quinta-feira, 17 de julho de 2014

Economia criativa em alta

Adriana Guarda*
Como as pessoas podem fazer dinheiro com ideias? Foi respondendo a essa pergunta que o jornalista britânico John Howkins conseguiu formular um dos conceitos mais difundidos do que é a chamada economia criativa. O termo é utilizado para agrupar atividades econômicas que usam a criatividade e a exploração da propriedade intelectual como base de seu negócio. Assim, figuram na lista cultura, comunicação, artes, tecnologia, moda, design, fotografia e tantas outras.
No mundo, ela já representa 7% do Produto Interno Bruto (PIB) e se destaca em países desenvolvidos como Inglaterra, Estados Unidos e Austrália. O conceito ganhou destaque durante o governo do primeiro-ministro britânico (1997 a 2007), Tony Blair, com uma série de incentivos a atividades que envolvem a criatividade, como software, design e mídia”, explica o professor do Departamento de Economia da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), José Carlos Cavalcanti.
A Inglaterra é o país de maior crescimento da economia criativa, com taxa de 8% ao ano, além de participação de 8,2% no PIB e 6,4% da força de trabalho empregada na área. No Brasil ainda existe pouca estatística disponível e o uso do conceito é recente. Mas na experiência mundial já surgiu até faculdade de indústria criativa, a exemplo da Austrália”, compara Cavalcanti.
Na tentativa de identificar como o Recife poderá se posicionar diante do novo ciclo da economia pernambucana, a prefeitura decidiu encomendar um estudo prospectivo sobre cadeias produtivas com potencial de inovação. Nossa intenção foi mapear que cadeias são essas para fomentar o desenvolvimento de setores vocacionados, afirma o secretário de Ciência, Tecnologia e Desenvolvimento Econômico do Recife, José Bertotti Júnior. O Centro de Gestão e Estudos Estratégicos (CGEE) fez o levantamento de dez cadeias produtivas e contratou a consultoria Porto Marinho para elaborar o capítulo sobre indústria criativa.

Nos próximos anos o que vai bombar é a economia criativa. O futuro está na indústria de serviços modernos, que tem maior empregabilidade e agrega mais investimentos. Por isso, é necessário mudar a maneira como a gestão pública vê esses setores. Suape é importante, mas uma refinaria de petróleo gera poucos empregos na fase de operação”, analisa o consultor Cláudio Marinho, da Porto Marinho. Ele alerta, ainda, sobre a importância de inovar no modelo de negócio, que necessita de um arcabouço diferente do praticado pela economia conservadora.
O consultor também compara que o crescimento da economia criativa é superior ao da economia tradicional. Segundo ele, entre 2006 e 2009, a expansão da indústria criativa foi de 21%, diante de 6% da formal. A base de dados sobre o setor ainda é escassa, mas a estimativa é de que a atividade empregue 7.573 pessoas no Estado.
EXPERTISE
O Porto Digital poderá alavancar a criação de um polo de economia criativa em Pernambuco, com sua experiência de dez anos como um parque tecnológico urbano de sucesso. A proposta é criar um Centro de Excelência em Tecnologia para a Economia Criativa e Inovação do Porto Digital (Cetec). O projeto já parte com recurso de R$ 5 milhões de emendas parlamentares no orçamento do Ministério de Ciência e Tecnologia.
O centro teria três eixos principais: formação de profissionais em tecnologia, experimentação, por meio de uma estrutura de laboratórios e estúdios, e empreendedorismo e incubação, a partir de fomento à criação de negócios inovadores. O presidente do Porto Digital, Francisco Saboya, está negociando um casarão no Recife Antigo para abrigar o Cetec. O centro teria uma estrutura com edifício empresarial para locação de espaço para as empresas, uma área para instalação de laboratórios e estúdios, um prédio para pesquisa, desenvolvimento e inovação, além de um museu do futuro imaginário.
A Porto Marinho também sugeriu a criação de um Centro de Multilinguagem da Economia Shopping da Música, com estúdios e auditórios para ensaios de bandas, bares e lanchonetes, áreas de convivência e lojas de produtos relacionados à música pernambucana”, adianta Cláudio Marinho.
*Jornalista - adrianaguarda@jc.com.br

quarta-feira, 16 de julho de 2014

Opção pela economia criativa

A cada ano, a criatividade e o capital intelectual movimentam US$ 3 trilhões em negócios e já são responsáveis por 10% da economia mundial. Para ampliar sua participação neste filão, Curitiba aposta na economia criativa, que inclui cultura, economia, tecnologia e sustentabilidade em seu leque de atividades.
"Nossa tarefa é fazer com que a cidade chegue ao modelo de Economia Criativa", diz a presidente da Agência Curitiba de Desenvolvimento, Gina Paladino. A ideia é distribuir pela cidade os benefícios que até recentemente eram destinados a conglomerados. O nicho econômico planejado tem como essência a valorização da cultura, elemento presente nas 13 áreas previstas de atuação: arquitetura, publicidade, design, artes, antiguidades, artesanato, moda, cinema e vídeo, televisão, editoração e publicações, artes cênicas e performáticas, rádio e softwares de lazer e música.
A estratégia municipal de transformação de Curitiba em uma smart city econômica é ousada, mesmo porque rompe com um modelo que tinha nos clusters - os aglomerados empresariais - o centro da atividade econômica. Em certas áreas, antigos clusters dão lugar a uma nova configuração. O caso clássico é o do Rebouças, distrito industrial curitibano por décadas. O antigo Moinho Paranaense foi transformado na charmosa sede da Fundação Cultural e a planta industrial do Matte Leão dará lugar a um gigantesco templo evangélico.
O caso da Cidade Industrial de Curitiba (CIC) é bem diferente, mesmo porque concentra gigantes industriais como a Bosch e a Volvo. Ainda assim, esse cluster "ortodoxo" também dá sinais de flexibilidade. Gina Paladino observa que, já nos anos 1980, a CIC teve influência do movimento tecnológico direcionado à matriz produtiva de software, algo que, na época, era muito novo.
O Parque de Software, que atraiu indústrias do setor eletroeletrônico, seguiu com o fortalecimento da ideia do Tecnoparque, que saiu do papel em 2007. A ideia, então, era fugir dos limites da CIC, o que foi estimulado por benefícios em IPTU e ISS para a implantação de empresas na área que segue a Marechal Floriano Peixoto no sentido Rebouças. "O chamado ISS Tecnológico combina o zoneamento produtivo com a política urbana de zoneamento", observa Gina.
Ou seja: o grande projeto econômico de Curitiba para os próximos anos - tão ousado quanto a revolução urbana da década de 70 - pretende estimular e acelerar um movimento que já existe, que pode ser visto nos próprios clusters e em nossos designers, programadores, agitadores culturais, artistas, confeiteiros, arquitetos…
Plataforma
A aposta da agência para Curitiba está na "cidade digital", que só vai funcionar com a constituição de uma poderosa infraestrutura tecnológica baseada em meios digitais de alta capacidade de transmissão de dados e que tenha segurança e qualidade. "Essa será a porta e o elo para que Curitiba produza e faça valer os seus talentos sem barreiras físicas e geográficas", sintetiza Gina.
A partir da plataforma digital, diversos segmentos econômicos podem decolar. Arte, criação e artesanato são setores promissores em Curitiba para a difusão da economia criativa. "Temos talentos individuais reconhecidos e a missão de transformar os talentos em empreendimentos. Não há gargalos para competências e talentos com o suporte da dimensão tecnológica. Podemos produzir aqui ou atrair talentos e produções que possam ser complementados em Curitiba", projeta.
Inspiração
A proposta defendida por Gina Paladino se assemelha à do arquiteto inglês Richard Rogers, autor do livro ¨Cidades para um pequeno planeta", e vencedor do prêmio Pritzker, para as áreas urbanas. Conhecedor de Curitiba, ele foi o responsável pela obra do Centro Georges Pompidou, em Paris, que transformou um museu de formato clássico e estanque em um dos pontos culturais mais vibrantes do mundo. "A cidade tem uma razão primária de ser que é para o encontro de pessoas. Para o encontro de pessoas e para fazer negócios e cultura. Então, se você não pode se encontrar, a cidade desmorona."
Curitiba, segundo Rogers, caminha na direção certa. "Achei Curitiba uma cidade humana, com seus parques, o sistema de ônibus expresso e qualidade de vida. Passei três dias emocionantes em Curitiba com Jaime Lerner e sua equipe. Jaime tem me ensinado muito como estruturar uma cidade existente. Curitiba é uma cidade modelo."
Ele prega que a cidade deve ser justa e ter uma boa distribuição econômica, o que rima com a proposta de uma economia criativa e democrática. "A distribuição de riqueza é um dos pontos-chave para uma cidade compacta. No fim, estamos falando de uma cidade sustentável e socialmente funcional. Uma cidade sustentável, socialmente viável."
Cuidado com a "criatividade de araque"
"Há a preocupação de especialistas em não se deixar levar pela ingenuidade de acreditar que tudo é economia criativa. Digamos que, tendo a criatividade como uma capacidade humana, todas as atividades estariam no limiar da economia criativa, mas não é bem assim", afirma Patrizia Bittencourt Pereira, do Comitê Gestor da Rede de Economia Criativa do Paraná (Redec). O diferencial da economia criativa, segundo ela, está em dimensão simbólica e isso não é tão evidente de ser captado em produtos, processos e cidades.
"A singularidade do processo é importante. Um exemplo é Berlim, que se organiza e dá espaço para que as pessoas revivam as dores do Holocausto de maneira reflexiva, valorizando a sua história, construindo a memória coletiva, conservando o patrimônio material e imaterial." Isso também acontece quando marcas se diferenciam com a abordagem de aspectos éticos e estéticos ou quando espaços ganham funções incomuns - como um restaurante familiar que agrega espaço para a literatura infantil.
Outra preocupação é a de cuidar para que a criatividade não vire moeda de negociação, de forma que não se permita que os talentos fujam do estado ou que sua criatividade seja apropriada por grupos empresariais, mas que sejam valorizados e retidos na região. "Assim, todos poderão beneficiar-se da tendência que vemos hoje. Ou seja: a sociedade de consumo se sofisticou e sinaliza a tendência de desejo por produtos de valor agregado cada vez maior", observa Patrizia.

terça-feira, 15 de julho de 2014

André Setaro: uma perda intelectual para o cinema na Bahia

Márcia Luz*
Além de profundo conhecedor de cinema, o professor André Setaro, falecido no dia 10, era um homem de um humor e tanto. Nos últimos anos, rendeu-se à internet e, através do seu perfil no facebook, compartilhava com os seguidores o que até então só seus alunos tinham o privilégio de ouvir dele. Com sua partida, perdem os estudantes de Comunicação da Universidade Federal da Bahia, mas perdem também os cinéfilos, que tinham nele um dos melhores críticos,  e a rede social, que deixará de ter suas dicas, comentários e resgates da história sobre a sétima arte. Responsável pela formação de novos amantes do cinema e cineastas, André Setaro era acima de tudo generoso. Como salienta a cineasta, professora de Cinema e jornalista Ceci Alves, que foi aluna do professor, Setaro deu sofisticação à discussão de temas ligados à sétima arte e apresentou o cinema clássico para uma geração que não tinha acesso a isso. "Se não fosse ele, a nossa geração não teria tido a formação que tivemos. Ele levava coisas raras para a sala de aula e para o convívio das pessoas. Ele era muito generoso e, para ele, não existia cinema maior ou cinema menor. Era uma pessoa boníssima e divertida. Entre outras coisas, foi ele quem me deu a ideia da dissertação do Mestrado e foi ele quem me deu também a primeira entrevista", ressaltou a diretora dos premiados curtas 'Doido Lelê' e 'O Velho Rei'. O cineasta Sérgio Machado, que também foi aluno de Setaro na Faculdade de Comunicação da UFBA, relembrou as boas conversas que teve com o professor enquanto estiveram juntos, bem como a admiração que dividiam por Hitchcock.  "Acho que ele me influenciou muito mais como cinéfilo do que como cineasta. Admirava o amor tão visceral que tinha pelo cinema", salienta. Machado recorda, ainda, que sua primeira produção sobre cinema aconteceu por convite do professor. Ainda estudante de Comunicação, escreveu um artigo sobre John Wayne para a coluna de Setaro em um jornal de Salvador, mais uma das generosidades do professor. No facebook, o professor Maurício Tavares lamentou a morte de Setaro e lembrou uma das maiores características do professor: "Era realmente uma pessoa especial, não porque morreu. Adorava o humor sarcástico dele. Além do mais recebia provocações com muito bom humor". De fato, o humor de Setaro era sua marca registrada e o toque especial de seus textos e considerações. Usava isso tanto para falar sobre o cotidiano quanto para comentar cinema. Na medida certa da elegância, mas sem deixar de promover o riso em quem o lia. Na onda da superexposição da rede social, espaço no qual as pessoas informam cada passo da vida e suas investidas amorosas, ele não deixou passar em branco e postou há pouco tempo: "Estou num relacionamento sério com uma aranha caranguejeira". 
No dia a dia, era muito comum o professor postar fotos engraçados, imagens de sua musa Brigitte Bardot e  fazer comentários sobre curiosidades do cinema e suas observações: "Nos filmes de tempos idos, quando um homem beijava uma mulher na boca, chamava-se "colada" - e era realmente uma "colada" de lábios, pois beijo de língua nem pensar. Mas a plateia sempre que isso acontecia gritava: "Chupa, Caetano!!!" Até hoje ainda não descobri a significação desse "Caetano" O Veloso não era, pois ainda de calças curtas em Santo Amaro e um ilustre desconhecido.Igualmente enriquecedor era ler o que Setaro - também autor da trilogia 'Escritos sobre Cinema' (Depoimentos, atores e diretores; Cinema Baiano, e Linguagem e Outros Temas - Introdução ao Cinema) - escrevia sobre suas próprias memórias cinematográficas. Ele relembrou, por exemplo, o impacto da primeira vez que assistiu  'Deus e o diabo na terra do sol', filme de Glauber Rocha. "Faz meio século (eu infelizmente - e bota infelizmente nisso, pedindo desculpas aos facebookianos mais velhos, já dobrei este ''cabo da má esperança" há 13 anos - estou com provectos 63 a caminho dos 64, e, aqui, a lembrança do inesquecível Billy Blanco: "o enfarte te pega, doutor, e acaba essa banca!". Devo dizer que ele, o enfarte, já mo-lo pegou em 2006, mas, como "vaso ruim não quebra", resguardou-me para o aparecimento do Facebook, a fim de que possa, 'comme il faut' (valei-me poderosa July!!!) chatear vocês com o facebookiano "o que você está pensando"). Tinha 13 a caminho dos 14. O filme era proibido para menores de 18 anos. Fiz de conta que também saía, e andando de costas, entrei. O filme simplesmente impactou o adolescente que era. Na saída, encontrei-me com Florisvaldo Mattos e Sergio Gomes. Mas ainda não os conhecia. Mudo estava, mudo fiquei. O filme foi lançado no cinema Guarany de Salvador".
Com a morte de André Setaro, a perda é pessoal para seus alunos, amigos e familiares, mas também intelectual para quem se interessa por cinema. O cinema, que, aliás, já havia perdido, em maio, o crítico João Carlos Sampaio, também amigo do professor e a quem ele homenageou com as seguintes palavras: "A Bahia perde o mais atento jornalista na cobertura das coisas de cinema. Sampaio era um workaholic em relação a seu trabalho, pois sua coluna em A Tarde (jornal soteropolitano), além de ter críticas bem pensadas sobre os lançamentos mais importantes, pontuava, com regularidade, o movimento do cinema baiano - não se recusava, inclusive, a fazer matérias de páginas inteiras sobre os filmes e cineastas. No momento atual do jornalismo baiano, quando a cultura está indo pra o brejo, como assinalou o poeta Ruy Espinheira Fillho, a falta de João Carlos Sampaio é imensa. Era uma pessoa de lhano trato, terno, de sensibilidade à flor da pele. Minha homenagem a este homem que amava o cinema". Sem dúvidas, duas grandes baixas para o cenário cinematográfico da Bahia no mesmo ano. Ficam os exemplos do que foram e o que fizeram pela cultura.
*Jornalista, escreve no IBahia  - http://www.ibahia.com

domingo, 8 de junho de 2014

Um gosto amargo de perda

Paulo Ormindo de Azevedo*

As comemorações dos 100 anos de nascimento de Diógenes Rebouças com a exposição de 80 telas dele no Museu de Arte do Estado e 70 anos do inicio dos trabalhos do Escritório do Plano Urbanístico da Cidade do Salvador com a publicação do livro “Acervo do EPUCS, contextos, percursos, acessos” coordenado pela Profa. Ana Fernandes não têm nada de pitoresco ou saudosista, senão de protesto e denuncia.
Protesto do próprio Diógenes que abandona a profissão aos 50 anos ao ver os rumos que a cidade tomava com a liberação do uso do solo e a pratica da “arquitetura do m²” feita pelos corretores. Prevendo o urbanicídio de Salvador ele procura resgatar em acrílico a cidade que ainda alcançou e que começava a ser destruída. Durante dez anos ele reconstruiu 70 cenas de Salvador que seriam publicadas em 1977 no livro “Salvador da Bahia de Todos os Santos no século XIX” com notas de Godofredo Filho editado pela Odebrecht.
A exposição e seminários organizados pela Faculdade de Arquitetura da UFBA e IAB-Ba são uma mostra da cidade que perdemos e o livro sobre o EPUCS da regressão urbanística que sofremos. Cidades que foram destruídas na ultima guerra foram reconstruídas para restaurar a autoestima de seus habitantes. Nós fizemos a trajetória inversa, destruímos a cidade para criarmos a guerra da segregação sócio-espacial, da violência e da imobilidade urbana. Não podemos voltar à cidade perdida, mas podemos parar a barbárie e construir uma cidade mais humana, que não seja apenas mercadoria. 
O livro sobre o EPUCS é uma demonstração da seriedade e criatividade de um plano feito em condições adversas de uma prefeitura falida e uma cidade estagnada, mas com o norte no futuro. É também uma denuncia do pouco apreço de nossos alcaides pelo planejamento. Dez anos de trabalho foram necessários para salvar fragmentos de mapas, plantas, maquetes e textos feitos por uma equipe dedicada sob uma das administrações mais desastrosas dessa cidade, que por não ter controle de nada não se deu conta que a revelação daquele acervo colocaria como antagônicos o EPUCS e sua administração.
O livro não chega a analisar o enorme volume de informações contidas nos documentos elaborados por uma equipe multidisciplinar de urbanistas, arquitetos, cartógrafos, topógrafos, sociólogos, demógrafos, médicos e botânicos. Era preciso primeiro resgatar as fontes para que outros pesquisadores possam mergulhar na sua analise. Mas o livro põe em cheque os processos arbitrários de decisão pública e cria um referencial que se não for seguido no novo PDDU e Lous os condena a ter o mesmo fim dos anteriores rejeitados pela população e anulados pela Justiça.
O EPUCS foi uma das experiências mais avançada de urbanismo de seu tempo, quando no Brasil ele ainda era praticado apenas por engenheiros sanitaristas. A equipe sem descuidar dessas questões centrou seu trabalho nos questões sociais e ambientais de Salvador. Infelizmente os estudos foram paralisados com a morte de seu idealizador, Mario Leal Ferreira. O plano seria macaqueado vinte anos depois, quando a cidade já havia dobrado de população e seu centro mudado para o Iguatemi. As telas de Diógenes e o livro do EPUCS são apenas registros, mas nos deixam um amargo no olhar. 
SSA: A Tarde de 08/06/14
*Arquiteto e professor titular da Ufba

terça-feira, 3 de junho de 2014

O que lhe resta

Oliveiros Guanais*
 Oitenta e cinco ou noventa anos? Quem sabe? Mas a cabeça de Isaura, ou Zara, está boa. Zara é a mãe preta de minha mulher e de algumas de minhas cunhadas e de vários  dos filhos destas. Mas não é mãe preta por ter dado leite, isso não. É  mãe preta porque cuidou delas e deles, deu-lhes apoio que só mãe sabe dar, contava histórias quando eram pequeninos e assim por diante.
Todos cresceram, ela envelheceu. Mas ficou como mãe, embora morando com a mais velha de minhas cunhadas, porque foi esta que ela acompanhou logo após o casamento, e cuidou dos filhos como cuidara da mãe.
A vida deu-lhe retribuição. Enquanto forte e podendo trabalhar, foi de grande ajuda em todos os lugares em que estava. Nos lugares da família  que se tornou a sua. Mas envelheceu, teve problemas de saúde, superou-os, ficando apenas com dois: um exagerado
valguismo  que torna as suas pernas em forma de arco, dificultando seu andar, e a velhice que chegou (“senectus ipse morbus est”). Hoje não tem condições de fazer nada, e precisa de todos os cuidados para manter-se firme no andar. Parece também que não enxerga direito. Mas ouve bem.
Ela tem três tesouros, além do amor das pessoas de quem foi mãe.
O primeiro tesouro é um radinho de pilha, que passa o dia ligado e ela atenta , ouvindo todas as notícias da estação de sua preferência. Termina informada de tudo, porque é perceptiva e tem memória razoável.
Mas nas ondas do radinho o que enche sua alma, de alegria ou de tristeza, é o Esporte Clube  Bahia, de quem é torcedora apaixonada. Pelo Bahia acende vela em dias de jogo, preocupando  os que zelam por ela, temerosos de que um incêndio se instale na casa. O Bahia perde, perde sempre, apesar de ter sido de longe, em tempos idos, o melhor time da Bahia, o temível “esquadrão de aço”. E Zara fica triste, muito triste mas cheia de esperança nos jogos que virão. E eles vêm, e o Bahia perde de novo, e Zara sofre, sofre calada, mas continúa com um pacote de velas para serem acesas nos jogos futuros do seu time.
Falta falar no terceiro tesouro de Isaura: um papagaio. Estivemos juntos agora,seis dias de carnaval baiano- porque essa é a duração do carnaval da Bahia- distantes da confusão da cidade. Zara foi e o papagaio também, é claro. Logo no segundo dia ela começou a perguntar pelo louro, está bem, Zara, está bem, mas eu percebi que ela não estava bem, estava contida, triste, faltando algo naqueles momentos. E foi aí que me veio um estalo: ela precisa ficar junto do louro. Arrumei prego e martelo e fiz nova casa para o louro, em lugar arejado, de vista bonita para o verde do mato e do mar. Será que papagaio gosta de ver o mar? Não sei. Mas logo que foi instalado em sua nova moradia, tendo junto de si a sua dona que ficou de uma hora para outra deslumbrada, o papagaio começou a tagarelar, valendo-se de todos os seus recursos verbais, batendo as asas e comendo sua razão de semente de girassol, para alegria da sua dona que falava mais que o louro: e aí, louro, louro ta é gostando, né, aqui está bom, não é louro?,.
E a partir dessa mudança de endereço, o louro e sua dona passaram a ter uma alegria que não existia antes. E com um recurso  tão simples, demos nova vida ao louro e a sua dona , que já tem tão pouco de que se alegrar nos seus noventa anos: um radinho de pilha, um papagaio, e o amor por um time de futebol que já não ganha mais.
 Salvador, 2006.

*Oliveiros Guanais de Aguiar,  nascido em Caetite , falecido em Salvador , foi presidente da UNE e Médico Anestesista.
**Isaura Conceição dos Santos completa hoje 99 anos


  

segunda-feira, 2 de junho de 2014

Terra de todos os nós logísticos


Osvaldo Campos Magalhaes*
Possuindo vantagens competitivas naturais indiscutíveis no setor de logística, como se explica a defasagem da Bahia no que diz respeito à sua infraestrutura de transportes?
Possuindo a maior faixa litorânea do país, como mais de 1.100km, duas extensas baías, ideais para o desenvolvimento do transporte aquaviário e para a implantação de terminais portuários, um dos mais extensos trechos hidroviários, no rio São Francisco e, a segunda maior malha rodoviária federal, como explicar o atraso do Estado da Bahia neste segmento?
A explicação pode estar relacionada à omissão do Governo da Bahia em relação à infraestrutura de transportes do Estado.
Como justificar a não inclusão do aeroporto de Salvador na lista dos aeroportos concessionados ao setor privado? Relacionado entre os aeroportos de maior movimentação de passageiros do Brasil e essencial para o crescimento do setor do turismo, nosso aeroporto se encontra em estado lamentável, entregue à caótica administração da Infraero, empresa que no passado era exemplo de gestão eficiente e que nos últimos dez anos foi levada ao descrédito por sucessivas administrações marcadas pela forte influência político partidária. Enquanto os aeroportos de Brasília, Guarulhos e Viracopos entregam novos e modernos terminais, o de Salvador convive com a falta de ar-condicionado, esteiras quebradas e fétidos banheiros. Lembremos que o aeroporto de Salvador é o único do Nordeste que tem condições de implantar uma segunda pista e, caso tivesse sido concessionado, poderia ter se convertido no principal hub aeroportuário do Norte e Nordeste.
Como justificar o estado de quase abandono dos mais de 1.500 km de ferrovias, que estavam concessionadas à FCA e que foram devolvidas ao governo federal sem qualquer perspectivas de retomada das operações? A devolução do trecho só atendeu aos interesses da Companhia Vale do Rio Doce, controladora da FCA, que além de se desobrigar de realizar investimentos no trecho baiano, ainda foi indenizada e pôde se concentrar nos trechos mais lucrativos em Minas Gerais e Espírito Santo.
E a hidrovia do São Francisco? Outrora conhecido como rio da integração nacional, com grande volume de cargas e passageiros entre Pirapora e Juazeiro, a hidrovia do São Francisco movimentou em 2013 menos de 60 mil toneladas e pode ser totalmente desativada em 2015 caso não sejam realizados investimentos de dragagem e derrocamento no trecho atualmente em operação, entre Ibotirama e Juazeiro. Pela importância para a economia regional, o governo da Bahia deveria seguir o exemplo de São Paulo que obteve a delegação da gestão da hidrovia do rio Tietê, hoje importante corredor de cargas do Sudeste.
Outro exemplo da omissão do Governo da Bahia? A rodovia BR 324, entre Feira de Santana e Salvador.
A concessão foi direcionada para a busca da menor tarifa de pedágio. Uma decisão política e demagógica. Não foram estabelecidas exigências de investimentos à altura da importância da rodovia, como a imediata construção da terceira faixa. A modelagem do edital de privatização afastou as principais empresas do setor, como a baiana Odebrecht. Como resultado, transcorridos mais de cinco anos da privatização, o que se verifica é a ausência de grandes investimentos na rodovia, péssima gestão e enormes engarrafamentos que geram grandes prejuízos para a economia do Estado.
Enquanto em Pernambuco e Ceará, os modernos portos de Suape e Pecém, concebidos dentro do conceito de portos industriais, ou de terceira geração, representam hoje fatores estratégicos para a atração de novas indústrias e desenvolvimento do setor agroindustrial para suas regiões de influência, o governo do Estado da Bahia, transcorridos sete anos, ainda não conseguiu obter a licença ambiental para o Porto Sul em Ilhéus e permite que a CODEBA continue entregue à barganha política que dificulta uma eficiente gestão portuária e a realização de novos investimentos.
Bahia, terra de todos os nós logísticos? Até quando?

*Engenheiro Civil e Mestre em Administração. Membro do Conselho de Infraestrutura da Fieb

domingo, 1 de junho de 2014

IGHB: 120 anos de serviço à Bahia


Edivaldo Boaventura*
São 120 anos de serviço à Bahia e à história! O Instituto Geográfico e Histórico da Bahia marca presença na tradição, na comemoração e na pesquisa. Dirigido com vigor e determinação, o desejo maior da sua presidente, Consuelo Pondé de Sena, é construir o Memorial do Dois de Julho com os caboclos, símbolos patrióticos e indianistas, a caminho da consagração mística popular. Nada representa mais a Bahia do que os caboclos. Índios que se tornaram emblemas. E o Dois de Julho é a chave do Instituto Geográfico e Histórico da Bahia, o nosso IGHBA, a Casa da Bahia. Convenhamos que todo povo tem direito à sua história e à tradição que tanto o identifica.

O IGHBA teve um antecedente: o Instituto Histórico da Bahia, que durou pouco, de 1856 a 1877. Uma tentativa provincial, não provinciana, de abraçar o exemplo dado pela criação do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro (IHGB). Para Aldo José Moraes e Silva, em sua tese sobre origem e estratégias, esse antecedente de fortes cores imperiais teve funcionamento incerto com atividades exíguas.
O Instituto é uma das mais antigas casas de cultura da Bahia em funcionamento. No momento, é presidido honorificamente pelo governador Roberto Santos, o maior baiano vivo. Conta com poucos associados beneméritos, alguns honorários e muitos efetivos e correspondentes. Com o incremento da pós-graduação, aumentou a procura pelas fontes históricas. É um lugar de memória, de convivência e de buscas. Complexa organização baiana, graças ao bom Senhor do Bonfim, que nos veio lá de Setúbal.
Mas todo 13 de maio é de festa no Instituto.
Neste 2014, houve festança redobrada pelo arredondamento dos 120 anos, quando reuniu associados, frequentadores, amigos e servidores para dar adeus aos companheiros que partiram e abraçar os novos que ingressaram.
Recordemos duas historiadoras admiráveis pela convivência e distinguidas na construção do conhecimento. Consuelo Novais Sampaio contribuiu para o estudo da história política republicana baiana. É uma referência. Enquanto Anna Amélia Vieira Nascimento aprofundou o estudo das enclausuradas clarissas e abriu os caminhos dos arquivos para os municípios. Ao lado do contributo para a historiografia, o Instituto recorda o legado heráldico de Vitor Hugo Carneiro Lopes.
A Casa da Bahia abrigou o talento jurídico de Luiz de Pinho Pedreira da Silva e de Gerson Pereira dos Santos. Ambos cultivaram, respectivamente, o Direito do Trabalho e o Direito Penal Criminal. Um adeus carregado de muita emoção a dois correspondentes portugueses: o latinista Justino Mendes de Almeida e o cidadão baiano Antônio Celestino, que viveu boa parte de sua vida em Salvador. Fechemos o livro das ausências recordando o centenário de Rômulo Almeida, Dorival Caymmi, Olga Pereira Mettig e Diógenes Rebouças.
Abracemos fraternalmente os novos associados com os melhores desejos de salutar vida societária. Congreguemo-nos para disseminar o conhecimento. Pelo laço da correspondência, alcançaremos a horizontal estadualização do intercâmbio com os presidentes Augusto César Zeferino, que trouxe a Medalha do Contestado, do Instituto Histórico de Santa Catarina, e Getúlio Neves à frente do Instituto capixaba.
Na comemoração dos 120 anos, palavras, flores e comidas festejaram a concessão da Medalha Bernardino de Souza. A presidente distinguiu com essa insígnia cinco colaboradores. A começar pelo benemérito Vitor Gradin, homenagem que envolveu a querida Grace Gradin e ao constante apoio de Geraldo Danneman. O reconhecimento expresso ao ex-prefeito, que sempre serviu e serve ao Instituto, deputado federal Antonio Imbassahy. Ao advogado, e colaborador, João Maurício Ottoni Wanderley de Araújo Pinho, e ao autor deste artigo, orador oficial do Instituto quase perpétuo.
Para completar, o Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro esteve presente pelo seu vice-presidente, Victorino Chermont de Miranda. Pela continuidade do serviço à Bahia e à História, o reconhecimento à presidente Consuelo Pondé de Sena.
*Escritor, membro da Academia de Letras da Bahia

sábado, 31 de maio de 2014

Angola capoeira mãe

Lúcia Correia Lima* 
Mestre Pastinha sempre será a mais importante personalidade da capoeira tradicional. Deu a ela conceito e formato de escola. A arte-luta afro-brasileira hoje é praticada em todos os continentes. Junto ao candomblé e ao samba, é uma das mais importantes manifestações da cultura brasileira. Trazida pelos escravos vindos para a lavoura da cana-de-açúcar, desempenhou forte papel na resistência cultural dos afro-brasileiros. Exerceu função preeminente em episódios da história do Brasil, como na Guerra do Paraguai, nos embates pelo abolição da escravatura e no período de transição do Império para a República. 
Nascido em 5 de abril de 1889, o mestre se criou em meio à turbulência das perseguições policiais aos capoeiristas. E aprendeu capoeira ainda menino, com um velho africano. 
Disse o escritor Jorge Amado: "Pastinha representou a alegria do povo. A força do povo, a coragem, a luta, a invencibilidade. E quando penso em Pastinha penso em Mãe Senhora, em Mãe Menininha. Porque cultura é vida. E é com o povo que a gente aprende a vida e que a gente se faz realmente culto". 
Pastinha morreu pobre, esquecido em um abrigo, longe do toque do berimbau, que ensinou a centenas de alunos de todas as classes sociais. Morreu pobre depois das incontáveis apresentações para milhares de turistas, que chegavam à sua escola em luxuosos ônibus, para em velhos bancos assistirem, encantados, às rodas de capoeira, espetáculos de luta, música, canto, dança e mandinga. Tudo na capoeira angola começa na ginga, desenvolve-se nas letras dos corridos ou nas espirituais ladainhas. 
Uma vanguarda nacional e internacional visitava a escola de Pastinha, na praça José de Alencar, Pelourinho. Por lá passaram o filósofo Jean-Paul Sartre e a escritora Simone de Beauvoir. Todos à procura da sabedoria e estética desta arte detentora do legado cultural africano, à qual Pastinha dedicou sua vida, doutrinando seus alunos contra a violência e dando à capoeira um caráter de arte. Tanto que foi indicado pelo Itamaraty para representar o Brasil no 1º Festival Mundial de Arte Negra, no Senegal, em 1966. 
Mestre Pastinha sempre disse que a capoeira ganharia o mundo. Para esta missão preparou João Pequeno e João Grande: "A eles ensinei tudo, até o pulo do gato; eles vão espalhar a capoeira pelo mundo". João Grande cumpriu a visão de futuro de seu mestre. Em 1990, ele foi a Atlanta, nos Estados Unidos, a convite do Festival de Arte Negra. Nego Gato levou-o para fazer uma oficina em Nova York e nunca mais deixaram João Grande retornar ao Brasil. Na Casa Branca, em 2001, recebeu o National Heritage Fellowship. Antes, em 1995, havia recebido o título de doutor honoris causa do Upsala College, de Nova Jersey. 
João Grande tem escolas em dezenas de países. Mas confessou a sua amiga Emília Biancardi - criadora do histórico Viva Bahia, grupo com quem viajou e aprendeu outras manifestações da cultura tradicional popular - que deseja ter uma escola em Salvador. E assim presentear a Bahia com o que ela não soube dar ao seu mestre Pastinha. 
João Grande fez uma oficina de capoeira no Forte de Santo Antônio e, aos 81 anos, deixou exaustos malhados jovens da capoeira regional, somente com meia hora de sua aula. 
Jovens antenados de várias partes do mundo, estudiosos e pesquisadores viriam à Bahia tomar aulas e ouvi-lo. Mas a máquina burocrática que decide os espaços públicos na Bahia não permitiu o retorno de João Grande à sua terra, com 60 anos dedicados a manter a tradição de Pastinha na capoeira. No Forte, mestres - importantes, é verdade - acumulam dois espaços que são subutilizados.
A esperança é que possamos soltar foguetes quando João chegar para abrir sua escola em Salvador, e então estaremos fazendo a reparação da injustiça praticada com o abandono de mestre Pastinha. Ao empenho demonstrado nesse sentido pelo secretário estadual da Cultura, Albino Rubim, e pela diretoria do Centro de Culturas Populares e Identitárias, podemos somar, agora, a competência de um Fernando Guerreiro à frente da Fundação Gregório de Mattos. 
*Lucia Correia Lima l Repórter-fotográfica; autora do documentário "Mandinga em Manhattan"

sexta-feira, 30 de maio de 2014

Neojiba, categoria de Copa do Mundo


J C Teixeira Gomes*
Não vou causar constrangimento aos melômanos, afirmando que a Bahia não tem tradição no cultivo da música clássica. É uma verdade inquestionável, mas lembremos que houve duas exceções: a fase áurea da Sociedade de Cultura Artística da Bahia (Scab), com o memorável patrocínio de Alexandrina Ramalho, e o rico mecenato de Edgard Santos à frente da Universidade Federal da Bahia.
Um dos mais relevantes momentos da Ufba dos anos 50 foi a criação dos Seminários Livres de Música, que ajudaram a universidade a aglutinar numerosas orquestras. Já o trabalho de Alexandrina Ramalho era um milagre: numa época em que Salvador não dispunha sequer de hotéis, ela trouxe para nossa capital os maiores músicos clássicos dos anos 40 e 50. É pena que esses dois mágicos momentos estejam hoje esquecidos, pois a Bahia não possui instrumentos de preservação do seu passado cultural, numa omissão que lança no mesmo vácuo governantes e imprensa.
Não sei se surpreenderei os leitores, ao dizer que agora Salvador atravessa uma fase elogiável no campo da música clássica e na execução de concertos, com o desempenho de duas orquestras que preenchem com grande dignidade musical os seus espaços: refiro-me à Orquestra Sinfônica da Bahia, sob a batuta do maestro Carlos Prazeres, e sobretudo a Orquestra Juvenil da Bahia, sob a regência do pianista Ricardo Castro, nascido em Vitória da Conquista. Sobre a primeira já me detive em artigo anterior. Quero hoje, pois, estender-me um pouco mais sobre o trabalho que Ricardo Castro vem desenvolvendo à frente do programa Neojiba, sigla que abriga os Núcleos Estaduais de Orquestras Juvenis e Infantis da Bahia.
Destaquemos, em primeiro lugar, que Ricardo Castro conseguiu extrair pepitas de ouro, onde antes parecia haver apenas um sáfaro deserto de vocações musicais (no campo, naturalmente, da música clássica na Bahia). Essas “pepitas” são os jovens que, em tão pouco tempo, ele formou e congregou em torno da Orquestra Juvenil da Bahia, fundada em 2007 e hoje uma realidade incomparável no panorama musical brasileiro.
Confesso que tendo acompanhado com intermitência esse trabalho desde o seu surgimento, pois morava no Rio de Janeiro, rendo-me hoje com euforia à admirável categoria da nossa orquestra de jovens. Estou convencido de que esse sentimento é partilhado pelo crescente público que comparece ao TCA para ouvir as apresentações do Neojiba, que começa a deitar fama no mundo com as execuções já realizadas, através do trabalho pertinaz de Ricardo Castro, em grandes salas de concerto na Europa e nos Estados Unidos. Desejo, com este artigo, cravar uma marca na atenção dos atuais e futuros governantes da Bahia, para que o legado já construído não seja prejudicado com as interrupções habituais em nossa terra, onde a cultura costuma sofrer imperdoáveis mutilações, sob o eterno e falso argumento da escassez das verbas que nunca faltam para coisas menores. O Neojiba precisa urgentemente pousar numa sede própria para crescer ainda mais.
Ricardo Castro, que poderia prosseguir apenas na sua carreira de aplaudido pianista e mestre em Lausanne, deu ênfase ao projeto Neojiba com uma determinação de verdadeiro paladino da cultura musical. Numa terra que se vinha destacando apenas pelos altos decibéis carnavalescos dos seus percussionistas, Ricardo descobriu talentos antes inimagináveis em plagas baianas, congregando na Orquestra Juvenil harmoniosos naipes de jovens virtuoses, que arrebatam o público com interpretações primorosas dos clássicos mundiais e arranjos do nosso cancioneiro. Convoco os leitores aos próximos concertos para que o comprovem.
Se o Brasil quer exibir a diversidade da sua vida cultural durante a próxima Copa, como país que não tem apenas carnaval para oferecer aos visitantes, conclamo os organizadores da programação do Mundial que incluam a orquestra Neojiba da Bahia como maravilhoso exemplo da integração racial brasileira, enriquecido pelo legado de variados extratos sociais, e da excelência da vocação musical da sua juventude
*Jornalista, membro da Academia de Letras da Bahia
jcteixeiragomes@hotmail.com

quarta-feira, 28 de maio de 2014

Urbanização de favelas: uma dívida social

Manuel Ribeiro* 
O processo acelerado de urbanização por que passaram as nações no século XX resultou na concentração nas grandes cidades do desenvolvimento econômico, da renda, dos empregos, dos serviços públicos - aí incluídos energia, saneamento, telecomunicações, educação e saúde - e, também, dos grandes problemas sociais. Nas capitais brasileiras, onde o fenômeno da urbanização foi mais acelerado, os migrantes, analfabetos, sem formação profissional e sem preparo para a vida num ambiente de economia monetária como a da cidade, passaram a ocupar os espaços livres das encostas, fundos de vale e periferia para conseguir fixar-se nas cidades. 

Temos seguramente mais de sessenta anos desde que os migrantes vieram construir a riqueza urbana proporcionada por uma nova economia industrial e de serviços. Esta dívida continua sem resgate e os descendentes dos migrantes, em sua maioria, continuam morando de forma precária nas periferias, com pouca qualificação profissional, sujeitos ao subemprego e com pouco acesso aos serviços públicos. Hoje, o migrante não chega sequer à cidade, ficando numa zona de amortecimento nas periferias e nos municípios dormitórios. 
Paralelamente, a questão da partição tributária, a falta de prioridade no investimento social, a política do laissez-faire no ordenamento, uso e ocupação do solo e a opção por uma política industrial voltada ao transporte individual agravaram e dificultaram a vida dos que estão situados num extrato inferior de renda, além de terem esgarçado o tecido urbano. As áreas de características subnormais ocupadas espontaneamente por fluxos de migração foram tomando a forma de guetos sem acessibilidade e sem a presença do poder público. 
Como não existe vácuo nas relações sociais, o poder foi tomado e passou a ser exercido por quadrilhas de traficantes, que se encastelam nessas áreas e dominam a população local pelo terror de um código de (in)justiça próprio, duro e perverso, eliminando centenas de pessoas por ano, principalmente jovens. As quadrilhas fizeram dos assentamentos populares verdadeiras poliarquias, concorrendo com o estado brasileiro. 

Não há força policial capaz de reverter essa situação sem políticas compensatórias e sem um processo de urbanização que leve acesso viário e serviços públicos, de forma a integrar os assentamentos à cidade. Nenhum plano diretor de segurança pública dará certo, senão no âmbito de um planejamento urbano voltado para as periferias e assentamentos. 

Na área de habitação popular, além dos programas como Minha Casa, Minha Vida e Casa da Gente, que visam atender à demanda por imóveis novos, há de se pensar nas favelas ou, na linguagem politicamente correta, nos assentamentos ou aglomerações de características subnormais - mais de 800 mil pessoas na RMS (fonte: Ipea dez 2103) - e que precisam de oferta de infraestrutura, qualidade de vida e renda. 

Nunca houve no país, contudo, uma política pública contínua de intervenção urbanística e de investimentos, estabelecida para atacar estruturalmente esse enorme problema social que tanto envergonha a sociedade brasileira. Há, sim, intervenções tópicas, paliativas e limitadas. 
Tem-se que pensar e planejar uma solução urbanística global para as favelas, criando as condições físicas para transformá-las, no mesmo local e com as mesmas famílias, em bairros populares dignos. O desafio urbanístico, social e econômico - principalmente da estruturação do projeto - é imenso e talvez, pela magnitude, seja um esforço de mais de uma geração. Mas algum dia tem que se começar, como se começa qualquer coisa, dando um primeiro passo. 
Por isso, a Sedur (Secretário de Desenvolvimento Urbano do Estado) irá promover, ainda este ano, possivelmente com a participação ativa do IAB (Instituto dos Arquitetos do Brasil, Depto. Bahia), um concurso de ideias com esse objetivo, pois o primeiro passo é estabelecer um planejamento conceitual de forma e de prioridade para o investimento público, visando o atendimento definitivo dessa grave demanda social. O Brasil cresceu e enriqueceu e, portanto, é hora de resgatar a dívida para com os que, com as mãos e suor, geraram riqueza para o país. Os resultados e soluções serão legados para a próxima administração.

Engenheiro civil e secretário de Desenvolvimento Urbano do Estado da Bahia

quarta-feira, 7 de maio de 2014

Diógenes Rebouça e a modernização de Salvador

Nivaldo Andrade*
No último dia 30 de abril, comemoramos o centenário de nascimento de Dorival Caymmi. Junto com outros artistas de sua geração, como Jorge Amado e Carybé, Caymmi foi responsável pela “invenção” da Bahia tal como ela é imaginada no resto do Brasil e do mundo. A cidade da Bahia retratada e difundida por Caymmi é, como bem definiu Antonio Risério, uma “utopia de lugar”: uma cidade tradicional “esquiva às novidades urbanísticas pós-coloniais”. A Salvador construída nas canções de Caymmi “não é nunca a cidade do cálculo de engenharia, do incipiente planejamento urbano”…Exatamente uma semana após o nascimento de Caymmi, nascia outro ilustre baiano, cujo centenário de nascimento comemoramos hoje: o arquiteto, urbanista, pintor e professor Diógenes Rebouças. Assim como Caymmi idealizou e difundiu, a partir dos anos 1930 e 1940, uma Bahia pré-moderna que já iniciava, então, um processo de radical transformação, Rebouças retratou, na sua belíssima coleção de aquarelas, a Salvador do século XIX. Além disso, Rebouças, na condição de consultor do IPHAN e de Conselheiro de Cultura da Bahia, teve um papel notável em legar às futuras gerações importantes testemunhos materiais do nosso passado. Entretanto, Rebouças foi também um dos principais responsáveis pela modernização urbana de Salvador. A partir de 1942, projetou o Complexo Esportivo da Fonte Nova e coordenou o setor paisagístico do Escritório do Plano de Urbanismo da Cidade do Salvador, o mítico EPUCS, então dirigido por Mario Leal Ferreira. A partir de 1947, com o falecimento de Ferreira, assumiu a coordenação geral do EPUCS, a mais ambiciosa experiência de planejamento urbano da história de Salvador. Rebouças foi o responsável pelo projeto da primeira das avenidas de vale concebidas no EPUCS, a Avenida do Centenário, e pelo desenho dos mais importantes equipamentos urbanos previstos no plano, como o Hotel da Bahia, a Penitenciária do Estado e a inigualável rede escolar idealizada por Anísio Teixeira, que teve sua mais importante realização na Escola-Parque da Caixa D’água. Assim, em 1952, quando recebeu o título de arquiteto pela UFBA e abriu seu escritório, Rebouças, com apenas 38 anos, já era o mais influente e produtivo arquiteto e urbanista da Bahia. Esse papel de destaque só seria reforçado nos anos seguintes, com os projetos da Avenida de Contorno, da primeira Estação Rodoviária de Salvador (na Sete Portas), da Estação Marítima de Passageiros (atual sede da CODEBA), da Faculdade de Arquitetura e da Escola Politécnica da UFBA e de dezenas de edifícios comerciais, residenciais e com os mais diversos usos erguidos em Salvador e em cidades como Itabuna, Jequié, Itaparica, São Félix, Paulo Afonso, Aracaju, Maceió e Vitória. Como se não fosse suficiente, Rebouças teve também atuação destacada, por mais de trinta anos, como professor do curso de arquitetura da UFBA, além de ter sido o fundador e primeiro presidente do Instituto de Arquitetos do Brasil – Departamento da Bahia (IAB-BA), que, coincidentemente, completou, no mesmo dia do centenário de Caymmi, seu 60º aniversário. Com seus lápis e pincéis, mas acima de tudo com um profundo conhecimento da realidade local, Rebouças deixou sua marca na paisagem de Salvador, transformada inexoravelmente a partir de suas ideias e do seu traço. Vinte anos após seu falecimento, porém, Salvador não tem lhe feito justiça: boa parte das suas obras vêm sendo demolidas ou radicalmente descaracterizadas. Para homenagear Rebouças no ano do seu centenário de nascimento e resgatar sua importante contribuição na modernização arquitetônica e urbanística da Bahia, o IAB-BA, a Faculdade de Arquitetura da UFBA e a Odebrecht, com o apoio do IPHAN, do Conselho de Arquitetura e Urbanismo da Bahia (CAU-BA), do Governo do Estado da Bahia e da Prefeitura de Salvador, promoverão, até o final do ano, uma série de eventos técnicos e comemorativos. A programação completa estará disponível no sitewww.diogenesreboucas.com.br, que está sendo lançado hoje. Participem! 
*Nivaldo Andrade é arquiteto, professor da Faculdade de Arquitetura da Universidade Federal da Bahia – UFBA, ex-presidente e atual secretário geral do IAB-BA e Vice-Presidente Extraordinário Nacional do IAB.
**Artigo publicado no jornal A Tarde, em 07/05/2014

segunda-feira, 28 de abril de 2014

E o “guayacán” voltou a florir...


Paulo Ormindo de Azevedo*
Era uma vez uma cidade chamada Guayacán dominada por um barão perverso, sétimo homem mais rico do mundo e dono de 80 % do comercio mundial de sonhos e pesadelos. Grande parte de seus habitantes eram mulas, que transportavam sonhos pesados como chumbo. Sua lei era “plata o plomo” - dinheiro ou chumbo - e com isso ele controlava juízes, legisladores, governantes e cidadãos. Três candidatos a presidentes de seu país e milhares de mulas suspeitas e rivais foram mortos por ele. Em 1991 o número de homicídios por cem mil na cidade era de 381. Dois anos depois a cidade se revoltou e o matou, mas continuou dominada pelo barão de uma cidade vizinha. A partir de 2004 esta “Sin City” começou a mudar, quando o irmão do governador do estado, sequestrado e morto um ano antes, resolveu assumir a luta e mudar o estado e a cidade. O guayacán, o nosso ipê amarelo, voltou a colorir os tetos de zinco da grande favela. 
Esta não é mais uma fabula cruel com final feliz, é uma historia real. Guayacán é o símbolo de Medelín, na Colômbia, e o barão era Pablo Escobar. Em 2007 a taxa de homicídios despencou para 34 e o índice de alfabetização subiu para 96,65%. Medelín conseguiu isto rompendo a segregação sócio-espacial com um inovador sistema de metrô, BRT, teleféricos e escadas rolantes, que chega aos pontos mais isolados da cidade. Ali foram instaladas bibliotecas-parques, escolas e museus de primeiro mundo, e não meias-solas, onde se faz a inclusão social. 
Há três semanas, pessoas vindas de todos os cantos do mundo vieram conhecer o milagre de Medelín. O prefeito Aníbal Gaviria(48) e seu parceiro nesta luta, o governador da província de Antioquia Sergio Fajardo, se juntaram ao premio Nobel de economia Joseph Stiglitz, ao Dr. Joan Clós, diretor executivo do Habitat e ao ex-prefeito de Nova York, o bilionário Michael Blomberg para divulgarem para o mundo o que aconteceu na cidade, no VII Fórum Urbano Mundial, da ONU-Habitat. Uma dezena dos maiores profissionais e teóricos do urbanismo foi convidada a avaliar criticamente a experiência de Medelín. 
Prefeitos, entre os quais a nossa vice, empresários, diretores de fundações e ongs, lideres sociais e tribais e técnicos, como este escriba representando o CAU/BR, discutiram o futuro das cidades em mesas redondas e diálogos. O tema central era Equidade Urbana no Desenvolvimento de Cidades para a Vida. Dentro deste marco foram discutidos os efeitos das mudanças climáticas; o processo acelerado de urbanização que transformou nossas cidades em favelões; a crescente segregação sócio-espacial com barreiras físicas e sociais, a mobilidade urbana e a inclusão social para combate à violência. 
A escolha de Medellín não foi por acaso, a cidade acaba de ganhar o concurso City of the Year, organizado pelo The Wall Steet Journal, como a cidade mais criativa do mundo. Este milagre se deve a inclusão social realizada pelas empresas publicas Desarrollo Urbano e Transporte Masivo del Valle de Aburrá, da mais alta qualificação e eficiência voltadas para o social. O premio Nobel Stiglitz sintetizou a experiência: “O que me agrada em Medelín é que se está focando o conceito de dignidade, ao criar espaços atrativos e fazer as pessoas se sentirem bem. Não é apenas uma luta pela sobrevivência, é uma aposta no brilhantismo”.
O prefeito Gaviria é um administrador formado em Harvard. O governador Sergio Fajardo é professor universitário e ex-diretor do Centro de Ciência e Tecnologia de Antioquia. É uma pena que nossos secretários de planejamento estadual e municipal não estivessem presentes para se contaminar com Medelín como fizeram 20.000 administradores e técnicos de todo o mundo. 
Apesar de sermos a 13ª cidade mais violenta do mundo, a experiência de Medelín nos renova a esperança. Mas para isto temos que apostar na reconstrução do setor público, no planejamento com foco no social, na inteligência e criatividade de nossos cidadãos. Não podemos continuar a licitar projetos apócrifos pelo menor preço. Temos que respeitar a dignidade do nosso povo.


* Professor Titular de Arquitetura da UFBa
SSA: A Tarde, 27/04/14

segunda-feira, 21 de abril de 2014

Embates históricos sobre impostos em Salvador IV

Paulo Fábio*
Nessa série de artigos evoquei casos exemplares de embates sobre tributos em Salvador, nos últimos 60 anos. Viu-se que o Município tem sido o elo mais fraco de uma corrente de poderes no âmbito da qual se trava os embates. Os outros elos são interesses empresariais relevantes na cidade e o Governo Estadual, que, trazido à arena como mediador, atuou, quase sempre, pressionando o município.
Não pude ser exaustivo nos exemplos, por falta de espaço ou de conhecimento sobre alguns casos. Lembra, por exemplo, o jurista Edvaldo Brito, um conflito de 1991, judicializado, como o atual, e também com participação da OAB. Podem ter havido outras omissões, mas creio ter dito o bastante para afirmar que: a) em contextos institucionais diversos, com ou sem autonomia política de Salvador, vigora, como regra informal de condutas na sociedade e na política, uma lógica hierárquica que inferioriza o poder municipal perante o estadual; b) a reiteração histórica dessa regra tem implicações cruciais sobre a efetiva autonomia política da capital.A ausência frequente de autonomia política nos legou descontinuidade administrativa (duração média dos mandatos de 2,7 anos, no período). E a regra informal fez o poder municipal falhar no principal desafio: adequar sua política e seus serviços às demandas dos cidadãos. O hiato entre cidade e política define uma modernidade "desurbana", na qual o município carece de legitimidade política, estrutura administrativa e base tributária. Mesmo hoje, após quase 30 anos de autonomia institucional, cobrança e, principalmente, reajuste de impostos seguem problemáticos. A sociedade que tem voz não reconhece na Prefeitura, ou na Câmara, autoridade para decidir sobre isso.Esse tabu explica porque o IPTU há 19 anos não tem alteração relevante na sua base de cálculo. Aprendendo, talvez, com desventuras anteriores, os dois prefeitos que antecederam o atual, com dois mandatos cada, não incluíram em suas pautas esse problema, cuja solução pode melhorar a gestão e fazer justiça. No caso de Imbassahy, gerente competente de uma autonomia legal que não se tornou factual, a retomada da modernização da cidade (interrompida, conforme o discurso do grupo então governante na Bahia, por gestões do PMDB e da esquerda), cumpriu-se com êxito, sem batalhas tributárias, pois sedou-se as finanças municipais, em estado crítico, com apoio material do Estado.Durante os mandatos de João Henrique, sem alinhamento estável com governadores - só com alianças sazonais com J. Wagner e o PT - a crônica enfermidade acabou agravada pela má gestão. O prefeito não enfrentou o problema tributário, limitando-se a pontuar a inevitabilidade nunca consumada de futuros ajustes, em declarações que oscilavam entre ameaça e queixa justificadora do caos. Era e é muito baixa a arrecadação de Salvador, comparada às de cidades de porte e condições análogas, como Recife e Fortaleza. No segundo mandato de JH, aumentaram as receitas de todos os municípios brasileiros, mas em Salvador a dificuldade histórica foi aprofundada. O prefeito não enfrentou a questão do IPTU e deixou passar a maré favorável, no Estado e na União.Na última campanha o tema teve tratamento raro e retórico. Falou-se em contenção de despesas, dinamização da arrecadação, combate à sonegação, fomento à atividade econômica. Entre as propostas e a realidade havia conexões de sentido, mas não senso de proporções. Não bastam para inverter a situação de dependência externa da receita municipal (55% são transferências estaduais e federais). É forçoso encarar o tabu, corrigindo injustiças que inibem progressividade social no IPTU.O atual embate mostra ser ilusão um aumento relevante da receita sem alteração do status quo tributário. Hoje, o fato de o prefeito ser neto de quem é não pode nublar outro: no tripé de poder que decide sobre impostos, o Município - seja qual for o prefeito, ou a maioria da Câmara - tende a cumprir, mais que seus contendores, um script sintonizado com justiça social.
* Professor de Ciência Política da Ufba

segunda-feira, 14 de abril de 2014

Embates históricos sobre impostos em Salvador III

Paulo Fábio Dantas*
Como frisei no artigo anterior, nos anos 70 a autonomia municipal não havia chegado à agenda política de Salvador. Na década seguinte deu-se o oposto. Em 1982 o PMDB elegeu 26 dos 33 vereadores. E a uma Câmara renovada antepôs-se a indicação de Manoel Castro, técnico e político do grupo carlista, ao cargo de prefeito. A autonomia política tornou-se senha política crucial.

Poucos prefeitos poderiam alegar, com tanta propriedade quanto Castro, terem recebido uma herança maldita. Tanto pela descontinuidade administrativa (nos seis anos anteriores quatro prefeitos nomeados) como pela sangria de recursos, via subsídios da prefeitura às empresas de ônibus, adotados após o "quebra-quebra" de 1981. Contrariando expectativas, não houve colapso administrativo. A bancada do PMDB influía e ajudou a manter Salvador em equilíbrio instável. Por exemplo, uma concepção planificadora da gestão urbana uniu Legislativo e Executivo e a cidade ganhou legislação urbanística e de planejamento participativo. Já o problema tributário, politicamente congelado desde Jorge Hage, não teve fluência na agenda de Castro com a oposição, centrada basicamente no explosivo problema dos transportes coletivos. O horizonte da eleição direta do prefeito (marcada para 1985) não permitia cumplicidade da Câmara com o Executivo para melhorar a receita. O impasse tributário se agravava, mormente o do IPTU que, como hoje, não tinha sua base de cálculo atualizada há mais de dez anos.
A prefeitura preparou e apresentou à liderança legislativa uma revisão no Valor Unitário Padrão do IPTU. Perante sinais públicos da proposta, manifestaram-se forças sociais análogas às das épocas de ACM e Jorge Hage. A resistência não tinha cor partidária - mas sim força econômica e prestígio social -, daí ter imobilizado apoios na Câmara e no governo estadual. Faltava, ao Executivo, legitimidade para converter seus planos numa campanha. A proposta tinha opositores nas hostes que seriam sua própria base política. Castro teve de recuar e embora a bandeira da autonomia ocupasse lugar central na agenda política, não se buscou mais alterar o status quo tributário até os anos 90.
Com Lídice da Mata, então no PSDB, a esquerda não petista chegou, em 1992, à prefeitura, não só, mas, principalmente, pelo impacto eleitoral do impeachment de Collor. Em fins de 93, contrariando seu partido, a prefeita apoiou Lula, contra FHC. A dissidência tucana na Bahia foi a brecha pela qual ACM, governador aliado ao governo federal, moveu, com êxito, um cerco ao governo municipal.
A prefeita não contava com boa vontade e confiança de grupos econômicos e sociais conservadores. A maioria governista na Câmara, além de numericamente escassa, era circunstancial e parcialmente sensível a esses interesses. Contando, ainda, com a hostilidade do governo estadual, parecia inexistir condição política para mudanças no status quo tributário. Mas enquanto teve, até 1993, cobertura do governo federal, Lídice conseguiu encaminhar a questão a partir de onde Manoel Castro tivera que estancar. A Câmara aprovou - para vigorar desde 1994 - uma revisão gradativa do VUP, que diluiria, anualmente, os impactos da correção. Duas diferenças em relação à atual política do prefeito ACM Neto: impacto mais moderado e dependência de aprovação legislativa para os ajustes anuais posteriores. Esse ponto viabilizou a política no primeiro ano e a inviabilizou nos subsequentes. Como se sabe, a de 1994 foi a última revisão que a prefeitura pôde fazer na base de cálculo do IPTU.
A política tributária de Lídice teve solução de continuidade quando, após o alinhamento político para as eleições de 94, não mais teve o aval da Câmara para reajustes anuais, no que contribuíram a atuação do PT na comissão de finanças e o combate público do governador ACM. Mas antes de tudo passou a faltar à prefeita respaldo político externo para seguir compensando, no Legislativo, a influência ali exercida por atores empresariais de antiga militância contra tributos em Salvador.

*Cientista Político