quarta-feira, 28 de maio de 2014

Urbanização de favelas: uma dívida social

Manuel Ribeiro* 
O processo acelerado de urbanização por que passaram as nações no século XX resultou na concentração nas grandes cidades do desenvolvimento econômico, da renda, dos empregos, dos serviços públicos - aí incluídos energia, saneamento, telecomunicações, educação e saúde - e, também, dos grandes problemas sociais. Nas capitais brasileiras, onde o fenômeno da urbanização foi mais acelerado, os migrantes, analfabetos, sem formação profissional e sem preparo para a vida num ambiente de economia monetária como a da cidade, passaram a ocupar os espaços livres das encostas, fundos de vale e periferia para conseguir fixar-se nas cidades. 

Temos seguramente mais de sessenta anos desde que os migrantes vieram construir a riqueza urbana proporcionada por uma nova economia industrial e de serviços. Esta dívida continua sem resgate e os descendentes dos migrantes, em sua maioria, continuam morando de forma precária nas periferias, com pouca qualificação profissional, sujeitos ao subemprego e com pouco acesso aos serviços públicos. Hoje, o migrante não chega sequer à cidade, ficando numa zona de amortecimento nas periferias e nos municípios dormitórios. 
Paralelamente, a questão da partição tributária, a falta de prioridade no investimento social, a política do laissez-faire no ordenamento, uso e ocupação do solo e a opção por uma política industrial voltada ao transporte individual agravaram e dificultaram a vida dos que estão situados num extrato inferior de renda, além de terem esgarçado o tecido urbano. As áreas de características subnormais ocupadas espontaneamente por fluxos de migração foram tomando a forma de guetos sem acessibilidade e sem a presença do poder público. 
Como não existe vácuo nas relações sociais, o poder foi tomado e passou a ser exercido por quadrilhas de traficantes, que se encastelam nessas áreas e dominam a população local pelo terror de um código de (in)justiça próprio, duro e perverso, eliminando centenas de pessoas por ano, principalmente jovens. As quadrilhas fizeram dos assentamentos populares verdadeiras poliarquias, concorrendo com o estado brasileiro. 

Não há força policial capaz de reverter essa situação sem políticas compensatórias e sem um processo de urbanização que leve acesso viário e serviços públicos, de forma a integrar os assentamentos à cidade. Nenhum plano diretor de segurança pública dará certo, senão no âmbito de um planejamento urbano voltado para as periferias e assentamentos. 

Na área de habitação popular, além dos programas como Minha Casa, Minha Vida e Casa da Gente, que visam atender à demanda por imóveis novos, há de se pensar nas favelas ou, na linguagem politicamente correta, nos assentamentos ou aglomerações de características subnormais - mais de 800 mil pessoas na RMS (fonte: Ipea dez 2103) - e que precisam de oferta de infraestrutura, qualidade de vida e renda. 

Nunca houve no país, contudo, uma política pública contínua de intervenção urbanística e de investimentos, estabelecida para atacar estruturalmente esse enorme problema social que tanto envergonha a sociedade brasileira. Há, sim, intervenções tópicas, paliativas e limitadas. 
Tem-se que pensar e planejar uma solução urbanística global para as favelas, criando as condições físicas para transformá-las, no mesmo local e com as mesmas famílias, em bairros populares dignos. O desafio urbanístico, social e econômico - principalmente da estruturação do projeto - é imenso e talvez, pela magnitude, seja um esforço de mais de uma geração. Mas algum dia tem que se começar, como se começa qualquer coisa, dando um primeiro passo. 
Por isso, a Sedur (Secretário de Desenvolvimento Urbano do Estado) irá promover, ainda este ano, possivelmente com a participação ativa do IAB (Instituto dos Arquitetos do Brasil, Depto. Bahia), um concurso de ideias com esse objetivo, pois o primeiro passo é estabelecer um planejamento conceitual de forma e de prioridade para o investimento público, visando o atendimento definitivo dessa grave demanda social. O Brasil cresceu e enriqueceu e, portanto, é hora de resgatar a dívida para com os que, com as mãos e suor, geraram riqueza para o país. Os resultados e soluções serão legados para a próxima administração.

Engenheiro civil e secretário de Desenvolvimento Urbano do Estado da Bahia

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