quarta-feira, 24 de novembro de 2010

Conheço as portas do céu

Oliveiros Guanais* (in memorian)
Vou começar este relato com algumas considerações preliminares.
Há umas centenas de anos atrás, um cara chamado Isaac Newton, preguiçosamente deitado debaixo de uma macieira, recebeu uma maçã na cabeça e só não gritou eureka, como o Arquimedes, porque certamente não o conhecia.
Mas, naquele momento, Newton, que foi um dos maiores gênios da ciência de todos os tempos, encontrou inspiração para formular a teoria da gravidade (a matéria atrai a matéria...).
Pois é. A partir de então, ficou-se sabendo que existe uma coisa chamada lei da gravidade, que, entre nós, deste compenetrado planeta, tem a terra como núcleo de atração mais forte. E se pisamos a terra, é porque ela está abaixo de nós. Logo, esse centro de força atrai para baixo todos os corpos, sólidos, líquidos e até gasosos. O homem flutua apenas nas naves espaciais . Aqui, ele está preso a terra, à sua mãe Gaia, à qual retornará como pó que é ( pulvis est ), inevitavelmente. E o próprio corpo humano é estruturado de forma a sentir no seu interior os efeitos da gravidade.
Vamos considerar um importante sistema do nosso organismo: o circulatório, que tem, entre os seus componentes, um volume grande de líquido, o sangue. O sangue passeia, indo e voltando por um conjunto tubular ( artéria e veias), impulsionados pela bomba do coração. Além da bomba cardíaca, há um trabalhinho também das artérias, que se dilatam quando recebem um jato de sangue mandado pela bomba cardíaca (sístole) e se contraem depois, ajudando a empurrar o sangue para a frente, funcionando como uma bomba periférica. Feita a sua viagem de ida pelas artérias, o sangue volta pelas veias em direção ao coração, e não vão para as partes baixas, atraídos pela gravidade, quando a pessoa está em pé, porque as veias têm válvulas que impedem esse retorno. É mais ou menos assim que as coisas funcionam. Há, lembrei-me agora: tem ainda um mecanismo nervoso, chamado neurovegetativo, formado por dois componentes que atuam de modo antagônico, chamado simpático e parassimpático (vagal). Através do simpático o coração bate acelerado (taquicardia) e com mais força, os vasos se contraem, mecanismos que ocorrem quando há necessidade de mais sangue em certos órgãos. (O vago atua, como foi dito, em sentido contrário. O seu predomínio faz as coisas andarem de modo inverso: o coração bate devagar (bradicardia), etc.
Existem situações em que o equilíbrio se rompe, e o sistema se desregula, levando a uma predominância do vago, numa reação que é chamada vasovagal. Os vasos se dilatam e os mecanismos compensatórios não dão conta do equilíbrio necessário. Estando o indivíduo em pé, o espectro de Newton aparece, a gravidade marca presença e o sangue vai para as partes baixas, resultando em redução da quantidade destinada ao cérebro, que acusa de imediato a sua falta. Faltando sangue, falta oxigênio, e faltando oxigênio, o cérebro, que só tem metabolismo aeróbico (feito com oxigênio) resolve protestar, fazendo greve. Deixa de trabalhar, e o apagão se instala: o sujeito perde os sentidos. É a chamada lipotímia ou síncope, que pode ser provocada também por falta de glicose no cérebro, porque a dieta dos neurônios, células nobres, cheias de realeza, tem que incluir no cardápio glicose regada com o vinho de oxigênio. Exigente, não é? Os desmaios matinais que ocorrem nas igrejas durante o santo ofício da missa, principalmente com pessoas idosas em jejum, tem explicação dessa maneira: baixa de glicose e mecanismos reguladores do sistema circulatório comprometidos pela idade.
Será que alguém leu até aqui? Se não leu, está desculpado, porque este lenga-lenga está mesmo muito longo e chato.
Mas vamos em frente, para um outro capítulo, que tem eu como personagem.
No dia 12 deste mês de março, fui ao lançamento de um livro do filósofo Marcos Bulcão, um jovem talentoso que eu ajudei a nascer, porque anestesiei a mãe no parto e dei assistência neonatal ao recém-nascido, que veio à luz meio perrengue, dando-me susto e trabalhos. Mas recuperou-se logo, tornando-se um brilhante intelectual . Lá estava eu, tive meu autógrafo, fui fotografado em companhia do autor (foto), e comecei a circular cumprimentando amigos de velhas amizades.
Mas, ao invés de fazer como muitos fazem e as circunstâncias aconselhavam, ou seja, dar a missão por cumprida e voltar para casa (à francesa), fiquei andando pelo ambiente, sentindo um calor imenso e suando muito. Com a sudorese, pensei com meus botões: será que estou infartando? Dúvida posta, comprimido de Isordil posto debaixo da língua. Estava meio afastado do grupo, olhando livros de direito, e logo chegou Carlos Valadares (um colega estimado, companheiro dos meus tempos de CREMEB ) e ficamos olhando livros. Não se passaram nem dois minutos da administração do Isordil e eu comecei a ficar tonto. Nada falei com meu amigo mas me apoiei na bancada dos livros, e logo não vi mais nada, nem sei de mais nada. Acordei deitado no piso do mezanino da livraria (Civilização Brasileira) cercado de parentes, conhecidos e médicos, todos alvoroçados, o que foi, o que foi, você está bem, respire fundo, está se sentindo bem, fique deitado, não levante não, como é seu nome, está sentindo dor de cabeça e etc..
Eu sei lidar com isso muito bem, porque conheço a fisiologia do fenômeno, anestesista que sou. Já presenciei alguns ou muitos casos de lipotimia em pacientes operandos, quando permanecem certo tempo sentados, principalmente à tarde (por causa do jejum) e são jovens e do sexo masculino (que são mais frouxos, louvor às mulheres). Mas o que acontece? Simplesmente interrompemos o que queríamos fazer e colocamos rapidamente o paciente na posição horizontal, o que facilita a chegada de sangue ao cérebro e poucos minutos depois restaura-se a consciência. ( Aliás, a primeira conseqüência de uma lipotímia- queda – funciona também como corretivo do problema, se, claro, a pessoa não tiver traumatismo de crânio- o que é grave- ou quebra de algum osso periférico. A minha experiência com essa situação levou-me a entender, tardiamente, que nem eu nem ninguém deve tomar Isordil longe de uma cama. Se for necessário o uso dessa droga, que é um potente vasodilatador, deve-se usá-la deitado.
Ainda tenho o que contar sob o episódio. Vejamos.
Ante o espanto das pessoas mais próximas e o grande susto do meu filho mais novo, carinhoso e preocupado comigo, fui levado ao hospital Português, à minha revelia- mas entendendo a razão dos meus amigos, porque, por trás da síncope, pode haver coisa mais grave. Na assistência entre a livraria e o Português muitos colegas foram solidários, mas Chicão ( Dr. Francisco Sampaio, que muito se preocupa comigo) e Guiga ( Dr. Guilherme Moysés) tiveram papel de comando e no hospital, pouco depois de minha chegada, lá compareceu o Dr. Altamirando Santana, velho amigo (uma ajuda à procura de um necessidade), e as coisas foram se encaminhando. Parei na emergência, e, depois dos exames apropriados, a doutora de plantão falou: seus exames deram normais, tudo indica que o senhor teve uma lipotimia por reação vasovagal. Mas...levando em conta o seu histórico, acho melhor o senhor permanecer na Unidade Coronariana para melhor observação, e certamente amanhã vai para casa. E assim aconteceu. Um de meus filhos, que mora fora, inteirando-se dos fatos, disse: “é, meu pai, com o seu passado, se você se encostar numa emergência não tem escapatória, será internado logo, porque médico nenhum vai liberá-lo, conhecendo o seu histórico (meu histórico é gloriosamente rico em batalhas e lutas em que muita gente deixou de acreditar na minha vitória). Mas aqui estou, com cicatrizes e condecorações.
Um comentário final. Se “o oceano é a única sepultura digna de um almirante batavo”, como disse aquele almirante holandês, uma livraria seria o lugar mais apropriado para eu morrer. Seria uma glória, capaz de causar inveja a Jorge Luis Borges, que via na biblioteca a representação do paraíso. Eu não sou Borges, está-se vendo. E divirjo dele porque troco a biblioteca ( de que não gosto muito) por livrarias e sebos, imagens do meu paraíso. Se eu morresse ali, seria uma despedida apoteótica da vida, porque dulce et decorum est circa libros mori ( é paráfrase de um verso latino: é doce e glorioso morrer cercado de livros).
*Oliveiros Guanais, falecido em 21/11/2010, escreveu este artigo em 17/03/2009.

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