segunda-feira, 27 de março de 2023

Porque me mudei para Salvador



 Bernardo Attal*

“Nasci na região da Normandia na França e me mudei para o Brasil em 2006. O motivo pelo qual resolvi abandonar Nova Iorque, onde eu morava, para viver em Salvador, por muitos anos foi um mistério não só para mim mas também para meus parentes e amigos. Tentei elucidar esse mistério em meu novo filme Cidade Porto sobre o bairro do Comércio. As obras de Jorge Amado claramente me influenciaram pelo encanto que elas podem originar na mente de um adolescente criado em uma região fria e chuvosa da França. A diversidade da população, a facilidade pelo qual se estabelecem relações humanas em Salvador também tiveram seu papel. Porém acho que a possibilidade de trabalhar e de criar no bairro portuário do Comercio e de morar em Santo Antonio com vista nele, foram mais decisivos.


Não é só por conta da presença diária do mar. A escritora Aude Mathé escreveu que o porto representa “a intimidade do abrigo e o infinito do horizonte, o confinamento e a liberdade, o laço e a ruptura.” 

Acho que Salvador, por ser uma cidade sediada em uma baía mas também virada para o mar aberto, oferece todo isso.”

*É diretor e produtor de cinema. Proprietário e diretor geral do Trapiche Barnabé.

sexta-feira, 24 de março de 2023

O Metrô pode chegar ao CH e ao Comércio


Paulo Ormindo de Azevedo
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O Comércio e o Centro Histórico são duas áreas decadentes da cidade, cheias de ruínas. Já se gastou rios de dinheiro público e privado sem resultados. Decadência estrutural devida à sua difícil acessibilidade e esvaziamento funcional, com a reforma urbana de ACM (1970), que os sugou com o centro comercial do Iguatemi e o Centro Administrativo da Bahia.

 Estes dois problemas podem ser enfrentados se houver planejamento e vontade política. A acessibilidade pode ser melhorada com dois túneis vinculados ao Metrô: C. da Pólvora/Comércio e Lapa/Barroquinha. Seus estudos foram iniciados em 1999, no TFG do Arq. Henrique Oliveira de Azevedo, sob minha orientação. Com uma consultoria à UNESCO/FMLF, em 2019, retomei o estudo visando criar um acesso para o CH e integrar os três níveis da cidade ao Metrô: Comércio e monotrilho suburbano, ônibus da B. dos Sapateiros e metrô da Cidade Alta. Como ele será um dos seus principais acessos, caberá à CCR sua manutenção e segurança. 

Em São Paulo a CCR mantém quilométricas galerias subterrâneas de metrô com escadas e esteiras rolantes, ar condicionado, obras de arte e segurança. Por que não pode manter uma galeria de 825m aqui. 


Com o túnel, usuários do Comércio podem chegar de ônibus até o Campo da Pólvora, ou deixar o carro numa das 3.500 vagas do estacionamento da Fonte Nova, só utilizadas durante jogos e shows, e se deslocar por 825 m em esteiras rolantes até o Comércio. Ninguém faz esta trajetória pelas ladeiras. 

Com relação ao esvaziamento funcional a saída é transformar o CH e o Comércio num distrito de uso misto – habitação, serviços e lazer - removendo as barreiras para o mar como fizeram Londres, Nova York, San Francisco, Baltimore e Manaus, durante a desativação parcial de seus portos. Em Salvador os armazéns das docas demolidos estão sendo substituídos por novas construções e estacionamentos fechados para a BTS.

A recuperação do CH só é viável com programas como Minha Casa, Minha Vida, porque as classes remediadas não admitem morar numa habitação sem garagem, play ground e quartos iluminados por poços. É a classe popular que produz a cultura e a identidade do CH. 

Introduzir habitação no Comércio implica transformar edifícios de escritórios vazios em habitacionais e criar infraestrutura de educação, saúde e abastecimento. Uma operação urbana inteiramente viável financeiramente! Finalmente, se questiona a prioridade da obra. Para integrar os três níveis da cidade e os quatro principais modais – metrô, ônibus, monotrilho e hidrovia – esta obra está orçada em R$300 milhões, ou seja, cerca de um terço do BRT de R$820 milhões.

Esta polêmica tem o mérito de discutir uma obra pública, que faltou na implantação do trem metropolitano e BRT que destruíram árvores frondosas para substituir pelo concreto. 

*Arquiteto e Professor Titular da UFBA, com doutorado na Universidade de Roma

 

Artigo publicado no jornal A Tarde, 23/03/2023

quarta-feira, 22 de março de 2023

As terras da ilha de Boipeba são particulares

Luiz Walter Coelho Filho*

A polêmica em torno de empreendimento na Ponta dos Castelhanos, Ilha de Boipeba, tem como pilar a crença fomentada e equivocada do domínio da União sobre aquelas terras insulares. As terras da ilha de Boipeba e aquelas em particular são particulares. Nunca pertenceram à União.

O Patrimônio da União tenta impor seu domínio de forma abusiva, mas direito não tem. A questão é relativamente simples. A Constituição Federal assegura à União o domínio residual sobre as terras interiores nas ilhas. Isso significa que a terra será da União se não pertencer a outrem, que pode ser município, estado ou particular. Em linguagem inversa, se a terra pertence à particular, estado ou município não será da União.

O domínio da União é residual. A finalidade é evitar o vazio dominial (se não for de alguém, será da União) e impõe o dever ao Governo Federal de respeitar os títulos constituídos. O Patrimônio da União não cumpre, como regra, esse dever e se especializou em promover, pela força do seu poder, a subtração das terras insulares dos particulares pregando a crença falsa e inconstitucional do domínio federal à qualquer custo.

Vale aqui lembrar que essa questão da propriedade das terras interiores nas ilhas não se confunde com o terreno de marinha, que pertence à União, não se discute, e tem seu limite na testada de 33 metros a partir da preamar média das praias.

A fazenda Ponta dos Castelhanos foi formada por desmembramento da antiga fazenda Espírito Santo, também conhecida com o nome de Tatuim ou Fatuim. Essa antiga fazenda tem longa cadeia sucessória, bem estudada e que remonta ao Século XVI.

A cadeia de títulos de propriedade da fazenda Ponta dos Castelhanos nos últimos 160 anos está totalmente reconstituída e provada. Merece destaque a transcrição 413-A, de 19 de outubro de 1897, existente no Registro de Imóveis de Valença (Figura 1). Poucas propriedades privadas possuem cadeia sucessória tão rica e bem documentada.

O Ministério Público Federal com atuação no assunto não tem aparente compromisso com a defesa da propriedade privada e insiste na crença da não verdade, exigindo que o Patrimônio da União exerça direitos de regime de ocupação que não se aplicam ao imóvel.

Lamentável que tantos agentes públicos insistam em não examinar e respeitar a propriedade privada, apregoando ou repetindo mil vezes mentira para transformá-la em verdade.

Aparentemente, existe tentativa articulada de transformar as ilhas em feudos da União. Isso é trágico! Transforma populações em meros ocupantes privando-os dos direitos que qualquer proprietário tem de vender, explorar, parcelar, construir, constituir hipoteca ou alienação fiduciária em suas terras. É um atentado à Constituição Federal!

Em tudo e por tudo, o domínio da União sobre as terras interiores da ilha de Boipeba é uma alteração da verdade dos fatos com requinte de abuso de poder.


*Luiz Walter Coelho Filho

Sócio-fundador do escritório Menezes, Magalhães, Coelho e Zarif Sociedade de Advogados.

Publicado originalmente no link: https://www.migalhas.com.br/

segunda-feira, 20 de março de 2023

A intimidade artificial virou o mal do século


Ronaldo Lemos*

Esther Perel é psicoterapeuta. Nasceu na Bélgica, filha de sobreviventes do holocausto. Hoje é professora da universidade de Nova York e especialista em temas como solidão e relacionamentos contemporâneos, incluindo relações amorosas. No festival SXSW, realizado em Austin, no Texas, que se encerrou ontem, ela roubou a cena. No meio de uma pletora de palestras sobre tecnologia, sua fala sobre comportamento humano foi a mais importante na minha opinião. Ela desenvolveu o fascinante tema da “intimidade artificial”. Seu argumento é que estamos vivendo nossas vidas em permanente estado de atenção parcial. Quando nos relacionamos com nossos amigos, amantes ou familiares nunca estamos 100% presentes. Nossa atenção está sempre dividida entre as pessoas e o nosso celular, mídias sociais, alertas de mensagem e assim por diante. Nesse contexto não é possível intimidade real. As mídias sociais e nosso celular funcionam como anestesia seletiva para as relações humanas. Queremos as partes boas do convívio, que são do nosso interesse, mas evitamos ao máximo atritos, conversas desconfortáveis, tédio etc. Sempre que algo desconfortável começa a se materializar, partimos para o mundo confortável e controlado do celular, que nos distrai do que é verdadeiramente humano. Essa é a intimidade artificial. Estamos todos vivendo coletivamente o experimento do rosto parado que o psicólogo Edward Tronick realizou nos anos 1970. Nele, uma mãe primeiro é gravada se relacionando normalmente com seu bebê de 6 meses. Ela sorri, o bebê sorri de volta. Ela fala algo e o bebê dá uma gargalhada. No segundo momento a mãe paralisa seu rosto. Ela olha fixamente para o bebê, sem expressar qualquer reação. O bebê então gargalha. A mãe permanece impassível. O bebê então começa a gritar. Nenhuma reação da mãe. O bebê então chora e grita desesperadamente, até que a mãe retoma suas reações normais e acolhe a criança. No mundo que estamos vivendo hoje somos todos simultaneamente a mãe e a criança. Como somos incapazes de dar atenção integral ao outro, estamos sempre em dívida emocional com as pessoas que nos cercam. Ao mesmo tempo, somos também o bebê, sedentos por atenção. Nunca houve uma carência tão grande por escuta e acolhimento como a que vivenciamos coletivamente no mundo de hoje. 

Esther nos conclama a nos rebelarmos contra a intimidade artificial. A exigir e a dar atenção total para aqueles com quem nos relacionamos. A darmos o difícil passo de aceitarmos o conflito e o atrito como parte das relações humanas, parando assim de nos anestesiarmos parcialmente o tempo todo. Sem isso seremos obrigados a conviver com relações que julgamos “defeituosas” o tempo todo. Uma pesquisa realizada nos EUA em 2019 apontou que 22% dos “millenials” têm hoje zero amigo. 25% dizem não ter nenhum conhecido. Eu Muitos têm um número de seguidores gigantesco em redes sociais, mas amigos mesmo, nenhum. Em gerações anteriores o número dos sem-amigos girava em torno de 9%. Não é por acaso que ansiedade e depressão são um dos assuntos que mais circulam em mídias sociais hoje entre adolescentes e também crianças. Na era da intimidade artificial, não são só as amizades que estão em risco, mas também as relações amorosas e familiares. Apertem os cintos para a sociedade da solidão, com consequências nefastas para todos os campos da vida humana.

*Advogado, diretor do Instituto de Tecnologia e Sociedade do Rio de Janeiro.

domingo, 19 de março de 2023

Verde que te quero cinza


Paulo Ormindo de Azevedo
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 O famoso poema de Garcia Lorca está sendo reescrito na Bahia. Sim, uma empresa do presidente da Fundação Roberto Marinho, de Armínio Fraga, ex-presidente do Banco Central que recusou convite para servir ao país como Ministro da Fazenda, e outros sócios famosos, está fazendo uma reforma agrária pelas avessas na Fazenda Ponta dos Castelhanos, na ilha de Boipeba, que segundo a Superintendência do Patrimônio da União pertence à nação. 

 Está expulsando a população de quase uma centena de pequenas roças e choupanas de pescadores instaladas desde o século XVII, dado o nome, para incorporar um resort de luxo, com campos de aviação e golfe, que depredarão a reserva de Mata Atlântica, duas pousadas e marina para 150 lanchas que ameaçam os manguezais e restingas locais. O empreendimento imobiliário, que ocupa 20% da frente marítima da ilha, equivalente a 1.700 campos de futebol, curiosamente é incorporado por uma empresa agrícola, a Mangaba Cultivo de Coco Ltda., e foi licenciado pelo INEMA sob a alegação que é uma medida para preservar a reserva. Trata-se do último ato na Bahia da política do ex-ministro Ricardo Salles de passar a boiada. 


A Globo, que fala tanto da preservação do meio ambiente, não noticiou o fato, ao contrário da invasão pelo MST de propriedades da Suzano, que desmatou o que restava da Mata Atlântica para cultivar eucalipto que exaure o solo e que acaba com a fauna local para exportar celulose e importar papel em rolo para a imprensa. A invasão injustificada do SMT, apesar de ser um protesto contra acordos não cumpridos pela empresa, foi prontamente reprimida pelo MPE. Espera-se que o MPE aja do mesmo modo por esta tentativa de invasão de colarinho branco muito mais extensa e grave em Boipeba. 

A questão ambiental não é apenas um problema mundial, é gravíssima no Brasil e está ligado ao racismo estrutural contra índios da Amazônia e negros urbanos que são os grupos mais discriminados da sociedade brasileira, e se reflete em fenômenos climáticos que não aconteciam no país, como ciclones no sul, chuvas de granizo no sudeste, desidratação do Pantanal e do cerrado e deslizamento de terras nas serras carioca e paulista com centenas de mortos. Não é possível que a população pobre não tenha acesso ao solo urbano e tenha que ocupar terrenos sem condições de estabilidade e acessibilidade, como morros, encostas, margens de rios e alagados, perdendo vidas e bens que construíram a duras penas. 

É urgentíssima no Brasil a reforma agrária, para garantir a segurança alimentar de nossa população, e urbana, para acabar com o flagelo das inundações e corrimentos de terra e formação de territórios de exclusão e resistência, novos quilombos, aonde não chega o estado e são disputados por gangues de milicianos armados que provocam centenas de mortes e perdas patrimoniais todos os anos.

* Paulo Ormindo de Azevedo é Arquiteto e professor, com doutorado na Universidade de Roma.

**Artigo publicado no jornal A Tarde, em 19/03/2023

segunda-feira, 6 de março de 2023

Tributo ao último planejador


Paulo Ormindo Azevedo*

Os manuais de empreendedorismo enfatizam que a chave do sucesso é o planejamento da empresa. Para administrar um estado ou cidade, tarefa muito mais complexa, não se exige nada. Governadores e prefeitos podem fazer o que lhe der na telha. Genericamente detestam o planejamento porque lhes cria uma camisa de força e limita o “tome lá, me dê cá”, que assegura sua continuidade política.

O Brasil já teve grandes planejadores, como Celso Furtado, que elaborou o Plano de Metas de Juscelino, quando criou a Sudene, dirigiu o BNDE, e redigiu o Plano Trienal de Goulart e de Ação de Tancredo. Outro foi João Paulo dos Reis Veloso que durante o regime militar exerceu vários cargos como a criação do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA). Em 1968, foi nomeado secretário-geral do Ministério do Planejamento, assumindo a pasta durante os governos de Médici e Geisel (1969 a 1979).

O mais atuante deles foi, porém, Rômulo Almeida que no início do segundo governo de Vargas foi um dos criadores da Petrobrás (1950) e integrou o Gabinete Civil da Presidência da República, que organizou a Assessoria Econômica da Presidência da República. A partir de 1953, tornou-se consultor econômico da Sumoc, antecessora do Banco Central, estruturou a Superintendência do Plano de Valorização Econômica da Amazônia (SPVEA) e o Banco do Nordeste, do qual foi presidente.

Em 1955 assumiu a Secretaria da Fazenda da Bahia quando criou a Comissão de Planejamento Econômico (CPE). No período de 1957 a 1959 reorganizou o Instituto de Economia e Finanças da Bahia e nesse último ano, já no governo de Juraci, representou a Bahia na Sudene e foi nomeado Secretário de Economia, quando criou a  Coelba. Foi diretor da Fundação Casa Popular, de Empreendimentos Bahia S.A., da Elétrico-Siderúrgica Bahia S.A., além criar e presidir a Consultoria de Planejamento Clan S.A. que idealizou o Polo Petroquímico de Camaçari, o Porto e o Centro Industrial de Aratu.

O herdeiro desta rica tradição foi seu primo caçula, o Eng. Luiz Antônio Schneider Alves de Almeida, filho de Landulfo Alves, formado nos EUA, que trabalhou com ele desde 1960 na Clan, na implantação do CIA e Porto de Aratu e como diretor-superintendente de Empreendimentos da Bahia S.A, quando expandiu a Odebrecht no exterior, em especial na CPLP. Casado com a artista americana Betty King, ele promoveu muito a cultura afro-baiana, em especial o Ilê Aiyê e sua sede.

Com a morte de Rômulo em 1988, se fez um vazio. Todos os órgãos de planejamento foram extintos e os secretários de planejamento passaram a ser políticos despreparados no setor. Esquecido desde então, Luiz Almeida morreu no último dia 05 de janeiro recordado apenas pela FIEB.

Cabe à ALBA promover, em convênio com a UFBA e UNEB, cursos de extensão multidisciplinares para formação de quadros políticos minimamente conscientes da realidade baiana.

*Paulo Ormindo de Azevedo é Arquiteto com Doutorado em Urbanismo e Preservação de Sítios Hustoricos.

SSSA: A Tarde, 05/03/2023