quarta-feira, 8 de maio de 2013

Caos urbano, miséria cultural e colapso do planejamento em Salvador e RMS


Ordep Serra*
É inegável o empobrecimento cultural da Bahia, de Salvador em particular. Os efeitos desse empobrecimento se deixam ler na paisagem de nossa capital, já em grande medida desfigurada, no estado miserável de grande parte de seu patrimônio arquitetônico, artístico e ambiental, na queda vertiginosa da qualidade de vida de amplos setores de sua população, na ruína evidente do município, na violência escandalosa que campeia em nossa metrópole. Esta situação tem múltiplas causas e é em si mesma muito complexa. O desmantelo dos equipamentos públicos, o estado precário das vias, o caos do trânsito, a miséria crescente e o triunfo do crime no tecido urbano são os aspetos mais visíveis do problema.  Mas quero assinalar aqui outro aspeto da barbárie que nos assola, um aspeto que tem tudo a ver com a degradação da nossa metrópole. Refiro-me ao colapso do planejamento urbano e regional que há muito se verifica na Bahia e sobretudo em Salvador.
Esse colapso é fato histórico bruto e incontestável. Isso não quer dizer que inexistam planos, que faltem projetos empurrados à cidade. Mesmo que eles proliferem, deve-se falar em crise ou eclipse do planejamento se projetos e planos não formam corpo num conjunto sistemático, ordenado, estruturado de modo a compor uma visão sinótica e de longo alcance da cidade ou região visada e de seu potencial de desenvolvimento, expressa em diretrizes gerais, com metas definidas e horizonte temporal significativo, tendo por base estudos suficientes e garantias de efetiva participação dos segmentos organizados da sociedade no processo. A multiplicação de projetos pontuais, sem articulação que os coordene, nem de longe supre a necessidade assinalada.
A produção de um macroplano dessa ordem cabe, naturalmente, à instância pública: é uma responsabilidade de que o Estado não pode fugir e para a qual deve aparelhar-se devidamente, com um corpo técnico capacitado e estável. Ora, dá-se que nas últimas décadas o Governo da Bahia perdeu quadros técnicos e tornou-se muito dependente da iniciativa privada no tocante a planejamento e elaboração de projetos públicos – que passaram a ser feitos de modo a satisfazer basicamente interesses particulares: os dos seus propositores.
Em encontro realizado em 18 fevereiro de 2010, representantes do Movimento Vozes de Salvador e do Fórum “A Cidade Também é Nossa” (que juntos reúnem dezenas de instituições da sociedade civil organizada com sede nesta capital), apontaram ao Governador do Estado sua preocupação com os efeitos deletérios da carência de planejamento na Bahia, em particular no tocante à Região Metropolitana, assinalando a necessidade de uma instituição voltada para a qualificação de quadros, a realização de pesquisas e de avaliações de políticas públicas. Chegou-se a propor a criação de um centro capaz de responder pela geração de um pensamento estratégico sobre o desenvolvimento baiano. Sugeriu-se ainda que fosse reaparelhada a Companhia de Desenvolvimento do Estado da Bahia , de modo a que ela volte a ter sua especifidade e seu foco original. Esta proposta refletiu a preocupação de todos com a situação atual da Região Metropolitana de Salvador, pois a CONDER, instituída em 1973 com a incumbência de planejá-la, nunca conseguiu criar um plano diretor para a mesma. Mais grave ainda: quando incorporou a URBIS – Habitação e Urbanização do Estado da Bahia S/A, além de perder o foco metropolitano a CONDER simplesmente deixou de ser um órgão de planejamento; em vez disso, passou a executar obras em todo o Estado.  “Fazejamento” dispersivo, em vez de planejamento.
A RMS compreende treze municípios, estende-se por 4,37 milhões de m(7,7 % da área total do Estado) e tem 3.866.000 habitantes, ou seja, 27,45% da população baiana. Gera metade do PIB da Bahia, mas apresenta grandes desníveis sócio-econômicos que lhe dificultam a integração. Com um  território de apenas 16% da RMS, Salvador  é o dormitório de 81% da sua população, que gera riqueza em outros municípios. Seu PIB de R$ 22, 14 bi é pouco mais de duas vezes o de Camaçari, segundo colocado. Por outro lado, municípios como S. Francisco do Conde (o terceiro colocado, com um PIB de R$ 6,36 bi.), tem a penúltima colocação da RMS em termos de IDH (Índice de Desenvolvimento Humano):  só perde para Itaparica.
Não é segredo que a capital baiana vive uma profunda crise (econômica, fiscal, social) e tem como única opção de crescimento a expansão rumo à RMS. Conforme argumentaram as lideranças de movimentos sociais presentes ao referido encontro, a fim de garantir crescimento ordenado à metrópole baiana tornam-se indispensáveis não só a operação de um órgão de planejamento técnico e autônomo como também a criação de um Conselho Metropolitano, com representação do Estado, dos municípios envolvidos e da Sociedade Civil.
No texto que o Fórum e o Movimento Vozes apresentaram ao Governador, evocou-se o histórico de grantes projetos frustrados (paralisados a meio caminho ou travados por sérios problemas) cujo peso morto onera a Bahia e, principalmente, sua capital: projetos como o Parque Atlântico, a Via Náutica, o Bonde Moderno, o Metrô etc., que não funcionaram por falta de planejamento adequado e por terem sido implantados sem consulta à sociedade, em particular sem que se ouvisse a comunidade técnica representada pelas associações profissionais, pelos grupos ambientalistas e pelos núcleos de pesquisa universitários. Hoje projetam-se grandes obras públicas (como a ampliação do Porto de Salvador, a Via Expressa, o Polo Naval, a Ponte Salvador-Itaparica etc.) que forçosamente produzirão impactos ambientais e sociais. Esses impactos podem ser minorados se os estudos competentes forem seguidos de debate crítico em um foro metropolitano, e de consultas sistemáticas à sociedade. Mas nada disso está sendo feito.
O Governador do Estado concordou com nossas ponderações, mas não tomou nenhuma medida concreta para fazer valer as propostas que acolheu. Não houve qualquer avanço. Não há um Plano Diretor Metropolitano para A RMS. Tampouco existe um Conselho Intermunicipal que se empenhe no ajuste de políticas públicas nesse espaço, embora seja gritante sua necessidade. Mas pululam intervenções pontuais e grandes projetos estão sendo lançados de modo assistemático.
Em Salvador, núcleo da RMS, o planejamento urbano deixou de existir há décadas. A crise é tornada evidente pela trajetória truncada da implantação do Plano Diretor do Desenvolvimento Urbano (PDDU), cuja aprovação à sorrelfa e cujas precipitadas reformas foram questionadas judicialmente pelo Ministério Público e por importantes setores da sociedade civil organizada. Uma Lei de Ordenamento do Uso e Ocupação do Solo Urbano – LOUOS, que o deveria regulamentar, incluiu emendas ao PDDU antes barradas pela Justiça por não se conformarem aos trâmites legais. E foi votada às escuras. Em face de liminar que se lhe opôs, nova versão foi encaminhada à Câmara dos Vereadores sem que se desse tempo para exame responsável pelos edis. Também esta nova LOUOS teve questionada sua aprovação, feita sem as devidas  consultas pública e sem a apreciação pelo Conselho da Cidade, como previsto em lei. Deu-se um novo impasse, com o pronto questionamento, pelo Ministério Público, das ilegalidades acusadas. O Prefeito Carneiro tentou sair pela tangente, propondo mais um LOUOS de improviso. O resultado foi um embaraço legal que complicou a já espantosa desordem urbana da capital da Bahia. Os Movimentos Sociais  protagonizaram um esforço para superar esta situação, com apoio do Ministério Público Estadual, feito mediador de um acordo com o Prefeito recém eleito. Espera-se que seja cumprida sua promessa de fazer um novo PDDU  e uma nova LOUOS com a participação da sociedade civil, como exigem a Constituição Federal e o Estatuto da Cidade.
Vê-se bem que Salvador, a mais antiga e uma das mais importantes metrópoles brasileiras, não é tratada como metrópole. Sua gestão lhe ignora o entorno, o nicho de que ela compõe um poderoso núcleo. A rigor, ela padece de um vazio no seu policy-making. É inegável o colapso do planejamento urbano e regional no Estado da Bahia.
Planejamento de verdade, vale repetir, deve ser sistêmico e participativo – coisa há muito está faltando aqui.
Gente, além de sintoma de miséria cultural isso é fator de descalabro na sociedade. Falta de planejamento urbano significa barbárie. Que gera mais barbárie ainda.

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