sexta-feira, 7 de julho de 2017

Christian Cravo volta à Bahia para dirigir Instituto Mario Cravo Neto

Kátia Borges - A Tarde
Acostumado desde criança ao  trânsito quase  cotidiano entre continentes,  Christian Cravo, 43, pretende  ficar na Bahia pelos próximos dois anos.  Tem pela frente   outras viagens, íntimas, familiares, igualmente continentais. Assim tem sido organizar  o  recém-formalizado Instituto Mario Cravo Neto, que pretende manter em evidência  o nome e a obra de seu pai –  morto em 2009, o fotógrafo baiano é considerado um dos mais representativos do país.  
As ações se darão a partir do  acervo doado  pela família ao  Instituto Moreira Salles em 2015 – cerca de 94 mil peças –, com a edição já prevista de três livros, exposições  e um grande  prêmio de fotografia, ainda em fase de formatação. Mas Christian é, sobretudo, um artista  de talento e assinatura própria. Desde que, aos 17 anos, decidiu-se pela fotografia,  vem construindo uma carreira internacional tão autêntica quanto sólida. Nesta quinta-feira (6), às 19h,  lança na Galeria Paulo Darzé, no Corredor da  Vitória, Luz e Sombra, seu novo livro, e inaugura exposição homônima, no qual a África se apresenta em toda a sua imensidão e selvageria. As imagens, ele diz e poucos sabem, o reconectaram ao  avó, o escultor Mario Cravo Júnior, hoje com 94 anos. É assim que compõe seu trabalho. Não por acaso,  está dedicado agora a um projeto que tem como tema a sua mulher, Adriana, e as três filhas do casal, de 14, 4 e 2 anos.  Nesta entrevista, Christian fala sobre  o legado artístico dos Cravos, memória – em especial, a releitura fotográfica que fez da tragédia em Mariana (MG) – e as ações do instituto que ora  dirige.  
Como está sendo a experiência de  revisitar  toda a obra de seu pai, Mario Cravo Neto, e dar um direcionamento ao instituto criado na Bahia para preservar a memória dele?
Olhe, essa... foi uma história que começou em 2009. Quando meu pai estava prestes a morrer, cogitamos pela primeira vez a ideia de criar  uma instituição para, primeiramente, abrigar a obra dele. Quando digo obra, este é um termo muito vasto, né? Cada pessoa pode pensar e colocar isso de uma forma diferente. Poderia dizer gestão dos direitos autorais dele ou chamar isso aqui de um QG para administrar as exposições, o nome dele de  forma póstuma. É o Mario Cravo Neto representado de forma jurídica numa esfera pós-vida ou numa esfera pós-morte. Mas vai muito além disso.  
Imagino que exista toda uma questão familiar envolvida nesse processo.
Quando se entra numa esfera familiar como essa a que eu pertenço, que já não é uma equação muito normal, entende? São três gerações. Você pode ter três gerações de artesãos, de advogados ou de técnicos. Mas, nas artes plásticas, aí já foge um pouco às regras, é uma equação mais difícil. São três gerações, e cada um teve seu lugar e sua importância – ou está tendo –, cada um teve sua função. Meu avô [o escultor Mario Cravo Júnior, 94 anos] pertenceu à burguesia baiana, é filho de um mundo que nunca sonhou com isso aqui. 
A importância dele foi  o rompimento com esse velho mundo, com o  velho padrão,  para iniciar uma história inteiramente nova. Depois dele, veio o meu pai e ele teve o desafio de ser o  primeiro a fazer um certo questionamento no qual estava embutida a ideia de seguir  uma carreira livre, porque  seguir uma carreira dentro de padrões preestabelecidos é bem mais leve e bem mais fácil. Mas meu pai seguiu  uma carreira livre, mesmo tendo  sobre ele o peso de herdar o  mesmo nome. Imagino como deve ter sido um peso para ele levar o mesmo nome e a  mesma carreira. Depois dele, então, eu vim. E  sou uma outra história completamente diferente da deles.      
E qual a ideia que norteia o instituto?
A minha ideia é que o instituto venha a ser um centro de referência para a memória  familiar. Eu posso dizer tranquilamente para você que nenhum dos três é maior que a trilogia.
Seu avô é um dos maiores artistas plásticos vivos da Bahia e do Brasil. Em sua opinião, qual o espaço que ele ocupa nessa trilogia? 
Meu avô é um grande artista, sem sombra de dúvidas,  um homem com muitos méritos, muitas virtudes e muitos defeitos também. Mas tem uma coisa que se sobrepõe a ele, que foi o fato de ele ter iniciado essa trilogia familiar. E a mesma coisa posso dizer de meu pai e de mim. Então é assim,   é isso que deve ser preservado, pois cada um tem sua história a contar. E penso que a minha família, como uma família de artistas, tem muito a contribuir, entende? Agora, estou falando aqui da expansão de uma vida, de três vidas, na verdade. Está começando de uma forma meio torta, começando pelo do meio, por aquele  que no auge da carreira faleceu. 
O natural seria começar pelo meu avô e então incorporar a obra de meu pai e a minha. Como eu disse, a ideia do instituto  é essa concentração desse elemento único pertencente a essa família. Mas não é tão fácil assim. Isso envolve questões familiares, envolve dinheiro, envolve espaço. Veja que por enquanto estamos aqui [uma sala no 20º andar de  um prédio comercial na Avenida Tancredo Neves], mas isso aqui é só a sala de administração. Temos dois outros, na verdade, três outros espaços. Temos o depósito, onde fica tudo que não usamos no dia a dia, entende, que ainda estamos em fase de organizar – toda a biblioteca de Mario, o estoque de livros, exposições etc. Se tivéssemos uma casa, seria mais fácil explicar.  E temos uma parceria técnica, no Rio de Janeiro, que é a maior de todas, onde está todo o acervo de negativos de Mario Cravo Neto.  
Você se refere ao acervo doado em 2015 ao Instituto Moreira Salles?
É uma parceria que foi  muitíssimo importante pra gente, porque ela permite, em primeiro lugar, um desprendimento. É algo extremamente valioso e que dinheiro nenhum paga. Não adianta colocar aqui e pagar um seguro, porque se pegar fogo ali do lado acabou.  Esse dinheiro não serve para nada aqui, o que serve aqui é a memória. Então foi realmente muito importante essa parceria, que  é apenas técnica. Todos os direitos autorais foram preservados. Pertencem aos herdeiros de Mario e ao nosso instituto. Mas ela permite que os originais estejam guardados da melhor forma possível. E eles já estão sendo digitalizados em sua totalidade. Temos ainda  uma parceria de edição de três livros, ao longo dos  dez anos do contrato, e inúmeras  exposições programadas. Então aqui é apenas um dos três satélites. Ou se pode dizer que lá é o centro e aqui é um satélite. Seja como for, são três espaços  em que trabalhamos para manter isso aqui. 
São quantos itens no total? Fala-se em  um acervo de  mais de 100 mil peças.
Na verdade, são 94 mil itens. Isso compõe  a totalidade do acervo de originais dele. Mas isso, obviamente, depois, trabalhando, já identificamos que existe muito mais. Identificamos, por exemplo, toda a parte de filmes de Mario. São centenas e centenas de horas e estamos finalizando a digitalização. Tirando o período de 60 e 70, que era super 8 e 16 milímetros, dos anos 90 para cá, já era formato de fita e são vários padrões. Todas têm em comum serem fitas magnéticas que tendem a deteriorar com o tempo, são muito frágeis. Uma das primeiras coisas que fizemos, após o acordo com o Moreira Salles, que para mim era prioridade absoluta, foi a digitalização dessas centenas e centenas de horas de filmagem. 
Qual a importância desses filmes dentro do acervo de Mario Cravo Neto?
Quando um artista morre, a obra dele termina. O que eu quero dizer com isso é que tudo que ele deixou, seja um rabisco no papel ou uma peça finalizada, tudo tem o mesmo valor, artisticamente, entende. Não somos um instituto com fins lucrativos, mas uma instituição de preservação de memória. Então esse se tornou um ponto extremamente importante para mim. Essas fitas, após a digitalização, irão também para o Instituto Moreira Salles, virão para cá, irão para a Associação  Videobrasil, em São Paulo. A ideia é diversificar, até mesmo por uma questão de segurança, inclusive os locais de armazenamento. Aproveitar que o vídeo e a fotografia são, por natureza, expressões de múltiplos, que você pode copiar, e espalhar isso, distribuir entre as parcerias.    
O instituto já promoveu alguma grande exposição deste acervo?
Desde outubro de  2009, quando Mario morreu, eu já sabia que haveria um instituto, mas, naquele momento, obviamente, o instituto  era eu, eu era o representante e continuo sendo, embora considere que esta seja uma instituição independente. Hoje, temos CNPJ, sede, conselho, mas o que importa é a cabeça de quem está à frente. Fizemos uma exposição no Instituto Tomie Ohtake, quando ele morreu. E essa mesma exposição veio para Salvador, adaptada, para o Palacete das Artes. Depois, fizemos  a maior de todas as exposições na Pinacoteca de São Paulo. E  uma outra ainda na Espanha, no Jardim Botânico de Madri, um espaço fantástico e com uma visitação recorde, durante o festival PhotoEspaña.  A primeira exibição solo de mario Cravo Neto no Reino Unido aconteceu em 2016 no Rivington Place, (fotos).
Haverá também um prêmio de fotografia que será criado pelo instituto?
Sim, mas ainda está em formatação. Não sabemos, por exemplo, se será nacional ou internacional. Quero chamar a atenção para o instituto, mas é sobretudo, e acima disso, retribuir a ajuda que nós tivemos.  Eu não recebo mais prêmios, sofro um castigo por mérito. Mas já recebi vários. Todo artista precisa de incentivo. Entre as décadas de 50 e 70, meu pai só recebia recusas. Mas ele foi combatendo a ponta de faca. Tamanha a crença que o artista tem em sua obra. Penso que o incentivo é mais que fundamental, é até mesmo obrigatório para quem também o recebeu. Afinal, quem escreve a história do país não é o governo, são as pessoas.
Quais os próximos  projetos? O que vocês estão planejando neste momento?
Agora, que o instituto existe no sentido físico e no sentido da labuta,  é organizar, tomar pé do que tem. Hoje em dia vivemos uma era de smartphones, de WhatsApp, não temos mais  memória. Garanto com a mesma certeza de que amanhã irá amanhecer que, daqui a 40 anos,  as mensagens que troquei no WhatsApp há minutos atrás não irão existir.  Mas as cartas que meu pai e meu avô mandavam e recebiam, sim. Pode rasurar, amassar, cair café em cima, mas elas vão estar lá. E, por meio delas, tenho descoberto um outro Mario Cravo Neto. É como ter a chave daquele quartinho que era só dele. Então você aprende não só outras facetas do artista, mas, como filho, aprendo um outro Mario que  eu, às vezes, desconhecia.
Uma experiência forte.
Uma experiência muito frutífera, muito forte, mas eu acho também que  [silêncio] tem que existir a compreensão de que cada um está no lugar certo e na sua realidade.  Tenho amigos em São Paulo que me disseram assim: “Poxa, cara, você vai gastar dois anos de sua vida cuidando das coisas de seu pai. E a sua carreira?”. E eu acho isso tão bobo, porque isso também faz parte da minha carreira. Minha família faz parte. Eu tenho a vaidade do artista, óbvio, mas não essa  vaidade e ganância de me projetar. Essa aqui é uma história única. Quem fala, quem não entende, não percebe o quanto é mágico fazer parte disso tudo. Agora, como meu pai falou antes de morrer, não posso sacrificar a minha carreira em função dele. E concordo plenamente com ele e me policio em relação a isso. Mas também pode ter sido desespero dele ao falar isso. Nunca saberei ao certo. O que sei é que  cada um se firmou de sua forma nesse métier e que cabe a mim essa tarefa como parte da minha carreira. A arte é a soma do intelecto e da vivência do artista. Esse processo aqui irá somar e, certamente, dará origem a algum trabalho. 
O que te levou para a África?
É curioso  como tudo na vida se sobrepõe. O que me levou à África foi justamente a briga familiar que tivemos em torno do que fazer com as coisas de meu pai. Essa briga me criou certa repulsa e me levou para a África. Decidi deixar a briga aqui e ir em busca de fazer outras coisas, de uma fotografia mais contemplativa, que me permitisse muita espera, para que eu pudesse pensar, refletir. A África nasceu disso, além da necessidade que eu sentia naquele exato momento de me reinventar. Agora, veja, que tomo conta das coisas de meu pai,  meu novo projeto é voltado exclusivamente para  meu núcleo familiar, que é minha mulher e minhas três filhas. São fotos muito parecidas com as da África, mas são exclusivamente de minhas filhas. É um trabalho em que eu busco uma composição estética, poética e intelectual. É isso que estou atualmente fazendo. São questões que não temos como responder imediatamente. 
Como você situa nesse contexto o projeto de Mariana (MG)?
Nasceu por outras razões. O país estava em convulsão, e eu, como cidadão, muito curioso como artista, senti a necessidade de fazer aquele registro. É semelhante a um projeto que tenho hoje com o Filhos de Gandhy. Dá vontade de chorar olhando fotos deles de 50 anos atrás e não sabemos se, daqui a 50 anos, ainda existirá Filhos de Gandhy. Então o projeto de Mariana nasceu disso, dessa necessidade de identificar momentos que precisam de registro. Não nos cabe julgar, mas identificar esses momentos. Eu quis vivenciar, quis registrar aquilo ali, sempre com muito cuidado para que não tivesse uma pegada imediatista. Foi como o terremoto no Haiti. Esperei um mês para que toda a imprensa fosse embora, todo aquele ‘abutrismo’ de criar ibope. Passei poucos dias lá e queria exatamente aquilo que se vê no livro, são registros... do que ficou. Eu havia ido antes a Pompeia, no sul da Itália, e foi o mesmo sentimento. Pompeia foi soterrada por pó vulcânico e Mariana, por lama. E o tempo ficou parado ali, às 16h, quando a barragem rompeu. O livro foi consequência. Se sobrar um, daqui a muitos anos, já terá válido a pena. É uma ponte entre o passado e um futuro que a ninguém pertence.
Sobre o livro Luz e Sombra, sentimos que há uma suavidade muito grande e uma predominância de texturas. Como é o seu processo criativo? 
Cada trabalho que faço é tanto uma consequência de algo em minha vida quanto  da minha vida como cidadão, como indivíduo. A coisa com a vida particular se funde, é costurada em torno da minha existência. No caso desse livro, sendo como sou, o terceiro numa linhagem de artistas, sempre fui autocrítico em relação a não repetir os moldes, os padrões de meus antecessores, meu pai e meu avô. Claro que quando somos crianças... vou te mostrar uma coisa (para e traz uma pequena escultura em bronze de um cavalheiro medieval). Você poderia jurar que foi meu avô que fez nos anos 50. No entanto, foi meu pai aos 12 ou 13 anos. Isso é uma fase, um estalar de dedos, a partir de certa idade é preciso criar, achar seu caminho. Por isso, enveredei pelo fotodocumentarismo.  Meu pai fazia fotos montadas, como a crítica dizia, esculturas em fotos. Quando ele morreu, ficou um vazio. Fiquei numa extremidade e meu avô na outra. E 50 anos nos separando. 
Então é muito natural, até um sentimento humano, de filho, que eu me desse a liberdade de escorregar um pouco no terreno de meu pai, naquele terreno que  eu ferozmente me recusava a entrar. Isso tirou um peso crítico da minha percepção artística. Porque era um questionamento de quando ele estava vivo. Ficou uma lacuna, e isso é energia. Esse trabalho da África foi uma espécie de ode ao trabalho de meu avô, muito mais que ao de meu pai. Quis, obviamente, numa percepção documental, registrar a dualidade da vida, que é totalmente humana, mas que é própria da natureza. Eu queria me aproximar da beleza desse drama. Mas, esteticamente falando, posso mostrar diversas obras de meu avô que são influenciadas por animais. Há uma correlação. Este é um trabalho no qual, apesar de ser muito diferente, eu me permiti a aproximação de uma estética já usada em minha família. Mas, claro, é preciso ter um olhar muito acurado e conhecer profundamente o trabalho dos três – que poucos conhecem – para perceber que ali há uma fusão.

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