terça-feira, 22 de agosto de 2023

Transformer city


Paulo Ormindo de Azevedo
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Quando meus netos tinham três ou quatro anos, um deles ganhou de aniversário um inocente carrinho e começou a empurrá-lo no chão. De repente tomou um susto e começou a chorar, o carrinho virou um androide intergaláctico misto de homem e máquina. Não queria aquele robot desengonçado, queria o carrinho. Meu filho tentava fazer o transformer voltar a carrinho, mas não conseguia. Só um primo adolescente viciado em seriados noir conseguiu, mas o carrinho já não rodava, e a criança não parava de chorar, queria o brinquedo.

Uma amiga minha que conheceu Salvador nos anos 70, em visita recente à cidade, não mais a reconheceu. A bucólica Estrada da Rainha vivou um terrapleno com passarelas altíssimas com formiguinhas tentando escalá-la para chegar ao outro lado da rua. O canteiro central arborizado da Av. Paralela virou estrada de ferro com obscenas estações de metrô, que o colega Fernando Peixoto demonstrou com fotos de drone que são tatus em suruba. 

As avenidas em memória de Orlando Gomes e ACM, o original, viraram subsolos de viadutos sem passeios nem ciclovias, um deles com direito a pilar no meio da pista e outro em forma de tobogã que atropelou dolosamente árvores frondosas e o homenageado. Salvador havia virado uma transformer city e não consegue mais voltar a ser a cidade que era, humana e bela.

Carlos Alberto Ferreira Braga, o grande Braguinha, que estudou arquitetura e amava a paisagem carioca e a boa arquitetura, a ponto de assumir o pseudônimo de João de Barro, autor do monumental samba-canção Copacabana, de 1947, interpretado com bossa por Dick Farney, também lamentava a transfiguração da bela avenida carioca em uma floresta de espigões cinza, sem brilho. 

“Copacabana, princesinha do mar/ Pelas manhãs tu és a vida a cantar/ E à tardinha, ao sol poente/ Deixas sempre uma saudade na gente/ Copacabana, o mar eterno cantor/ Ao te beijar, ficou perdido de amor/ E hoje vive a murmurar/ Só a ti Copacabana eu hei de amar.” Podemos dizer o mesmo da Baía de Todos os Santos, que com suas belas praias ornamenta Salvador e o nosso Recôncavo. 

Braguinha, pouco antes de morrer em 2021, entrevistado por uma TV sobre como ele via Copacabana depois dos 74 anos do seu hino famoso, ele disse: “De um lado está tudo igual, o mar e a paisagem marinha, do outro é irreconhecível, uma merda”. 

Nem o consolo da bela paisagem da Bahia de Todos os Santos nós teremos, se for chocado o ovo da terrível sucuri, ou anaconda de concreto, que pode matar por garrote e engolir a indefesa Ilha de Itaparica, cantada por João Ubaldo Ribeiro e a poeta maior do Mar Grande, Myriam Fraga. 

Ainda bem que os chineses e Lula, do projeto PAC-Ba, sabem que esta ponte de week end é ociosa e impagável e não querem jogar dinheiro fora.

* Arquiteto e Professor Titular da Ufba.

** Artigo publicado no jornal ATarde de 20/08/2023

terça-feira, 8 de agosto de 2023

Sobre a Ponte, sobre a Bahia

Mateus Oliva*

A Baía de Todos os Santos, capital da Amazônia Azul, é o palco para um projeto audacioso - uma ponte para conectar a movimentada Salvador à ilha de Itaparica. Este empreendimento é um labirinto de considerações complexas que exigem uma avaliação cuidadosa.

As pontes são símbolos notáveis de conexão e progresso humano. Não apenas unem geograficamente dois pontos, mas também representam a união de economias e povos. Muito melhor a ideia da construção de uma ponte do que a construção de muros, proliferados dada a crise de segurança pública na Bahia. No entanto, obras monumentais trazem consigo desafios técnicos, financeiros e ambientais.

Na Itália persiste um plano caro e malsucedido de construção de uma ponte sobre o Estreito de Messina, na Sicília. Desde os romanos, até os dias atuais, apesar de inúmeros e custosos estudos e tentativas, o projeto nunca se materializou. Ambição milenar fracassada. Em contraste, a “Golden Gate Bridge” na Baía de São Francisco, região abastada da Califórnia, tornou-se símbolo do progresso e harmonia entre a engenharia e o meio ambiente. No Brasil, a ponte Rio-Niterói, orgulho nacional, fechou um circuito viário continental em torno da Baía de Guanabara. A ponte foi construída com o interesse inglês. A longeva Rainha Elizabeth II veio à inauguração. Por trás de toda pompa estavam a siderurgia e o capital ingleses. Ficou o Brasil com o orgulho e a dívida externa de uma obra que custou mais de 300% do que o orçado. O Rio não é uma metrópole desenvolvida.

A Bahia tem riquezas e polos de excelência, tem também extrema pobreza e carência de infraestruturas básicas. A necessidade de conexão intermodal entre polos produtivos e os mercados intra e internacionais é gritante. Setores econômicos, desde o tecnológico e produtivo agronegócio, a geração das energias renováveis éolica e solar, as cadeias industriais verticalizadas, até os vastos recursos minerais, entre outros, clamam por uma infraestrutura intermodal conectada.

A construção da ponte Salvador-Itaparica, embora seja uma ideia sedutora, tem um efeito de tunelamento. Concentra-se na conexão de apenas dois pontos através de modal único. É essencial que o Estado promova os investimentos nas conexões ferro-rodo-portuárias e assim equilibre, com sustentabilidade, o desenvolvimento das regiões.

É temível que a ponte intensifique o fluxo rodoviário para Salvador. A população ao sul buscará serviços de educação, hospitalidade e saúde oferecidos na capital. A península afunilada, de topografia irregular, congestionada e densamente povoada, terá os desafios de mobilidade urbana amplificados. É certo que não será um alívio de tensões. É incerto que a construção da ponte seja prioridade para elevar o Índice de Desenvolvimento Humano na Bahia.

*Matheus Oliva - Empreendedor

** Artigo publicado no jornal Correio da Bahia, edição do dia 8/08/2023

quinta-feira, 3 de agosto de 2023

Viva Kirimurê

Vicente Antonio*

Que cenário ideal de se falar e pensar a cidade da Bahia, a capital da Bahia, Salvador, envolta em uma massa de oceano e mar, ao lado DO TRÊS MARIAS ícone  deste museu e pedra  fundamental da epopeia  das navegações oceânicas do navegador moderno Aleixo Belov. Aqui, vindo de longe chegou primeiro Américo Vespúcio em 1501, como cartógrafo da expedição de Gaspar Lemos descobrindo Kirimurê, na linguagem Tupinambá e relatando ao Rei D Manuel I, o Venturoso,  que é aqui que deve começar  o Brasil, o novo Mundo e 48 anos depois chega Tomé de Souza para fundar esta encantadora cidade que hoje em pleno século 21,  teima em se modernizar, continuando  humana, atraindo navegadores de mar e das artes de todas as partes do mundo. O navegador florentino Vespúcio veio descobrir Kirimurê, Aleixo Belov, saindo de Kirimurê  fez viagens transatlânticas que deixariam Colombo, Vespúcio e Cabral abismados. A rota  da segunda viagem em solitário é impressionante. Sai de Salvador, rumo norte, atravessa o canal do Panamá,  cruza o pacífico,  chega à Austrália, passando por Galápagos, Tahiti, daí ruma para a Índia, sobe o mar Vermelho, atravessa o Canal de Suez, chega ao Mediterrâneo, faz uma estada em Chipre, para em Busca das Raízes, ir de avião à Moscou, depois a Karcov na Ucrania, matar a saudade de sua aldeia rural MEREFA, a 40 km  de trem de Karcov. Pisou no chão pela 1ª vez de sua terra natal, que havia saído com sete meses há 44 anos atrás(1987). Depois de 53 dias em terra pega de volta o TRES MARIAS  navegando pelo mediterrâneo, estreito de Gilbraltar e finalmente o destino ansioso do BRASIL, Rio de Janeiro e finalmente Salvador, KIRIMURÊ. 

O historiador, ensaista literário, biógrafo e urbanista utópico, Lourenço Mueller, narra em crônicas curtas e abrangentes tudo o que pôde falar de Kirimurê, da cidade da Bahia (Salvador), do Comandante Belov e de si mesmo. 

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“São 145 páginas divididas em duas partes. A primeira é composta por 26 capítulos que transportam o leitor para um universo repleto de peculiaridades, como o "baianês", a música, a culinária, a capoeira e a arquitetura colonial e barroca do Brasil. A segunda parte é um ensaio futurístico com reflexões filosóficas, proporcionando uma experiência literária rica e abrangente” - Lourenço Mueller.
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*Vicente Antonio - vindo do Cariri paraibano, onde o mar virou sertão,  aqui se fixou, neste promontório historico fortificado, banhando-se cotidianamente em Kirimurê.

terça-feira, 25 de julho de 2023

Kirimure, histórias da baía de todos os Santos.

 


Kirimure tem o nome cristão de todos os santos, mas esconde demônios verde-azulados e personagens insólitos nos lugares que margeiam seu Mar, com maiúscula, sempre... Descubra esses mistérios, neles se inspire para se entreter, aprender ou refletir, sonhar ou se indignar e, quem sabe, encontrar soluções para muitas doenças da alma da cidade da Bahia, mãe ou filha desse grande Mar Interior. Você já esteve diante de um tubarão-martelo? É amigo de um grande navegador? Já deu uma rasteira num paulista? Já leu Amado, Rosa ou Ubaldo? Já quase morreu onze vezes? Ou pensou que poderia morar numa cidade ideal, criada em função de você? Há um jeito... Já ouviu falar sobre ele e ela? Você precisa entender agora os moradores desta Terra e deste Mar…”


Lourenço Mueller lança no dia 1 de agosto, a partir das 16h, no Museu do Mar Aleixo Belov (Santo Antônio Além do Carmo), o seu terceiro livro,  
"Viva Kirimure: Histórias da Baía de Todos os Santos
.Lourenço Mueller atuou como escritor (teve três romances publicados), artista plástico (exposições em que mistura telas de temas urbanos com poesias, frases e espelhos) é mergulhador, capoeirista e nadador. Realizou mestrado em ciências sociais, doutorado em arquitetura e urbanismo pela UFBA e especializações na França e na Colômbia. Trabalhou no governo do estado da Bahia (IPAC, CIA, SIC, CONDER) e foi consultor em planejamento urbano, municipal e metropolitano. Fez conferências em encontros técnicos em Salvador e outras capitais. Ensinou na UFBA e na FACS, teve projetos arquitetônicos e urbanísticos construídos na capital e no interior e premiações nas áreas de arquitetura, jornalismo e marketing empresarial. O autor tem artigos técnicos publicados em anais de congressos, revistas e jornais e é articulista permanente do jornal A Tarde, onde escreve sobre diversos temas e promoveu ciclismo e ativismo na cidade e região. Após a criação da Fundação Aleixo Belov, foi convidado para presidi-la (2019). Em 2017, criou o 'Cibergrupo Kirimure', uma networking para discutir e apresentar propostas de economia criativa e desenvolvimento sustentável para a Baía de Todos os Santos.n

sexta-feira, 14 de julho de 2023

Salvador uma Cidade feita de Música


Nelson Motta*

Hoje a história é de amor, de cores vivas, de luz sensual e mar infinito, um caso de amor e alegria com uma terra e uma gente. Já amava a Bahia antes de conhecê-la, cheguei a ganhar um festival da canção com Dori Caymmi com a música “Saveiros” quando tinha 22 anos e nunca havia visto um saveiro na vida rsrs. Minha Bahia imaginária era dos livros de Jorge Amado e das músicas de Dorival Caymmi, e depois, das conversas com Caetano e Gil. Só a conheci, digo carnalmente, três anos depois, no carnaval de 1969, e era ainda melhor do que eu imaginava, os cheiros, os sabores, os sons, a alegria das ruas e das praias e a delícia do mar de águas frescas, isto não estava nos livros.

Em 1972, houve meu batismo na baianidade, guiado por Gil e sua mulher Drão, numa experiência fundamental de minha vida, com Mãe Menininha no terreiro do Gantois, que se tornou meu lar espiritual da vida até hoje. Muito forte. E profundo.

A Bahia sempre foi minha maior fonte de inspiração. Desde a série de 15 canções feitas com Dori Caymmi no nosso início profissional, em que tentava harmonizar a baianidade poética com a musical. Depois a Bahia imaginária se tornou real, mergulhei nela várias vezes, fora os carnavais, pesquisando para a biografia do jovem Glauber Rocha, que virou o livro “A primavera do dragão”. Depois, produzindo o show e o disco “Eletrodoméstico”, de Daniela Mercury, gravado ao vivo na Concha Acústica. A parte mais gostosa foram os ensaios, um mês em Salvador, entre a praia e o estúdio, mergulhando na música baiana e sua modernidade. E fiz um mestrado no mundo do carnaval e dos trios elétricos nas conversas com Daniela, que inspiraram o romance policial “O canto da sereia — Um noir baiano”, em que uma jovem estrela do axé é assassinada em pleno carnaval, que em 2013 virou minissérie na TV Globo, com Isis Valverde.


Agora Salvador me inspira e emociona de novo, pela sua Cidade da Música, em um velho-novo casarão de azulejos azuis, que conta a história da Bahia através da riqueza incomparável de sua música, desde os primeiros batuques até a explosão de diversidade afro-brasileira em uma fabulosa usina de ritmos e músicas e letras.

Com curadoria rigorosa e emocionada de Gringo Cardia e Antonio Risério, tudo está registrado em vídeos superbem editados e excelentes textos sobre as 33 regiões de Salvador e a música que originaram, que vai do candomblé e dos blocos afro ao reggae jamaicano, que foi logo incorporado à polifonia da cidade, ao rock and roll apimentado de Raul Seixas, Camisa de Vênus e Pitty, cada bairro teve sua contribuição documentada em vídeos, textos e depoimentos de alta qualidade.

Mas o ponto alto é o filme de 40 minutos, em tela grande, contando como Carlinhos Brown e a música transformaram radicalmente o Candeal, de um bairro carente de tudo, em uma pequena cidade da música, do trabalho, da alegria de viver, que mudou a vida de milhares de pessoas e deu uma decisiva e afirmativa contribuição à cultura da Bahia. Vale acompanhar o trabalho deles no Instagram (instagram.com/cidadedamusicadabahia) ou http://cidadedamusicadabahia.com.br “

*Nelson Cândido Motta Filho ORB é um jornalista, compositor, escritor, roteirista, produtor musical, teatrólogo e letrista brasileiro. É autor de mais de trezentas músicas, com diversos parceiros



terça-feira, 4 de julho de 2023

BR 324, um gargalo econômico para a Bahia

Armando Avena*

A rodovia Salvador/Feira, conhecida como BR 324, está impedindo a Bahia de crescer e, no momento, se constitui em um dos maiores gargalos da nossa economia. Salvador e sua região metropolitana sediam o principal polo econômico e de infraestrutura do estado, gerando cerca de 50% do PIB estadual, e é pela BR 324, única ligação rodoviária da capital com o Sudeste do país, que passa toda a riqueza produzida e consumida na principal área econômica da região Nordeste. Apesar disso, a rodovia permanece sem investimentos de porte desde 2009, quando o setor privado assumiu a concessão. Os investimentos realizados até aqui não coadunam com a importância da rodovia, nem com o crescimento da frota de carros na Bahia, que mais que duplicou nestes quase 15 anos. O estado da rodovia é destaque na imprensa no São João, quando milhares de pessoas se dirigem ao interior, mas ele é destaque todos os dias na vida dos usuários e responsável pelo aumento do custo-Bahia, pois, se a principal rota de escoamento dos produtos estaduais é precária, o custo de produção e distribuição é maior tornando a economia menos competitiva.

A Via Bahia é a concessionária responsável pelo sistema de rodovias envolvendo trechos das rodovias federais BR-116 e BR-324 e outros trechos de rodovias estaduais. O consórcio espanhol Isolux/Corsan obteve a concessão em 2009 e durante anos administrou as rodovias de maneira precária com um desempenho abaixo da média. A partir de 2016,  o fundo canadense PSP Investments assumiu a rodovia, mas nada mudou. O nível de investimento da empresa é baixo, especialmente se for considerado o faturamento anual da ordem de R$ 500 milhões. Na verdade, a Via Bahia registra um histórico de sucessivos atrasos nos investimentos obrigatórios previstos em contrato e em 2013, a ANTT chegou a firmar um Termo de Ajustamento de Conduta (TAC) com a companhia espanhola para tentar colocar as obras em dia, mas de nada adiantou. Tampouco a troca do controlador pela atual empresa canadense resolveu o problema e a situação agravou-se a ponto do governo Bolsonaro   tentar declarar a caducidade no contrato de concessão, num processo que terminou na Justiça

A favor da Via Bahia está o fato das modelagens de concessões rodoviárias no Brasil incluírem outorgas altas e tarifas baixas e a pandemia que aumentou os custos, sendo necessário, portanto, o reequilíbrio econômico-financeiro do contrato e uma renegociação com o BNDES, mas é preciso lembrar que a PSP Investments, que controla a Via Bahia, é uma das maiores gestoras de investimentos de fundos de pensão no Canadá com cerca de 150 bilhões de dólares em ativos líquidos e pode muito bem colocar algum recurso próprio na Bahia.

De todo modo, parece razoável  a decisão do governo Lula de repactuar o contrato e manter a atual concessionária, evitando peleias jurídicas, mas essa  repactuação precisa vir com a garantia de investimentos no curto prazo. Deve estar previsto, por exemplo, a construção imediata de uma terceira pista nos trechos em que an amplitude do canteiro central, permite sua imediata construção a custo baixo e sem desapropriações. De tudo isso ressalta duas constatações: a primeira é a de que a concessão de serviços públicos ao setor privado não é uma panaceia que tudo resolve e precisa ser fiscalizada de perto pelo poder público; a segunda é que a Bahia não pode mais esperar e qualquer que seja a repactuação deve prever o início imediato de investimentos de porte na BR 324.

*Armando Avena é economista, ex-secretário de planejamento da Bahia.

terça-feira, 27 de junho de 2023

Meu pai, o legado fica

 


Paulo Bittencourt Studart*

Um mês sem meu pai. Saudades, de cuidar e ser cuidado por ele! Sinto muito orgulho e honra de tê-lo tido como pai, e desejo que eu seja capaz de prover e transmitir esse carinho, essa segurança e esse abrigo para minhas filhas. Mas esse texto não é sobre luto, é sobre a vida, e sobre seu legado.

Como um sábio, nos preparou aos poucos para sua partida ao longo dos últimos 3 anos. Na sua última semana, oscilamos entre a esperança da sua recuperação e a aceitação de viver num mundo sem ele.

Sua régua da paternidade foi alta. E graças a Deus pudemos reconhecer isso com ele ainda vivo. Nos almoços de domingo, ele nos falava e até chorava, o quanto se sentia abençoado por ter formado uma família tão unida. Concordávamos e agradecíamos de ter nascido numa família fruto do amor dele e de minha mãe.

Entendeu como ninguém a diferença entre herança e legado. Herança é o que você deixa para as pessoas, e legado, o que deixa nas pessoas. Meu pai não focou apenas na herança, ele deixou um enorme legado, o maior de todos: de amar a família, estar sempre a presente e disponível ao outro, acolher a quem precisar, ser generoso. Viver e não ter a vergonha de Ser Feliz.

A paternidade é um negócio complicado, e a perfeição não existe. Mas o segredo de meu pai foi tentar ser um pouco melhor a cada dia da sua vida.

Desejo que nossas filhas e sobrinhos, ao sentarem com os seus filhos [nossos netos e bisnetos de Jorge Studart] contem as histórias de suas histórias. Para que continuem valorizando e ecoando os sons das convivências em família, regadas de amor nas conversas, brincadeiras e gestos. Entendam que são amados, pois descendem de Jorge Studart, que estava sempre na posição de servo, a serviço de todos.

A paternidade me faz ser uma pessoa melhor, e hoje quero seguir honrando tudo que aprendi com meu pai.

Alguns diriam “Perdi meu pai”. No meu caso, gostaria de ressignificar essa frase dizendo: “Ganhei um Pai Exemplar durante 62 anos na minha vida”. Sim! Durante 62 anos da minha vida, tive o privilégio de ter um pai maravilhoso.

O homem vai, mas o legado fica.

*Diretor Executivo do Laboratório Studart Studart 

segunda-feira, 26 de junho de 2023

Salve o 2 de Julho e o Caboclo brasileiro


Paulo Ormindo de Azevedo*

No próximo domingo a Bahia comemora o Bicentenário da Independência do Brasil na Bahia. Lutas que conseguiram unir toda a sociedade baiana, desde senhores de engenho e fazendeiros a escravos e indígenas por um ideal de liberdade, com a abertura internacional, a abolição da escravatura, a inclusão social dos índios. Ideais inspirados na Constituição Americana (1787), na Revolução Francesa (1789) e na independência sul americana, que promoveu o regime republicano e a libertação dos escravos. Ideais que já haviam deflagrado revoltas como a dos Búzios, em 1798.

O 7 de Setembro de 1822 foi uma encenação recomendada por D. João VI, quando voltava para Portugal, onde reinava, mas já não governava, com a Revolução do Porto, a seu filho Pedro I como tentativa de salvar a Monarquia dos Bragança na América. Mas os liberais portugueses não concordavam com a independência da antiga colônia e mandaram reforços ao general Madeira, comandante da tropa em Salvador, para manter o domínio. Luta sangrenta de resistência do povo do Recôncavo e do sertão. 

A monarquia foi uma grande decepção contestada em todo o Nordeste, com a chamada Confederação do Equador (1824). Na Bahia as revoltas tiveram um caráter libertário, antiescravista e republicano, como a dos Periquitos (1824) e dos Malês (1835). D. Pedro II não fez nada pela educação e o social no Brasil, que foi o último país a libertar os escravos. 

Não foi pequena a contribuição negra e indígena naquelas lutas. O Gal. Labatut criou um  batalhão de negros acenando com sua libertação, mas diante da revolta deles pelo não cumprimento da promessa, mandou executar 50. Por sua vez, os indígenas das antigas missões eram grandes conhecedores do território, numa luta em parte de guerrilha. Essa vitória popular criou um ícone da identidade baiana e brasileira, o casal de Caboclos, mestiços de índio, negro e branco crioulo. Sua procissão anual é ainda hoje, passados 200 anos, a maior festa baiana. 

Tenho a honra de presidir a comissão da Academia de Letras da Bahia de homenagens à efeméride. Teremos no próximo dia 29 na ALB, às 19hs, uma festa de arromba, com a conferencia do professor canadense Hendrik Kraay e apresentação da Orquestra Sisaleira de Conceição do Coité, seguida da Exposição 2 de Julho, a Independência do Brasil na Bahia, de 40 artistas baianos, durante o mês de julho, na Galeria Canizares, promovida pela ALB e EBA-UFBA e, no segundo semestre, a publicação de um livro com estudos sobre o 2 de Julho. 

A nossa economia permanece extrativista-exportadora, como na colônia, só que no passado exportávamos produtos de alto valor, como ouro, diamantes e açúcar e hoje, commodities sem valor. Ainda temos escravidão no campo e 50% da população não tem segurança alimentar. Que o Bicentenário do 2 de Julho seja a renovação da luta pela descolonização.

*Professor Titular da Escola de Arquitetura da Ufba

A Tarde, 25/06/2023

quinta-feira, 27 de abril de 2023

Já que é inevitável, que não seja violento


Paulo Ormindo de Azevedo
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Continuo pensando que a ponte de passeios Salvador-Itaparica é um estrupo ambiental e urbano. Além de marginalizar o Recôncavo com seu rico potencial turístico/esportivo, comprometer o estaleiro de São Roque e um hub-porto em águas abrigadas com 23 m de calado em Salinas da Margarida que pode ser um dos terminais marítimos e ferroviários transcontinentais mais importantes da América do Sul, com a saída de minérios e grãos dos países andinos e do Planalto Central para a rica costa leste dos EUA e Europa. A ponte vai duplicar a área metropolitana de Salvador desidratando o oeste da BTS e duplicando a função dormitório da capital.

Já que há compromissos do estado com os chineses que são irreversíveis, que se busque ao menos amenizar seus efeitos mais danosos. Sua trajetória atual em gancho é da década de 1970, como se a cidade e a engenharia tivessem parado há meio século. Com essa trajetória a Marinha exige que seja dragado um canal para permitir o acostamento seguro de navios no porto de Salvador e contesta a posição do seu vão central. Se é para se fazer a ponte por um capricho, que se faça uma ponte moderna reta, com barreira central móvel, flexibilizando o sentido da demanda.

A Academia de Engenharia da Bahia elaborou estudo sobre a trajetória da ponte oficial e aponta erros graves, como a incapacidade da Via Expressa em absorver o fluxo da ponte e seu impacto no centro da cidade. Ela aponta três alternativas de trajetórias retas ligando a ponte diretamente a BR 324 e Via Metropolitana, sem impacto sobre a cidade, paisagem urbana e a outra navegação, pois preservaria a área de escape de navios em condições meteorológicas adversas, dispensando a dragagem do porto.

Defendo há 15 anos uma envolvente rodoferroviária da BTS que poderia transformá-la numa Côte d’Azur francesa. Solução semelhante da Conder volta à baila defendida pelo ex-deputado Sérgio Carneiro (A Tarde,19/02/23). Para complicar, o estado diz que vai comprar dois novos ferries e eles não serão desativados. Vera Cruz vai se transformar em um favelão como São Gonçalo, junto a Niterói, terminal de carretas e bitrens, que não podem entrar na cidade.

A sina da ilha é ser um porto-seco com pátios de contêineres, galpões, oficinas, borracharias e dormitórios para caminhoneiros. Nos primeiro 20 anos, vamos ter que pagar pedágio sobre quatro faixas ociosas com uma média de 40 mil veículos virtuais dia, ou R$650 milhões ano. Nada disto vai mudar com uma nova trajetória da ponte, mas poderá mitigar seu impacto sobre uma das mais belas baías do mundo, o centro de Salvador e os bairros do Comércio e Boa Viagem. Agora que vai ser feita a sondagem dos pilares, a ponte pode ser relocada. Por que a Prefeitura de Salvador e a Conder, que não foram ouvidas, não podem exigir um impacto menos amargo sobre a cidade e a BTS?

*Arquiteto, Professor Titular da UFBA

quarta-feira, 26 de abril de 2023

Itaparica: fatos & fotos


Os registros históricos sobre a ilha destacam a vinda, em 1510, do navegador português Diogo Álvaro Corrêa, o Caramuru, que, enamorado da índia tupinambá Paraguaçu, filha do cacique Taparica, casou-se com ela. Os índios Tupinambás foram os primeiros habitantes da ilha, daí a origem do seu nome. Conta uma das lendas, que Itaparica vem do Tupi e significa 'cerca feita de pedras', por causa dos arrecifes que contornam toda a costa da ilha. A sua ocupação deu-se a partir de um pequeno núcleo de povoamento fundado por jesuítas na contra-costa, em 1560, onde hoje se localiza a Vila de Baiacu, então denominada como Vila do Senhor da Vera Cruz. Nesse período, foi nela iniciada a primeira plantação de cana-de-açúcar, assim como a cultura do trigo, tendo recebido os primeiros exemplares de gado bovino. Foi ainda em Baiacu que aqueles religiosos fizeram erguer a primeira obra de engenharia hidráulica da colônia: uma barragem para o suprimento de água potável e para os serviços da povoação. A riqueza gerada nesse curto espaço de tempo levou a que corsários ingleses atacassem a ilha já em 1597. Entre os anos de 1600 e 1647, foi invadida pelos holandeses. Durante a última destas invasões, os holandeses chegaram a construir um forte, denominado Forte de São Lourenço. 

Em 1763, Itaparica, que era a maior ilha da colônia, chamou a atenção da Coroa e, por conta disso, foi então incorporada aos seus bens. Os afamados estaleiros da Ilha de Itaparica eram também empório de construções navais da colônia: ali se armou a primeira quilha da Marinha de Guerra no Brasil. Nesta época, também existiam cinco destilarias de aguardente, além das fábricas de cal - nove, em meados do século XIX. Porém, a maior atividade econômica da ilha foi a pesca da baleia, sobretudo durante os séculos XVII e XVIII, por este fato, antes de chamar-se Itaparica era conhecida como Arraial da Ponta das Baleias. 


Neste período, antigos e belíssimos sobrados, existentes até hoje, hospedaram imperadores brasileiros como D. Pedro I e D. Pedro II. Foi em Itaparica que se assentou a primeira máquina a vapor em terras brasileiras, no engenho de Ingá-Açu. A Fonte da Bica, importante local da cidade, foi construída em 1842 e oficializada como Estância Hidromineral em 1937, única do país à beira-mar. A água possui indiscutíveis propriedades medicinais em sua composição. A nascente fica oculta no morro de Santo Antônio. Gentílico: itaparicano Formação Administrativa Criada originariamente pelo decreto imperial de 25/10/1831, possui como norma vigente de criação a lei estadual nº 628, de 30/12/1953, publicada no Diário Oficial em 14/02/1954. 


 A ilha foi emancipada de Salvador em 8 de agosto de 1833 e elevada à cidade em 30 de julho de 1962. Posteriormente, o município foi desmembrado em dois: o de Itaparica e o de Vera Cruz.

domingo, 23 de abril de 2023

Como se formam as baías

 

Hanna Warrd*
Como são formadas as baías?
Existem várias maneiras pelas quais as baías podem ser formadas. O método mais óbvio é a erosão. Os litorais são feitos de muitos tipos diferentes de rocha, sendo alguns muito mais difíceis do que outros. A rocha mais macia, a lama e a argila se desgastam mais rapidamente do que a rocha mais dura devido à erosão da água. Isso então forma o recuo no litoral. No entanto, embora isso seja o mais óbvio, nem sempre é o motivo pelo qual uma baía foi formada. Em vez disso, as baías também podem ser formadas por rios e geleiras. Eles podem até ser formados quando o oceano simplesmente transborda para áreas do litoral também.
Apesar disso, muitas baías são na verdade formadas pelas placas tectônicas. As placas tectônicas são as placas gigantes que compõem a crosta continental e oceânica da Terra (também conhecida como litosfera) e são feitas de enormes pedaços de rocha sólida. No entanto, eles não ficam parados e deslizam continuamente um sobre o outro. Isso ocorre porque eles ficam no topo de uma camada de rocha fundida, também conhecida como astenosfera. As correntes de convecção entre os dois fazem com que as placas tectônicas se movam.
As placas tectônicas podem mover qualquer coisa entre um e seis centímetros por ano e são responsáveis ​​pela formação de muitas formações de terra diferentes. Várias cadeias de montanhas e linhas de falha são causadas por essas placas, assim como muitas baías. As baías são formadas devido à forma como as placas tectônicas se movem ao longo de milhões de anos. Isso faz com que os continentes se juntem constantemente apenas para serem separados novamente e criem novos litorais conforme isso acontece.
* Geógrafa 

segunda-feira, 10 de abril de 2023

A ponte Salvador-Itaparica vale mesmo a pena?

Sendo a Bahia um estado pobre, é difícil aceitar que se aloque R$ 2 bilhões de recursos públicos em uma ponte que nem sequer possui viabilidade econômica.


Marcus Alban*

De outro lado, voltando à ponte Rio-Niterói, cabe notar que a mesma foi construída no auge do rodoviarismo, o que é completamente distinto dos dias atuais.

Hoje, qualquer pessoa minimamente informada sabe que os carros têm os dias contados. Num horizonte de cinco a dez anos serão drasticamente reduzidos, sendo substituídos por autômatos compartilhados e articulados a sistemas metroviários.

Em paralelo, também o rodoviarismo de carga encolherá significativamente, sendo substituído por modernos sistemas ferroviários e de cabotagem.

Ou seja, a ponte, em sendo necessária, deveria ser metro-ferroviária — nunca rodoviária. É de fato um absurdo o que está se propondo, mas os problemas não param aí.

Ocorre que, para tornar a ponte viável, o governo, além de entrar com parte dos recursos, mudou o projeto anteriormente pensado.

Em linhas gerais, pegou-se o vão central de 125 metros de altura e 550 metros de largura, e reduziu-se respectivamente para 85 e 450 metros.

Como se observa, para reduzir o investimento, literalmente encolheu-se o vão central, como se isso não tivesse importância. Só que tem importância, muita importância.

É inacreditável que isso tenha sido feito por uma equipe técnica, em tese séria, e esteja sendo proposto pelo governo.

Com essas novas dimensões, de acordo com especialistas da área, uma série de plataformas e navios sonda simplesmente não poderão entrar, e nem sair montados no caso de serem feitos aqui.

De outro lado, com a nova largura, navios de carga mais modernos já não poderão transitar em mão dupla, com velocidade e segurança adequadas.

E os navios, como é sabido, seguem crescendo, com o que, dado traçado do projeto, as restrições ocorrerão também no Porto de Salvador/Tecon.

Cria-se, assim, um verdadeiro gargalo que mata todo o futuro industrial e logístico da BTS e seu entorno. Ou seja, mata todo o futuro da Bahia. Vale a pena?

*Marcus Alban é Engenheiro Mecânico, Mestre em Administração e Doutor em Economia.


segunda-feira, 27 de março de 2023

Porque me mudei para Salvador



 Bernardo Attal*

“Nasci na região da Normandia na França e me mudei para o Brasil em 2006. O motivo pelo qual resolvi abandonar Nova Iorque, onde eu morava, para viver em Salvador, por muitos anos foi um mistério não só para mim mas também para meus parentes e amigos. Tentei elucidar esse mistério em meu novo filme Cidade Porto sobre o bairro do Comércio. As obras de Jorge Amado claramente me influenciaram pelo encanto que elas podem originar na mente de um adolescente criado em uma região fria e chuvosa da França. A diversidade da população, a facilidade pelo qual se estabelecem relações humanas em Salvador também tiveram seu papel. Porém acho que a possibilidade de trabalhar e de criar no bairro portuário do Comercio e de morar em Santo Antonio com vista nele, foram mais decisivos.


Não é só por conta da presença diária do mar. A escritora Aude Mathé escreveu que o porto representa “a intimidade do abrigo e o infinito do horizonte, o confinamento e a liberdade, o laço e a ruptura.” 

Acho que Salvador, por ser uma cidade sediada em uma baía mas também virada para o mar aberto, oferece todo isso.”

*É diretor e produtor de cinema. Proprietário e diretor geral do Trapiche Barnabé.

sexta-feira, 24 de março de 2023

O Metrô pode chegar ao CH e ao Comércio


Paulo Ormindo de Azevedo
*

O Comércio e o Centro Histórico são duas áreas decadentes da cidade, cheias de ruínas. Já se gastou rios de dinheiro público e privado sem resultados. Decadência estrutural devida à sua difícil acessibilidade e esvaziamento funcional, com a reforma urbana de ACM (1970), que os sugou com o centro comercial do Iguatemi e o Centro Administrativo da Bahia.

 Estes dois problemas podem ser enfrentados se houver planejamento e vontade política. A acessibilidade pode ser melhorada com dois túneis vinculados ao Metrô: C. da Pólvora/Comércio e Lapa/Barroquinha. Seus estudos foram iniciados em 1999, no TFG do Arq. Henrique Oliveira de Azevedo, sob minha orientação. Com uma consultoria à UNESCO/FMLF, em 2019, retomei o estudo visando criar um acesso para o CH e integrar os três níveis da cidade ao Metrô: Comércio e monotrilho suburbano, ônibus da B. dos Sapateiros e metrô da Cidade Alta. Como ele será um dos seus principais acessos, caberá à CCR sua manutenção e segurança. 

Em São Paulo a CCR mantém quilométricas galerias subterrâneas de metrô com escadas e esteiras rolantes, ar condicionado, obras de arte e segurança. Por que não pode manter uma galeria de 825m aqui. 


Com o túnel, usuários do Comércio podem chegar de ônibus até o Campo da Pólvora, ou deixar o carro numa das 3.500 vagas do estacionamento da Fonte Nova, só utilizadas durante jogos e shows, e se deslocar por 825 m em esteiras rolantes até o Comércio. Ninguém faz esta trajetória pelas ladeiras. 

Com relação ao esvaziamento funcional a saída é transformar o CH e o Comércio num distrito de uso misto – habitação, serviços e lazer - removendo as barreiras para o mar como fizeram Londres, Nova York, San Francisco, Baltimore e Manaus, durante a desativação parcial de seus portos. Em Salvador os armazéns das docas demolidos estão sendo substituídos por novas construções e estacionamentos fechados para a BTS.

A recuperação do CH só é viável com programas como Minha Casa, Minha Vida, porque as classes remediadas não admitem morar numa habitação sem garagem, play ground e quartos iluminados por poços. É a classe popular que produz a cultura e a identidade do CH. 

Introduzir habitação no Comércio implica transformar edifícios de escritórios vazios em habitacionais e criar infraestrutura de educação, saúde e abastecimento. Uma operação urbana inteiramente viável financeiramente! Finalmente, se questiona a prioridade da obra. Para integrar os três níveis da cidade e os quatro principais modais – metrô, ônibus, monotrilho e hidrovia – esta obra está orçada em R$300 milhões, ou seja, cerca de um terço do BRT de R$820 milhões.

Esta polêmica tem o mérito de discutir uma obra pública, que faltou na implantação do trem metropolitano e BRT que destruíram árvores frondosas para substituir pelo concreto. 

*Arquiteto e Professor Titular da UFBA, com doutorado na Universidade de Roma

 

Artigo publicado no jornal A Tarde, 23/03/2023

quarta-feira, 22 de março de 2023

As terras da ilha de Boipeba são particulares

Luiz Walter Coelho Filho*

A polêmica em torno de empreendimento na Ponta dos Castelhanos, Ilha de Boipeba, tem como pilar a crença fomentada e equivocada do domínio da União sobre aquelas terras insulares. As terras da ilha de Boipeba e aquelas em particular são particulares. Nunca pertenceram à União.

O Patrimônio da União tenta impor seu domínio de forma abusiva, mas direito não tem. A questão é relativamente simples. A Constituição Federal assegura à União o domínio residual sobre as terras interiores nas ilhas. Isso significa que a terra será da União se não pertencer a outrem, que pode ser município, estado ou particular. Em linguagem inversa, se a terra pertence à particular, estado ou município não será da União.

O domínio da União é residual. A finalidade é evitar o vazio dominial (se não for de alguém, será da União) e impõe o dever ao Governo Federal de respeitar os títulos constituídos. O Patrimônio da União não cumpre, como regra, esse dever e se especializou em promover, pela força do seu poder, a subtração das terras insulares dos particulares pregando a crença falsa e inconstitucional do domínio federal à qualquer custo.

Vale aqui lembrar que essa questão da propriedade das terras interiores nas ilhas não se confunde com o terreno de marinha, que pertence à União, não se discute, e tem seu limite na testada de 33 metros a partir da preamar média das praias.

A fazenda Ponta dos Castelhanos foi formada por desmembramento da antiga fazenda Espírito Santo, também conhecida com o nome de Tatuim ou Fatuim. Essa antiga fazenda tem longa cadeia sucessória, bem estudada e que remonta ao Século XVI.

A cadeia de títulos de propriedade da fazenda Ponta dos Castelhanos nos últimos 160 anos está totalmente reconstituída e provada. Merece destaque a transcrição 413-A, de 19 de outubro de 1897, existente no Registro de Imóveis de Valença (Figura 1). Poucas propriedades privadas possuem cadeia sucessória tão rica e bem documentada.

O Ministério Público Federal com atuação no assunto não tem aparente compromisso com a defesa da propriedade privada e insiste na crença da não verdade, exigindo que o Patrimônio da União exerça direitos de regime de ocupação que não se aplicam ao imóvel.

Lamentável que tantos agentes públicos insistam em não examinar e respeitar a propriedade privada, apregoando ou repetindo mil vezes mentira para transformá-la em verdade.

Aparentemente, existe tentativa articulada de transformar as ilhas em feudos da União. Isso é trágico! Transforma populações em meros ocupantes privando-os dos direitos que qualquer proprietário tem de vender, explorar, parcelar, construir, constituir hipoteca ou alienação fiduciária em suas terras. É um atentado à Constituição Federal!

Em tudo e por tudo, o domínio da União sobre as terras interiores da ilha de Boipeba é uma alteração da verdade dos fatos com requinte de abuso de poder.


*Luiz Walter Coelho Filho

Sócio-fundador do escritório Menezes, Magalhães, Coelho e Zarif Sociedade de Advogados.

Publicado originalmente no link: https://www.migalhas.com.br/

segunda-feira, 20 de março de 2023

A intimidade artificial virou o mal do século


Ronaldo Lemos*

Esther Perel é psicoterapeuta. Nasceu na Bélgica, filha de sobreviventes do holocausto. Hoje é professora da universidade de Nova York e especialista em temas como solidão e relacionamentos contemporâneos, incluindo relações amorosas. No festival SXSW, realizado em Austin, no Texas, que se encerrou ontem, ela roubou a cena. No meio de uma pletora de palestras sobre tecnologia, sua fala sobre comportamento humano foi a mais importante na minha opinião. Ela desenvolveu o fascinante tema da “intimidade artificial”. Seu argumento é que estamos vivendo nossas vidas em permanente estado de atenção parcial. Quando nos relacionamos com nossos amigos, amantes ou familiares nunca estamos 100% presentes. Nossa atenção está sempre dividida entre as pessoas e o nosso celular, mídias sociais, alertas de mensagem e assim por diante. Nesse contexto não é possível intimidade real. As mídias sociais e nosso celular funcionam como anestesia seletiva para as relações humanas. Queremos as partes boas do convívio, que são do nosso interesse, mas evitamos ao máximo atritos, conversas desconfortáveis, tédio etc. Sempre que algo desconfortável começa a se materializar, partimos para o mundo confortável e controlado do celular, que nos distrai do que é verdadeiramente humano. Essa é a intimidade artificial. Estamos todos vivendo coletivamente o experimento do rosto parado que o psicólogo Edward Tronick realizou nos anos 1970. Nele, uma mãe primeiro é gravada se relacionando normalmente com seu bebê de 6 meses. Ela sorri, o bebê sorri de volta. Ela fala algo e o bebê dá uma gargalhada. No segundo momento a mãe paralisa seu rosto. Ela olha fixamente para o bebê, sem expressar qualquer reação. O bebê então gargalha. A mãe permanece impassível. O bebê então começa a gritar. Nenhuma reação da mãe. O bebê então chora e grita desesperadamente, até que a mãe retoma suas reações normais e acolhe a criança. No mundo que estamos vivendo hoje somos todos simultaneamente a mãe e a criança. Como somos incapazes de dar atenção integral ao outro, estamos sempre em dívida emocional com as pessoas que nos cercam. Ao mesmo tempo, somos também o bebê, sedentos por atenção. Nunca houve uma carência tão grande por escuta e acolhimento como a que vivenciamos coletivamente no mundo de hoje. 

Esther nos conclama a nos rebelarmos contra a intimidade artificial. A exigir e a dar atenção total para aqueles com quem nos relacionamos. A darmos o difícil passo de aceitarmos o conflito e o atrito como parte das relações humanas, parando assim de nos anestesiarmos parcialmente o tempo todo. Sem isso seremos obrigados a conviver com relações que julgamos “defeituosas” o tempo todo. Uma pesquisa realizada nos EUA em 2019 apontou que 22% dos “millenials” têm hoje zero amigo. 25% dizem não ter nenhum conhecido. Eu Muitos têm um número de seguidores gigantesco em redes sociais, mas amigos mesmo, nenhum. Em gerações anteriores o número dos sem-amigos girava em torno de 9%. Não é por acaso que ansiedade e depressão são um dos assuntos que mais circulam em mídias sociais hoje entre adolescentes e também crianças. Na era da intimidade artificial, não são só as amizades que estão em risco, mas também as relações amorosas e familiares. Apertem os cintos para a sociedade da solidão, com consequências nefastas para todos os campos da vida humana.

*Advogado, diretor do Instituto de Tecnologia e Sociedade do Rio de Janeiro.

domingo, 19 de março de 2023

Verde que te quero cinza


Paulo Ormindo de Azevedo
*

 O famoso poema de Garcia Lorca está sendo reescrito na Bahia. Sim, uma empresa do presidente da Fundação Roberto Marinho, de Armínio Fraga, ex-presidente do Banco Central que recusou convite para servir ao país como Ministro da Fazenda, e outros sócios famosos, está fazendo uma reforma agrária pelas avessas na Fazenda Ponta dos Castelhanos, na ilha de Boipeba, que segundo a Superintendência do Patrimônio da União pertence à nação. 

 Está expulsando a população de quase uma centena de pequenas roças e choupanas de pescadores instaladas desde o século XVII, dado o nome, para incorporar um resort de luxo, com campos de aviação e golfe, que depredarão a reserva de Mata Atlântica, duas pousadas e marina para 150 lanchas que ameaçam os manguezais e restingas locais. O empreendimento imobiliário, que ocupa 20% da frente marítima da ilha, equivalente a 1.700 campos de futebol, curiosamente é incorporado por uma empresa agrícola, a Mangaba Cultivo de Coco Ltda., e foi licenciado pelo INEMA sob a alegação que é uma medida para preservar a reserva. Trata-se do último ato na Bahia da política do ex-ministro Ricardo Salles de passar a boiada. 


A Globo, que fala tanto da preservação do meio ambiente, não noticiou o fato, ao contrário da invasão pelo MST de propriedades da Suzano, que desmatou o que restava da Mata Atlântica para cultivar eucalipto que exaure o solo e que acaba com a fauna local para exportar celulose e importar papel em rolo para a imprensa. A invasão injustificada do SMT, apesar de ser um protesto contra acordos não cumpridos pela empresa, foi prontamente reprimida pelo MPE. Espera-se que o MPE aja do mesmo modo por esta tentativa de invasão de colarinho branco muito mais extensa e grave em Boipeba. 

A questão ambiental não é apenas um problema mundial, é gravíssima no Brasil e está ligado ao racismo estrutural contra índios da Amazônia e negros urbanos que são os grupos mais discriminados da sociedade brasileira, e se reflete em fenômenos climáticos que não aconteciam no país, como ciclones no sul, chuvas de granizo no sudeste, desidratação do Pantanal e do cerrado e deslizamento de terras nas serras carioca e paulista com centenas de mortos. Não é possível que a população pobre não tenha acesso ao solo urbano e tenha que ocupar terrenos sem condições de estabilidade e acessibilidade, como morros, encostas, margens de rios e alagados, perdendo vidas e bens que construíram a duras penas. 

É urgentíssima no Brasil a reforma agrária, para garantir a segurança alimentar de nossa população, e urbana, para acabar com o flagelo das inundações e corrimentos de terra e formação de territórios de exclusão e resistência, novos quilombos, aonde não chega o estado e são disputados por gangues de milicianos armados que provocam centenas de mortes e perdas patrimoniais todos os anos.

* Paulo Ormindo de Azevedo é Arquiteto e professor, com doutorado na Universidade de Roma.

**Artigo publicado no jornal A Tarde, em 19/03/2023

segunda-feira, 6 de março de 2023

Tributo ao último planejador


Paulo Ormindo Azevedo*

Os manuais de empreendedorismo enfatizam que a chave do sucesso é o planejamento da empresa. Para administrar um estado ou cidade, tarefa muito mais complexa, não se exige nada. Governadores e prefeitos podem fazer o que lhe der na telha. Genericamente detestam o planejamento porque lhes cria uma camisa de força e limita o “tome lá, me dê cá”, que assegura sua continuidade política.

O Brasil já teve grandes planejadores, como Celso Furtado, que elaborou o Plano de Metas de Juscelino, quando criou a Sudene, dirigiu o BNDE, e redigiu o Plano Trienal de Goulart e de Ação de Tancredo. Outro foi João Paulo dos Reis Veloso que durante o regime militar exerceu vários cargos como a criação do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA). Em 1968, foi nomeado secretário-geral do Ministério do Planejamento, assumindo a pasta durante os governos de Médici e Geisel (1969 a 1979).

O mais atuante deles foi, porém, Rômulo Almeida que no início do segundo governo de Vargas foi um dos criadores da Petrobrás (1950) e integrou o Gabinete Civil da Presidência da República, que organizou a Assessoria Econômica da Presidência da República. A partir de 1953, tornou-se consultor econômico da Sumoc, antecessora do Banco Central, estruturou a Superintendência do Plano de Valorização Econômica da Amazônia (SPVEA) e o Banco do Nordeste, do qual foi presidente.

Em 1955 assumiu a Secretaria da Fazenda da Bahia quando criou a Comissão de Planejamento Econômico (CPE). No período de 1957 a 1959 reorganizou o Instituto de Economia e Finanças da Bahia e nesse último ano, já no governo de Juraci, representou a Bahia na Sudene e foi nomeado Secretário de Economia, quando criou a  Coelba. Foi diretor da Fundação Casa Popular, de Empreendimentos Bahia S.A., da Elétrico-Siderúrgica Bahia S.A., além criar e presidir a Consultoria de Planejamento Clan S.A. que idealizou o Polo Petroquímico de Camaçari, o Porto e o Centro Industrial de Aratu.

O herdeiro desta rica tradição foi seu primo caçula, o Eng. Luiz Antônio Schneider Alves de Almeida, filho de Landulfo Alves, formado nos EUA, que trabalhou com ele desde 1960 na Clan, na implantação do CIA e Porto de Aratu e como diretor-superintendente de Empreendimentos da Bahia S.A, quando expandiu a Odebrecht no exterior, em especial na CPLP. Casado com a artista americana Betty King, ele promoveu muito a cultura afro-baiana, em especial o Ilê Aiyê e sua sede.

Com a morte de Rômulo em 1988, se fez um vazio. Todos os órgãos de planejamento foram extintos e os secretários de planejamento passaram a ser políticos despreparados no setor. Esquecido desde então, Luiz Almeida morreu no último dia 05 de janeiro recordado apenas pela FIEB.

Cabe à ALBA promover, em convênio com a UFBA e UNEB, cursos de extensão multidisciplinares para formação de quadros políticos minimamente conscientes da realidade baiana.

*Paulo Ormindo de Azevedo é Arquiteto com Doutorado em Urbanismo e Preservação de Sítios Hustoricos.

SSSA: A Tarde, 05/03/2023

quarta-feira, 22 de fevereiro de 2023

Carnaval, que era avenida, virou cidade


Pedro Conde Tourinho*
Como serão os futuros carnavais? Baiana System ecoava essa questão, mais de dez anos atrás, nos seus primeiros registros fonográficos. Naquela época já estava claro tudo aquilot que não fazia mais sentido, mas em qual sentido a multidão seguiria?
O tempo corre no seu tempo, Exu matou um pássaro ontem com a pedra que só jogou hoje, e posso dizer que aquele Carnaval sufocado entre cordas, apertado entre estruturas, parado no tempo e no trânsito, enfim, hoje, em 2023, deu seu último suspiro: morreu. O que ainda tem disso aí é a raspa do tacho, está no compasso da espera e no pós prazo de validade de velhos modelos. O futuro mostra seu caminho, e o Carnaval, que era uma avenida, virou uma uma cidade.
 A Avenida Oceânica, Barra-Ondina, deu seu primeiro tom do Carnaval 2023 com Ivete Sangalo, transmissão nacional ao vivo na Globo e em todo lugar, Gilberto Gil, prefeito Bruno Reis, governador, Rei Momo, Deusa do Ébano, Veko do Cortejo, Filhos de Gandhy, pirotecnia e multidões. E as crias da Ivete. Esquece. Nossa atual grande avenida, é energia, multidões, pipocas e camarotes, luz, câmeras e ação. O Carnaval Barra-Ondina é uma explosão anual de supernova, frisson puro, palco, pressa, a sofreguidão do Carnaval que quer sim aparecer, a fricção e a energia daquilo que não cabe mais ali, mas que também não tem pra onde ir, ninguém quer sair. Baiana System, Leo Santana, viram do avesso aquele percurso, e o Axé da água salgada e da brisa fresca da noite torna irresistível a ideia de ficar.
Salvador é maior do que um percurso, não cabe entre a Barra e a Ondina, e esse foi o convite que a prefeitura de Salvador fez esse ano: não fique só na avenida, circule pela cidade, cole no centro. Numa caminhada entre o Santo Antônio do Carmo e o Campo Grande, toda a cultura do Brasil se manifesta em cada palco, cada aparelho de som ligado, na charanga e na fanfarra, nos bloquinhos e blocões, no palco do reggae e da resistência, no padê  do Gandhy, no privilégio de ver o nascimento de uma estrela, como Melly, na consagração  todo ano renovada do Olodum, o amanhecer com o Ilê, os afros, a grande essência, o combustível primordial da nossa cultura é de matriz africana, cortejo afro chegando, a rua em combustão, cantou encantado Arto Lindsay.
E chegamos à Praça Castro Alves, à emoção das homenagens à Moraes, ao nervosismo de Baco Exu do Blues enquanto tomava de energia e rap toda a vista do poeta. Essa praça, após um longo retorno de saturno, volta ao epicentro de todo um ecossistema de alegria: encontro de trios, de pessoas, de ritmos, de amores, axés, afoxés e de vida. Eu sou o Carnaval em cada esquina, do seu coração. Moraes, Moraes, o dono da visão, o verdadeiro arquiteto de nossa festa, deixou em cada música uma pista do mapa da mina da alegria, um guia dos passos da dança, uma receita de folia que transcende qualquer planejamento urbanístico, qualquer curadoria musical. "A gente não quer ser assistido, a gente quer se assistir", ouvi no manifesto da Batekoo, que tomou o chão da praça Castro Alves, olhos negros cruéis, tentadores, da multidão sem cantor. A multidão canta, balança o chão da praça, e Salvador se irradia a partir dali.
O carnaval não cabe numa avenida, o Carnaval é a cidade. Cada esquina é uma festa, cada olhar um ritmo, cada alegria é um coração batendo mais quente. O futuro do Carnaval não está na avenida, está em cada esquina, em cada praça, bairro, bar, palco, festa, encontro, em cada risco e em cada suspiro de vida. Depois de 2 anos de dor e de perdas, parece ter ficado ainda mais claro que a alegria é um direito fundamental de todos, e que não há limites, não cabe numa avenida, Carnaval é alegria e é cultura que circula e transpira em toda a cidade, e é aí que reside o futuro do carnaval: em toda a cidade.
*Pedro Tourinho é secretário de Cultura e Turismo de Salvador. Formado em Comunicação Social, é especialista em entretenimento e mídia.
** - Artigo originalmente publicado no jornal Correio da Bahia.