domingo, 27 de janeiro de 2013

Se Roma fosse Salvador, pane e circo ou “Arena do nariz vermelho”

Gil Vicente Tavares*
Se Roma fosse Salvador – e comparação melhor não há, visto que a segunda é comumente chamada Roma Negra –, Roma não seria mais Roma. Com certeza, interesses políticos aliados ao interesse de empresários – nossos coronéis urbanos – já teriam comprovado que a estrutura do Coliseu estava comprometida, e teriam derrubado um dos pontos turísticos mais importantes e significativos do mundo para construir viadutos ou um parque para a população, com algumas poucas lojas, que depois seriam diversas lojas sem parque, para depois virar ruínas.
Se Roma fosse Salvador, todas as termas da cidade teriam sido derrubadas para a construção de arranha-céus, pois as ruínas estavam juntando muitos drogados, seriam espaços violentos, degradados e sujos, teríamos construções históricas criticadas por sua decadência, justamente pelo poder público que deveria cuidar delas, e estes seriam argumentos para derrubar tudo; com o apoio dos novos ricos e ignorantes que, em Roma, não mandam, mas, aqui, são chamados de opinião pública.
Se Roma fosse Salvador, aquele imenso vazio abaixo das ruínas do antigo palácio de Nero, onde eram praticadas atividades esportivas das mais diversas no auge do império romano, ao invés de, simbolicamente – como eu senti quando estive lá – representar o vazio que se tornou o declínio e decadência daquela cultura, ao invés de ser um pequeno vale livre de estruturas concretas, um “antimirante” das ruínas, um grande vão de terra, verde e vento, seria rapidamente considerado um espaço subutilizado, e, num instante, um grande shopping center seria construído. 
Se Roma fosse Salvador, muitos apoiariam esses projetos, raciocinando que, com a cidade degradada, abandonada, seus sítios históricos depredados e em ruínas, comprometidos e condenados, demolições e novas construções revitalizariam a cidade, trariam mais cultura, mais opções e resolveriam boa parte de nossos problemas. O raciocínio de muitos não seria razoável o suficiente para perceber que a degradação e abandono de sítios históricos de uma cidade são de responsabilidade do poder público. Que, se estamos em ruínas, condenados e comprometidos, foi por falta de cuidado, dedicação, empenho e competência dos poderes públicos. 
A Europa nos dá lições de como resolver o problema de suas capitais históricas o tempo inteiro. Grandes cidades mantiveram-se preservadas e sem problema de moradia, mobilidade urbana, sítios históricos, lazer e cultura, porque houve um planejamento urbano pensado de forma lúcida que conseguiu fazer um diálogo construtivo entre passado, presente e futuro. 
Se Roma fosse Salvador, várias conjecturas poderiam ser feitas para além de seu urbanismo e sítios históricos. Poderíamos pensar um gestor público da área da cultura que achasse que Antonioni, Visconti, De Sica, Fellini e Scola eram privilegiados e que era preciso dar espaço para os outros. Assim, ele fecharia as portas para os estabelecidos, e outros assumiriam a cena, sem saber direito como fazer, sem referências, felizes pela oportunidade, enquanto o cinema italiano ia acabando. 
Roma, sendo Salvador, teria muitos outros problemas, mas Roma não é Salvador. A começar pela ideia, aqui, de uma arena para cinco mil pessoas construída na faixa verde, na falha que distingue a cidade alta da cidade baixa. A construção não é um teste que, não dando certo, pode-se reverter, retirando essa intrusão do Centro Histórico de Salvador. Somos uma cidade que derruba a Igreja da Sé, o Teatro Politeama, deixamos o Cine-Teatro Jandaia e o Pax depredados, viramos às costas ao incêndio do belo e histórico Teatro São João – perdendo assim um teatro de referência histórica, simbólico, que bem poderia ser nosso Teatro Municipal –, porque, sim, somos uma capital sem Teatro Municipal, com uma Praça da Sé (diga-se de passagem, transfigurada de forma horrível) sem Igreja da Sé. 
Enquanto muitos festejam o novo como forma de resolver o degradado, Salvador vai desfigurando-se. Desordenadamente. Não é um plano urbanístico para embelezar, resolver problemas de base da nossa cidade. Não. São intervenções que vão tirando nossa alma. Se juntarmos todo nosso conjunto arquitetônico abandonado e degradado, temos espaço suficiente para que teatros, casas de xous, centros comerciais, restaurantes e bares, lojas de artesanato – é uma vergonha ver um material da qualidade do que é vendido na Barroquinha relegado a segundo plano, enquanto soteropolitanos vão comprar sandálias e bolsas nordeste afora –, muito poderia ser feito com o que já temos, mantendo a beleza que nos diferencia, preservando a arquitetura que nos destaca, revitalizando a história que nos torna uma cidade especial; primeira capital do Brasil, igrejas, fortes, prédios, tudo isso misturado à cultura indígena, à cultura de origem africana e árabe, dando à cidade uma característica ímpar e sedutora. 
Nos quatorze minutos de bombardeio sobre Dresden, os aliados quiseram destruir não só bases militares e abrigos, eles queriam derrubar a cultura, o simbólico que toca mais fundo na alma de um povo. Soltaram uma bomba na belíssima catedral da cidade. Passada a guerra, os alemães a reconstruíram. Sabiam de seu valor, de sua importância. 
A Alemanha, inclusive, é um belo exemplo do diálogo entre o antigo e o moderno. Basta ver Berlim. Do que sobrou dos bombardeios, muito foi recuperado, muito conservado, restaurado, e nos espaços vazios, destruídos e ampliados, construções modernas, arrojadas, quase sempre de muito bom gosto, foram feitas. Hoje, é uma capital de uma riqueza cultural fantástica, mobilidade urbana ótima, mas Salvador não é germânica, eu sei (antes que me digam algo sobre isso). 
Eis o grande xis da questão! Salvador não é Berlim, Salvador não é Roma, mas Salvador também não é Dubai, reinventada e recriada, não é Brasília, surgida no meio do nada, sem raízes, sem história. Não precisamos crescer, inventar, construir. Precisamos, isso sim, parar de crescer, parar de inventar moda, construir prédios e prédios. Como já escrevi certa feita, os centros históricos são sempre lugares ambicionados para moradia, cultura e entretenimento. São o foco da cidade, são a convergência da cidade para o convívio, o passeio, espetáculos, artesanato, restaurantes sofisticados, padarias tradicionais, bancas de revista e museus. Os shoppings, em Salvador, são casamatas. Enquanto implodem, desfiguram e atolam a cidade antiga, ficamos protegidos da violência que não se resolve, da falta de árvores e brisa que não se resolve, da falta de mobilidade: que deveria ser menos carro, menos ônibus, mais calçadões, bicicletas e bondes elétricos, menos poluentes, barulhentos, e esteticamente mais belos. Muito dinheiro está vindo e virá para a Copa do Mundo da FIFA. Salvador é estratégica. Ainda. Por enquanto. Já perdemos turistas para outras cidades do nordeste que, em termos culturais, históricos e naturais, não chegam a ter o porte daqui. Contudo, têm estrutura, têm gestão inteligente do turismo, têm uma orla, meu deus, uma orla marítima! Estamos em franca decadência. Quando algo está decadente, fazemos o que? Restauramos, revitalizamos, ou derrubamos, abafamos, escondemos a degradação com outras alternativas? Pensem bem. A intervenção de uma arena no entorno da Praça Castro Alves mudará tudo, será um elefante branco a estacionar para sempre na imagem da nossa cidade, na estrutura do nosso centro histórico, na mobilidade do local: que será uma loucura de cinco mil pessoas, ou o ostracismo de mais um espaço criado e subaproveitado. Há o argumento que a arena será para espetáculos de dança, de teatro e óperas. Quantas óperas são produzidas por ano em Salvador? Quantos espetáculos de dança e teatro existem para preencher os quase cem dias que compreendem os finais de semana da cidade? Será que numa cidade que viveu e morre da festa precisamos de mais ações para multidões? 
Fala-se em inclusão cultural, em dar um espaço para o povo sofrido, por outro lado, o que me soa esquizofrênico, pois o problema é que “neguinho não lê, neguinho não vê, não crê, pra quê, neguinho nem quer saber”, como diria Caetano. Inclusão cultural é inserir o soteropolitano na realidade artística diversa que pulula na cidade. E diversidade não pressupõe uma arena para cinco mil, mas cinco mil espaços de espetáculos, museus e opções artísticas, culturais e de lazer. 
Um dos antídotos para nossa barbárie é o silêncio, a contemplação e a atenção no detalhe, no sutil, na filigrana que, numa arena dessas, será inviável (e me dá urticárias ouvir argumentos que pensem numa boa gestão, em Hermeto, Gismonti, Filarmônica de Berlim e Bale Bolshoi para 5 mil, até porque o grande evento modifica pouco, são as ações diárias, regulares, insistentes e recorrentes que vão formatando o cidadão; o crescimento cultural é como um ensaio, requer repetição, dedicação, insistência e intimidade). 
Salvador precisa de menos festa e mais poesia, menos barulho e mais atenção na palavra, menos zoada e mais delicadeza nas entrelinhas. Há uma reforma a ser feita no Teatro Castro Alves. Teremos um sala de concerto para umas 700, 800 pessoas, para além da Sala do Coro, para 200 pessoas, do palco principal, que comporta 1.500, e a Concha Acústica; 3.500. São três equipamentos do estado que suprem necessidades diferentes e estão aí para ser usados. 
Precisamos de mais centros culturais, privados (cadê o CCBB, um Espaço Oi Futuro, um Santander Cultural?) e públicos, com galerias, teatros, cafés, bibliotecas e livrarias invadindo o centro da cidade. Usamos nossas ruas, praças e estabelecimentos a céu aberto apenas como passagem, não como lugar a se ficar, se aproveitar e se curtir em seus diversos meios. 
Dentro de minha limitada experiência, nunca vi o entorno da Concha Acústica do TCA ser beneficiado pelo público que vai aos espetáculos de lá. O entorno só é prejudicado com sujeira e engarrafamento. Assim são os espaços para grandes espetáculos na cidade. A pessoa vai com o objetivo de ver o xou, depois vai embora e pronto. É como um jogo de futebol. A Praça Dois de Julho deveria ter mais vida em seu entorno, para ser mais frequentada, manter mais tempo o cidadão nos arredores. 
Deveríamos valorizar os equipamentos culturais da nossa pequena broadway, deveríamos revitalizar os belíssimos prédios antigos, praças menores do entorno, criar cinturões culturais de convivência na cidade para termos opções de fim de tarde. O centro precisa de pessoas circulando e tendo onde circular, consumindo e tendo o que consumir, vivendo e tendo o que viver. Eu não quero precisar ir para uma das dezenas de casamatas que se constroem na cidade para comprar livros, ver filmes, beber e comer. 
Eu quero poder andar pelo centro da cidade meio-dia e meia-noite, com segurança, iluminação, mobilidade e opções. Precisamos de grandes casas de espetáculo? Sim, precisamos. O Aeroclube – já dizia Ildázio Júnior – poderia ser um espaço com diversas casas de xou. O Wet’n Wild poderia ser finalmente reformulado de forma técnica e estrutural. Temos o parque de exposições, a concha acústica do Costa Azul, os galpões do Comércio... Ali, sim, precisaria uma intervenção moderna e significativa, para além dos belos casarões que deveriam ser recuperados como centros culturais e espaços de lazer e entretenimento, criando-se, assim, uma malha cultural urbana que enriqueceria ainda mais toda a região. Imaginem aqueles casarões perto da Ladeira da Conceição, todos recuperados, com teatros, escolas de arte e artesanato, cafés, livrarias, restaurantes? Não entendo como eu, um simples e ignorante morador da cidade, tenho tantas ideias sobre intervenções pontuais para melhorar o nosso turismo, e nada de efetivo é feito pelos nossos bens culturais (ainda escreverei essas minhas ideias, mesmo tolas, ingênuas e inúteis). 
De uma coisa eu tenho certeza: não será com a construção de uma arena para cinco mil pessoas que qualquer dessas questões será resolvida. 25 milhões seriam bastante úteis para revitalizar, recuperar e dinamizar a Praça Castro Alves e seu entorno. Isso traria turismo. Isso traria a população para a praça, que, assim, seria realmente do povo; vivendo o local. Tenho certeza que há como melhorar um dos mais belos e inusitados centros históricos do planeta sem que nenhuma invencionice precise ser empurrada para a região. Menos circenses, mais panis et poesis.
* Dramaturgo e diretor de teatro

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