quarta-feira, 23 de janeiro de 2013

Theodoro Sampaio. Um aprendiz, um mestre e muitas lições

A trajetória única de um engenheiro negro que mostrou o sertão do Brasil aos brasileiros e deixou seu nome em importantes ruas de São Paulo e Salvador
Theodoro Sampaio (foto) é um personagem que habita o imaginário urbano e rural por causa da divulgação involuntária do seu nome. Sua popularidade vem da importância dos lugares e das ruas que ostentam o seu nome, principalmente a paulistana, localizada no bairro de Pinheiros, zona oeste da capital. Seu nome batiza ainda uma rua em Salvador, em que atuou por 18 anos.
Nome e sobrenome foram separados e assim se autodenominou uma dupla sertaneja do Paraná, “Teodoro & Sampaio”, levando adiante o nome das ruas aos programas de auditório da televisão e às paradas de sucesso, ganhando os rincões pelas antenas parabólicas e ondas do rádio Brasil afora.
Mas afinal, quem foi Theodoro Sampaio? O que fez esse engenheiro para que seja lembrado em São Paulo, justo ali, no Pontal do Paranapanema, lugar do qual só se fala quando os conflitos pela terra viram caso de polícia? Ou então, por que seu nome denomina logradouros em Salvador ou escolas como a de Santo Amaro, aquela cidade do Recôncavo Baiano que só vemos ou ouvimos falar nos dias de carnaval, por causa da associação com celebridades baianas e roteiros turísticos?

A admiração e o interesse pelo personagem são ressaltados quando se chega ao ponto mais intrigante da sua história de vida: ele era negro, filho de uma escrava, sem pai declarado, e se formou como engenheiro civil pela Escola Politécnica do Rio de Janeiro 12 anos antes da abolição da escravatura.

E ficamos mais interessados ainda quando sabemos que o jovem engenheiro negro, por dominar as línguas estrangeiras, logo no primeiro emprego integrou uma comissão de alto nível, formada por experientes engenheiros americanos para avaliar os principais portos marítimos e percorrer o rio São Francisco em toda sua extensão navegável, projetando as melhorias necessárias para implantar a navegação fluvial de longo alcance.

O espanto e a admiração ampliam-se quando sabemos que, além de engenheiro civil, experiente em obras para a navegação fluvial, engenharia ferroviária, cartografia e infraestrutura urbana (água e esgoto), Sampaio foi urbanista e também autor de trabalhos fundamentais para a geografia, a geologia, a etnologia, a arqueologia, a linguística, a ecologia e a história do Brasil, especialmente as de São Paulo e da Bahia.
No entanto, mesmo diante de tamanha capacidade e versatilidade, vem à tona a decepção quando se sabe que, “apesar” de negro, filho de uma escrava e que comprou a alforria dos irmãos, Theodoro Sampaio nutria respeito e admiração pela monarquia, assim como pelo dono do engenho no qual nascera.
Fica-se ainda mais perplexo quando se sabe que Theodoro Sampaio poucas vezes relatou ter sofrido preconceito de cor e prejuízos advindos de sua condição mestiça. Afinal, estamos tão acostumados a associar os negros à condição de subalternos, de injustiçados e desprezados, que imediatamente os associamos à resistência cultural e à militância política e, tratando-se da virada do século 19, ao advento da República e às aguerridas discussões daquela época. Jamais imaginamos que um negro, sofrendo o que deve ter sofrido numa sociedade escravocrata para trabalhar e estudar, pudesse ainda defender a Monarquia. Ao contrário de seus contemporâneos abolicionistas, como José Patrocínio, no Rio de Janeiro, Manoel Querino, em Salvador, Astolfo Marques, em São Luís, Luis Gama, em São Paulo, todos de ascendência negra e encarniçados militantes republicanos, Theodoro Sampaio era monarquista.
O interesse pela trajetória desse intrigante personagem da engenharia, da geografia e da historiografia brasileira aponta para um caso muito particular entre os intelectuais e profissionais que atuaram na virada do século 19. 
Um negro na Escola Politécnica
Theodoro Sampaio nasceu em 7 de janeiro de 1855, no Engenho Canabrava, antigo bairro Bom Jardim, atualmente cidade de Teodoro Sampaio, no Recôncavo Baiano. Na época, o lugar pertencia a Santo Amaro da Purificação. Há dúvidas sobre sua paternidade: pode ter sido o Visconde de Aramaré, Antônio da Costa Pinto, dono do Engenho Canabrava, seu irmão Francisco Costa Pinto, ou o padre do engenho, capelão Manoel Fernandes Sampaio, que deu a ele o seu sobrenome. Com 4 anos de idade, ele foi tirado da mãe, uma escrava doméstica do visconde, e levado à cidade de Santo Amaro.
Com 10 anos, Sampaio foi para o Rio de Janeiro com o padre Manoel e foi interno no Colégio São Salvador, um dos melhores de sua época. Em 1872, foi admitido na Escola Central, transformada em Escola Politécnica em 1874. Formou-se em engenharia civil em 1876, mas iniciou sua vida profissional como professor e, depois, como desenhista no Museu Nacional, quando ainda era estudante, em 1875. Cabia a ele desenhar as peças do acervo para serem publicadas na Revista do Museu Nacional, cujo editor era o diretor do museu, Ladislau Neto. Na ocasião, conheceu o americano Orville Derby, considerado, atualmente, o “pai da geologia no Brasil”, que participava da equipe do museu como responsável pela organização do acervo gerado pelas expedições em que acompanhara seu mestre, Charles Frederick Hartt, chefe da extinta Comissão Geológica do Império.
As cadernetas de campo
A trajetória de Theodoro Sampaio pode ser dividida em três etapas, coincidindo com momentos decisivos para a consolidação política, social e econômica do Brasil contemporâneo. Atuando profissionalmente por, aproximadamente, 60 anos, de 1877 a 1937, o engenheiro vivenciou os últimos 13 anos do Império e toda a Primeira República. Assistiu à subida de Getúlio Vargas ao poder, em 1930, e morreu um ano antes da instituição do Estado Novo. 
Cada uma das etapas de sua carreira coincide com uma cidade ou estado (na época ainda chamado de província) em que atuou. A primeira etapa compreende oito anos (1878 a 1886), marcada pelo trabalho no sertão baiano, como integrante de comissões técnicas para construir ferrovias e estabelecer a navegação no rio São Francisco. Ele era engenheiro do Ministério dos Negócios da Agricultura, Comércio e Obras Públicas e nessa condição integrou, de 1878 a 1880, a Comissão Hidráulica do Império. Foi como membro dessa comissão que publicou as primeiras cartografias e artigos técnicos sobre navegação e geologia.
O que se destaca desse período é o revelador conjunto de cadernetas de campo que produziu. Seus desenhos e anotações possibilitaram a publicação do livro O Rio São Francisco e a Chapada Diamantina, que se tornaria uma das suas obras mais conhecidas, publicada parcialmente desde 1902 na Revista Santa Cruz, reunida em livro em 1905 e reeditada, posteriormente, em 1938, 1998 e 2002. Theodoro Sampaio aproveitou as anotações de seus diários, suprimindo as informações excessivamente técnicas. Dessa forma, além de descrever a paisagem e os aspectos socioculturais de uma vasta região isolada, os sertões, da zona central do país, Sampaio conta a aventura de um jovem engenheiro de 25 anos, que, em seu primeiro trabalho, busca compreender a realidade que pretende transformar por meio de projetos e obras.
As cadernetas de campo utilizadas para documentar a viagem de mais de seis meses revelam o exímio desenhista de observação e permitem entrever o repertório erudito que orientou sua formacão. A Comissão Hidráulica percorreu cerca de 2 mil quilômetros navegáveis do rio Sao Francisco, e Sampaio ainda atravessou a cavalo, de um extremo ao outro, a província da Bahia, percorrendo a Chapada Diamantina e reencontrando o restante da comissão em Salvador.
O trabalho de campo
Em decorrência da vivência anterior no ambiente acadêmico e museológico do Museu Nacional e do contato com Orville Derby, Sampaio incorporou o olhar que denominamos “antropológico”, ampliando o arco de disciplinas que já integravam a sua formação e suas atividades profissionais. Ele também agregaria o desenho de observação e o diário de viagem de um modo muito particular ao trabalho de engenheiro, documentando a vegetação e os elementos de interesses geomorfológicos, geológicos, arqueológicos e, especialmente, os aspectos sociais que observava. É notável sua sensibilidade para observar de um modo crítico e abrangente o que atualmente denominamos como fatores antrópicos, contemplando os impactos, mas, também, a sabedoria centenária que resulta do embate do sertanejo com as asperezas do meio, expressa no saber fazer da população ribeirinha.
Um encontro entre engenheiros ilustres
De 1882 a 1883, Theodoro Sampaio atuou na construção do prolongamento da Estrada de Ferro da Bahia ao São Francisco, que ligaria Juazeiro, na margem baiana do rio São Francisco, a Salvador. Publicou, na ocasião, o segundo artigo, seguido de um mapa, sobre a geologia da região servida pela ferrovia em construção.
Ele jamais poderia imaginar, à época, que, mais de uma década depois, esse trabalho o aproximaria de um jovem engenheiro da Escola Militar, bigodudo, magro e inquieto, que o procurara logo que soube de seu trabalho pioneiro de mapeamento do sertão baiano. Foi a possibilidade de fazer a cobertura jornalística da Guerra de Canudos para o jornal O Estado de São Paulo que fez com que Euclides da Cunha procurasse o engenheiro, em função das informações que este possuía sobre a região do conflito, atravessada pela ferrovia que ajudara a construir.
O mapeamento foi passado para o futuro autor de Os Sertões e seria utilizado pelo próprio Exército, que não dispunha de informações tão detalhadas sobre o palco da guerra. Sampaio relatou o fato numa homenagem que fez ao escritor Euclides da Cunha. Contou, na ocasião, que o recebia aos domingos para ouvir a leitura das primeiras versões da obra. Há, inclusive, relatos de contemporâneos de ambos, afirmando que até o nome da obra, Os Sertões, teve a participacão de Theodoro Sampaio, que o aconselhara pela economia e capacidade de síntese ali contido – e foi o título que permaneceu.
De 1883 a 1886, Theodoro Sampaio integraria a Comissão de Melhoramentos do Rio São Fancisco, que realizou as obras determinadas pela Comissão Hidráulica do Império. Com exceção de um projeto para o porto de Santos, sua atuação nessa fase esteve concentrada nos sertões da Bahia, onde se casou e teve os quatros primeiros filhos, de um total de 11.
Essa experiência nos sertões, envolvendo levantamento de campo, cartografia e engenharia para navegacão fluvial, o credenciou para uma experiência ainda mais exigente. A convite de Orville Derby, o geólogo que conhecera no Museu Nacional no Rio de Janeiro, mudou-se para São Paulo a fim de auxiliá-lo na estruturação dos trabalhos da Comissão Geográfica e Geólogica, a CGG.
A vida antes de virar nome de rua
A segunda etapa de sua trajetória, de 1886 a 1904, corresponde à fase paulista e compreenderia 18 anos de sua vida. Um primeiro momento foi marcado pela consolidação do trabalho da CGG, de 1886 a 1892, envolvendo a concepção de um serviço regular de geografia, cartografia e geologia paulista. A partir de 1890, o saneamento e o planejamento da cidade e do Estado de São Paulo passaram a dominar sua atividade no governo estadual.
Em 1892, Sampaio demitiu-se da Comissão Geográfica e, Geológica e até 1904, atuou nas repartições responsáveis pelo planejamento territorial e urbano, pelo serviço sanitário, responsável pela concepção e aplicacão de uma legislacão específica, além do saneamento, do abastecimento de água e do serviço de coleta de esgoto e vigilância sanitária, da capital e de várias cidades do interior paulista. Sua primeira missão em São Paulo foi descer o rio Parnapanema e iniciar por ali o levantamento cartográfico e geológico do estado inteiro, além de projetar as obras necessárias para ligar o porto de Santos ao Mato Grosso, à bacia do rio Paraná e à bacia do rio da Prata. Ao lado da exploração e levantamento dos rios da então província paulista, sobressai-se dessa primeira etapa da fase paulista o uso pioneiro no Brasil da geodésia (método para o cálculo e representação cartográfica da forma esférica da superfície da Terra), sistema que garantia a exatidão dos mapas topográficos realizados pelo engenheiro.
O primeiro livro publicado de Theodoro Sampaio, O Tupi na Geografia Nacional (1901), foi produzido a partir dos estudos eruditos e do contato no Vale do Paranapanema com os últimos remanescentes dos povos que habitavam originalmente a região. O engenheiro mostra nesse livro sua face de etnógrafo, linguista e geógrafo. Essa obra apresenta uma ótica muito particular para se compreender a importância e o legado da cultura indígena, como a toponímia (palavras aportuguesadas que vieram do tupi). Sampaio, já chefe do Serviço de Água e Esgoto de São Paulo e engenheiro sanitário do estado, participou da construção de vários institutos e laboratórios que deram origem ao complexo hospitalar atualmente conhecido como Hospital das Clínicas, instalado no bairro de Pinheiros, no qual, não por acaso, está localizada a famosa rua Teodoro Sampaio.
De volta à Bahia
A terceira etapa da vida do engenheiro, de 1904 a 1937, corresponderia à fase baiana. Theodoro Sampaio dedicou à Bahia e a Salvador os últimos 33 anos de sua vida. Nesse período aprofundou sua relação com o meio intelectual baiano, mantendo intensa correspondência com estudiosos estrangeiros e brasileiros de vários estados. 
Paralelamente à atuação de caráter cultural e científico, Sampaio foi contratado pela prefeitura de Salvador para projetar e implantar o serviço de abastecimento de água e a coleta do esgoto. Estabeleceu a firma Theodoro Sampaio & Paes Leme, cujo escritório técnico seria, depois, dirigido por seu filho, Fructuoso Theodoro Sampaio (1883-1919), engenheiro formado pela Politécnica de São Paulo em 1910.
Apresentou propostas urbanísticas elaboradas para a modernização e saneamento da capital baiana e, em 1919, projetou a “Cidade da Luz”, atualmente conhecida como Pituba. Tratava-se de um bairro situado na costa oceânica, uma área distante do perímetro urbano da cidade de Salvador, que só foi incorporada à área urbana a partir da década de 1950. No entanto, seu trabalho definiu os padrões urbanísticos que orientaram a expansão urbana para aquela região.
Urbanismo demolidor em Salvador
O projeto de Theodoro Sampaio tem sido reconhecido por sua contemporaneidade e pelas inovações da Cidade da Luz. Encontramos nesse projeto elementos que posteriormente foram integrados ao ideário modernista, como a própria referência à importância da luz, apontando para a questão da salubridade, chave do pensamento sanitarista contemplada pelo urbanismo moderno, principalmente nas propostas do mestre franco-suíço Le Corbusier.
Sampaio adotou um traçado regular pensando na continuidade das vias longitudinais à orla marítima e na fluidez da circulação de automóveis juntamente com as preocupacões estéticas e obras de uso comunitário. Destacam-se no projeto da Cidade da Luz as vias largas com áreas ajardinadas e uma avenida central, com rotatória dotada de um obelisco, articulando o acesso às demais vias. A proposta incluía drenagem, água e esgoto, incineração de lixo, cemitério, capela, um escola, arborização das ruas e um balneário.
Além de projetar e executar a reforma e ampliação do sistema de abastecimento de água e coleta de esgotos de Salvador, de 1905 a 1910, à frente do IGHB, Sampaio participaria dos debates que envolveram o período no qual a cidade foi objeto da ostensiva modernização promovida pelo governador José Joaquim Seabra, nos períodos 1912 a 1916 e 1920 a 1924. Integraram o chamado “urbanismo demolidor“ de Seabra o projeto de modernização do porto (1906-1921), a ampliação do centro comercial na Cidade Baixa e a abertura da avenida Sete de Setembro. 
Eleito deputado federal para a legislatura de 1926 a 1928, integrando a seleta bancada baiana, formada por escritores e intelectuais, Theodoro Sampaio destacou-se nesse período por sua participação na quase demolição da Igreja da Sé, considerado por estudiosos como uma das primeiras mobilizações da sociedade civil pela preservação de um patrimônio cultural.
Otimista diante do desenvolvimento econômico em curso num país de riquezas e dimensões gigantescas, grande parte delas ainda por se conhecer na sua época, Theodoro Sampaio empenhou-se na busca por soluções que viabilizariam o Brasil como nação, tanto no período monarquista como no republicano. E, apesar da declarada preferência pelo Império, participou de forma entusiamada de ambos regimes; porém sempre realista e crítico. E para quem passou sua vida projetando e traçando caminhos, no campo ou na cidade, nada mais natural do que passar à posteridade como nome de rua.
*Doutor em Urbanismo pela USP

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