quinta-feira, 17 de fevereiro de 2011

Ao Mestre, com Carinho

Antônio Risério*
Vivaldo da Costa Lima nunca foi meu professor, em curso algum. Mas, entre inícios da década de 1970 e finais da de 1990 – quando compromissos políticos e profissionais foram me afastando fisicamente, sempre mais, da Bahia –, me ensinou muito e sobre os mais variados assuntos. Foram conversas e mais conversas, em algumas reuniões, alguns encontros, algumas festas, mas principalmente circulando pela cidade, entre petiscos e bebidas, do centro histórico a Itapoã, passando, sempre, pelo bairro do Rio Vermelho.
Não quero chorar ou lamentar nada – nem dizer coisas do tipo “a Bahia ficou ainda mais pobre sem ele”. Apenas lembrar uma coisa. Vivaldo foi raro exemplo de homem de pensamento e ação. Era nosso antropólogo maior. E, certamente, um dos maiores antropólogos brasileiros. Mulato culto e sofisticado (no mais das vezes, dizia-se “branco baiano”, citando a classificação de Peirson), leitor de Mauss e Proust, foi, entre outras coisas, uma espécie de “intelectual orgânico” do candomblé. Gostava de beber (em um de nossos últimos encontros, no Gantois, me disse que o médico tinha-lhe proibido o consumo de cerveja – e que, portanto, por recomendação médica, ia passar a beber uísque), ler, conversar e comer, juntando o útil ao agradável em seus estudos de antropologia da alimentação. Era irônico e autoirônico. Para tudo, inclusive para si mesmo, tinha um olhar ao mesmo tempo cortante e generoso.
Como homem de ação, esquerdista em governos carlistas, foi quem de fato meteu a mão na massa em defesa da riqueza histórico-arquitetônica da Cidade da Bahia e do Recôncavo. Claro: antes dele, alguns intelectuais tinham protestado contra a demolição da velha Sé. Em 1935, a Semana de Urbanismo, realizada em Salvador, ressaltou a importância de nosso patrimônio. Caymmi não tomou conhecimento da modernização da cidade, celebrando, antes, as sacadas dos sobrados coloniais ou imperiais. Adiante, Diógenes Rebouças, elegantizando o traçado da Avenida de Contorno, evitou que aquela via destruísse o Solar do Unhão. Etc. Mas foi com Vivaldo à frente que a questão da memória arquitetônica e urbanística ganhou, entre nós, outra densidade e visibilidade. Na época em que ele defendia o patrimônio de Salvador, seu amigo Roberto Pinho fazia um cadastramento, casa por casa, de Cachoeira, que serviu de base para o tombamento da cidade. Foi graças a Vivaldo, enfim, que o Pelourinho foi considerado “patrimônio da humanidade”.
Com todo seu destempero e sarcasmo, era homem fino, educadíssimo. Amante, embora quase nunca o confessasse, da civilidade, do trato gentil, das normas e mesmo da etiqueta (fosse ela “vitoriana” ou candomblezeira – como Verger, aliás, que admirava o sentido hierárquico das relações dentro do terreiro de candomblé). Nunca me esqueço de um encontro nosso, começo de noite, na Cantina da Lua. Quando ele veio em direção à minha mesa, levantei-me para abraçá-lo e beijá-lo. Ele então falou alto, para o bar inteiro ouvir: “Sigam o exemplo! Aqui está uma pessoa educada. Uma pessoa que sabe se levantar para cumprimentar um amigo!”. Fiquei morrendo de vergonha, mas adorei. E, assim como sabia brigar, sabia desfazer brigas. Fez as pazes entre mim e o antropólogo Júlio Braga, por exemplo. Com um argumento sensacional: “Um já mandou o outro à puta que pariu – agora, podem se abraçar”.
Vivaldo não publicou – mas escreveu – muito. Tinha um senso quase destrutivo de autocrítica. Sempre que eu comentava isso, citava uma carta de Saussure, onde o grande linguista confessava “horror à pena”, dizendo que escrever era um “suplício inimaginável”. Vivaldo, não. Curtia escrever. O problema, para ele, era publicar. Vivia retocando e nuançando tudo, sempre em busca do rigor maior. Mas deixou muitos escritos. Sobre candomblé, culinária, questão indígena, etc. Coisas e mais coisas, que seus interesses eram variadíssimos. Devemos ver o que faremos, agora, com todos esses escritos. Com o baú fernandopessoano que Vivaldo nos deixou. É um tesouro que a Bahia tem em mãos. Saberá cuidar dele?
*Antonio Risério – Escritor, poeta e antropólogo
Artigo publicado originalmente no jornal A Tarde

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