quarta-feira, 13 de outubro de 2010

Wally, A Fera Faiscante

Caricatura de WALY SALOMÃO criada por GENTIL
Minha admiração por Waly (Salomão (é imensa (...). Daí a felicidade em ver homenagens como a biblioteca de Ribeirão Preto e o centro cultural no Rio, realização do grupo Afro-Reggae. Mas e a Bahia? Existe alguma coisa feita aqui para Waly?
ANTONIO RISÉRIO*
Em 2004, andando por Ribeirão Preto, no interior de São Paulo, sob a fuligem de canaviais queimados, vi à distância uma construção de arquitetura inconfundível. Um prédio de João Filgueiras Lima, Lelé. Curioso, fui ver o que o prédio abrigava. E tive uma surpresa que me deixou especialmente alegre. Era a Biblioteca Waly Salomão. Uma homenagem de Ribeirão Preto ao inventivo poeta-guerreiro nascido em Jequié, na Bahia. É claro que Waly mereceu a homenagem.
Meses atrás, no jornal O Globo, vi que estavam na reta final as obras do Centro Cultural Waly Salomão, agora inaugurado, na favela de Vigário Geral, no Rio. E, mais uma vez, Waly merece a homenagem. Pelo que fez e por ser quem foi.
O poeta-escritor que nos deu a prosa de Me Segura Queu Vou Dar um Troço. O poeta-letrista que nos deixou canções como Mel, Cabeleira de Berenice e Vapor Barato.
O poeta-editor que trouxe à luz a revista Navilouca e Os Últimos Dias de Paupéria, reunindo escritos de Torquato Neto.
O poeta-produtor cultural que, com Antonio Cícero, organizou os debates do Banco Nacional de Ideias, trazendo ao Brasil personalidades intelectuais como Horty, Gellner e Todorov, com o qual tive o prazer de debater em São Paulo sobre diversidade cultural.
O poeta-executivo, administrador público, que coordenou aqueles que talvez tenham sido os últimos carnavais baianos culturalmente relevantes.
O poeta-artista visual que nos brindou com a série colorida dos Babilaques.
O poeta que queria ultrapassar barras e bordas, não ser “si-mesmo”, mas tudo que fosse ou significasse um outro. O poeta que sabia e dizia que a memória não passa de uma ilha de edição.
Ao apresentar um livro seu, Armarinho de Miudezas (publicado por Myriam Fraga e Claudius Portugal, em importante coleção editorial da Fundação Casa de Jorge Amado) – cuja lembrança sempre me traz à mente o texto “Bahia Turva”, porrada na pasmaceira da província –, tentei fazer uma síntese de como eu o via, chamando-o “a fera faiscante” (àkàtà yeriyeri, nos orikis iorubanos), em referência ao orixá Xangô, dono de sua cabeça.
Curiosamente, aliás, Xangô é o orixá da retórica, do discurso, da eloquência. O senhor do axé na palavra. E, nesse sentido, Waly, que tinha uma capacidade oral extraordinária, era mesmo uma encarnação total da figura do filho de Xangô. Tinha o dom do improviso, da língua afiada, da frase desconcertante, do achado irônico-humorístico que levava todos às gargalhadas.
Naquela apresentação, entre outras coisas, escrevi: “Não há lugar aqui para o temor, a prudência, a reverência paroquial. Pensamento agudo, voz de trovão, o baianárabe Waly (de walid) é um happening ambulante. Um farsante declarado e colorido num ambiente cultural infestado de beletristas seriosos e cinzentos. Inimigo público número um do meio termo, da mesmice gustativa, Waly é uma verdadeira montanha russa de grossura e de finesse, indo das baixarias de botequim à suprema limpeza do construtivismo de Maliévitch. Sua figura é a hipérbole. O leitor de Rimbaud e Nietzsche circulando pelo morro do Estácio, da Mangueira, ou em meio aos tambores sagrados do candomblé. Curiosidade ibnkhalduniana. Estrada do excesso. Um homem livre como as formas de Arp”.
Minha admiração por Waly é imensa. Dos tempos de minha juventude, quando o conheci chez Caetano Veloso, aos dias em que trabalhamos juntos, com ele na direção do Instituto Nacional do Livro, em Brasília. Waly animava e alegrava nossas vidas na cidade de Lúcio Costa.
Daí a minha felicidade em ver obras-homenagens como a biblioteca de Ribeirão e o centro cultural no Rio, realização do grupo Afro-Reggae.
Mas e a Bahia? Existe alguma coisa feita aqui para Waly? Algum projeto, ao menos? Que eu saiba, não. Waly, na linha de um Gregório de Mattos, dizia, num texto publicado no jornal Folha de S. Paulo, que a verdadeira padroeira de Salvador era “Nossa Senhora do Empata Foda”. Tudo aqui emperra, não anda, não acontece. Acho até que ele deve estar aí em alguma fila, aguardando que antes a Bahia faça uma Casa Dorival Caymmi.
*Antonio Risério, é antropólogo, poeta e escritor

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