segunda-feira, 29 de novembro de 2010

Salvador: planejamento urbano e emburrecimento humano

Gil Vicente Tavares*
Há um tempo, estava eu andando pelo bairro do Comércio, nas ruas mais de dentro, quando começou a chover. Como dificilmente andamos de guarda-chuva, pela imprevisibilidade do tempo, fui me abrigar num daqueles casarões antigos. Como observador contumaz que sou, acabei reparando na beleza de prédios abandonados, escondidos sob fachadas, espremidos entre arranha-céus feios e sem personalidade.
O crescimento imobiliário em Salvador é assustador. Novos prédios cheios de opções de lazer internas, caríssimos e seguindo um padrão arquitetônico do tipo; “estás em qualquer lugar”, num instante colocam em sua fachada um 100% vendido.
Salvador cresce errada, desordenada e desorganizada como uma capital do porte da nossa não poderia crescer. Pela capacidade intelectual e criativa de acadêmicos, profissionais e tantos outros, algo já devia ter sido feito pra frear essa destruição da nossa cidade.
Mas, somada à displicência dos que poderiam atuar em prol de Salvador, vemos uma burrice tomando conta da cidade, uma ignorância e estupidez que se reflete, como na cultura, em sua arquitetura e urbanismo, também.
Salvador é uma cidade histórica que dá as costas à sua história. Na Europa, vemos os centros urbanos, com seus prédios antigos, sendo tomados pela iniciativa privada e por moradores ávidos por morar no coração da cidade. Isso acarreta uma natural valorização, revitalização e cuidado com prédios históricos, sítios importantes.
Não há interesse por esse centro da cidade. A classe consumidora de Salvador quer fugir de sua identidade, se aglomerando em volta dos centros comerciais e escritórios em prédios de vidro fumê do Itaigara, Iguatemi, e vão invadindo a Avenida Paralela, derrubando nossa mata atlântica, e cada vez mais fugindo da Salvador real, palpável, sólida. Há um apartheid cultural que isola essas pessoas num mundo pasteurizado e retardado, pois vemos a mistura de gerações com seus 30, 40, 50 anos frequentando aquelas festas adolescentes em Sauípe, Praia do Forte, fazendo programas inacreditáveis para adultos de média capacidade intelectual, enfim, um soteropolitano estúpido tem o domínio da economia da cidade em suas mãos. E despeja muito dinheiro em seus programas fúteis e únicos (pois, afinal, todos nós precisamos e temos momentos de futilidade também).
Já passou da hora de resolvermos problemas de trânsito e de urbanismo em geral. Nossas avenidas de vale já mereciam, há mais tempo, vias expressas pra ônibus, menos semáforos e mais alternativas de cruzamento para o pedestre, como passarelas pelo alto ou subterrâneas. Precisamos, urgentemente, criar viadutos e pistas alternativas que desafoguem o trânsito. Precisamos, esteticamente, resolver a cara da cidade. E tenho certeza que a cara de Selvador não são aqueles postes azuis que empesteiam nossas avenidas.
Não há, também, ideia de se criar mais espaços pra estacionamentos, nem tampouco se pensam lugares para se respirar, em Salvador. Faço sempre a provocação que se fizéssemos com nossas praças o que Lisboa fez com suas estações de metrô, seria genial. Convidaríamos grandes escultores, artistas plásticos e arquitetos para assinar as praças da cidade. Teríamos praças mais criativas, empolgantes, e que virariam, também, cartões postais da cidade. Basta ver os orixás de Tati Moreno no Dique do Tororó pra vermos que intervenções de artistas e pensadores que dialoguem com a cidade são fundamentais para valorizar seu espaço urbano.
Bem que essa classe média, sedenta pelos novos empreendimentos imobiliários, e as construtoras poderiam investir no centro da cidade, reformando prédios antigos, embelezando nossos pontos e construções turísticos, dialogando com nossa história e cobrando maior atenção do poder público, sempre estúpido e burro, que prefere acimentar uma calçada a colocar dignamente as pedras portuguesas que a embelezavam.
Mas enquanto todos vão deixando a alma da cidade se esvair no descaso, burrice e falta de visão de seus gestores – por um lado – , por outro continuará havendo moradores da cidade doidos pra se afastar dela, criar uma realidade vazia, rasa, e expandir a cidade rumo à destruição de sua identidade e cultura.
Dizem que Salvador vive sob um plano urbanístico que remonta à década de 60. Como se não estivesse, por trás dos planos urbanísticos da cidade, catástrofes históricas em prol de interesses, como a derrubada da Igreja da Sé de Salvador – sim, um marco histórico que foi derrubado para a passagem de uma linha de bonde que, obviamente, nem existe mais; enquanto vemos castelos mediavais sendo cuidados e tombados, valorizados e respeitados.
Savador tem um potencial turístico e um patrimônio histórico sensacional. Vemos cidades que se apegam a uma igreja, a um teatro, a uma praça, a um artista, pra se vender turística e culturalmente pro mundo. Aqui, pululam belezas e monumentos sufocados pela idiotice e falta de visão.
Estamos a quatro anos da Copa. Muito dinheiro será investido em Selvador. Mas os poderes públicos, empreiteiras e empresários vão desviar, no mínimo, 70% dessa verba e construir metade ou um terço do que foi acordado. Basta ver o exemplo de nosso metrô; aquela palhaçada.
O que mais me desespera é que a impunidade dos ladrões, a falta de planejamento dos estúpidos, e a ignorância dos consumidores me deixa sem perspectivas de mudança, melhora, reviravolta. Algo precisa ser feito pela cidade. É preciso gente, bastante gente, que assuma essa responsabilidade de forma agressiva e decisiva. Onde a cidade encontrará isso?
Em você, caro leitor?
*Dramaturgo e ator

Lembranças da Mombaça

Oliveiros Guanais*
Durante um longo período, a família Coni Campos e seu anexos íamos muito à Mombaça, em datas certas: semana santa, S. João, festa de São Francisco. Eram três, quatro dias de oração e penitência (uísque, cerveja, mesa permanentemente cheia, coisas de festa...).
A família era subordinada a D. Belita, a matriarca siciliana da trupe, a quem todos respeitavam e reverenciavam. Eu tinha um papel nessa história: era o que mais bebia, mais falava, mais discutia. Eu animava as festas, e nisso não há modéstia.
A festa de São Francisco não nos agradava muito porque era muito concorrida, a casa ficava cheia demais, muita gente desconhecida circulando. Além disso, a devoção contínua, enchia o saco da gente, ficávamos o tempo todo ouvindo aquele hino chato e falso: “Viva São Francisco, Com sua nobreza, Retrato de Cristo, É o pai da pobreza... Outra vez... e outra vez... agora na voz de Teodora...depois na voz de Sá Joana... Desde a véspera, as arrumações começavam. Gambiarras, barracas, música, foguetes, viva São Francisco...
Numa dessas festas, 4 ou 5 barracas foram arrumadas, iluminadas, forradas de pano de jogo na noite de véspera. E no outro dia as atividades tiveram início e desenvolvimento. Eu andava de bermuda pra lá e pra cá, descalço, um uísque atrás do outro. Magnífico desempenho!. Conversava com um, conversava com outro, apreciava o movimento.
Nossos garotos brincavam de tudo. Um deles, o Marcos Bulcão, baixinho na época, ruivo, cara suja, era só excitação. Passava correndo de um lado para outro, entrava na casa, estava feliz e vitorioso: tio, já ganhei 12 cruzeiros(ou cruzados? Ou que diabo de dinheiro era? Era um bom dinheiro nas mãos de uma criança.) E depois: tio, já ganhei 22 cruzeiros. Mas depois foi mudando a conversa: começou a perder. Perdeu tudo e voltou triste, jogador acabado. Quando me contou sua derrota total, resolvi entrar em cena. Vou tomar providência. E dirigi-me par a barraca em que ele jogava- eu continuava de bermuda, pés descalços,desarrumado todo, como já disse antes— e na barraca fui recebido com festa pelo homem do jogo:
—uma fezinha aí, patrão. –Fezinha ? eu quero é o alvará.—Que alvará? –O alvará que dá licença a vocês de estarem aqui promovendo jogo em ambiente público, no meio da rua e aceitando a participação de crianças nessa história. Isto é contravenção penal. Eu quero o alvará... E mal terminara de pronunciar de novo esta palavra já ouvia os gritos: sai daí menino, vão embora meninos...E a esse tempo já estava presente um homem de roupa preta , toda preta, com paletó e gravata dando esporro nos meninos e todo atencioso comigo: — o senhor sabe, doutor, não tem jeito para esses meninos: sai daí menino!. Vocês estão transgredindo a lei, insisti. Vou lavrar o auto de infração. E com andar trôpego me dirigi para a casa, gastei tempo rabiscando, com letra trêmula (etilismo acumulado) um texto cheio de ciência jurídica ou policial, não sei, e retornei ao lugar para apresentar aos infratores e complicar a vida deles (Assim procedia, quase rindo de tudo, e sem medo nenhum daqueles homens que podiam ser perigosos porque viviam daquilo).
Mas aconteceu um milagre; não havia barraca nenhuma. Sumiram todas. Ou não havia barraca mesmo, e eu delirava por efeito do álcool? No outro dia o comandante do grupo, o que estava de roupa preta, abordou João Coni, o Jonga, primo de minha mulher e figura conhecida e de prestígio na localidade e perguntou, apontando para mim que ia passando à distância:
—Seu Jonga, quem é aquele homem que ontem acabou com o nosso jogo? Jonga, que já sabia de história, fez mistério: eu não sei não. Ouvi falar que é da Polícia Federal. Seu Jonga, suplicou o chefe da jogatina, peça a ele pra deixar a gente fazer nosso joguinho, a gente precisa ganhar a vida...
*Oliveiros Guanais de Aguiar, colaborador deste blog, nasceu em Caetité e foi presidente da UNE (1960-1961). Médico anestesiologista, foi membro do Conselho Federal de Medicina. Faleceu em Salvador em 21/11/2010;

sábado, 27 de novembro de 2010

"Partir cést mourir un peu"

Oliveiros Guanais*
Gosto muito deste rondó, aliás, do verso "Partir c'est mourir un peu", que conheci numa canção antiga (década de 60) de Yves Montand.
No rondó famoso de Edmond Haraucourt, intitulado “Rondel de l’Adieu”, o tema é tratado de forma bonita o que fez a fama do poeta que é lembrado apenas por esta composição:
“Partir c´est mourir un peu",
Traduzir?

Poesia e música não se traduzem, mas vamos lá:

“Partir é morrer um pouco,
É morrer para aqueles que amamos
Deixamos um pouco de nós mesmos’
Nas horas e lugares onde estamos”
“É sempre a marca de uma dor extrema
O verso derradeiro de um poema;
Partir é morrer para aqueles que amamos”.
"A partida acontece: isto é um jogo,
E até o adeus final
É a alma que vamos semeando,
Semeando em cada adeus que damos
Partir é morrer um pouco"

"Feur au fusil, tambour battant, il va
Il a vingt ans et un cour d’amant qui bat,
Um adjudant pour surveiller ses pas,
E son barda contre ses flancs qui bat
Partir, pour mourir um peu
A la guerre, à la guerre."
É notório que podemos nascer ou não.
Uma serie de circunstâncias determinam o ato de virmos ao mundo.
Então, nascer é um ato contingente, não é um ato necessário não. Tudo mais que acontece na vida depende de fatores aleatórios.
Podemos ser altos ou baixos, gordos ou magros, ricos ou pobres, tudo tem seu aposto. Só uma coisa atinge a todos e não diminui ninguém: a morte. É de todos os seres vivos, e pode ser chorada por uns, festejada por ninguém.
Pode-se morrer no campo de batalha, lutando por uma causa.
E no dia seguinte as ruas do mundo estarem cheias de manifestações, de cartazes de energia humana transbordante, como se deu com Che Guevara.
Pode-se morrer jovem, de acidente, e não há ser ordinário capaz de externar satisfação pela ocorrência.
Pode-se morrer com 103 anos, com aconteceu com Barbosa Lima Sobrinho, e todos admiravam sua lucidez, escrevendo semanalmente para um jornal carioca até o fim de sua vida.
Pode-se até morrer de suicídio e morrer com grandeza, como aconteceu com Getúlio Vargas, que produziu, com sua morte voluntária, uma inflexão na historia do Brasil na década de 50.
Dessa forma, a vida é uma trajetória que tem o marco de chegada, que ninguém vê nem sabe onde está, mas que todos nós atingimos.
Dessa forma, somos iguais.
*Oliveiros Guanais, falecido em 21/11/2010, escreveu este texto em Salvador, 13 de setembro de 2006.

sexta-feira, 26 de novembro de 2010

Como a mobilidade pública se deteriora em beneficio do setor privado

Clement Vialle*
Pode-se perguntar como o sistema atual de mobilidade soteropolitano consegue sustentar-se, apesar das várias críticas no que se refere a trânsito, transporte público, mobilidade alternativa...
Eu queria fazer algumas sugestões relativas ao equilibro precário que está sendo criado em Salvador. Incentivados pelo poder público, pelas empresas e pela mídia, sabemos todos que o sistema atual incentiva à compra do carro.
Por outro lado, e conseqüentemente, o transporte público se atrasa mais e mais e não cumpre seu papel de serviço público. Enfim, o que aconteceu neste processo?
Acredito que apareceu um tipo de privatização do serviço de mobilidade nos últimos 40 anos. A falha dos órgãos públicos não diminuiu a demanda em mobilidade, é claro, então o mercado se adaptou rapidamente.
Por exemplo, podemos constatar o número crescente de transporte público informal, que acaba por ser mais eficiente de que ônibus regular.
Outro sintoma é o crescimento da frota dos taxis. Enquanto estrangeiro, quando cheguei a Salvador, fiquei surpreso pelo baixo preço da corrida. Hoje, é muito viável pegar um taxi a 2 ou 3 por veiculo. Este modo de transporte aproveitou da falha dos ônibus para criar lucro particular.
Finalmente, o setor privado sendo muito mais reativo de que o público, o poder público abre mão da qualidade do serviço, deixando pouco a pouco os lucros decidirem o que deve ser uma mobilidade democrática e justa em Salvador.
Resumindo, como o principal interesse de uma empresa é o lucro, os bairros populares acabam por serem menos bem atingidos, pode existir uma escolha dos clientes em função da renda, ou de outros critérios completamente injustos e não justificados... Isso tudo com um controle muito solto pelos órgãos responsáveis pela mobilidade.
Concluindo, existe um equilíbrio natural a favor do serviço privado, cujos interesses por nossos bolsos são claros.
Por outro lado, esta política sem objetivo ambicioso claro esta desestruturando toda a base da mobilidade solidária e humanista e mostra uma visão de curto prazo.
Um dia talvez, nossos filhos, netos, vão perguntar: “Ouvi falar que existia antes, um transporte público?
Podiamos mesmo viajar na cidade com pouco dinheiro e em boas condições? Por que acabaram com isso tudo?”
Cabe a cada um de nós de pensar na resposta certa... Ou de reagir hoje para que isso mude!
*Clement Vialle, é Engenheiro de Sistemas Urbanos

quarta-feira, 24 de novembro de 2010

Conheço as portas do céu

Oliveiros Guanais* (in memorian)
Vou começar este relato com algumas considerações preliminares.
Há umas centenas de anos atrás, um cara chamado Isaac Newton, preguiçosamente deitado debaixo de uma macieira, recebeu uma maçã na cabeça e só não gritou eureka, como o Arquimedes, porque certamente não o conhecia.
Mas, naquele momento, Newton, que foi um dos maiores gênios da ciência de todos os tempos, encontrou inspiração para formular a teoria da gravidade (a matéria atrai a matéria...).
Pois é. A partir de então, ficou-se sabendo que existe uma coisa chamada lei da gravidade, que, entre nós, deste compenetrado planeta, tem a terra como núcleo de atração mais forte. E se pisamos a terra, é porque ela está abaixo de nós. Logo, esse centro de força atrai para baixo todos os corpos, sólidos, líquidos e até gasosos. O homem flutua apenas nas naves espaciais . Aqui, ele está preso a terra, à sua mãe Gaia, à qual retornará como pó que é ( pulvis est ), inevitavelmente. E o próprio corpo humano é estruturado de forma a sentir no seu interior os efeitos da gravidade.
Vamos considerar um importante sistema do nosso organismo: o circulatório, que tem, entre os seus componentes, um volume grande de líquido, o sangue. O sangue passeia, indo e voltando por um conjunto tubular ( artéria e veias), impulsionados pela bomba do coração. Além da bomba cardíaca, há um trabalhinho também das artérias, que se dilatam quando recebem um jato de sangue mandado pela bomba cardíaca (sístole) e se contraem depois, ajudando a empurrar o sangue para a frente, funcionando como uma bomba periférica. Feita a sua viagem de ida pelas artérias, o sangue volta pelas veias em direção ao coração, e não vão para as partes baixas, atraídos pela gravidade, quando a pessoa está em pé, porque as veias têm válvulas que impedem esse retorno. É mais ou menos assim que as coisas funcionam. Há, lembrei-me agora: tem ainda um mecanismo nervoso, chamado neurovegetativo, formado por dois componentes que atuam de modo antagônico, chamado simpático e parassimpático (vagal). Através do simpático o coração bate acelerado (taquicardia) e com mais força, os vasos se contraem, mecanismos que ocorrem quando há necessidade de mais sangue em certos órgãos. (O vago atua, como foi dito, em sentido contrário. O seu predomínio faz as coisas andarem de modo inverso: o coração bate devagar (bradicardia), etc.
Existem situações em que o equilíbrio se rompe, e o sistema se desregula, levando a uma predominância do vago, numa reação que é chamada vasovagal. Os vasos se dilatam e os mecanismos compensatórios não dão conta do equilíbrio necessário. Estando o indivíduo em pé, o espectro de Newton aparece, a gravidade marca presença e o sangue vai para as partes baixas, resultando em redução da quantidade destinada ao cérebro, que acusa de imediato a sua falta. Faltando sangue, falta oxigênio, e faltando oxigênio, o cérebro, que só tem metabolismo aeróbico (feito com oxigênio) resolve protestar, fazendo greve. Deixa de trabalhar, e o apagão se instala: o sujeito perde os sentidos. É a chamada lipotímia ou síncope, que pode ser provocada também por falta de glicose no cérebro, porque a dieta dos neurônios, células nobres, cheias de realeza, tem que incluir no cardápio glicose regada com o vinho de oxigênio. Exigente, não é? Os desmaios matinais que ocorrem nas igrejas durante o santo ofício da missa, principalmente com pessoas idosas em jejum, tem explicação dessa maneira: baixa de glicose e mecanismos reguladores do sistema circulatório comprometidos pela idade.
Será que alguém leu até aqui? Se não leu, está desculpado, porque este lenga-lenga está mesmo muito longo e chato.
Mas vamos em frente, para um outro capítulo, que tem eu como personagem.
No dia 12 deste mês de março, fui ao lançamento de um livro do filósofo Marcos Bulcão, um jovem talentoso que eu ajudei a nascer, porque anestesiei a mãe no parto e dei assistência neonatal ao recém-nascido, que veio à luz meio perrengue, dando-me susto e trabalhos. Mas recuperou-se logo, tornando-se um brilhante intelectual . Lá estava eu, tive meu autógrafo, fui fotografado em companhia do autor (foto), e comecei a circular cumprimentando amigos de velhas amizades.
Mas, ao invés de fazer como muitos fazem e as circunstâncias aconselhavam, ou seja, dar a missão por cumprida e voltar para casa (à francesa), fiquei andando pelo ambiente, sentindo um calor imenso e suando muito. Com a sudorese, pensei com meus botões: será que estou infartando? Dúvida posta, comprimido de Isordil posto debaixo da língua. Estava meio afastado do grupo, olhando livros de direito, e logo chegou Carlos Valadares (um colega estimado, companheiro dos meus tempos de CREMEB ) e ficamos olhando livros. Não se passaram nem dois minutos da administração do Isordil e eu comecei a ficar tonto. Nada falei com meu amigo mas me apoiei na bancada dos livros, e logo não vi mais nada, nem sei de mais nada. Acordei deitado no piso do mezanino da livraria (Civilização Brasileira) cercado de parentes, conhecidos e médicos, todos alvoroçados, o que foi, o que foi, você está bem, respire fundo, está se sentindo bem, fique deitado, não levante não, como é seu nome, está sentindo dor de cabeça e etc..
Eu sei lidar com isso muito bem, porque conheço a fisiologia do fenômeno, anestesista que sou. Já presenciei alguns ou muitos casos de lipotimia em pacientes operandos, quando permanecem certo tempo sentados, principalmente à tarde (por causa do jejum) e são jovens e do sexo masculino (que são mais frouxos, louvor às mulheres). Mas o que acontece? Simplesmente interrompemos o que queríamos fazer e colocamos rapidamente o paciente na posição horizontal, o que facilita a chegada de sangue ao cérebro e poucos minutos depois restaura-se a consciência. ( Aliás, a primeira conseqüência de uma lipotímia- queda – funciona também como corretivo do problema, se, claro, a pessoa não tiver traumatismo de crânio- o que é grave- ou quebra de algum osso periférico. A minha experiência com essa situação levou-me a entender, tardiamente, que nem eu nem ninguém deve tomar Isordil longe de uma cama. Se for necessário o uso dessa droga, que é um potente vasodilatador, deve-se usá-la deitado.
Ainda tenho o que contar sob o episódio. Vejamos.
Ante o espanto das pessoas mais próximas e o grande susto do meu filho mais novo, carinhoso e preocupado comigo, fui levado ao hospital Português, à minha revelia- mas entendendo a razão dos meus amigos, porque, por trás da síncope, pode haver coisa mais grave. Na assistência entre a livraria e o Português muitos colegas foram solidários, mas Chicão ( Dr. Francisco Sampaio, que muito se preocupa comigo) e Guiga ( Dr. Guilherme Moysés) tiveram papel de comando e no hospital, pouco depois de minha chegada, lá compareceu o Dr. Altamirando Santana, velho amigo (uma ajuda à procura de um necessidade), e as coisas foram se encaminhando. Parei na emergência, e, depois dos exames apropriados, a doutora de plantão falou: seus exames deram normais, tudo indica que o senhor teve uma lipotimia por reação vasovagal. Mas...levando em conta o seu histórico, acho melhor o senhor permanecer na Unidade Coronariana para melhor observação, e certamente amanhã vai para casa. E assim aconteceu. Um de meus filhos, que mora fora, inteirando-se dos fatos, disse: “é, meu pai, com o seu passado, se você se encostar numa emergência não tem escapatória, será internado logo, porque médico nenhum vai liberá-lo, conhecendo o seu histórico (meu histórico é gloriosamente rico em batalhas e lutas em que muita gente deixou de acreditar na minha vitória). Mas aqui estou, com cicatrizes e condecorações.
Um comentário final. Se “o oceano é a única sepultura digna de um almirante batavo”, como disse aquele almirante holandês, uma livraria seria o lugar mais apropriado para eu morrer. Seria uma glória, capaz de causar inveja a Jorge Luis Borges, que via na biblioteca a representação do paraíso. Eu não sou Borges, está-se vendo. E divirjo dele porque troco a biblioteca ( de que não gosto muito) por livrarias e sebos, imagens do meu paraíso. Se eu morresse ali, seria uma despedida apoteótica da vida, porque dulce et decorum est circa libros mori ( é paráfrase de um verso latino: é doce e glorioso morrer cercado de livros).
*Oliveiros Guanais, falecido em 21/11/2010, escreveu este artigo em 17/03/2009.

segunda-feira, 22 de novembro de 2010

Uma Nova Rodoviária em Salvador?

Almir Ferreira*
Uma polêmica de volta: uma nova rodoviária.
Em primeiro lugar, não se pode pensar em mudar um equipamento como a rodoviária quando o principal problema identificado é o trânsito do seu entorno nos dias de pico. Se os problemas são as vias, que se encontrem soluções para o sistema viário, melhore-se o existente e ofereçam-se outras vias alternativas. No caso de Salvador atribuir-se ao congestionamento de tráfego á sua localização é uma premissa precipitada. Há de se pensar no desejo dos passageiros de ônibus rodoviários e o seu conforto de ir ao lugar desejado, a pé, um pequeno percurso de ônibus ou uma corrida de taxi de baixo custo. Observem-se os equipamentos do seu entorno, dois grandes shoppings, dezenas de prédios comerciais e residenciais de grande porte, sede de grandes empresas, hipermercados, terminais de ônibus urbanos, um grande hospital, que geram um número expressivo de veículos e pessoas que por ali transitam, com certeza muito mais significativo que as 580 partidas e os 11000 passageiros diários embarcam em Salvador. Comete-se outro equívoco quando se fala em jogá-la para fora da cidade.
Temos exemplos da rodoviária Novo Rio, construída há aproximadamente 45 anos, que está situada na intercessão da Av. Rodrigues Alves com a Av. Francisco Bicalho, que é um prolongamento da Av. Presidente Vargas, na área urbana da cidade. São Paulo tem três terminais: Tietê, Jabaquara e Barra Funda, responsáveis por aproximadamente 3.000 partidas diárias, todos situados nos eixos do metrô e têm acessos através de vias expressas, também situados na área urbana da cidade. Buenos Aires, Santiago do Chile, México, Barcelona, Madrid, Nova Iorque, Chicago, Porto Alegre e Belo Horizonte também têm seus terminais situados dentro da cidade.
Tudo isso evidentemente é resultado de estudos, que visam viabilizar física-econômicamente o investimento, cuja localização leva em conta, entre outros, os seguintes fatores: a localização do usuário do ônibus rodoviário, a área da edificação, as vias de acesso ao terminal e o impacto que o equipamento traz ao seu entorno. A prioridade é sempre o usuário. O equipamento já existe e opera com capacidade ociosa. Pode-se melhorar o seu desempenho com a realização de obras viárias, disciplinando-se o tráfego de veículos no local, replanejando o transporte coletivo urbano, implantando-se uma rede integrada de transporte ou, em último caso, estudando-se criteriosamente uma descentralização.Abandonar o terminal existente e construir um novo terminal na BR-324, próximo a Valéria resultará em desconforto para o usuário nos seus deslocamentos, onera-os com as despesas de taxi e é uma solução que não o prioriza.
*Almir Santos - Engenheiro Civil especialista em Transportes Públicos e Logística de Transportes integra o NELT - Núcleo de Estudos em Logística e Transportes: nelt.oscip@gmail.com

domingo, 21 de novembro de 2010

Era no Dois de Julho

Oliveiros Guanais de Aguiar*
A poesia foi usada para glorificar os feitos grandiosos de povos e heróis, por ser o único recurso disponível para isso, no passado. Os gregos valeram-se da “Ilíada” para cantar as façanhas dos seus deuses e guerreiros na guerra de Tróia. A “Eneida”, poema escrito por encomenda de um imperador, visava a dar nobreza à genealogia do povo e do império romano. “Os Lusíadas’, que cantaram as ”armas e os barões assinalados” que partiam das praias lusitanas para as conquistas marítimas do mundo, ficaram gravados na língua portuguesa de forma perene.
No Brasil, o mais belo e mais forte poema épico contraria, pela brevidade, o conceito de epopéia, pois consta apenas de 48 versos, não tem compromissos narrativos, não fala em deuses e não dá nome a heróis, porque deixa implícito que heróis eram o povo que se batia no ” imenso anfiteatro da amplidão”. Mas tem, da epopéia, duas características fundamentais: heroísmo e referência a guerra. Assim, é a nossa epopéia libertária.
Castro Alves escreveu a “Ode ao Dois de Julho” aos 21 anos de idade! Fase do arrebatamento, da retórica, das hipérboles. Nesse poema, o vate maior do Brasil deu aos baianos orgulho por terem lutado para conseguir a liberdade porque na Bahia, ao contrário do que aconteceu no Ipiranga, houve luta, sim, luta e morte. (E aqui cumpriu-se a sentença de um homem chamado Espinosa : “não existe liberdade, quando não se luta pela liberdade”)
Não foi uma guerra igual às grandes guerras da história, mas Castro Alves construiu uma alegoria à luta dos combatentes e à glória dos vencedores, dando às batalhas que aqui se travaram dimensões heróicas para que fosse justificada a reverência dos baianos aos que pegaram em armas e arriscaram a vida para expulsar os últimos defensores da permanência de Portugal no Brasil. E ao fim das lutas:
... quando a branca estrela matutina
surgiu do espaço lá do campo deserto da batalha
uma voz se elevou clara e divina:
eras tu - liberdade peregrina!...
A Bahia precisa continuar a festa do Dois de Julho em homenagem àqueles que ficaram registrados na história, não só pelo heroísmo ou pelo martírio, mas também, e principalmente, em memória do povo sem nome que aqui lutou ou foi sacrificado : freiras, soldados, brancos, índios, negros.... As comemorações do Dois de Julho são também uma dívida irresgatável que a Bahia deve a Castro Alves, o jovem que eternizou na poesia o heroísmo daquelas lutas. É preciso, portanto, continuar e dar valor às comemorações dessa data, tendo à frente o grupo de políticos de todos os partidos, a maioria distribuindo sorrisos e acenos de mão, que são retribuídos com vaias, para a maioria, e por alguns aplausos perdidos para uns poucos merecedores, enquanto o cortejo passa à vista do povo concentrado nas calçadas ou abrigados nas janelas enfeitadas de bandeirolas, balões e tecidos coloridos; o povo gosta de ver o batalhão dos “periquitos”, com seus dólmãs de golas e punhos verdes, e procura ver e saudar Maria Quitéria, a camponesa de Cachoeira que se tornou símbolo do heroísmo da mulher brasileira; é importante que os cavalarianos desfilem, porque eles também contribuíram para o êxito da guerra; é preciso que continue e seja preservado, com destaque especial, o carro do “Caboclo” e da “Cabocla” como representação simbólica dos que lutaram com arco e flecha, seus instrumentos de guerra. É preciso que esse desfile representativo do passado continue, com a participação de movimentos sociais, escolas, grupos de capoeiras, marchas improvisadas, bandas de música e fanfarras, transformando uma festa cívica numa desorganizada e alegre festa do povo, porque foi o povo que ganhou a guerra.
*Oliveiros Guanais de Aguiar: Faleceu hoje no Hospital Português.
Filho de Galdino Borges de Aguiar e D. Etelvina Guanais Aguiar, foi figura de destaque no movimento estudantil de sua época, ocupando a presidência da União dos Estudantes da Bahia e, posteriormente, da UNE biênio 1960-1961.
Segundo o pesquisador Alberto Saldanha, Guanais foi eleito presidente da UNE por um entendimento triplo entre seu grupo (esquerda independente), a Juventude Universitária Catôlica (que apresentava o nome de Hebert de Souza) e o Partido Comunista. Registra, ainda, o papel da UNE na época (1956-1960) na opinião do próprio Oliveiros Guanais: "A UNE ... era uma grande tribuna política do país".
Como anestesiologista, destacou-se profissionalmente, o que rendeu-lhe a eleição por seus pares para integrar o Conselho Federal de Medicina. Integrou, ainda, o Conselho Editorial da Revista Bioética, do Conselho Federal de Medicina. Em reconhecimento a sua carreira profissional, presidiu o 22º Congresso Nacional de Anestesiologia.
Casado com Simone Campos Guanais, pai de Frederico, Juliana e Oliveiros, e avô de Enrico e Fátima.

sábado, 20 de novembro de 2010

TAV, um equívoco federal

Osvaldo Campos Magalhães*
A publicação no dia 5 de novembro da Medida Provisória nº 511, concedendo garantias do Tesouro Nacional ao BNDES para o financiamento do projeto do Trem Bala ligando Campinas ao Rio de Janeiro no valor de R$ 20 bilhões, a juros subsidiados, sem qualquer seguro ou contra garantia do concessionário demonstra que o projeto é realmente de alta velocidade. Criando um fato consumado em final de mandato, sem a necessária participação da sociedade através das comissões temáticas do Congresso Nacional, o governo persiste numa prática pouco transparente beneficiando um projeto bastante questionado por especialistas e técnicos do setor de transportes. Afinal, qual a necessidade da União subsidiar um serviço de transporte de passageiros entre as duas maiores regiões metropolitanas no país? Enquanto isto, graves questões na infra-estrutura ferroviária do Brasil persistem sem qualquer iniciativa do governo federal para equacioná-las. As restrições existentes nos acessos ferroviários dos principais portos públicos do país, a implantação do ferroanel em São Paulo, do contorno ferroviário do Paraguaçu, entre Cachoeira e São Félix e a solução para as centenas de passagens de nível urbanas do país continuam a aguardar ações efetivas do governo federal. Enquanto isto, na opinião de diversos especialistas em transportes públicos, a grande questão a merecer investimentos e subsídios da União, diz respeito à mobilidade urbana nos grandes centros urbanos do país, que, devido à falta de planejamento e de investimentos em infra-estrutura de transporte de massa, vem trazendo grandes prejuízos à economia, com os grandes congestionamentos nas vias públicas, provocados pelo número cada vez maior de automóveis licenciados a cada ano nos maiores centros urbanos do país.
Lembremos que projetos de Trens de Alta Velocidade implantados em outros países enfrentam grandes dificuldades para se viabilizarem economicamente, e tiveram que receber grandes subsídios públicos, sendo exemplos o TAV de Taiwan e o Eurostar ligando Paris a Londres Como bem demonstrou o especialista do Senado e PHD em economia pela USP, Marcos Mendes em seu trabalho “Trem de Alta Velocidade, caso típico de problema de gestão de investimentos”
http://www.senado.gov.br/senado/conleg/textos_discussao.htm), o projeto do Trem de Alta Velocidade brasileiro contém vários pontos problemáticos: custos orçados abaixo da média internacional, demanda estimada excessivamente otimista, tarifa cara, inexistência de avaliação de projetos alternativos de menor custo e, principalmente, alta probabilidade de criação de um esqueleto financeiro de mais de R$ 30 bilhões. O mais preocupante é que o TAV será licitado sem que se tenha um projeto de engenharia concluído. Na avaliação final, o estudo do Senado Federal conclui que: ”O processo decisório parece estar fortemente influenciado por motivação política, com alto risco de se criar um empreendimento too big to fail que acabará transferindo custos financeiros para o erário, e que por seu alto montante pesará sobre os ombros das próximas gerações.” Tudo isso para oferecer um serviço que hoje é prestado com bastante eficiência por empresas de transporte aéreo que operam com baixos custos, num ambiente fortemente competitivo. Destaque-se que diferentemente de outros países que adotaram o trem bala, o serviço irá competir com um sistema de transporte aéreo privado, que opera em dois aeroportos centrais, recentemente modernizados e ampliados, Congonhas e Santo Dummont, e, que está ganhando a competição com o sistema de transporte rodoviário, hoje prestado com eficiência por diversas empresas de ônibus. Se existe qualquer problema no modal aeroviário, deve-se exclusivamente à ação do governo federal, que, loteando politicamente a INFRAERO, vem retardando investimentos necessários ao setor. Para que gastar bilhões oferecendo um serviço caro, beneficiando aqueles que podem pagar pela alta tarifa? Não seria muito mais lógico direcionar estes recursos para a ampliação da rede de metrôs nas grandes capitais?
* Editor deste blog, é Especialista em infra-estrutura da FIESP. Engenheiro Civil e Mestre em Administração(UFBa)

sexta-feira, 19 de novembro de 2010

Meu pai subiu no telhado

Quando eu nasci, já recebi a cruz,
plantada no caminho á minha espera,
a projetar a sua sombra austera
onde eu busquei sedento paz e luz
Quando eu nasci, já recebi Jesus
como anúncio de dor e primavera.
Mas era uma outra luz; uma outra esfera —
meu caminho, não sei onde conduz.
Resta-me a cruz e a dura provação
dos espinhos da vida, triste dança
de enganos, dissabores, ilusão.
que penetram-me o peito feito lança
e afastam a luz que a vista não alcança —
numa só chaga pulsa o coração.
Ildásio Tavares Jr.*
Meu pai subiu no telhado. Sim, isso é uma paródia da famosa piada de português, povo que ele amava e que publicou seu último livro em vida. E parodio a piada porque a coisa que meu pai mais gostava no mundo era fazer piada e sei que ele riria muito (deve estar rindo, talvez) de um artigo sobre seu falecimento iniciado assim.
Meu pai subiu num telhado, mas num telhado bem alto de um palácio, de um zigurate, de uma sinagoga, de um barracão. Ele subiu em todos esses telhados e tantos outros da vasta cultura de um homem especial, talvez o único próximo a mim cujo título de gênio coubesse como a nenhum outro.
Ildásio Tavares nunca esteve nos holofotes como alguns de sua geração. Mas iluminou a cultura brasileira. Se eu fosse desfilar o currículo de meu pai, precisaria escrever uns dez artigos. Livros, jornais, revistas, TV e google dão conta do recado. Entrementes, falar um pouco do quanto meu pai iluminou minha vida talvez seja uma metonímia do homem que ele tentou ser e em muitos momentos foi pro mundo.
Desde pequeno, bastava eu aparecer entusiasmado com alguma música, algum escritor, que ele logo me mostrava os defeitos. Foi um crítico feroz de todas as obras, a começar pela minha e, principalmente, pela dele. Como todo grande intelectual, via os defeitos e rachaduras, as falhas e fraquezas que o senso comum aplaudia e ignorava. E sofreu muito por isso. A grandeza oprime e a verdade dói. E era um grande que defendia verdades. Nem sempre as verdades, mas as suas verdades, e era muito íntegro com elas.
Dificilmente temos o que merecemos. Muitos são louvados em demasia, outros sofrem pela escassez de reconhecimento. Mas meu pai foi um lutador e um vencedor porque, a despeito da mediocridade opressora que tentava lhe anular, ele conseguiu galgar degraus que, se não o levaram ao merecido altar de gênio que era, ao menos lhe trouxeram momentos de alegria, como ao desfilar homenageado pela Nenê da Vila Matilde, em São Paulo, ou na comemoração de seus 70 anos, com momentos lindos como o de Gerônimo e Vevé cantando É d’Oxum em francês, na versão dele, ou o belo discurso de Jorge Portugal na entrega da Medalha Zumbi dos Palmares, etc, etc...
Tive o prazer de cochilar a manhã inteira no colégio depois de virar a noite vendo meu pai compor com Baden Powell. Tive a honra de, já exaurido, ter um poema em redondilha todo refeito ao lado dele quando eu tinha 7 anos de idade. Aprendi a fazer poesia, a reconhecer a beleza de muita coisa no mundo graças a meu pai. E o que levamos da vida é a beleza das coisas, a poesia dos momentos, das palavras, das cores e melodias.
Meu pai subiu num telhado, mas diferentemente da piada, ele não morreu. Ele está ali, em cima do telhado, olhando pra mim e pro mundo com olhos críticos. Eu sei que ele está lá olhando e pensando o quanto o mundo perdeu ao não reconhecer sua poesia e seu pensamento, e, nós poucos, de cá, pensando o quanto parte do mundo e eu ganhamos ao reconhecer sua poesia e seu pensamento.
Alguns poucos olharão pro telhado, em busca de meu pai. Ele vai estar lá, como todo mestre. Pois um mestre só se torna mestre mesmo quando o que ele pode oferecer deixa de ser ele e passa a ser a gente. E meu pai está mais em mim do que em qualquer outro momento esteve.
Agora é o momento de começar a aprender quem eu sou. Aos poucos, por toda vida. Tentando buscar em mim a poesia e sabedoria do pai e do mestre. A tristeza aparece no momento em que não olhamos as coisas belas.
E não tem nada mais lindo, agora, do que ver meu pai de cima do telhado, olhando pra mim e torcendo pra eu seja um grande homem. Para que eu não deixe que a pobreza do mundo invada nossa alma.
Foi isso que ele me ensinou. E será isso que eu tentarei fazer minha vida inteira, porque agora a responsabilidade aumentou; meu pai subiu no telhado e estará de lá, olhando pra mim, e dizendo; “agora é com você. Já fiz minha parte e fiz muito bem”.
*Dramaturgo e ator
Ildásio Marques Tavares (Ubaitaba-BA, 25/01/1940 - Salvador 31/10/2010) Além de poeta e compositor, tendo mais de 40 músicas gravadas por Vinícius de Moraes, Maria Bethânia, Alcione, Toquinho, Nelson Gonçalves e Maria Creuza, Ildásio Tavares também era professor da Universidade Federal da Bahia (UFBA).Ele nasceu na atual cidade de Gongoji, região do cacau da Bahia. Em Salvador, formou-se em Direito e em Letras na UFBA, tendo feito o Mestrado na Southern Illinois University, doutorado na Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) com pós-doutorado na Universidade de Lisboa. Durante muito tempo, Ildásio Tavares foi tradutor e professor de inglês, da qual surgiu o seu livro "A Arte de Traduzir".Ildásio Tavares deixa seis filhos e uma vasta obra literária que começou a ser publicada em 1968, com o livro "Somente um Canto".

quarta-feira, 17 de novembro de 2010

Cidade pede um novo urbanismo

Milton Santos*
Artigo publicado originalmente quando da comemoração dos 450 anos da fundação da cidade de Salvador, em A TARDE. A lucidez dos argumentos, a lógica das conclusões e a cadência de sua escrita, como sempre, chamaram para esse texto merecidos destaque e atenção. Reconhecendo a atualidade e importância de suas colocações, decidimos republicar o artigo prestando uma justa homenagem a esse pensador ímpar.

Salvador nasce como uma planta transplantada, para afirmar, em terra americana, a presença portuguesa e servir como base transatlântica ao projeto de mundialização capitalista. Em sua origem deram-lhe um modelo, trazido da corte, mas a mistura, aqui, de raças, línguas e culturas e a adaptação a um meio natural opulento produziram uma associação inesperada, um hibrismo inédito na História, que iria nortear a sua evolução e marcar, para sempre, a personalidade do lugar. Salvador cresceu como península - mar e continente confundidos -, misturando os apelos do mundo e o chamado da terra e assim podendo renovar, século após século, sua aventura original.
Na vida da cidade há momentos decisivos. Para a minha geração, esse momento pode ser estabelecido nos anos imediatos à Segunda Guerra Mundial, nos quais coincidem mudanças fundamentais no panorama internacional, na vida brasileira, na economia do estado e na cidade.
Tratava-se menos de um divisor de águas e mais de uma fase de transição, que iria se estender por um quarto do século, até que se inaugure uma nova fase de crescimento. Foi uma época de abertura explosiva, um período de grande ebulição e de progresso, tanto na vida material, quanto na atividade intelectual. Desenvolve-se, no estado, a agricultura, melhoram os transportes e as comunicações, explora-se o petróleo, assentam-se, com o planejamento, as bases para a industrialização e, quanto à expansão da informação e do consumo, crescem as cidades e a vida de relações.
CRESCIMENTO – Então Salvador se prepara para abandonar seu papel secular de capital incompleta e displicente e passa a vigiar e melhor comandar seu território, dele recebendo contingentes que, em 25 anos, fazem triplicar sua população (menos de 350 mil em meados da década de 40, cerca de 1.150 mil em 1970). A cidade diversifica a sua atividade, produz um novo arranjo de profissões e classes sociais e parte à conquista do seu espaço, criando novos bairros e deixando explodir outros, onde, nas famosas “invasões”, instala-se uma população dinâmica, mas pobre. O velho centro, ao mesmo tempo, moderniza-se e se degrada - sobretudo na Cidade Baixa - e se espalha sobre bairros residenciais tradicionais, mas já não é suficiente para abrigar o comércio e os serviços, que vão criar em outros lugares (primeiro na Liberdade, na Calçada, na Barra) novos pólos de atividade.
A cidade invade uma série de sítios que ela aproveitara ou fabricara em quatro séculos, urbaniza a sua franja litorânea, mas deixa intactos inúmeros vazios.
SER ORIGINAL – Terminada essa fase, Salvador decide ser, logo após Brasília, a segunda cidade mais moderna do Brasil. Mas decreta, também, que deveria produzir sua modernidade de modo original. Para ser como Aracaju, Goiânia ou Belo Horizonte teria que mudar de lugar. Essa idéia não foi aceita. Também não adotou a solução de São Paulo, que substituiu as velhas pedras por novas construções, mas no mesmo sítio, como se a novidade se envergonhasse do passado. Salvador simplesmente se valeu dos vazios especulativos deixados pela história e preferiu dar as costas ao centro velho - que era, praticamente, toda a cidade histórica - e edificar outro todo novo, para a administração, e ainda outro, próximo do primeiro e igualmente novo, destinado aos negócios.
BAIRROS – A originalidade não ficou aí. Foi decidido estabelecer, estrategicamente zonas industriais, à distância da velha urbis, mas planificar bairros residenciais correspondentes. Foi a primeira vez que uma metrópole se tornou cidade-dormitório do seu subúrbio industrial. Uma atividade fabril de elite era concentrada, enquanto os trabalhadores foram espalhados na cidade grande. Assim, através da ocupação dos municípios vizinhos, a região metropolitana era segmentada, enquanto Salvador era puxada para suas extremidades. Criam-se novos vazios, ainda mais valiosos. Como, porém, a cidade não deixava de receber e de fabricar novos pobres, terrenos desocupados acolheram, no chamado “miolo”, centenas de milhares de moradores.
Agora, a cidade se instala em todos os seus sítios: os litorais, os vales, as encostas, os alagados, os morros, as chácaras, arrabaldes e subúrbios, transformando cada pedaço de chão em dinheiro. Salvador se adensa e verticaliza, ao mesmo tempo em que, metrópole nacional, fortalece suas relações externas, incluído o desenvolvimento do turismo nacional e internacional. Foram necessários 50 anos para que a demografia pudesse dobrar, entre 1900 e 1950. Entre 1950 e 1999, a população urbana quase quintuplica, passando de 650 mil para cerca de 3 milhões de habitantes.
CONTRASTES – A cidade de hoje paga um pesado tributo à forma em que cresceu, em busca da modernização. Cega pela ambição de progresso material, devotou as energias disponíveis ao seu planejamento, deixando, porém, quase tudo o mais à espontaneidade. Daí a agudização dos seus contrastes seculares, opondo uma Salvador imponente e limpa, vista e admirada pelos que passam, domesticada em nome da modernidade, habitada pelas atividades e camadas favorecidas e pelas novas classes médias, e outra Salvador, dita irregular, carente de serviços, onde se acotovela a maioria, isto é, os mais pobres. A cidade não apenas acolhe os pobres de sua região, mas, produzindo e agravando a separação, ela também, pelo seu próprio funcionamento, cria pobres.
A realidade é pungente, mas será essa uma problemática insolúvel? Não mais estamos à época da celebração do quarto centenário da fundação de Salvador, em 1949, quando, diante das promessas de riqueza e da permanência do atraso, as elites mostravam sua perplexidade, falando de um “enigma baiano”. Já não é mais difícil localizar os problemas, enumerar suas causas e diagnosticar os remédios. Já sabemos como se formaram, evoluindo juntas, ainda que se dando as costas, essas cidades todas justapostas, contidas em Salvador. Urge, agora, quando festejamos seus 450 anos (nota do editor: época da publicação original desse artigo, em 1999), encontrar as forças para pensar, de modo unitário, um novo planejamento, talvez menos urbanístico e mais urbano; e certamente mais social e mais humano.
*Milton Santos nasceu em Brotas de Macaúbas, no interior da Bahia, em 1926. Morreu em junho de 2001, aos 75 anos, depois de uma vida ligada a Salvador. Formado em direito em 1948 (Ufba), escreveu livros (cerca de 40) reconhecidos por geógrafos em todo o mundo. Foi preso em 1964 e exilado, passando a ensinar na França, Estados Unidos, Canadá, Peru, Venezuela e Tânzania, antes de retornar ao Brasil. Foi, por muitos anos, editorialista de A TARDE.

O mal da floresta urbana

Foto: Nilton Souza
Anilton Santos*
No início do século XX, um visionário inglês, Ebenezer Howard, declarou que cidades mal planejadas e ineficientes talvez não deveriam ter lugar num futuro mais humano. Le Corbusier, arquiteto francês, também repudiou tais cidades afirmando que elas gastam nossos corpos e frustram nossas almas. O 3º milênio se instaura com intensificação da exclusão social urbana, fome generalizada nos países pobres, comprometimento ambiental, escassez de recursos naturais etc., que tornam nebuloso o futuro da humanidade. No cenário atual, a maioria das cidades tem características que frustram nossos desejos de habitá-las confortavelmente e se desenvolve num sentido sombrio para as gerações do futuro.
Salvador já ultrapassa os 3 milhões de habitantes e recentemente decola num "boom" imobiliário, notadamente na Paralela, que tem tudo para nos inquietar quanto a um futuro sombrio, tal como o previsto pelos pensadores do início do século XX, embora nem sempre os pensadores acertem suas previsões, ou como disse Karl Marx: quando o bonde da vida faz uma curva, os pensadores caem para o lado. Todavia, temos de reconhecer que os pensadores são luzes piscando quando o túnel da vida obscurece.
A propósito desta inquietação quanto à perspectiva de um futuro sombrio de Salvador, o professor Pedrão, em seu artigo - a urbanização voraz da cidade -, e o arquiteto L. Muller em opinião neste jornal alertam sobre essa preocupação, instigando o debate sobre o futuro face os desafios mais preocupantes dessa nova ordem urbana.
O amplo projeto de mobilidade urbana que prevê a implantação de 135km de corredores exclusivos de ônibus. Um projeto dessa natureza modifica radicalmente a face de Salvador, tornando primordial o debate público de uma intervenção que muda a vida da cidade.
Os projetos de requalificação da orla e da Cidade Baixa que também alterarão o padrão de ocupação nesses espaços sem que haja uma definição quanto às consequências sociais da valorização de tais setores urbanos.
A reconstrução da Fonte Nova que mudará o uso e a ocupação do solo no seu entorno.
Trata-se de um conjunto de ações planejadas, que reestrutura toda a ocupação do solo, evidenciando a constituição de uma nova geopolítica dos conflitos socioespaciais urbanos, e no seu rastro, o capital imobiliário a tirar as vantagens locacionais da valorização do espaço público. O momento é propício para se recorrer ao Estatuto das Cidades e exigir a elaboração de um novo Plano Diretor que leve em conta esses eventos.
O fenômeno em gestação tende a reproduzir uma nova Salvador com os pobres cada vez mais longe. Isso já repercute em Lauro de Freitas, com 160 mil habitantes em apenas 60km², a mais alta densidade municipal em todo o Estado, dos quais algo em torno de 100 mil só no bairro de Itinga, que abriga o transbordamento da pobreza de Salvador.
Assistimos à formação desse cenário, que transforma o futuro de Salvador diante da ausência de planejamento regional e de uma manifestação vigorosa dos conselhos de classes, sindicatos profissionais, entidades ambientais e não governamentais etc., alertando a sociedade e os gestores urbanos.
Imagino que o silêncio nessa selva urbana possa estar relacionado à influência dos partidos, antes fora do poder e que hoje estão comprometidos de alguma forma com a estrutura de poder, influentes nessas entidades. Entretanto, cultivo a esperança que um dia o barulho das criaturas da escuridão irá despertar o silêncio dos verdadeiros senhores da floresta - seus habitantes e instituições independentes.
Afinal, de quem é o mal da floresta urbana? Do voraz tigre imobiliário? Do frágil canto dos pássaros ambientais que não ecoa na floresta? Do leão gestor florestal que ignora seu papel orientador? Da cobra financeira que num ziguezague de tudo tira vantagem? O mal dessa floresta não é só da ação voraz do tigre imobiliário ou do frágil canto dos pássaros ambientais; nem tão-somente do leão gestor ou da cobra financeira sempre faminta. O mal da floresta urbana é de todos nós. A floresta urbana atual é resultante das ações de gerações do passado, da mesma forma que a floresta do futuro resultará das ações de gerações do presente.
* Arquiteto e Urbanista