (fenotípicos ou simbólicos) não querem saber de conversa com não-negros. Mulheres (heterossexuais ou lésbicas), desde que “radfems”, não querem saber de homens palpitando em assuntos femininos. Etc. O que começou como uma luta pelo reconhecimento do outro termina agora como uma luta que rejeita o outro, a diferença, a outridade. É uma negação muito estranha, mas que deve ser entendida também como a luta por um monopólio da fala que se traduz, objetivamente, em reserva de mercado: só negros podem falar de assuntos negros; só mulheres podem abordar questões femininas. É a guetificação e a celebração da guetificação, inclusive porque isso assegura verbas, fontes de financiamento, controle político-ideológico, etc. Toma-se então o outro, caricaturalmente, como inimigo. E assim as movimentações se encorpam numericamente, ampliando o número de seus fiéis. Claro: sabemos muito bem que o caminho mais curto para conquistar a massa não é o da complexidade, das nuances, dos matizes enriquecedores. É o caminho do binarismo maniqueísta, que gera leituras tão fáceis quanto falsas da realidade envolvente.
P: De forma sintética, quais são as suas críticas ao "racialismo neonegro"?
R: O problema principal do nosso racialismo neonegro é pretender substituir a experiência histórica e social de um povo pela experiência histórica e social de outro povo. E assim substituem a formação histórico-social brasileira pela norte-americana, numa típica conduta de colonizados. Nossos processos configuradores são totalmente distintos. Além disso, em matéria de relações interraciais, os Estados Unidos não são exemplo nenhum para o mundo. Muito pelo contrário, são uma anomalia planetária: o único país do mundo a não reconhecer oficialmente a existência de mestiços de branco e preto. Outra coisa é que nossos racialistas fecham os olhos para a realidade do assassinato espiritual do negro africano nos Estados Unidos, sob a poderosíssima pressão do poder puritano branco. Tanto que lá inexistiam orixás, terreiros, babalaôs, etc., até que eles começaram a chegar pelas migrações antilhanas, pela perseguição à “santería” cubana, promovida por Fidel Castro. No Brasil, religião negra é candomblé. Nos Estados Unidos, é a variante negra do protestantismo branco. Martinho Lutero (em inglês, Martim Luther) King era um pastor evangélico, não um babalorixá. Sempre digo que, se tivesse acontecido, no Brasil e em Cuba, o que aconteceu nos Estados Unidos e na Argentina, não teríamos hoje um só deus africano, um só orixá, em toda a extensão continental das Américas... Outra coisa é que os racialistas neonegros idealizam ao extremo a tal da “Mama África”. Daí, ficam surpresos quando dão de cara com a realidade mais ostensiva atualmente de países como a Nigéria e Angola, que é a realidade da exploração do negro pelo negro. A África Negra se tornou um rosário de ditaduras corruptas, com elites negras multimilionárias e o povo negro na miséria. Nossas feministas neonegras também fecham os olhos para um aspecto essencial da vida de Ginga, a rainha de Matamba, que não só tinha escravas pretas, como as usava como poltronas, sentando-se durante horas sobre seus dorsos nus, enquanto fazia tratativas políticas, comerciais ou militares. Apenas para tocar mais uma tecla, nossos neonegros, que são todos variavelmente mulatos, ficam perplexos, quando tomam conhecimento do fortíssimo preconceito contra os mulatos que vigora em boa parte da África Negra. Costumo observar que Barack Obama jamais ganharia uma eleição na Nigéria ou em Angola: seria rejeitado pelas massas negras pelo simples fato de não ser preto, mas mulato. Aliás, em Angola, os mulatos são tratados pejorativamente como “latons”. Bem, “latons” é como seriam classificadas por lá figuras como Nei Lopes, por exemplo. E “latonas” são, na terminologia popular dos pretos angolanos, Camila Pitanga e Thaís Araújo.
P: O feminismo estaria passando pelo mesmo processo de cooptação política e sectarização?
R: O feminismo contracultural de Betty Freedan, Germaine Greer e Gloria Steinen degringolou no neofeminismo puritano-fanático de Andrea Dworkin e similares. Elas assumiram um discurso maluco que abole totalmente a história. Imaginam um estupro original, ocorrido às primeiras luzes da história da espécie e congelam tudo aí: acreditam que aquele suposto estupro pré-histórico se repete sempre, até aos dias atuais, sempre que um homem e uma mulher vão para a cama. Qualquer relação heterossexual é colocada então sob suspeita. Catherine Deneuve e algumas intelectuais e artistas francesas reagiram contra isso, defendendo o livre exercício da sexualidade e condenando o neofeminismo norte-americano que trata o homem como inimigo. E outra mulher, Camile Paglia, definiu bem: essas neofeministas são puritanas fanáticas. Como se não bastasse, também muitas neofeministas se fazem de cegas, a depender da conveniência. Veja-se o caso do “black panther” Eldridge Cleaver, relatado por ele mesmo em seu livro “Soul on Ice”. Cleaver conta aí que estuprou uma mulher branca como “um ato de insurreição”, a fim de “sujar” as mulheres do homem branco. Mais ainda: Cleaver escreve, com a maior tranquilidade do mundo, que, antes de estuprar brancas, treinou no gueto, currando pretas pobres! E as neofeministas nunca disseram nada sobre isso. Nem contra o estupro, nem contra o racismo de Cleaver diante das moças pobres do gueto. Angela Davis preferiu não tocar no assunto. É impressionante. E mostra a que ponto as coisas podem chegar: identitários não condenam crimes cometidos por identitários. É uma noção muito estranha de justiça.
P: Que avaliação você faz das políticas de cotas e dos movimentos de ação afirmativa, como conceito e como resultados práticos? As cotas alimentam o vitimismo? O que pensa do conceito de "dívida histórica"?
R: Não acho que cotas sejam realmente necessárias e digo isso a partir da realidade dos asiáticos e seus descentes na sociedade brasileira. Não existem cotas para “amarelos”. No entanto, a ascensão social dos amarelos, no Brasil, é um fato notável. Mas, se querem implantar políticas de cotas, elas não devem ser étnicas, raciais. A razão é simples. Nem todo preto é pobre, nem todo pobre é preto. No Brasil, há pobres de todas as cores. Entre numa favela em Santa Catarina que isso fica bem explícito. E penso que não temos o direito de privilegiar, em meio às massas pobres do país, apenas um determinado segmento étnico. Isso não tem nada a ver com democracia ou justiça social. Então, se é para ter cotas, que elas não sejam simplesmente “étnicas”, mas sociais. Agora, essa conversa de “dívida histórica” é picaretagem. Se quiserem, comecem a cobrar, primeiramente, da classe dominante negra lá na África, que encheu as burras com sua participação decisiva no tráfico de escravos. Os nagôs e os orixás só foram parar na Bahia porque foram derrotados em guerras contra os daomeanos, sendo então escravizados e vendidos para cá. Reis do Daomé chegaram, inclusive, a enviar embaixadas à Bahia, na tentativa de assegurar para eles o monopólio da venda de escravos para os baianos. Agora, até hoje, as classes dominantes na África Negra gostam de fazer esse truque, de enganar o povo, dizendo que todos eles foram vítimas do “homem branco”. É mentira. Recorrem a esse expediente de botar tudo na conta da “exploração branca” a fim de esconder a exploração a que elas mesmas submeteram (e ainda hoje submetem) os povos negros. As classes dominantes negras não foram vítimas, foram sócias dos brancos no comércio transatlântico de carne humana.
P: Que análise você faz das políticas públicas racialistas promovidas pelos governos de FHC e Lula? De que forma elas contribuíram para o fortalecimento do que você chama de fascismo identitário?
R: A minha impressão é que eles não entenderam bem ou não prestaram a devida atenção, lá no início, no que estava começando a acontecer. Nem pensaram nas consequências de muitas coisas. De Sarney a Lula, porque a política racialista de caráter “compensatório” começa com Sarney e ganha extrema visibilidade com a criação da Fundação Palmares, que foi a entidade que, com seus procedimentos enviesados, criou mais quilombos no Brasil do que Zumbi seria capaz de sonhar. Fernando Henrique não se tocou com a grande deformação pedagógica realizada sob seu nariz, com a gravação de uma contra-história esquerdista do Brasil, invertendo tudo da primeira história oficial de Varnhagen e companheiros, nos parâmetros curriculares do ensino. No caso de Lula e do PT, penso o seguinte. Lula, Dirceu, etc., estavam concentrados em política e em caminhos para chegar ao poder. Não tinham qualquer interesse específico ou especial em discursos de “minorias”, como então se dizia. Eles apenas abrigaram essas minorias no partido e deixaram que elas se movessem por conta própria. Como não tinham tempo ou disposição para discutir seus discursos, tomaram uma atitude curiosa: sacralizaram os discursos dos “oprimidos”. Dentro do PT, tudo que índio, preto, veado ou mulher dissesse, não se discutia. O negócio era celebrar os oprimidos, dar voz aos que nunca tiveram voz, etc. E isso está mesmo na base da formação do fascismo identitário.
P: Que caminhos você visualiza para que a sociedade brasileira saia desse apartheid maniqueísta e dessa guerra de narrativas que nos divide a ponto de rompermos relações com amigos e familiares?
R: Temos a polarização político-ideológica e as polarizações identitárias. No primeiro caso, só há uma saída. Deixar petistas e bolsonaristas de parte – e partir para fortalecer o campo democrático. O problema é que esse próprio “campo democrático” não parece realmente disposto a fazer isso, no sentido simples de que, na prática, se recusa a empreender uma releitura crítica rigorosa de sua trajetória e do entendimento do processo que veio das manifestações de junho de 2013 à vitória eleitoral da extrema direita na eleição presidencial de 2018. No segundo caso, é preciso dessacralizar os identitários. Desmantelar aura e auréola de vítimas e mártires que pretendem se colocar acima de tudo, como juízes e algozes implacáveis das coisas da vida e do mundo. Combater seus “tribalismos”, sua glorificação do gueto, seus expedientes fascistas. Deixemos de parte as exacerbações particularistas, setoriais, e vamos voltar a nos mover no campo da maioria, nas águas mais vivas do conjunto da sociedade brasileira. O que digo é isso: precisamos superar o “apartheid” identitário e reencontrar a democracia. Em todos os campos do pensar, do sonhar, do imaginar e do fazer.” *Sobre o Relativismo Pós- moderno e a Famtasia Fascista da Esquerda Identitária - Entrevista a Luciano Trigo
terça-feira, 12 de novembro de 2019
CONGRESSO INÉDITO MARCA PROJETOS PARA A BAÍA DE TODOS OS SANTOS
Ontem, na Academia Baiana de Letras, a Baia de Todos os Santos foi o tema principal do COMARK: Congresso de Kirimurê, BTS e capital da Amazônia Azul. O evento inédito foi uma iniciativa do Grupo Kirimurê, que reúne personalidades, políticos, intelectuais e representantes dos mais diversos segmentos ligados ao mar da Bahia.
O congresso teve como patrocinadores a Fundação Aleixo Belov e a Fundação Baia Viva.
O objetivo foi discutir projetos de desenvolvimento sustentável para a Baia de Todos os Santos, sendo apresentada ainda uma Carta de Intenções.
Dentre os destaques da programação palestras do navegador Aleixo Belov, dos professores Paulo Ormindo e Lourenço Müller, Eduardo Ataíde, Waldeck Ornelas, Roberto Malaca, dos secretários André Fraga e Fausto Franco, além de membros de universidades.
Dentre os destaques da programação palestras do navegador Aleixo Belov, dos professores Paulo Ormindo e Lourenço Müller, Eduardo Ataíde, Waldeck Ornelas, Roberto Malaca, dos secretários André Fraga e Fausto Franco, além de membros de universidades.
Entre as diversas propostas apresentadas, o saneamento urbano das cidades do entorno da baía, a ênfase na denominação de capital da Amazônia Azul e a revitalização dos saveiros , tanto para o transporte como para turismo foram apoiadas por unanimidade dos presentes.
Foram constituídos diversos grupos para aprofundarem as discussões e apresentarem propostas a serem trabalhadas pelo grupo KIRIMURE.
quarta-feira, 2 de outubro de 2019
Hidroporto da Ribeira , o primeiro da Bahia
Nelson Cadena*
Em 10 de dezembro de 1935, amerissou, no aeroporto de Itapagipe, o gigantesco hidroavião Trininad Clipper, com oito tripulantes, sob a chefia do comandante Charles Lorber, trazendo, entre os passageiros, o ex-governador Antônio Muniz Sodré de Aragão. Entre os que embarcariam em direção ao Rio de Janeiro, estavam os políticos Lauro de Freitas, João Pacheco de Oliveira e o jornalista Altamirando Requião.
O amerrissar na Ribeira de Itapagipe se constituía um verdadeiro espetáculo para centenas de baianos que até lá se dirigiam, para ver os hidroaviões descer e flutuar. O píer de atracação, inicialmente de madeira, tinha sido construído em 1922, como auxiliar para uma escala dos pilotos portugueses Sacadura Cabral e Gago Coutinho, que realizaram em um hidroavião, partindo de Lisboa, a primeira travessia aérea do Atlântico Sul, no âmbito das comemorações do Primeiro Centenário da Independência do Brasil. Provavelmente, teria também servido de apoio ao piloto espanhol Antenor Navarro no seu histórico voo pelo centro de Salvador, em 1923, observado por autoridades e convidados, reunidos na cúpula do Hotel Meridional.
Foi no hidroporto da Ribeira de Itapagipe que o presidente Getúlio Vargas desembarcou, em 1939, para as comemorações da descoberta de petróleo em Lobato. Durante a II Guerra Mundial, o hidroporto serviu de base de apoio aos hidroaviões americanos que faziam o patrulhamento da costa brasileira. Depois de operar com regularidade durante toda a década de 1940, utilizado pela empresa de aviação Nyrba do Brasil, denominada, a seguir, Panair do Brasil, foi, aos poucos, sendo relegado a um segundo plano, em função de as companhias aéreas passarem a optar pelos aviões de pouso em terra, de maior porte e mais seguros.* Jornalista e escritor
Texto do livro de minha autoria “A Cidade da Bahia”). Editora P55. Realização ALBA, TCE, TCM. Salvador, 2017. Fotos do acervo da Fundação Gregório de Mattos-FGM)
segunda-feira, 29 de julho de 2019
Entrevista com Antônio Risério
Guilherme Evelin - O Estado de S.Paulo
Entre os antropólogos brasileiros, o baiano Antonio Risério pertence a uma linhagem rara. Enquanto boa parte de seus colegas, como ele destaca, se dedicou a escrever sobre “pretos e índios” em leituras etnográficas do Brasil, Risério resolveu enveredar seus estudos para a vida nas cidades brasileiras. Nos últimos anos, publicou a trilogia de livros composta por A Cidade no Brasil, Mulher, Casa e Cidade e A Casa do Brasil – este último recém-lançado pela editora Topbooks – com o objetivo de entender “a maior crise urbana da história do país. O olhar antropológico sobre a casa e seu lugar nas cidades brasileiras, diz Risério, pode ajudar a entender como “nossas desigualdades sociais se manifestam em cada centímetro do chão” e a encontrar saídas para a atual encruzilhada em que os dramas urbanos são amplificados pela questão ambiental. À visão do antropólogo, se somam também a do romancista, ensaísta e ex-marqueteiro de campanhas políticas. Ao mesmo tempo que detona programas como o Minha Casa, Minha Vida, concebido pelos governos do PT, Risério prega que a vida nas cidades precisa de um “conjunto de regras que incorpore rotineiramente o acaso”. “Se só houver regras, é o totalitarismo. Se não houver regras, é a anomia”, diz ele, em entrevista ao Aliás.
1. Por que você - antropólogo, ensaísta, romancista - resolveu se dedicar ao estudo do urbanismo no Brasil?
R: Existe uma tradição brasileira de vínculos e trabalhos conjuntos entre antropólogos, engenheiros e arquitetos-urbanistas, que pode ser retraçada a Euclydes da Cunha, o engenheiro-antropólogo saindo da Escola Politécnica para mergulhar em leituras etnográficas do Brasil. E isso vem atravessando os tempos, como vemos com o arquiteto-urbanista João Filgueiras Lima fazendo dupla com o antropólogo Darcy Ribeiro. Me orgulho de ser um subproduto dessa tradição. No meu caso, além do fascínio existencial e intelectual pelas cidades, houve o engajamento em administrações municipais, quando me envolvi até à medula com questões urbanas. Existia, também, certa escassez de estudos de antropologia urbana no Brasil. Nossos antropólogos escreviam sobre índios e pretos, nossos sociólogos sobre classe operária e populismo – poucos pensavam o urbano como tal. Mas, como determinação maior, está o fato de que atravessamos hoje a maior crise urbana de toda a história do país. E o olhar socioantropológico sobre as cidades não só nos ajuda a nos entender histórica e culturalmente, como revela nossas desigualdades sociais se manifestando em cada centímetro do chão das cidades.
2. Que relação você estabelece entre o seu mais novo livro - A Casa no Brasil - e o livro anterior - A Cidade no Brasil?
R: São livros que dialogam entre si. Na verdade, compus um “triálogo”. Entre “A Cidade no Brasil” e “A Casa no Brasil”, publiquei “Mulher, Casa e Cidade”, analisando lugares e desempenhos femininos no espaço doméstico e urbano em geral. “A Cidade no Brasil” é uma releitura das visões sobre o processo urbano em nossos trópicos, inclusive para contestar o mestre Sérgio Buarque de “Raízes do Brasil”, que considero equivocado e sem fundamentação histórica. “A Casa no Brasil” contextualiza a casa na desorganização espacial de nossas cidades, em percurso diacrônico que vem das senzalas aos flats. Para finalizar, examino a encruzilhada em que nos encontramos, sob desigualdades sociais e crimes ambientais.
3. Você escreve que a "sociedade brasileira, do século XVI aos dias de hoje, flats à parte, só conheceu, na verdade, um tipo de moradia: a casa escravista". Não é uma afirmação demasiadamente forte? Você entende que as relações sociais pouco mudaram no Brasil desde os tempos da Colônia? O que a "casa brasileira" mostra sobre a "sociedade brasileira"?
R: As relações sociais mudaram muito. Mas a gente não pode esquecer o passado escravista. E nem sequer que o Brasil foi um país onde a primeira coisa que um ex-escravo fazia era comprar um escravo para lhe servir. Machado de Assis retrata isso no “Brás Cubas”, na cena em que mostra o ex-escravo Prudêncio açoitando um escravo que acabara de comprar. Compare um apartamento europeu de classe média e um brasileiro também de classe média. Embora os europeus tivessem situação material superior à nossa, vivíamos como se fôssemos mais ricos que eles. Inexistiam dependências para empregados domésticos no apartamento europeu. No Brasil, tinham quartos de empregada que são sucedâneos das senzalas. Eles nem sequer atendiam a exigências mínimas de códigos de obras e por isso apareciam oficialmente, nas plantas, como despensas. As coisas só começaram a mudar recentemente. Moças pobres hoje preferem ser exploradas num ponto comercial qualquer do que serem servas pessoais de outros. E ficou caro ter empregadas domésticas, hoje implicando deveres trabalhistas. A tendência é chegar a uma situação mais europeia. Na Europa, só apartamentos de luxo possuem dependências para serviçais. Caminhamos para isso.
4. Você faz uma crítica feroz ao programa Minha Casa, Minha Vida, que descreve como "edificações fundamentalmente vagabundas" que constroem as "favelas de amanhã". Qual é o cerne do problema desse programa, que você afirma que tem "nome ridículo de programa de auditório de televisão"?
5. Em outro ponto do livro, você escreve que nenhum governo social-democrata no Brasil - nem os de Fernando Henrique Cardoso, nem as gestões petistas - se preocuparam em fazer um programa de habitação popular eficiente e com casas modernas do ponto de vista arquitetônico. O último governante com sensibilidade para a questão teria sido Getúlio Vargas. Por que isso ocorre? Moradia popular não dá voto?
R: Vargas foi o primeiro – e, até aqui, o único – a pensar a habitação popular em termos de qualidade. É interessante observar uma coisa, na mesma década de 1930. Nessa época, a socialdemocracia nórdica partiu para fazer casas de qualidade para trabalhadores. Na Suécia, o sociólogo Gunnar Myrdal se aproximou de Corbusier e do ideário da vanguarda arquitetônica internacional. E o mesmo aconteceu no Brasil com Vargas, embora os suecos vivessem numa democracia e aqui a gente se movesse na ditadura estadonovista. Mas é que o populismo getulista voltou as costas para a democracia política, ao tempo em que se abriu para a democracia social. Vargas apostou no primeiro time da arquitetura brasileira para produzir moradias populares de alta qualidade, como no conjunto do Pedregulho, no Rio, elogiado por Corbusier e Max Bill. Mas esta sua lição foi desprezada. Fernando Henrique não se preocupou com moradia popular. E os governos petistas, em vez de retomar o legado de Vargas, preferiram ir na linha medíocre do BNH da ditadura militar. Moradia popular dá voto, sim – não tanto quanto os neocurrais eleitorais do Bolsa Família, mas dá. O problema é que o povo, na sua carência, acha que qualquer bolacha quebrada é um palacete. E os governantes, mesmo que façam pose “de esquerda”, se aproveitam disso.
6. O que acha de movimentos como o Movimento dos Trabalhadores Sem Teto (MTST), liderado por Guilherme Boulos? Vê nesse tipo de movimento algum caminho para tornar nossas cidades menos desiguais e ecologicamente mais equilibradas, como defende em seu livro?
R: Não conheço quem discorde do princípio de que todos devem ter direito a um abrigo onde morar. Se a burguesia da construção civil, o empresariado em geral e os governantes quisessem, eles já teriam acabado com o déficit habitacional. Eles têm poder e recursos para fazer cumprir o que reza a Constituição de 1988, com sua ênfase na função social da cidade e da propriedade. Mas não fazem. A suruba de empreiteiros e governantes no Brasil nunca teve sentido social. Logo, a desgraça habitacional popular prossegue. Não se faz uma ofensiva para acabar com isso. Então, é a sociedade que tem de se mover. De partir para o combate. Daí, a necessidade de coisas como o MTST, que é crítico duro e lúcido do Minha Casa, Minha Vida. Agora, quanto a Boulos, especificamente, não me entusiasma. É um “replay” de Lula, mas caricatural. Trazendo Marx para o plano do indivíduo: Boulus repete Lula como farsa.
7. Você escreve como passou a depender de uma bengala depois de ter tido um AVC em 2012 e como sentiu na pele como as cidades brasileiras são um inferno para os pedestres. A discussão sobre a questão da mobilidade urbana no Brasil, como você observa no livro, não leva em conta os interesses do pedestre, ao contrário do que acontece em países mais desenvolvidos como os da Europa. Por que involuímos nessa questão?
R: Falei antes da concordância geral em torno do princípio de que todos têm direito a um lugar onde morar. Não é só nesse tópico que a sociedade brasileira chega à unanimidade. Pensamos o mesmo sobre educação e saúde, assim como sobre a necessidade de respeitar o pedestre. Então, costumo dizer que, no Brasil, existe um elenco razoável de coisas e princípios que classifico como “consensos subversivos”. Porque todo mundo concorda que é preciso fazer – logo, consenso. E subversivo porque, no dia em que essas coisas forem feitas, teremos realizado uma nova revolução social no país. Mas vamos esquecer governantes e empresários. O mercado não é um deus que mereça confiança. E nossos políticos profissionais degradaram o Ministério das Cidades ao plano de peça de troca no balcão das barganhas nacionais. A sociedade tem de tocar o barco. O problema é que estamos muito pulverizados. E, para transformar a vida urbana brasileira, precisamos de uma heresia comum, compartilhável.
8. Você frisa que andar a pé é um dos principais meios de desfrutar uma das riquezas de morar em cidades: trombar com o acaso. E que as cidades devem se equilibrar entre o acaso e a necessidade - ou seja, estabelecer regras, sem as quais a vida urbana se torna um caos, mas ao mesmo tempo dar a chance para o imprevísivel. Que cidades já conseguiram achar esse equilíbrio?
R: Parti de um jogo verbal de Platão, na “República”, entre “polis” (cidade) e “polis” (um gamão grego), para falar que a cidade precisa de um conjunto de regras que incorpore rotineiramente o acaso. Se só houver regras, é o totalitarismo. Se não houver regras, é a anomia. No primeiro caso, de regras asfixiantes, tínhamos cidades no leste europeu. Hoje, no mundo islâmico. Mesmo em Teerã, onde é permitida a existência de sinagoga, quase tudo corre por debaixo do pano. No avesso, a Cidade do México e as grandes cidades brasileiras beiram a anomia. Equilíbrio? Regra geral, em cidades das democracias ricas do Atlântico Norte. Mas isso tudo vai mudando no tempo. Paris, por exemplo, caminha para empalmar um novo título. Será a maior cidade muçulmana do mundo.
9. O que acha do panorama geral das cidades brasileiras hoje em relação às principais cidades do mundo? As cidades brasileiras, em geral, nunca aparecem nos rankings de melhores cidades para morar do mundo? Gosta de alguma delas?
R: Estamos na contramão do movimento urbano planetário. Brasileiros dificilmente hesitam antes de cometer barbaridades ecológicas, violar princípios básicos de convivência e urbanidade, privilegiar automóveis e viadutos, em detrimento das pessoas. E aqui até me lembro da pergunta de Shakespeare: “o que é a cidade, a não ser as pessoas?”. Mas, apesar de tudo, gosto sim de algumas cidades brasileiras. Adoro São Paulo. Me sinto à vontade. Gosto, inclusive, de andar a pé à noite. De comer e beber no Copan, flanar na Paulista, ir ao Ibirapuera. E isso em nada diminui minhas críticas à cidade. Não tenho admiração por Haddad como político, mas ele teve um bom desempenho na prefeitura. Era o prefeito brasileiro que tinha uma visão da cidade como fenômeno socioespacial. E isso se perdeu. Gosto também do Recife, do Rio hoje tão humilhado, de São Luís, de Belo Horizonte, com a delícia daquele mercado municipal, etc. Enfim, embora não pare de reclamar, gosto de muita coisa.
10. O que acha de Brasília, razão de eternas polêmicas? Embora elogie a beleza da cidade, você admite já ter sido mais fã da capital e reconhece que algumas críticas à monumentalidade e à pouca densidade das relações sociais tem sua razão de ser.
R: Há muito o quê falar de Brasília, que é uma joia da arquitetura e do urbanismo brasileiros. E curto mais a cidade do que a critico. Mas algumas coisas não me parecem confortáveis. Brasília é uma cidade definida pela especialização de funções, com seus setores bem demarcados. Eu não aplaudo esta morfologia espacial. Penso que as mesclas funcionais e sociais concorrem para o bem-estar urbano. Outra coisa é que não vingou a nova sociabilidade vistosa que se esperava nascer do próprio plano da cidade. Como digo no livro, o que vemos é a falta de volume, frequência e intensidade na teia dos relacionamentos interpessoais. No desenho morfológico setorializante, a existência também se atomizou, aprofundando ainda mais o isolamento social candango.
11. Viver em condomínios fechados, como Alphaville, em São Paulo, parece já ter gozado de maior apreço junto às classes sociais brasileiras mais abastadas. Vê alguma mudança na relação das elites brasileiras com a vida na cidade? Vê algum razão para otimismo em relação à perspectiva de uma reforma urbana no Brasil que leve a cidades mais equilibradas tanto do ponto de vista social como ambiental?
R: A conduta das elites brasileiras, com relação às cidades, me parece mais um caso de polícia do que qualquer outra coisa. Invadem e privatizam o espaço público. Chegam a privatizar até a praia, que tem de estar sempre aberta a todos. Ao mesmo tempo, penso que a época de preferir isto ou aquilo está passando. O espectro das escolhas se estreita à medida que temos de pensar uma cidade que não consuma tão descontroladamente os recursos naturais. Seremos obrigados a mudar, se não quisermos perecer. É neste sentido que digo que hoje a cidade ideal está se transformando em cidade necessária. No livro, lembro que Goethe/Fausto, na tradução do “Evangelho Segundo João”, contraria a Bíblia e escreve: “no princípio, era a ação”. Mas, ainda no âmbito do próprio romantismo alemão, Heinrich Heine respondeu: “no princípio, era o rouxinol”. Goethe celebra a energia, a práxis. Heine celebra as canções da natureza. E o que eu digo é que temos de partir desse diálogo, caminhando idealmente para alguma síntese entre a ação de Goethe e o rouxinol de Heine.
Entre os antropólogos brasileiros, o baiano Antonio Risério pertence a uma linhagem rara. Enquanto boa parte de seus colegas, como ele destaca, se dedicou a escrever sobre “pretos e índios” em leituras etnográficas do Brasil, Risério resolveu enveredar seus estudos para a vida nas cidades brasileiras. Nos últimos anos, publicou a trilogia de livros composta por A Cidade no Brasil, Mulher, Casa e Cidade e A Casa do Brasil – este último recém-lançado pela editora Topbooks – com o objetivo de entender “a maior crise urbana da história do país. O olhar antropológico sobre a casa e seu lugar nas cidades brasileiras, diz Risério, pode ajudar a entender como “nossas desigualdades sociais se manifestam em cada centímetro do chão” e a encontrar saídas para a atual encruzilhada em que os dramas urbanos são amplificados pela questão ambiental. À visão do antropólogo, se somam também a do romancista, ensaísta e ex-marqueteiro de campanhas políticas. Ao mesmo tempo que detona programas como o Minha Casa, Minha Vida, concebido pelos governos do PT, Risério prega que a vida nas cidades precisa de um “conjunto de regras que incorpore rotineiramente o acaso”. “Se só houver regras, é o totalitarismo. Se não houver regras, é a anomia”, diz ele, em entrevista ao Aliás.
1. Por que você - antropólogo, ensaísta, romancista - resolveu se dedicar ao estudo do urbanismo no Brasil?
R: Existe uma tradição brasileira de vínculos e trabalhos conjuntos entre antropólogos, engenheiros e arquitetos-urbanistas, que pode ser retraçada a Euclydes da Cunha, o engenheiro-antropólogo saindo da Escola Politécnica para mergulhar em leituras etnográficas do Brasil. E isso vem atravessando os tempos, como vemos com o arquiteto-urbanista João Filgueiras Lima fazendo dupla com o antropólogo Darcy Ribeiro. Me orgulho de ser um subproduto dessa tradição. No meu caso, além do fascínio existencial e intelectual pelas cidades, houve o engajamento em administrações municipais, quando me envolvi até à medula com questões urbanas. Existia, também, certa escassez de estudos de antropologia urbana no Brasil. Nossos antropólogos escreviam sobre índios e pretos, nossos sociólogos sobre classe operária e populismo – poucos pensavam o urbano como tal. Mas, como determinação maior, está o fato de que atravessamos hoje a maior crise urbana de toda a história do país. E o olhar socioantropológico sobre as cidades não só nos ajuda a nos entender histórica e culturalmente, como revela nossas desigualdades sociais se manifestando em cada centímetro do chão das cidades.
2. Que relação você estabelece entre o seu mais novo livro - A Casa no Brasil - e o livro anterior - A Cidade no Brasil?
R: São livros que dialogam entre si. Na verdade, compus um “triálogo”. Entre “A Cidade no Brasil” e “A Casa no Brasil”, publiquei “Mulher, Casa e Cidade”, analisando lugares e desempenhos femininos no espaço doméstico e urbano em geral. “A Cidade no Brasil” é uma releitura das visões sobre o processo urbano em nossos trópicos, inclusive para contestar o mestre Sérgio Buarque de “Raízes do Brasil”, que considero equivocado e sem fundamentação histórica. “A Casa no Brasil” contextualiza a casa na desorganização espacial de nossas cidades, em percurso diacrônico que vem das senzalas aos flats. Para finalizar, examino a encruzilhada em que nos encontramos, sob desigualdades sociais e crimes ambientais.
3. Você escreve que a "sociedade brasileira, do século XVI aos dias de hoje, flats à parte, só conheceu, na verdade, um tipo de moradia: a casa escravista". Não é uma afirmação demasiadamente forte? Você entende que as relações sociais pouco mudaram no Brasil desde os tempos da Colônia? O que a "casa brasileira" mostra sobre a "sociedade brasileira"?
R: As relações sociais mudaram muito. Mas a gente não pode esquecer o passado escravista. E nem sequer que o Brasil foi um país onde a primeira coisa que um ex-escravo fazia era comprar um escravo para lhe servir. Machado de Assis retrata isso no “Brás Cubas”, na cena em que mostra o ex-escravo Prudêncio açoitando um escravo que acabara de comprar. Compare um apartamento europeu de classe média e um brasileiro também de classe média. Embora os europeus tivessem situação material superior à nossa, vivíamos como se fôssemos mais ricos que eles. Inexistiam dependências para empregados domésticos no apartamento europeu. No Brasil, tinham quartos de empregada que são sucedâneos das senzalas. Eles nem sequer atendiam a exigências mínimas de códigos de obras e por isso apareciam oficialmente, nas plantas, como despensas. As coisas só começaram a mudar recentemente. Moças pobres hoje preferem ser exploradas num ponto comercial qualquer do que serem servas pessoais de outros. E ficou caro ter empregadas domésticas, hoje implicando deveres trabalhistas. A tendência é chegar a uma situação mais europeia. Na Europa, só apartamentos de luxo possuem dependências para serviçais. Caminhamos para isso.
4. Você faz uma crítica feroz ao programa Minha Casa, Minha Vida, que descreve como "edificações fundamentalmente vagabundas" que constroem as "favelas de amanhã". Qual é o cerne do problema desse programa, que você afirma que tem "nome ridículo de programa de auditório de televisão"?
5. Em outro ponto do livro, você escreve que nenhum governo social-democrata no Brasil - nem os de Fernando Henrique Cardoso, nem as gestões petistas - se preocuparam em fazer um programa de habitação popular eficiente e com casas modernas do ponto de vista arquitetônico. O último governante com sensibilidade para a questão teria sido Getúlio Vargas. Por que isso ocorre? Moradia popular não dá voto?
R: Vargas foi o primeiro – e, até aqui, o único – a pensar a habitação popular em termos de qualidade. É interessante observar uma coisa, na mesma década de 1930. Nessa época, a socialdemocracia nórdica partiu para fazer casas de qualidade para trabalhadores. Na Suécia, o sociólogo Gunnar Myrdal se aproximou de Corbusier e do ideário da vanguarda arquitetônica internacional. E o mesmo aconteceu no Brasil com Vargas, embora os suecos vivessem numa democracia e aqui a gente se movesse na ditadura estadonovista. Mas é que o populismo getulista voltou as costas para a democracia política, ao tempo em que se abriu para a democracia social. Vargas apostou no primeiro time da arquitetura brasileira para produzir moradias populares de alta qualidade, como no conjunto do Pedregulho, no Rio, elogiado por Corbusier e Max Bill. Mas esta sua lição foi desprezada. Fernando Henrique não se preocupou com moradia popular. E os governos petistas, em vez de retomar o legado de Vargas, preferiram ir na linha medíocre do BNH da ditadura militar. Moradia popular dá voto, sim – não tanto quanto os neocurrais eleitorais do Bolsa Família, mas dá. O problema é que o povo, na sua carência, acha que qualquer bolacha quebrada é um palacete. E os governantes, mesmo que façam pose “de esquerda”, se aproveitam disso.
6. O que acha de movimentos como o Movimento dos Trabalhadores Sem Teto (MTST), liderado por Guilherme Boulos? Vê nesse tipo de movimento algum caminho para tornar nossas cidades menos desiguais e ecologicamente mais equilibradas, como defende em seu livro?
R: Não conheço quem discorde do princípio de que todos devem ter direito a um abrigo onde morar. Se a burguesia da construção civil, o empresariado em geral e os governantes quisessem, eles já teriam acabado com o déficit habitacional. Eles têm poder e recursos para fazer cumprir o que reza a Constituição de 1988, com sua ênfase na função social da cidade e da propriedade. Mas não fazem. A suruba de empreiteiros e governantes no Brasil nunca teve sentido social. Logo, a desgraça habitacional popular prossegue. Não se faz uma ofensiva para acabar com isso. Então, é a sociedade que tem de se mover. De partir para o combate. Daí, a necessidade de coisas como o MTST, que é crítico duro e lúcido do Minha Casa, Minha Vida. Agora, quanto a Boulos, especificamente, não me entusiasma. É um “replay” de Lula, mas caricatural. Trazendo Marx para o plano do indivíduo: Boulus repete Lula como farsa.
7. Você escreve como passou a depender de uma bengala depois de ter tido um AVC em 2012 e como sentiu na pele como as cidades brasileiras são um inferno para os pedestres. A discussão sobre a questão da mobilidade urbana no Brasil, como você observa no livro, não leva em conta os interesses do pedestre, ao contrário do que acontece em países mais desenvolvidos como os da Europa. Por que involuímos nessa questão?
R: Falei antes da concordância geral em torno do princípio de que todos têm direito a um lugar onde morar. Não é só nesse tópico que a sociedade brasileira chega à unanimidade. Pensamos o mesmo sobre educação e saúde, assim como sobre a necessidade de respeitar o pedestre. Então, costumo dizer que, no Brasil, existe um elenco razoável de coisas e princípios que classifico como “consensos subversivos”. Porque todo mundo concorda que é preciso fazer – logo, consenso. E subversivo porque, no dia em que essas coisas forem feitas, teremos realizado uma nova revolução social no país. Mas vamos esquecer governantes e empresários. O mercado não é um deus que mereça confiança. E nossos políticos profissionais degradaram o Ministério das Cidades ao plano de peça de troca no balcão das barganhas nacionais. A sociedade tem de tocar o barco. O problema é que estamos muito pulverizados. E, para transformar a vida urbana brasileira, precisamos de uma heresia comum, compartilhável.
8. Você frisa que andar a pé é um dos principais meios de desfrutar uma das riquezas de morar em cidades: trombar com o acaso. E que as cidades devem se equilibrar entre o acaso e a necessidade - ou seja, estabelecer regras, sem as quais a vida urbana se torna um caos, mas ao mesmo tempo dar a chance para o imprevísivel. Que cidades já conseguiram achar esse equilíbrio?
R: Parti de um jogo verbal de Platão, na “República”, entre “polis” (cidade) e “polis” (um gamão grego), para falar que a cidade precisa de um conjunto de regras que incorpore rotineiramente o acaso. Se só houver regras, é o totalitarismo. Se não houver regras, é a anomia. No primeiro caso, de regras asfixiantes, tínhamos cidades no leste europeu. Hoje, no mundo islâmico. Mesmo em Teerã, onde é permitida a existência de sinagoga, quase tudo corre por debaixo do pano. No avesso, a Cidade do México e as grandes cidades brasileiras beiram a anomia. Equilíbrio? Regra geral, em cidades das democracias ricas do Atlântico Norte. Mas isso tudo vai mudando no tempo. Paris, por exemplo, caminha para empalmar um novo título. Será a maior cidade muçulmana do mundo.
9. O que acha do panorama geral das cidades brasileiras hoje em relação às principais cidades do mundo? As cidades brasileiras, em geral, nunca aparecem nos rankings de melhores cidades para morar do mundo? Gosta de alguma delas?
R: Estamos na contramão do movimento urbano planetário. Brasileiros dificilmente hesitam antes de cometer barbaridades ecológicas, violar princípios básicos de convivência e urbanidade, privilegiar automóveis e viadutos, em detrimento das pessoas. E aqui até me lembro da pergunta de Shakespeare: “o que é a cidade, a não ser as pessoas?”. Mas, apesar de tudo, gosto sim de algumas cidades brasileiras. Adoro São Paulo. Me sinto à vontade. Gosto, inclusive, de andar a pé à noite. De comer e beber no Copan, flanar na Paulista, ir ao Ibirapuera. E isso em nada diminui minhas críticas à cidade. Não tenho admiração por Haddad como político, mas ele teve um bom desempenho na prefeitura. Era o prefeito brasileiro que tinha uma visão da cidade como fenômeno socioespacial. E isso se perdeu. Gosto também do Recife, do Rio hoje tão humilhado, de São Luís, de Belo Horizonte, com a delícia daquele mercado municipal, etc. Enfim, embora não pare de reclamar, gosto de muita coisa.
10. O que acha de Brasília, razão de eternas polêmicas? Embora elogie a beleza da cidade, você admite já ter sido mais fã da capital e reconhece que algumas críticas à monumentalidade e à pouca densidade das relações sociais tem sua razão de ser.
R: Há muito o quê falar de Brasília, que é uma joia da arquitetura e do urbanismo brasileiros. E curto mais a cidade do que a critico. Mas algumas coisas não me parecem confortáveis. Brasília é uma cidade definida pela especialização de funções, com seus setores bem demarcados. Eu não aplaudo esta morfologia espacial. Penso que as mesclas funcionais e sociais concorrem para o bem-estar urbano. Outra coisa é que não vingou a nova sociabilidade vistosa que se esperava nascer do próprio plano da cidade. Como digo no livro, o que vemos é a falta de volume, frequência e intensidade na teia dos relacionamentos interpessoais. No desenho morfológico setorializante, a existência também se atomizou, aprofundando ainda mais o isolamento social candango.
11. Viver em condomínios fechados, como Alphaville, em São Paulo, parece já ter gozado de maior apreço junto às classes sociais brasileiras mais abastadas. Vê alguma mudança na relação das elites brasileiras com a vida na cidade? Vê algum razão para otimismo em relação à perspectiva de uma reforma urbana no Brasil que leve a cidades mais equilibradas tanto do ponto de vista social como ambiental?
R: A conduta das elites brasileiras, com relação às cidades, me parece mais um caso de polícia do que qualquer outra coisa. Invadem e privatizam o espaço público. Chegam a privatizar até a praia, que tem de estar sempre aberta a todos. Ao mesmo tempo, penso que a época de preferir isto ou aquilo está passando. O espectro das escolhas se estreita à medida que temos de pensar uma cidade que não consuma tão descontroladamente os recursos naturais. Seremos obrigados a mudar, se não quisermos perecer. É neste sentido que digo que hoje a cidade ideal está se transformando em cidade necessária. No livro, lembro que Goethe/Fausto, na tradução do “Evangelho Segundo João”, contraria a Bíblia e escreve: “no princípio, era a ação”. Mas, ainda no âmbito do próprio romantismo alemão, Heinrich Heine respondeu: “no princípio, era o rouxinol”. Goethe celebra a energia, a práxis. Heine celebra as canções da natureza. E o que eu digo é que temos de partir desse diálogo, caminhando idealmente para alguma síntese entre a ação de Goethe e o rouxinol de Heine.
sábado, 27 de julho de 2019
Neojibá de roupa nova
Paulo Ormindo de Azevedo*
No último dia nove foi inaugurado a nova sede do Neojibá, no Parque do Queimado, situado entre a Lapinha e a Caixa d’Água. Trata-se de um projeto de inclusão social de jovens e crianças através da música, idealizado pelo maestro Ricardo Castro, em 2007, e que por sua teimosia se estende hoje por 29 municípios baianos e beneficia 6,5 mil jovens e crianças. O projeto se inspira na experiencia do maestro José Antônio Abreu, que fundou em 1975 o Sistema Nacional de Orquestras e Coros Juvenis da Venezuela, que compreende 180 orquestras, e foi reproduzido em muitos países latino-americanos e nos EUA. Ricardo Castro é pianista premiado na Europa e professor de um grupo de jovens pianistas profissionais na Haute École de Musique de Friburgo, Suíça, mas preocupado com a fragilidade social dos jovens e crianças de sua terra natal.
O Parque do Queimado tem uma longa história. Sua fonte é conhecida desde o século XVII e foi remodelada em 1838 em estilo neoclássico. No mesmo ano foi iniciada a construção da Fábrica de Tecidos Santo Antônio do Queimado, movida a força hidráulica e depois a vapor, que produzia 1000 varas de pano dia. Foi uma das duas primeiras fabricas de tecidos da Bahia, conjuntamente com a de Valença dos Lacerdas. Em 1852, o Barão de Cotegipe conseguiu a concessão do abastecimento d’água de Salvador e funda a Cia. de Abastecimento de Água do Queimado, que começou a funcionar em 1856 e chegou a ter 22 chafarizes e fontes na cidade. Como a primeira do gênero no Brasil foi visitada pela família Imperial em 1º/11/1859. A preservação do parque, pertencente a Embasa, muito se deve ao escultor Astor Lima que criou em 1991 o Centro Memória da Água e o acervo Arte/Natureza, com obras doadas pelos mais importantes artistas baianos. O tombamento da fonte e do parque pelo IPHAN, em 1997, se deve a sua persistência.
O projeto de adaptação dos pavilhões da antiga fábrica e Cia. do Queimado à sede do Neojibá é do Studio Butikofer, Oliveira e Vernay, da Suíça, com assessoria do Nagata Acustics, do Japão, responsável pela nova Filarmônica de Paris e o Disney Hall. Custou R$12 milhões, sendo oito do BNDES e quatro do Estado. Melhor que enterrar bilhões em concreto armado. O conjunto compreende um auditório de 140 lugares e cinco salas de ensaios. A boa execução do projeto se deve ao monitoramento do arquiteto baiano Sergio Ekerman. Ainda não foi possível realizar o paisagismo do parque, que deverá diminuir sua área pavimentada em favor de sombras verdes.
Como arquiteto sinto falta de cor e integração com outras artes, com esculturas e o Acervo Arte/Natureza. A nova sede do Nejibá será uma usina musical, com sua chaminé nos despertando todas as manhãs, para cantarmos com Noel: “Quando o apito da fábrica de tecidos/ vem ferir os meus ouvidos/ eu me lembro de você”.
*Professor Catedrático da UFBA
SSA: A Tarde de 28/07/19
No último dia nove foi inaugurado a nova sede do Neojibá, no Parque do Queimado, situado entre a Lapinha e a Caixa d’Água. Trata-se de um projeto de inclusão social de jovens e crianças através da música, idealizado pelo maestro Ricardo Castro, em 2007, e que por sua teimosia se estende hoje por 29 municípios baianos e beneficia 6,5 mil jovens e crianças. O projeto se inspira na experiencia do maestro José Antônio Abreu, que fundou em 1975 o Sistema Nacional de Orquestras e Coros Juvenis da Venezuela, que compreende 180 orquestras, e foi reproduzido em muitos países latino-americanos e nos EUA. Ricardo Castro é pianista premiado na Europa e professor de um grupo de jovens pianistas profissionais na Haute École de Musique de Friburgo, Suíça, mas preocupado com a fragilidade social dos jovens e crianças de sua terra natal.
O Parque do Queimado tem uma longa história. Sua fonte é conhecida desde o século XVII e foi remodelada em 1838 em estilo neoclássico. No mesmo ano foi iniciada a construção da Fábrica de Tecidos Santo Antônio do Queimado, movida a força hidráulica e depois a vapor, que produzia 1000 varas de pano dia. Foi uma das duas primeiras fabricas de tecidos da Bahia, conjuntamente com a de Valença dos Lacerdas. Em 1852, o Barão de Cotegipe conseguiu a concessão do abastecimento d’água de Salvador e funda a Cia. de Abastecimento de Água do Queimado, que começou a funcionar em 1856 e chegou a ter 22 chafarizes e fontes na cidade. Como a primeira do gênero no Brasil foi visitada pela família Imperial em 1º/11/1859. A preservação do parque, pertencente a Embasa, muito se deve ao escultor Astor Lima que criou em 1991 o Centro Memória da Água e o acervo Arte/Natureza, com obras doadas pelos mais importantes artistas baianos. O tombamento da fonte e do parque pelo IPHAN, em 1997, se deve a sua persistência.
O projeto de adaptação dos pavilhões da antiga fábrica e Cia. do Queimado à sede do Neojibá é do Studio Butikofer, Oliveira e Vernay, da Suíça, com assessoria do Nagata Acustics, do Japão, responsável pela nova Filarmônica de Paris e o Disney Hall. Custou R$12 milhões, sendo oito do BNDES e quatro do Estado. Melhor que enterrar bilhões em concreto armado. O conjunto compreende um auditório de 140 lugares e cinco salas de ensaios. A boa execução do projeto se deve ao monitoramento do arquiteto baiano Sergio Ekerman. Ainda não foi possível realizar o paisagismo do parque, que deverá diminuir sua área pavimentada em favor de sombras verdes.
Como arquiteto sinto falta de cor e integração com outras artes, com esculturas e o Acervo Arte/Natureza. A nova sede do Nejibá será uma usina musical, com sua chaminé nos despertando todas as manhãs, para cantarmos com Noel: “Quando o apito da fábrica de tecidos/ vem ferir os meus ouvidos/ eu me lembro de você”.
*Professor Catedrático da UFBA
SSA: A Tarde de 28/07/19
quarta-feira, 10 de julho de 2019
A cidade porto
Osvaldo Campos Magalhães*
Quando os portugueses
localizaram no dia primeiro de novembro de 1501 a enorme ‘Kirimurê’, ou grande
mar, na língua tupinambá, com águas profundas e abrigadas e 233 quilômetros de
litoral, logo escolheram o local como porto natural e local adequado para a
construção da primeira grande metrópole lusitana no novo continente.
O porto cresceu e antes do surgimento dos navios
a vapor e da construção do Canal de Suez chegou a ser o mais movimentado do
Hemisfério Sul. A cidade do Salvador, acompanhando o crescimento do seu porto,
também cresceu e se desenvolveu como grande centro logístico, comercial e
político, tornando-se a primeira capital do Brasil.
O porto natural se constituiu em porto organizado e, através de concessão pública datada do final do século XIX, foi ampliado com o aterro de extensa área que ampliou o bairro do Comércio e possibilitou a construção de armazéns e retro áreas para armazenagem de cargas.
A modernização das embarcações, a transferência da capital para o Rio de Janeiro e as construções dos canais do Suez e Panamá contribuíram para a perda de importância econômica e comercial do porto e da cidade, que passa a crescer em direção ao litoral norte e, literalmente, dá as costas para seu porto.
Apesar de representar uma das principais atividades econômicas e geradoras de emprego numa cidade sem atividades industriais relevantes, o porto nunca recebeu a importância que merece por parte das administrações municipais e estaduais que se sucederam nos últimos 50 anos, chegando-se ao absurdo de se propor a desativação do porto para a movimentação de cargas, proposta seguidamente apresentada por Secretários da Prefeitura de Salvador. Ainda em 18 de junho, as obras de ampliação do Terminal de Conteineres do porto de Salvador foram novamente embargadas pela Prefeitura de Salvador.
O porto natural se constituiu em porto organizado e, através de concessão pública datada do final do século XIX, foi ampliado com o aterro de extensa área que ampliou o bairro do Comércio e possibilitou a construção de armazéns e retro áreas para armazenagem de cargas.
A modernização das embarcações, a transferência da capital para o Rio de Janeiro e as construções dos canais do Suez e Panamá contribuíram para a perda de importância econômica e comercial do porto e da cidade, que passa a crescer em direção ao litoral norte e, literalmente, dá as costas para seu porto.
Apesar de representar uma das principais atividades econômicas e geradoras de emprego numa cidade sem atividades industriais relevantes, o porto nunca recebeu a importância que merece por parte das administrações municipais e estaduais que se sucederam nos últimos 50 anos, chegando-se ao absurdo de se propor a desativação do porto para a movimentação de cargas, proposta seguidamente apresentada por Secretários da Prefeitura de Salvador. Ainda em 18 de junho, as obras de ampliação do Terminal de Conteineres do porto de Salvador foram novamente embargadas pela Prefeitura de Salvador.
A desativação do Porto de
Salvador, não leva em conta a enorme importância econômica do porto para a
cidade e todo o estado da Bahia e que é perfeitamente conciliável a manutenção
da atividade operacional no porto, com ênfase nas operações de contêineres,
equipamentos, trigo e navios de cruzeiros marítimos. Desconhece que o porto de
Salvador possui os melhores acessos terrestre e marítimo entre todos os portos
brasileiros e também a existência de um contrato de concessão recentemente
prorrogado, entre o porto e a empresa Tecon, responsável pela operação de
contêineres, que tem longo prazo de vigência, com vultosos investimentos em
execução e enorme relevância econômica.
Quem conhece algumas cidades portuárias e turísticas como Barcelona, Buenos Aires e Hamburgo sabe que a atividade portuária é vital para a economia dessas cidades e que é perfeitamente conciliável com a atividade turística em áreas do porto, que foram revitalizadas e expandidas.
Lembremos que a atual legislação portuária brasileira permite ao município assumir a gestão do porto, como se verifica nos principais portos europeus e que já ocorre com sucesso no Brasil, mais especificamente em Itajaí, Santa Catarina.
Um dos principais entraves ao crescimento do Porto de Salvador está justamente no desconhecimento por parte do governo da Bahia e da prefeitura de Salvador do enorme potencial econômico representado pela atividade portuária.
Enquanto a administração dos portos públicos baianos está ainda vinculada à administração federal e subordinada ao loteamento político dos cargos de direção da Codeba, os estados de Pernambuco e Ceará colocaram a atividade portuária como estratégica para o desenvolvimento, constituíram enxutas e eficientes empresas estatais que construíram os complexos portuários de Suape e Pecém, fatores de atração de novos empreendimentos industriais para aqueles estados e importantes vetores do crescimento da economia nordestina.
Em vez de propor a desativação do porto, a prefeitura de Salvador deveria reivindicar e assumir a concessão do mesmo, colocando a atividade portuária como estratégica para o desenvolvimento econômico da cidade.
* Osvaldo Campos Magalhães é engenheiro e Mestre em Administração. Membro do Conselho de Infraestrutura da Fieb e do Conselho de Administração da Codeba, escreveu a Tese "Portos & Competitividade", NPGA/Ufba, 1994.
** Artigo também publicado no jornal Correio da Bahia
Quem conhece algumas cidades portuárias e turísticas como Barcelona, Buenos Aires e Hamburgo sabe que a atividade portuária é vital para a economia dessas cidades e que é perfeitamente conciliável com a atividade turística em áreas do porto, que foram revitalizadas e expandidas.
Lembremos que a atual legislação portuária brasileira permite ao município assumir a gestão do porto, como se verifica nos principais portos europeus e que já ocorre com sucesso no Brasil, mais especificamente em Itajaí, Santa Catarina.
Um dos principais entraves ao crescimento do Porto de Salvador está justamente no desconhecimento por parte do governo da Bahia e da prefeitura de Salvador do enorme potencial econômico representado pela atividade portuária.
Enquanto a administração dos portos públicos baianos está ainda vinculada à administração federal e subordinada ao loteamento político dos cargos de direção da Codeba, os estados de Pernambuco e Ceará colocaram a atividade portuária como estratégica para o desenvolvimento, constituíram enxutas e eficientes empresas estatais que construíram os complexos portuários de Suape e Pecém, fatores de atração de novos empreendimentos industriais para aqueles estados e importantes vetores do crescimento da economia nordestina.
Em vez de propor a desativação do porto, a prefeitura de Salvador deveria reivindicar e assumir a concessão do mesmo, colocando a atividade portuária como estratégica para o desenvolvimento econômico da cidade.
* Osvaldo Campos Magalhães é engenheiro e Mestre em Administração. Membro do Conselho de Infraestrutura da Fieb e do Conselho de Administração da Codeba, escreveu a Tese "Portos & Competitividade", NPGA/Ufba, 1994.
** Artigo também publicado no jornal Correio da Bahia
Museu da Cultura Brasileira*
Osvaldo Campos Magalhães*
O Museu da Língua Portuguesa, em São Paulo, com projeto formulado pelo antropólogo baiano Antônio Risério, introduziu um novo conceito museográfico, que aliou tecnologia e educação, com uma narrativa audiovisual e ambientes imersivos. Apesar de atualmente fechado, em decorrência de um incêndio ocorrido em 2015, deverá ser reaberto em 2020, totalmente restaurado e atualizado. Vencedor de vários prêmios internacionais, o museu, durante dez anos de funcionamento recebeu mais de quatro milhões de visitantes.
O conceito introduzido pelo Museu da Língua Portuguesa é hoje referência internacional e deve balizar novos projetos ainda em fase de planejamento e conceptualização.
Em Lisboa, há mais de duas décadas, se discute a implantação de um museu dedicado à saga dos descobrimentos portugueses. Recentemente, numerosas controvérsias foram lançadas dizendo respeito principalmente ao nome e ao enfoque temático do museu. Se no passado a palavra “descobrimento" era aceita pacificamente, hoje em dia já não encontra respaldo entre estudiosos e especialistas no tema.
Nos últimos anos numerosos museus em diferentes lugares do mundo, têm sido espaços que divulgam novas formas de compreender a história, seja através de instalações permanentes, seja através de exposições temporárias. Os exemplos são variados e podemos destacar o National Museum of American History and Culture, em Washington, o International Slavery Museum em Liverpool e o museu Bartolomeu Dias na África do Sul.
Também em Salvador, primeira cidade e capital do Brasil, já se discute a oportunidade e viabilidade de se implantar um “Museu do Descobrimento”. Se a Saga Portuguesa teve origem em Lisboa, foi no litoral baiano que esta se configurou com maior impacto histórico. Salvador hoje detém o maior conjunto arquitetônico da época colonial e abriga, melhor que qualquer outra cidade do Brasil, um magnífico acervo cultural representativo das principais culturas que vieram a constituir nossa Nação.
Assim como ocorre em Lisboa, o termo Museu do Descobrimento se mostra inadequado e superado. Melhor seria a implantação de um museu voltado para a compreensão da formação da cultura brasileira, com o encontro dos exploradores portugueses com os ameríndios e posteriormente com populações de africanos trazidos para o Brasil, sendo então concebido dentro dessa visão de integração de culturas.
Poderia se pensar para Salvador num Museu da Formação da Cultura Brasileira, inspirado no Museu da Língua Portuguesa, explorando inicialmente, as vertentes das culturas ameríndia, portuguesa e africana.
O grande desenvolvimento da tecnologia de navegação portuguesa, com ênfase nas grandes embarcações e instrumentos que possibilitaram a navegação transoceânica, as novas rotas de navegação e o comércio de especiarias.
A cultura dos ameríndios que habitavam o Brasil na época da chegada dos conquistadores portugueses, com ênfase nos povos que habitavam na região que hoje constitui o estado da Bahia, principalmente as regiões de Porto Seguro e Salvador. A cultura dos povos indígenas atuais do Brasil, com destaque para a utilização de meios audiovisuais e interativos.
A riqueza cultural dos povos africanos, sua culinária, adereços, dança, música e tradições religiosas. O Candomblé, a Capoeira, e o Samba. Instrumentos musicais como o berimbau, cuíca, afoxé, atabaque, tambores e caxixi.
Exposições temporárias poderiam expor o vasto acervo dos povos ameríndios existentes em outros museus de países latino americanos, com destaque para mostras do Peru, México e Bolívia. O mesmo poderia ser feito em relação a museus africanos e de países onde a Saga dos Descobrimentos portugueses também ocorreu, com destaque para o Museu Bartolomeu Dias na África do Sul, o Museu de Jakarta na Indonésia e o Museu da América em Madrid.
A implantação do Museu seria importante fator para uma melhor compreensão da formação da cultura brasileira e para o desenvolvimento do turismo em Salvador.
A implantação do Museu seria importante fator para uma melhor compreensão da formação da cultura brasileira e para o desenvolvimento do turismo em Salvador.
*Engenheiro Civil e Mestre em Administração. Membro do Conselho de Infraestrutura da FIEB;
** Artigo também publicado no jornal Correio da Bahia
** Artigo também publicado no jornal Correio da Bahia
terça-feira, 18 de junho de 2019
Cidades Criativas - O Case de Salvador
Com a crescente influencia de novas tecnologias e do mundo digital, conectadas à multipolarização internacional, as assimetrias entre as economias globais foram tomando maiores proporções. Como consequência, a ideia clássica de trabalho se tornou obsoleta e o desemprego, uma realidade. A desigualdade social ainda é crescente em face às diversas crises econômicas internacionais e a necessidade de se reinventar é necessária.
A era digital vem alterando significativamente não somente as relações pessoais, mas também a forma como produzimos e trocamos bens, serviços e até mesmo cultura. O surgimento e o fortalecimento, a partir do Século XX, de uma indústria global de consumo cultural, tecnológico, inovador e criativo é o contexto propício para a discussão de um novo e importante ramo da economia e as indústrias que dela derivam, as criativas.
Existe, portanto, um entendimento da “economia criativa” como uma porção significativa e exponencial da economia global. Governos, sociedade civil organizada dos setores criativos ou não, a população em geral, todos estão tomando consciência da importância do seu papel como fonte de empregos, de riqueza e de compromisso com a promoção e difusão cultural.
A criatividade utilizada como ativo econômico tanto é capaz de movimentar a economia, reduzir desigualdades e fortalecer a produtividade da sociedade quanto como pode construir barreiras que dividem o mundo entre aqueles que possuem acesso ao mundo digital e dinâmico e aqueles que continuam no modelo pré-industrial de força de trabalho pautada no labor.
Em todo o globo, países estão se movimentando para desenvolver e proteger sua produção criativa, estimulando seu crescimento através de políticas públicas e de cooperação a partir da inserção em redes internacionais com foco em indústrias criativas e promovendo a exportação de seus ativos criativos.
Informações publicadas nos sites da Organização Mundial do Comércio (OMC) e da Organização das Nações Unidas (ONU) informam que o faturamento das indústrias criativas no mercado internacional duplicou no início dos anos 2000 sendo responsável por 7% das riquezas produzidas no mundo.
Neste contexto, a fim de demonstrar a potencialidade das indústrias criativas, podemos analisar o caso de Salvador, que ao utilizar a música como instrumento de internacionalização e vetor do desenvolvimento local, evidenciou sua a música como ativo econômico local. Para tanto, a cidade construiu um plano de ação para identificar resultados obtidos pelas iniciativas desenvolvidas a partir de sua entrada na Rede de Cidades Criativas da UNESCO, em 2015, no âmbito da Música.
O intuito das ações planejadas, âmbito da indústria criativa da música, é servir de propulsor para muitas outras ações, dentro ou não da Rede, para atingir os objetivos propostos na candidatura do título de Cidade Criativa, com foco principal em projetos e iniciativas que promoveram a troca de experiências e de recursos com outras cidades.
A música tem o poder de gerar crescimento econômico, incrementar a arrecadação de impostos, criar empregos, fomentar turismo, atrair grandes talentos e contribuir para o desenvolvimento sustentável cultural e social da cidade. Em termos econômicos, demonstrados por dados da UNESCO em 2015, as indústrias criativas capitalizaram US$2,250 trilhões e geraram aproximadamente 30 milhões de empregos, ambos em escala global. Fazendo um recorte para a indústria criativa da música, a UNESCO destaca que, no total global supracitado, a música contribuiu com a receita de US$65 bilhões e, aproximadamente, 4 milhões de empregos.
Desta forma, é de extrema importância e valia que cidades estimem, mapeiem e criem estratégias para identificar seu ecossistema criativo, seja no âmbito da música ou não, maximizando o valor de sua criatividade.
A era digital vem alterando significativamente não somente as relações pessoais, mas também a forma como produzimos e trocamos bens, serviços e até mesmo cultura. O surgimento e o fortalecimento, a partir do Século XX, de uma indústria global de consumo cultural, tecnológico, inovador e criativo é o contexto propício para a discussão de um novo e importante ramo da economia e as indústrias que dela derivam, as criativas.
Existe, portanto, um entendimento da “economia criativa” como uma porção significativa e exponencial da economia global. Governos, sociedade civil organizada dos setores criativos ou não, a população em geral, todos estão tomando consciência da importância do seu papel como fonte de empregos, de riqueza e de compromisso com a promoção e difusão cultural.
A criatividade utilizada como ativo econômico tanto é capaz de movimentar a economia, reduzir desigualdades e fortalecer a produtividade da sociedade quanto como pode construir barreiras que dividem o mundo entre aqueles que possuem acesso ao mundo digital e dinâmico e aqueles que continuam no modelo pré-industrial de força de trabalho pautada no labor.
Em todo o globo, países estão se movimentando para desenvolver e proteger sua produção criativa, estimulando seu crescimento através de políticas públicas e de cooperação a partir da inserção em redes internacionais com foco em indústrias criativas e promovendo a exportação de seus ativos criativos.
Informações publicadas nos sites da Organização Mundial do Comércio (OMC) e da Organização das Nações Unidas (ONU) informam que o faturamento das indústrias criativas no mercado internacional duplicou no início dos anos 2000 sendo responsável por 7% das riquezas produzidas no mundo.
Neste contexto, a fim de demonstrar a potencialidade das indústrias criativas, podemos analisar o caso de Salvador, que ao utilizar a música como instrumento de internacionalização e vetor do desenvolvimento local, evidenciou sua a música como ativo econômico local. Para tanto, a cidade construiu um plano de ação para identificar resultados obtidos pelas iniciativas desenvolvidas a partir de sua entrada na Rede de Cidades Criativas da UNESCO, em 2015, no âmbito da Música.
O intuito das ações planejadas, âmbito da indústria criativa da música, é servir de propulsor para muitas outras ações, dentro ou não da Rede, para atingir os objetivos propostos na candidatura do título de Cidade Criativa, com foco principal em projetos e iniciativas que promoveram a troca de experiências e de recursos com outras cidades.
A música tem o poder de gerar crescimento econômico, incrementar a arrecadação de impostos, criar empregos, fomentar turismo, atrair grandes talentos e contribuir para o desenvolvimento sustentável cultural e social da cidade. Em termos econômicos, demonstrados por dados da UNESCO em 2015, as indústrias criativas capitalizaram US$2,250 trilhões e geraram aproximadamente 30 milhões de empregos, ambos em escala global. Fazendo um recorte para a indústria criativa da música, a UNESCO destaca que, no total global supracitado, a música contribuiu com a receita de US$65 bilhões e, aproximadamente, 4 milhões de empregos.
Desta forma, é de extrema importância e valia que cidades estimem, mapeiem e criem estratégias para identificar seu ecossistema criativo, seja no âmbito da música ou não, maximizando o valor de sua criatividade.
*Associada Executiva no CEERI - Centro de Estudos e Estratégias em Relações Internacionais
segunda-feira, 17 de junho de 2019
Salvador é a cidade eleita para sediar Encontro das Cidades Criativas da Unesco
A capital baiana ganhou a disputa e vai sediar a terceira edição do Ecriativa, o Encontro das Cidades Criativas da Unesco. A vitória foi anunciada durante o evento que, este ano, aconteceu em Florianópolis e reuniu os representantes das oito cidades brasileiras com o selo de cidades criativas, concedido pela organização. O evento tem o objetivo de promover a conexão entre as cidades que têm a criatividade como estratégia para o desenvolvimento.
“Salvador é uma cidade reconhecida internacionalmente pelo seu potencial criativo e temos trabalhado muito para fomentar o desenvolvimento de novos projetos e a estruturação da economia criativa na cidade. Essa conquista revela todo o trabalho que vem sendo desenvolvido pela Prefeitura, através do eixo Cidade Criativa, do programa Salvador 360”, celebra o secretário municipal de Desenvolvimento e Urbanismo (Sedur), Sérgio Guanabara.
Durante o encontro, as oito cidades participantes, Salvador (música), Florianópolis, Belém e Paraty (gastronômico), Brasília e Curitiba (design), João Pessoa (artesanato) e Santos (Cinema), tiveram a oportunidade de discutir estratégias e políticas públicas para o setor. Além disso, puderam trocar experiências e apresentar instrumentos de fomentação da economia criativa.
O diretor de Parceria Público-Privada da Sedur, Gustavo Menezes, apresentou o projeto que visa tornar a capital baiana o polo de criatividade brasileira. “A criatividade do soteropolitano é pulsante e precisa de um espaço que possa estruturar e fomentar isso. Pensando nisso, Salvador vai ganhar um novo Hub, mas dessa vez com foco na economia criativa que vai contemplar ações voltadas para música, fotografia, design, gastronomia”, explica. “A estrutura, que vai funcionar no Comércio será entregue em 2020”, completa Menezes.
Atualmente, 180 cidades de 72 países fazem parte da Rede Mundial de Cidades Criativas da UNESCO. Durante o evento, os representantes das oito cidades criaram a Rede Brasileira e Salvador foi eleita também a coordenadora geral do grupo. “Essa conquista permite que Salvador assuma um protagonismo na economia criativa e desenvolva um papel importante de intermediação dos interesses das cidades e os principais agentes seja na esfera municipal, estadual ou internacional”, ressalta Guanabara”.
REDE DE CIDADES CRIATIVAS
REDE DE CIDADES CRIATIVAS
A Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (UNESCO) criou em 2004 sua Rede de Cidades Criativas para promover a cooperação com e entre as cidades que identificaram a criatividade como um fator estratégico para o desenvolvimento urbano sustentável. A rede também está comprometida com o desenvolvimento da Agenda para o Desenvolvimento Sustentável 2030 e seus objetivos são:
- Fortalecer a criação, produção, distribuição e divulgação de atividades, bens e serviços culturais;
- Estimular e reforçar as iniciativas lideradas pelas cidades-membros para tornar a criatividade um componente essencial do desenvolvimento urbano por meio de parcerias entre os setores público e privado e a sociedade civil;
- Desenvolver polos de criatividade e inovação e ampliar as oportunidades para criadores e profissionais do setor cultural;
- Melhorar o acesso e a participação na vida cultural, bem como o aproveitamento dos bens e serviços culturais, nomeadamente para os grupos e indivíduos marginalizados ou vulneráveis;
- Integrar plenamente a cultura e a criatividade no desenvolvimento de planos e estratégias locais.
sexta-feira, 7 de junho de 2019
Othon Bastos homenageado em Salvador
O ator baiano Othon Bastos recebeu hoje à noite o título de Cidadão de Salvador, no Plenário Cosme de Farias, na Câmara Municipal de Salvador (CMS).
O título foi proposto pelo vereador Marcos Mendes (Psol), que preside a sessão solene de outorga.
Othon Bastos nasceu em Tucano, no interior do estado, integrou a primeira turma de alunos da Escola de Teatro da Universidade Federal da Bahia (Ufba)
O ator comemora 86 anos de uma vida quase inteiramente dedicada às artes. São mais de seis décadas interpretando personagens marcantes no teatro, no cinema e na televisão. Uma média de 70 filmes – entre curtas e longas- metragens –, 90 papéis em novelas e seriados, e 20 espetáculos teatrais.
Othon José de Almeida Bastos nasceu dia 23 de maio de 1933 em Tucano, município no Nordeste da Bahia. Na infância, pensou em ser piloto da Aeronáutica ou dentista; a vocação para as artes só veio bem mais tarde, quase que por acaso. Aos 17 anos, montou um espetáculo de brincadeira no colégio. Nele, Othon servia de "ponto" aos colegas. A peça era uma paródia de “Otelo”, escrita por Ronald Chevalier. Antes de entrar em cena, o ator que interpretaria Iago – ninguém menos que o futuro produtor de TV Walter Clark – desistiu de entrar em cena.
– Roniquito então me pediu para substituí-lo, pois era o único que sabia todas as falas. Eu disse: “Mas não sou ator!”, e ele nem ligou. Acabei fazendo o papel. Na plateia, tinha um rapaz cujo irmão estudava na escola do autor Paschoal Carlos Magno. Ele gostou do meu trabalho e me apresentou ao Paschoal. Entrei na escola como ouvinte e nunca mais deixei de fazer teatro – lembra Othon.
O jovem ator então fixou residência no Rio de Janeiro, onde integrou o grupo Teatro Duse. Seu primeiro espetáculo foi “Terra Queimada” (1951), de Aristóteles Soares. Alguns anos mais tarde, foi estudar teatro em Londres. Quando voltou ao Brasil, em 1956, foi dirigir a recém-fundada Escola de Teatro da Universidade da Bahia. Lá, faz “As Três Irmãs” (1958), de Anton Tchekov; "Um Bonde Chamado Desejo" (1959), de Tennessee Williams; e "Auto da Compadecida" (1959), de Ariano Suassuna.
Em 1960, Othon sai da Escola para fundar – associado ao crítico teatral João Augusto de Azevedo – a Companhia Teatro dos Novos. Integrada por sete artistas, inicialmente se chamaria de Teatro dos Sete, mas o nome foi dado antes ao grupo do diretor Gianni Ratto, formado por nomes como Fernanda Montenegro, Sérgio Britto, Ítalo Rossi e Fernando Torres. A partir daí, o novo grupo baiano empenhou-se durante um longo tempo na construção do Teatro Vila Velha. Nessa época, Bastos conheceu a atriz Martha Overbeck, com quem se casaria.
– Éramos todos novos. Novos de idade, de ideologia de pensamento. Daí o nome do grupo. O Teatro Vila Velha levou quase quatro anos para ser construído. Fazíamos bingos, leilões de quadros de artistas plásticos baianos. O governador da época, Juracy Magalhães, apesar de ser de direita, ajudou muito na construção, oferecendo a estrutura metálica e o telhado. Também tínhamos um prefeito de esquerda, Virgildásio de Senna, que forneceu as cadeiras de um cinema velho que seria demolido. Com o nosso dinheiro, compramos aos poucos luz e cenário. Até que conseguimos construir um teatro de 700 lugares. Naquela época, ninguém ganhava nada. Era mais a dedicação à arte mesmo – destaca o ator, que precisou trabalhar durante três anos no Departamento de Turismo da Prefeitura para se sustentar.
Durante esse processo, o inquieto ator decidiu se aventurar na carreira cinematográfica. Em 1960, atuou como um caminhoneiro em “Sol sobre a Lama”, filme do cineasta e teórico de cinema Alex Viany. No mesmo ano, viveu um jornalista em “O Pagador de Promessas”, de Anselmo Duarte. A consagração, porém, vem com o cangaceiro Corisco, em “Deus e o Diabo na Terra do Sol”. O clássico de Glauber Rocha se transformou no símbolo do Cinema Novo e foi um divisor de águas na carreira de Othon Bastos.
– A migração para o cinema foi uma coisa automática. A grande escola é o teatro, que te dá base para fazer cinema, televisão, circo. Não tenho a menor dúvida que o teatro é minha plataforma preferida. Para mim, a vida é teatro. É ele que te permite fazer tudo. O ator precisa ter todas essas experiências de interpretação, não pode se limitar somente a uma coisa – acredita Othon, que diz aceitar apenas os trabalhos que realmente lhe interessam. – Não faço questão de aumentar meu currículo com números. Faço apenas o que gosto de fazer. Por exemplo, depois de “Deus e o Diabo”, passei mais de três anos sem fazer cinema. Por causa do Corisco, só me chamavam para fazer cangaceiros, assassinos, bandidos, estupradores (risos)... Já tinha feito um e era suficiente para toda a minha vida!
Depois que o Teatro Vila Velha ficou pronto, Othon Bastos trabalhou nele durante dois anos. Em 1967, decidiu voltar para o Sudeste, dessa vez para São Paulo, a convite do Teatro Oficina, de José Celso Martinez Corrêa. Encena os espetáculos “Galileu Galilei” (1968) e “Na Selva das Cidades”, ambos de Bertold Brecht. No cinema, faz o papel de Bentinho, em “Capitu” (1968); é o Professor, em “O Dragão da Maldade contra o Santo Guerreiro” (1969); é o Homem, em “Os Deuses e os Mortos” (1970); e Paulo Honório, em “São Bernardo” (1972) – considerado pelo ator o longa metragem mais importante de sua vida.
Ao lado de sua mulher, Martha, funda a Othon Bastos Produções Artísticas em 1972. Ao longo da década de 70, o grupo se empenha na defesa da liberdade de expressão, criando um repertório de resistência. A estreia acontece com “Castro Alves Pede Passagem”, com direção de Gianfrancesco Guarnieri. Depois, Othon encena “Um Grito Parado no Ar” (1973), com a qual é premiado como melhor ator pelo Molière e Associação Brasileira de Críticos Teatrais (ABCT). Em seguida, mais um texto de Guarnieri: “Ponto de Partida” (1976). Além do dramaturgo ítalo-brasileiro, outros grandes nomes se juntam ao grupo, como Renato Borghi, Augusto Boal e Paulo José.
Sua trajetória na televisão também é bastante rica, tendo início na década de 50, quando participou do Grande Teatro Tupi (1956). Depois de diversos papéis na primeira emissora brasileira, entrou na Rede Globo em 1979, quando fez um especial “Vestido de Noiva”, inspirado na obra de Nelson Rodrigues. É bastante lembrado pelo papel de Ronaldo César, de “Roque Santeiro” (1985). Desde 2000, fez quase uma novela ou seriado por ano, sendo a última “Amor Eterno Amor”, em 2012.
– Cada filme ou peça que você faz, há uma entrega grande para os personagens. Todos eles deixam saudade. É uma coleção de lembranças. Vou relembrando como se fosse um álbum. Mas não posso viver dos trabalhos que já fiz. O passado é passado, já ficou. Vivo do que faço hoje e aiOthon Bastos participou de dois longas nacionais que concorreram ao Oscar de Melhor Filme Estrangeiro: “O que é Isso, Companheiro” (1997), de Bruno Barreto; e “Central do Brasil” (1998), de Walter Salles, no qual vivia outro caminhoneiro e contracenou com Fernanda Montenegro. Com uma trajetória tão rica, marcada por tantos tipos diferentes, não há um personagem específico que o ator ainda queira interpretar.
– Todo mundo da minha época já teve vontade de fazer “Hamlet”. Mas sempre pensei muito nos autores e personagens brasileiros. Nunca precisei de personagens fantásticos de outras civilizações. Eu me interesso em fazer tipos brasileiros, representar minha vida e o lugar onde moro. Ao mesmo tempo, este ano fui chamado para fazer duas peças que são muito interessantes. Uma é “Disque M para Matar”, que já virou até filme pelas mãos de Hitchcock, com uma tradução belíssima do Domingos de Oliveira. Outra tem um título fantástico, “O Defunto Comunista”, que traz uma reflexão incrível para os dias de hoje. Na verdade, para me conquistar, o texto tem que ser rico, chamar minha atenção.
Aos 86 anos, o ator não pensa em parar. Integrando o elenco da série "Os Carcereiros", na Rede Globo, já no segundo ano, Othon tem planos para o futuro, um novo filme quem sabe,
– É preciso sempre caminhar em frente. Nestes 86 anos, conheci pessoas maravilhosas, fiz amigos e tive ótimos colegas de profissão. Também cruzei com pessoas insuportáveis. Mas é como dizem: “As amargas, não”. Para que pensar nas coisas ruins? O importante é seguir e esquecer o que te afeta. Quem olha para trás é estátua de sal (risos). O que pensam de você, não é você. Às vezes, nem mesmo o que você pensa é. Você é o agora. Amanhã já será completamente diferente. E o ontem... bem, este já passou.
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