terça-feira, 3 de junho de 2014

O que lhe resta

Oliveiros Guanais*
 Oitenta e cinco ou noventa anos? Quem sabe? Mas a cabeça de Isaura, ou Zara, está boa. Zara é a mãe preta de minha mulher e de algumas de minhas cunhadas e de vários  dos filhos destas. Mas não é mãe preta por ter dado leite, isso não. É  mãe preta porque cuidou delas e deles, deu-lhes apoio que só mãe sabe dar, contava histórias quando eram pequeninos e assim por diante.
Todos cresceram, ela envelheceu. Mas ficou como mãe, embora morando com a mais velha de minhas cunhadas, porque foi esta que ela acompanhou logo após o casamento, e cuidou dos filhos como cuidara da mãe.
A vida deu-lhe retribuição. Enquanto forte e podendo trabalhar, foi de grande ajuda em todos os lugares em que estava. Nos lugares da família  que se tornou a sua. Mas envelheceu, teve problemas de saúde, superou-os, ficando apenas com dois: um exagerado
valguismo  que torna as suas pernas em forma de arco, dificultando seu andar, e a velhice que chegou (“senectus ipse morbus est”). Hoje não tem condições de fazer nada, e precisa de todos os cuidados para manter-se firme no andar. Parece também que não enxerga direito. Mas ouve bem.
Ela tem três tesouros, além do amor das pessoas de quem foi mãe.
O primeiro tesouro é um radinho de pilha, que passa o dia ligado e ela atenta , ouvindo todas as notícias da estação de sua preferência. Termina informada de tudo, porque é perceptiva e tem memória razoável.
Mas nas ondas do radinho o que enche sua alma, de alegria ou de tristeza, é o Esporte Clube  Bahia, de quem é torcedora apaixonada. Pelo Bahia acende vela em dias de jogo, preocupando  os que zelam por ela, temerosos de que um incêndio se instale na casa. O Bahia perde, perde sempre, apesar de ter sido de longe, em tempos idos, o melhor time da Bahia, o temível “esquadrão de aço”. E Zara fica triste, muito triste mas cheia de esperança nos jogos que virão. E eles vêm, e o Bahia perde de novo, e Zara sofre, sofre calada, mas continúa com um pacote de velas para serem acesas nos jogos futuros do seu time.
Falta falar no terceiro tesouro de Isaura: um papagaio. Estivemos juntos agora,seis dias de carnaval baiano- porque essa é a duração do carnaval da Bahia- distantes da confusão da cidade. Zara foi e o papagaio também, é claro. Logo no segundo dia ela começou a perguntar pelo louro, está bem, Zara, está bem, mas eu percebi que ela não estava bem, estava contida, triste, faltando algo naqueles momentos. E foi aí que me veio um estalo: ela precisa ficar junto do louro. Arrumei prego e martelo e fiz nova casa para o louro, em lugar arejado, de vista bonita para o verde do mato e do mar. Será que papagaio gosta de ver o mar? Não sei. Mas logo que foi instalado em sua nova moradia, tendo junto de si a sua dona que ficou de uma hora para outra deslumbrada, o papagaio começou a tagarelar, valendo-se de todos os seus recursos verbais, batendo as asas e comendo sua razão de semente de girassol, para alegria da sua dona que falava mais que o louro: e aí, louro, louro ta é gostando, né, aqui está bom, não é louro?,.
E a partir dessa mudança de endereço, o louro e sua dona passaram a ter uma alegria que não existia antes. E com um recurso  tão simples, demos nova vida ao louro e a sua dona , que já tem tão pouco de que se alegrar nos seus noventa anos: um radinho de pilha, um papagaio, e o amor por um time de futebol que já não ganha mais.
 Salvador, 2006.

*Oliveiros Guanais de Aguiar,  nascido em Caetite , falecido em Salvador , foi presidente da UNE e Médico Anestesista.
**Isaura Conceição dos Santos completa hoje 99 anos


  

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