terça-feira, 18 de junho de 2019

Cidades Criativas - O Case de Salvador

 Roberta Orrico
Com a crescente influencia de novas tecnologias e do mundo digital, conectadas à multipolarização internacional, as assimetrias entre as economias globais foram tomando maiores proporções. Como consequência, a ideia clássica de trabalho se tornou obsoleta e o desemprego, uma realidade. A desigualdade social ainda é crescente em face às diversas crises econômicas internacionais e a necessidade de se reinventar é necessária.

A era digital vem alterando significativamente não somente as relações pessoais, mas também a forma como produzimos e trocamos bens, serviços e até mesmo cultura. O surgimento e o fortalecimento, a partir do Século XX, de uma indústria global de consumo cultural, tecnológico, inovador e criativo é o contexto propício para a discussão de um novo e importante ramo da economia e as indústrias que dela derivam, as criativas.

Existe, portanto, um entendimento da “economia criativa” como uma porção significativa e exponencial da economia global. Governos, sociedade civil organizada dos setores criativos ou não, a população em geral, todos estão tomando consciência da importância do seu papel como fonte de empregos, de riqueza e de compromisso com a promoção e difusão cultural.

A criatividade utilizada como ativo econômico tanto é capaz de movimentar a economia, reduzir desigualdades e fortalecer a produtividade da sociedade quanto como pode construir barreiras que dividem o mundo entre aqueles que possuem acesso ao mundo digital e dinâmico e aqueles que continuam no modelo pré-industrial de força de trabalho pautada no labor.

Em todo o globo, países estão se movimentando para desenvolver e proteger sua produção criativa, estimulando seu crescimento através de políticas públicas e de cooperação a partir da inserção em redes internacionais com foco em indústrias criativas e promovendo a exportação de seus ativos criativos.

Informações publicadas nos sites da Organização Mundial do Comércio (OMC) e da Organização das Nações Unidas (ONU) informam que o faturamento das indústrias criativas no mercado internacional duplicou no início dos anos 2000 sendo responsável por 7% das riquezas produzidas no mundo.

Neste contexto, a fim de demonstrar a potencialidade das indústrias criativas, podemos analisar o caso de Salvador, que ao utilizar a música como instrumento de internacionalização e vetor do desenvolvimento local, evidenciou sua a música como ativo econômico local. Para tanto, a cidade construiu um plano de ação para identificar resultados obtidos pelas iniciativas desenvolvidas a partir de sua entrada na Rede de Cidades Criativas da UNESCO, em 2015, no âmbito da Música.

O intuito das ações planejadas, âmbito da indústria criativa da música, é servir de propulsor para muitas outras ações, dentro ou não da Rede, para atingir os objetivos propostos na candidatura do título de Cidade Criativa, com foco principal em projetos e iniciativas que promoveram a troca de experiências e de recursos com outras cidades.

A música tem o poder de gerar crescimento econômico, incrementar a arrecadação de impostos, criar empregos, fomentar turismo, atrair grandes talentos e contribuir para o desenvolvimento sustentável cultural e social da cidade. Em termos econômicos, demonstrados por dados da UNESCO em 2015, as indústrias criativas capitalizaram US$2,250 trilhões e geraram aproximadamente 30 milhões de empregos, ambos em escala global. Fazendo um recorte para a indústria criativa da música, a UNESCO destaca que, no total global supracitado, a música contribuiu com a receita de US$65 bilhões e, aproximadamente, 4 milhões de empregos.

Desta forma, é de extrema importância e valia que cidades estimem, mapeiem e criem estratégias para identificar seu ecossistema criativo, seja no âmbito da música ou não, maximizando o valor de sua criatividade.
*Associada Executiva no CEERI - Centro de Estudos e Estratégias em Relações Internacionais

segunda-feira, 17 de junho de 2019

Salvador é a cidade eleita para sediar Encontro das Cidades Criativas da Unesco

A capital baiana ganhou a disputa e vai sediar a terceira edição do Ecriativa, o Encontro das Cidades Criativas da Unesco. A vitória foi anunciada durante o evento que, este ano, aconteceu em Florianópolis e reuniu os representantes das oito cidades brasileiras com o selo de cidades criativas, concedido pela organização. O evento tem o objetivo de promover a conexão entre as cidades que têm a criatividade como estratégia para o desenvolvimento.
“Salvador é uma cidade reconhecida internacionalmente pelo seu potencial criativo e temos trabalhado muito para fomentar o desenvolvimento de novos projetos e a estruturação da economia criativa na cidade. Essa conquista revela todo o trabalho que vem sendo desenvolvido pela Prefeitura, através do eixo Cidade Criativa, do programa Salvador 360”, celebra o secretário municipal de Desenvolvimento e Urbanismo (Sedur), Sérgio Guanabara.
Durante o encontro, as oito cidades participantes, Salvador (música), Florianópolis, Belém e Paraty (gastronômico), Brasília e Curitiba (design), João Pessoa (artesanato) e Santos (Cinema), tiveram a oportunidade de discutir estratégias e políticas públicas para o setor. Além disso, puderam trocar experiências e apresentar instrumentos de fomentação da economia criativa.
O diretor de Parceria Público-Privada da Sedur, Gustavo Menezes, apresentou o projeto que visa tornar a capital baiana o polo de criatividade brasileira. “A criatividade do soteropolitano é pulsante e precisa de um espaço que possa estruturar e fomentar isso. Pensando nisso, Salvador vai ganhar um novo Hub, mas dessa vez com foco na economia criativa que vai contemplar ações voltadas para música, fotografia, design, gastronomia”, explica. “A estrutura, que vai funcionar no Comércio será entregue em 2020”, completa Menezes.
Atualmente, 180 cidades de 72 países fazem parte da Rede Mundial de Cidades Criativas da UNESCO. Durante o evento, os representantes das oito cidades criaram a Rede Brasileira e Salvador foi eleita também a coordenadora geral do grupo. “Essa conquista permite que Salvador assuma um protagonismo na economia criativa e desenvolva um papel importante de intermediação dos interesses das cidades e os principais agentes seja na esfera municipal, estadual ou internacional”, ressalta Guanabara”.
REDE DE CIDADES CRIATIVAS
A Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (UNESCO) criou em 2004 sua Rede de Cidades Criativas para promover a cooperação com e entre as cidades que identificaram a criatividade como um fator estratégico para o desenvolvimento urbano sustentável. A rede também está comprometida com o desenvolvimento da Agenda para o Desenvolvimento Sustentável 2030 e seus objetivos são:
  • Fortalecer a criação, produção, distribuição e divulgação de atividades, bens e serviços culturais;
  • Estimular e reforçar as iniciativas lideradas pelas cidades-membros para tornar a criatividade um componente essencial do desenvolvimento urbano por meio de parcerias entre os setores público e privado e a sociedade civil;
  • Desenvolver polos de criatividade e inovação e ampliar as oportunidades para criadores e profissionais do setor cultural;
  • Melhorar o acesso e a participação na vida cultural, bem como o aproveitamento dos bens e serviços culturais, nomeadamente para os grupos e indivíduos marginalizados ou vulneráveis;
  • Integrar plenamente a cultura e a criatividade no desenvolvimento de planos e estratégias locais.

sexta-feira, 7 de junho de 2019

Othon Bastos homenageado em Salvador

O ator baiano Othon Bastos recebeu hoje à noite o título de Cidadão de Salvador, no Plenário Cosme de Farias, na Câmara Municipal de Salvador (CMS).
O título foi proposto pelo vereador Marcos Mendes (Psol), que preside a sessão solene de outorga.
Othon Bastos nasceu em Tucano, no interior do estado, integrou a primeira turma de alunos da Escola de Teatro da Universidade Federal da Bahia (Ufba) 
O ator comemora 86 anos de uma vida quase inteiramente dedicada às artes. São mais de seis décadas interpretando personagens marcantes no teatro, no cinema e na televisão. Uma média de 70 filmes – entre curtas e longas- metragens –, 90 papéis em novelas e seriados, e 20 espetáculos teatrais. 
Othon José de Almeida Bastos nasceu dia 23 de maio de 1933 em Tucano, município no Nordeste da Bahia. Na infância, pensou em ser piloto da Aeronáutica ou dentista; a vocação para as artes só veio bem mais tarde, quase que por acaso. Aos 17 anos, montou um espetáculo de brincadeira no colégio. Nele, Othon servia de "ponto" aos colegas. A peça era uma paródia de “Otelo”, escrita por Ronald Chevalier. Antes de entrar em cena, o ator que interpretaria Iago – ninguém menos que o futuro produtor de TV Walter Clark – desistiu de entrar em cena.
– Roniquito então me pediu para substituí-lo, pois era o único que sabia todas as falas. Eu disse: “Mas não sou ator!”, e ele nem ligou. Acabei fazendo o papel. Na plateia, tinha um rapaz cujo irmão estudava na escola do autor Paschoal Carlos Magno. Ele gostou do meu trabalho e me apresentou ao Paschoal. Entrei na escola como ouvinte e nunca mais deixei de fazer teatro – lembra Othon.
O jovem ator então fixou residência no Rio de Janeiro, onde integrou o grupo Teatro Duse. Seu primeiro espetáculo foi “Terra Queimada” (1951), de Aristóteles Soares. Alguns anos mais tarde, foi estudar teatro em Londres. Quando voltou ao Brasil, em 1956, foi dirigir a recém-fundada Escola de Teatro da Universidade da Bahia. Lá, faz “As Três Irmãs” (1958), de Anton Tchekov; "Um Bonde Chamado Desejo" (1959), de Tennessee Williams; e "Auto da Compadecida" (1959), de Ariano Suassuna.
Em 1960, Othon sai da Escola para fundar – associado ao crítico teatral João Augusto de Azevedo – a Companhia Teatro dos Novos. Integrada por sete artistas, inicialmente se chamaria de Teatro dos Sete, mas o nome foi dado antes ao grupo do diretor Gianni Ratto, formado por nomes como Fernanda Montenegro, Sérgio Britto, Ítalo Rossi e Fernando Torres. A partir daí, o novo grupo baiano empenhou-se durante um longo tempo na construção do Teatro Vila Velha. Nessa época, Bastos conheceu a atriz Martha Overbeck, com quem se casaria.
– Éramos todos novos. Novos de idade, de ideologia de pensamento. Daí o nome do grupo. O Teatro Vila Velha levou quase quatro anos para ser construído. Fazíamos bingos, leilões de quadros de artistas plásticos baianos. O governador da época, Juracy Magalhães, apesar de ser de direita, ajudou muito na construção, oferecendo a estrutura metálica e o telhado. Também tínhamos um prefeito de esquerda, Virgildásio de Senna, que forneceu as cadeiras de um cinema velho que seria demolido. Com o nosso dinheiro, compramos aos poucos luz e cenário. Até que conseguimos construir um teatro de 700 lugares. Naquela época, ninguém ganhava nada. Era mais a dedicação à arte mesmo – destaca o ator, que precisou trabalhar durante três anos no Departamento de Turismo da Prefeitura para se sustentar.
Durante esse processo, o inquieto ator decidiu se aventurar na carreira cinematográfica. Em 1960, atuou como um caminhoneiro em “Sol sobre a Lama”, filme do cineasta e teórico de cinema Alex Viany. No mesmo ano, viveu um jornalista em “O Pagador de Promessas”, de Anselmo Duarte. A consagração, porém, vem com o cangaceiro Corisco, em “Deus e o Diabo na Terra do Sol”. O clássico de Glauber Rocha se transformou no símbolo do Cinema Novo e foi um divisor de águas na carreira de Othon Bastos.
– A migração para o cinema foi uma coisa automática. A grande escola é o teatro, que te dá base para fazer cinema, televisão, circo. Não tenho a menor dúvida que o teatro é minha plataforma preferida. Para mim, a vida é teatro. É ele que te permite fazer tudo. O ator precisa ter todas essas experiências de interpretação, não pode se limitar somente a uma coisa – acredita Othon, que diz aceitar apenas os trabalhos que realmente lhe interessam. – Não faço questão de aumentar meu currículo com números. Faço apenas o que gosto de fazer. Por exemplo, depois de “Deus e o Diabo”, passei mais de três anos sem fazer cinema. Por causa do Corisco, só me chamavam para fazer cangaceiros, assassinos, bandidos, estupradores (risos)... Já tinha feito um e era suficiente para toda a minha vida!
Depois que o Teatro Vila Velha ficou pronto, Othon Bastos trabalhou nele durante dois anos. Em 1967, decidiu voltar para o Sudeste, dessa vez para São Paulo, a convite do Teatro Oficina, de José Celso Martinez Corrêa. Encena os espetáculos “Galileu Galilei” (1968) e “Na Selva das Cidades”, ambos de Bertold Brecht. No cinema, faz o papel de Bentinho, em “Capitu” (1968); é o Professor, em “O Dragão da Maldade contra o Santo Guerreiro” (1969); é o Homem, em “Os Deuses e os Mortos” (1970); e Paulo Honório, em “São Bernardo” (1972) – considerado pelo ator o longa metragem mais importante de sua vida.
Ao lado de sua mulher, Martha, funda a Othon Bastos Produções Artísticas em 1972. Ao longo da década de 70, o grupo se empenha na defesa da liberdade de expressão, criando um repertório de resistência. A estreia acontece com “Castro Alves Pede Passagem”, com direção de Gianfrancesco Guarnieri. Depois, Othon encena “Um Grito Parado no Ar” (1973), com a qual é premiado como melhor ator pelo Molière e Associação Brasileira de Críticos Teatrais (ABCT). Em seguida, mais um texto de Guarnieri: “Ponto de Partida” (1976). Além do dramaturgo ítalo-brasileiro, outros grandes nomes se juntam ao grupo, como Renato Borghi, Augusto Boal e Paulo José.
Sua trajetória na televisão também é bastante rica, tendo início na década de 50, quando participou do Grande Teatro Tupi (1956). Depois de diversos papéis na primeira emissora brasileira, entrou na Rede Globo em 1979, quando fez um especial “Vestido de Noiva”, inspirado na obra de Nelson Rodrigues. É bastante lembrado pelo papel de Ronaldo César, de “Roque Santeiro” (1985). Desde 2000, fez quase uma novela ou seriado por ano, sendo a última “Amor Eterno Amor”, em 2012.
– Cada filme ou peça que você faz, há uma entrega grande para os personagens. Todos eles deixam saudade. É uma coleção de lembranças. Vou relembrando como se fosse um álbum. Mas não posso viver dos trabalhos que já fiz. O passado é passado, já ficou. Vivo do que faço hoje e aiOthon Bastos participou de dois longas nacionais que concorreram ao Oscar de Melhor Filme Estrangeiro: “O que é Isso, Companheiro” (1997), de Bruno Barreto; e “Central do Brasil” (1998), de Walter Salles, no qual vivia outro caminhoneiro e contracenou com Fernanda Montenegro. Com uma trajetória tão rica, marcada por tantos tipos diferentes, não há um personagem específico que o ator ainda queira interpretar.
– Todo mundo da minha época já teve vontade de fazer “Hamlet”. Mas sempre pensei muito nos autores e personagens brasileiros. Nunca precisei de personagens fantásticos de outras civilizações. Eu me interesso em fazer tipos brasileiros, representar minha vida e o lugar onde moro. Ao mesmo tempo, este ano fui chamado para fazer duas peças que são muito interessantes. Uma é “Disque M para Matar”, que já virou até filme pelas mãos de Hitchcock, com uma tradução belíssima do Domingos de Oliveira. Outra tem um título fantástico, “O Defunto Comunista”, que traz uma reflexão incrível para os dias de hoje. Na verdade, para me conquistar, o texto tem que ser rico, chamar minha atenção.
Aos 86 anos, o ator não pensa em parar. Integrando o elenco da série "Os Carcereiros", na Rede Globo, já no segundo ano, Othon tem planos para o futuro, um novo filme quem sabe,
– É preciso sempre caminhar em frente. Nestes 86 anos, conheci pessoas maravilhosas, fiz amigos e tive ótimos colegas de profissão. Também cruzei com pessoas insuportáveis. Mas é como dizem: “As amargas, não”. Para que pensar nas coisas ruins? O importante é seguir e esquecer o que te afeta. Quem olha para trás é estátua de sal (risos). O que pensam de você, não é você. Às vezes, nem mesmo o que você pensa é. Você é o agora. Amanhã já será completamente diferente. E o ontem... bem, este já passou.



quinta-feira, 6 de junho de 2019

A verdade sobre o Museu da Língua Portuguesa

Antônio Risério*
Depois que virou grande sucesso, o Museu da Língua Portuguesa passou a ter vários "pais" - entre eles, até mesmo um assistente técnico do arquiteto Ralph Appelbaum. Aqui e ali, me perguntam sobre minha participação no projeto. Deixo aqui registradas, por isso mesmo, respostas que dei ao editor Sergio Cohn (da Azougue), num depoimento.
Sergio Cohn: O Museu da Língua Portuguesa hoje é um dos mais visitados do Brasil. Você participou da sua elaboração. Como foi o processo? 
Antonio Risério: Veja o que o Jotabê Medeiros escreveu, depois de sua primeira visita ao Museu da Língua Portuguesa: "Curioso notar que a placa de inauguração do museu glorifica o ex-governador Geraldo Alckmin; o então prefeito de São Paulo, José Serra (que, todos sabem, não foi prefeito coisa nenhuma e não ajudou num só rebite daquele prédio); a Fundação Roberto Marinho (que de fato tocou o projeto). E só. O Ministério da Cultura, que financiou maciçamente a obra por meio da Lei Rouanet (cerca de R$ 37 milhões), não é sequer mencionado... Muito menos se deram ao trabalho de agradecer ao autor do projeto original desse museu que é elogiado nos quatro cantos do mundo: o poeta baiano Antonio Risério, varrido tanto da memória do Ministério da Cultura (onde foi destacado colaborador) quanto da dos esclarecidos ¿donos¿ do museu, o tucanato paulista". Mas não estou aqui para me queixar de nada, que queixas não são do meu temperamento. Vamos à história. A ideia de fazer um museu de nossa língua - um museu original, tomando a palavra como objeto - é do antropólogo Roberto Pinho e foi sugerida, ainda que sem qualquer aprofundamento ou desenvolvimento, para Porto Seguro, como parte da comemoração dos 500 anos do Brasil. Ela aparece publicada em 1994, no livro "Museu Aberto do Descobrimento: o Brasil Renasce Onde Nasce", nos seguintes termos: "Museu da Língua Portuguesa - Um grande museu de recursos audiovisuais, didático, alegre, repleto de situações envolventes, que levará o leigo ao conhecimento da história da nossa língua. Como e onde nasceu, como evoluiu, os caminhos que percorreu, as influências que sofreu e as que provocou, as contribuições que recebeu das línguas indígenas e africanas". Pinho passou a bola para a Fundação Roberto Marinho (FRM). Com o velho prédio da Estação da Luz na mão, a FRM comprou a ideia, graças ao Hugo Barreto, seu vice-presidente. Quando Lula foi eleito, eu, João Santana e Roberto Pinho manobramos para fazer o ministro da Cultura. Convencemos o Gilberto Gil a assumir o cargo, inclusive. E então eu e Roberto assumimos nossos postos no Ministério, escolhidos de modo a não nos deixar envolvidos com o inferno da burocracia. Roberto, como secretário de projetos especiais; eu, de assessor especial. Marcamos então uma reunião com a FRM e comunicamos que, como o Ministério era o grande financiador da obra, assumiríamos a frente do museu. Eu ficaria, como de fato fiquei, responsável pela formulação do projeto.
Sergio Cohn: Mas como as coisas se desenrolaram?
Antonio Risério: Não fui apenas "um dos diversos pesquisadores cujos trabalhos serviram de base para a concepção do museu", como cheguei a ler na imprensa. A concepção do museu é minha. Como bem sabem, aliás, Roberto Pinho, Hugo Barreto, Jarbas Mantovanini, Isa Grinspum Ferraz, o arquiteto Ralph Appelbaum e seus colaboradores. Quando assumi o trabalho, a Fundação Roberto Marinho ainda não tinha uma direção a seguir. Vinha há algum tempo promovendo encontros com intelectuais em São Paulo para discutir o assunto e gravando estas sessões, na tentativa de encontrar um caminho. Peguei e li todo o material dessas gravações. Vi que eram encontros muito interessantes, mas não levariam a lugar algum. Não desembocariam num projeto. As pessoas ficavam teorizando sobre linguagem, filosofando com inteligência e mesmo erudição, mas nunca chegavam a pensar objetivamente na configuração efetiva de um equipamento público específico: o museu da língua portuguesa. Então, o trabalho de recuperação do prédio da Estação da Luz, feito por Paulo e Pedro Mendes da Rocha, ia às mil maravilhas, mas não se tinha ideia do que seria colocado lá dentro. Me concentrei, portanto, na resolução dessa questão. Como ponto de partida, o museu não deveria ser intelectualista, nem populista - e tinha de fascinar. A história linguística e cultural de cada hábito e de cada palavra é capaz de prender a atenção das pessoas mais variadas. Contaríamos, ainda, com as línguas indígenas e africanas, com as línguas das "migrações secundárias", como o japonês, o italiano, etc. Mas não se tratava de criar um centro dessas línguas e sim um espaço, criativo e luminoso, do português do Brasil, o mais importante país da chamada "comunidade lusófona". A língua portuguesa nasceu nos largos e generosos campos do discurso vulgar, da fala plebeia, da prática oral da língua, e não do texto escrito, douto. E começou a se transfigurar na língua mestiça brasileira a partir do seu encontro com outros sistemas lingüísticos altamente complexos e estruturados, de origem ameríndia ou africana. O museu não poderia perder isso de vista. Além disso, deveria acionar as mais avançadas tecnologias da inteligência e buscar o máximo de processos interativos. Tinha de ser uma vitrine, um "show room" da palavra, onde mesmo etimologias fossem trabalhadas plasticamente. Etc. Expus essas coisas a Roberto Pinho e ao pessoal da Fundação Roberto Marinho. Eles se animaram. Começaram as reuniões com o Ralph Appelbaum, o arquiteto que projetou, entre outras coisas, o planetário de Nova York. Um sujeito que gosta de saber das coisas com toda a clareza e que faz mil perguntas. Nessa época, eu morava em Brasília, no hotel Melià. Ao fim de uma reunião lá no hotel, o Ralph me perguntou: "O senhor quer uma Real Academia da Língua Portuguesa?". Respondi: "Não, isso já existe. O que eu quero é um parque de diversões da linguagem". Falei do planetário novaiorquino. Ele sorriu e disse: "Sei, você quer um ¿linguatarium¿ do português brasileiro". Fiquei, então, de aprofundar e desenvolver as ideias. E escrevi um texto relativamente longo, de umas 40 páginas, intitulado "Estação da Luz da Nossa Língua". Foi a partir desse texto que Appelbaum e seus colaboradores começaram a viajar. Chegamos então ao nome da socióloga e cineasta Isa Grinspum Ferraz para coordenar o trabalho. E definimos nomes de especialistas para colaborar no projeto. A essa altura, indignado com uma conduta absurda de Gilberto Gil, rompi com o ministro e me afastei do Ministério. Mas não abandonei o projeto. Apenas, passei para a clandestinidade. A Fundação Roberto Marinho temia que, se eu continuasse abertamente, viessem retaliações por parte do Ministério. E elas vinham vindo. Então, passei a atuar sob a capa de uma empresa paulista da Isa Ferraz, a "Texto e Imagem". E prossegui. Escrevi textos para a montagem da "grande galeria", sugeri que a mesa tecnológica fosse usada para jogos etimológicos, criei o argumento para o audiovisual do auditório, etc. Pintou até a parceria com Arnaldo Antunes, que soa na entrada do museu. E é uma coisa bem simples, palavras de diversos idiomas que entraram no português do Brasil ou de línguas existentes no país, como o ianomâmi. Em resumo, esta é a história.
* Antônio Risério, nascido em Salvador, é antropólogo, ensaista e historiador