sábado, 4 de abril de 2009

Sé, adjascências e suas nuances

Almir Santos
A mais remota lembrança que tenho é, pelas mãos de meu pai ou minha mãe, andando pelas estreitas ruas do bairro da Sé: Rua D. Jerônimo Thomé, Rua Direita do Colégio, do Liceu, do Saldanha etc. Nas adjacências o Terreiro de Jesus, Rua da Misericórdia, Rua Chile, Rua da Ajuda e Largo do Teatro. Lembrança da gasosa que bebia na Pastelaria Centro Popular. Das cocadas branca e preta, compradas por meu pai de uma baiana que ficava à porta da Farmácia Minerva.
Dos primeiros filmes: O Mágico de OZ, Branca de Neve e os Sete Anões e Idílio nas Selvas. Dos cinemas: S. Jerônimo, Liceu, Glória, Guarani, Popular e Casa de Santo Antônio. Da Rua Dom Jerônimo Thomé que fora morada da minha mãe, Núbia. O meu pai foi para uma rua paralela, a Rua do Colégio, com 13 anos para aprender o ofício de ourives, na ourivesaria de um italiano, Senhor Carlos Amorso. Sua irmã, Dona Ermelinda Amoroso, amiga da família, tinha uma casa de chapéus, Le Chapeau Parisien, onde minha mãe foi trabalhar. Foi aí que meus pais se conheceram, noivaram, casaram e resultou uma feliz união de 67 anos e treze filhos. Álvaro era o meu pai, que aos 18 anos montou sua própria oficina com meu tio Edmundo, este especializado em relógios. Dotado de excelente caligrafia, especializou-se também como gravador a buril, confecção de diplomas e convites para eventos. Na arte de gravar teve como mestres os professores da Escola de Belas Artes, Carlos Sepúlveda, Manoel Garcia e Alberto Brim de Araújo, Durante o tempo que manteve seu negócio no bairro da Sé (1925-1993) nas ruas do Dom Jerônimo Thomé, Direita do Colégio, Liceu e, finalmente, Saldanha, ampliou sua clientela e desenvolveu trabalhos de alto nível em suas especialidades. Sem dúvida um dos maiores ourives da história da Bahia. Álvaro ou Álvaro Desidério, como era conhecido. Um grande artista. Muito querido, uma figura carismática, uma referência no bairro da Sé. Os bondes, na época o único transporte coletivo existente na Cidade Alta, rodavam sobre os trilhos da concessionária, Companhia Linha Circular, entre os casarões coloniais das ruas do Liceu, Saldanha, Misericórdia, Tijolo, Barroquinha etc. O seu itinerário no bairro ao longo do tempo sofreu varias intervenções. A primeira que tenho notícia resultou na demolição da Igreja da Sé. A maior agressão que sofreu a cidade e o seu patrimônio artístico e cultural. A maior falta de sensibilidade dos dirigntes. Pelo que contavam meus pais, os bondes que vinham da Rua da Misericórdia com destino ao Terreiro de Jesus atingiam a Rua do Liceu, depois Rua do Saldanha, Terreiro de Jesus, seguia em direção à Rua Dom Jerônimo Thomé, contornavam o fundo da Igreja da Sé e retornavam à Rua da Misericórdia. Para evitar esse contorno a Igreja da Sé foi demolida.
A Igreja da Sé vista do mar

A segunda intervenção, já com o meu testemunho, ocorreu na década de 40, quando foi construída a Praça da Sé. Novos bondes, de maior porte, foram incorporados à frota que não podiam trafegar e fazer os giros na linha férrea existente. Por isso, a linha foi remanejada da Rua do Saldanha para a nova Praça que para ser construída tiveram de ser demolidos mais dois quarteirões, Daí o grande absurdo. Se era para se ter acesso mais fácil ao Terreiro de Jesus, que se demolissem os três quarteirões adjacentes, entre a Rua do Colégio e a Rua do Saldanha, preservado assim a igreja. A atual Praça da Sé é, pois, resultado da demolição exatamente de três quarteirões. Não cheguei a ver, mas me lembro perfeitamente do local, ainda sem nenhuma urbanização, onde existiu a igreja. Os bondes me fascinavam. Há até a história do “quebra bonde” contada e recontada por meus pais, ocorrida justamente no dia de São Francisco, 4 de outubro de 1930, quando 60 bondes foram destruídos e a sede da empresa concessionária, a Companhia Linha Circular. Aos poucos fui me familiarizando com as linhas, com os modelos dos novos bondes, com a forma de operação, com os outros terminais que não o da Sé etc. Até hoje tenho de memória todas as linhas e respectivos números.
Da Sé partiam as linhas 1 – Nazareth, 2 – Barra, 3 - Canela, 4, Barra Avenida, 5 - Barris, 6 – Graça, 7 – Federação, 14 - Rio Vermelho, 16 – Amaralina – 17 - Tororó, 26 – Campo Grande, 27 – Campo Santo e 36 – Segundo Arco. Depois de algum tempo as linhas 3, 5, 6 e 17 foram descentralizadas fazendo retorno na Praça Municipal. Foram sendo extintas gradativamente: 5, 26, 27 e 36. Andava-se muito pouco para pegar um bonde, pois, ao contrário do que acontece hoje com os ônibus, os pontos de parada eram muito próximos. Exemplo: Terreiro de Jesus, Circular, (onde hoje é um posto da COELBA), Belvedere, Praça Municipal, Casa Milano na Rua Chile, Largo do Teatro, Igreja de São Bento etc. Todas as linhas dos chamados Trilhos Centrais que usavam a Baixa dos Sapateiros, subiam a Barroquinha, seguindo o Largo do Teatro, Rua da Ajuda Rua, do Tijolo, retornado à Baixa dos Sapateiros. Não alcancei, mas segundo minha mãe, havia uma linha que subia a Barroquinha vinha até o Terreiro de Jesus, retornado pela Baixa dos Sapateiros, Retiro, Largo do Tanque até a Estação da Calçada via Retiro. Aliás, essa era a única ligação possível entre a Cidade alta e a Cidade Baixa via bondes. Como até hoje, um velho costume da cidade, as ruas sempre tinham dois nomes: no bairro a Rua do Saldanha era Rua Saldanha da Gama, a Rua do Liceu era Rua Guedes de Brito, a Rua do Bispo, Monte Alverne, Rua da Oração, Sete de Novembro, Rua do Tijolo, 28 de Setembro, Baixa dos Sapateiros, Doutor Seabra. Isso faz parte do folclore de Salvador até os nossos dias. Quem hoje identifica as Avenidas Afrânio Peixoto, Lafaiete Coutinho, Mario Leal, Castelo Branco, Graça Lessa, Luiz Viana Filho, Presidente Costa e Silva, Reitor Miguel Calmon e tantas outras? Mais fácil seria dizer Avenidas Suburbana, Contorno, Bonocô, Vale de Nazaré, Ogunjá, Paralela, Dique e Vale do Canela. Havia muitas joalherias como a Esmeralda, Monte Blanco, A Nacional, Médico dos Relógios, Florentina e A Rival. Também muitos ourives e relojoeiros. Além de Álvaro, o Edmundo, Miguel, Agripino, Francisco e Herman. No Bairro da Sé as principais lojas eram A Boneca, Camisaria Elegante, Casa Barbosa, Sombrinha Favorita, Farmácia Minerva, Livrarias Souza e Padre Vieira. Muitas gerações passaram pelo sebo de Edgar Loureiro, situado à Rua do Liceu. Entre os alfaiates, Nicola era o meu preferido. A Loja Duas Américas, Casa Alberto, Florensilva, a Gruta de Lourdes, Casa Milano, Alfaiataria Londres, Casa Clark, Confeitaria Chile e a Farmácia Chile situavam-se na Rua Chile, a mais chique da cidade. A noite também tinha seu destaque na área. O Rumba Dancing e o Cassino Tabaris, posteriormente chamado Tabaris Night Club eram as casas preferidas pelos boêmios. Não se podem esquecer duas importantes casas noturnas situadas no prolongamento do Bairro da Sé, São Pedro: O Anjo Azul e o Red Rose.
Além da Pastelaria Centro Popular, já citada, ainda existiam as Centro Universal, Perez e Triunfo, esta ponto de encontro de grandes personalidades. A Luzia, situada à Rua do Liceu 19, tel. 3236 era uma loja fina, especializada em louças, cristais e artigos para presentes. Mais tarde as lojas Radiofon formariam a maior rede especializada em eletrodomésticos com três lojas: Sé 18, Misericórdia 9 e Lima e Silva 287, na Liberdade. As pessoas que por ali transitavam eram educadas e elegantes. Os homens usavam terno e as senhoras, que não dispensavam meias e chapéus, faziam compras às tardes na Rua Chile ou assistiam uma secção vespertina de cinema que impropriamente no português era denominada matinê. Era uma ousadia no tempo que uma senhora dificilmente entrava acompanhada num cinema. Pelo menos é o que tenho na memória. Pelo visto, a Sé ao longo dos anos sofreu grandes transformações.Teria a pior fase de sua história em 1996/1997, quando na condição de servidor público, voltei a freqüentar a área. Para minha tristeza encontrei a decadência de um local que fora o ponto elegante da cidade: a cozinha ambulante, bares com música e tudo mais improvisados em plena parada dos ônibus, o "churrasquinho de gato", o jogo de bicho, as antiestéticas casas comerciais e a marginalidade. Uma população completamente diferente daquela de outrora. Para minha alegria reencontrei algumas daquelas pessoas da minha infância e da adolescência ainda desempenhando suas atividades. Nos mesmos locais ainda permaneciam a Primavera, Joalheria Nóvoa, San Martin, a Sloper, Alhambra. O Palácio da Arquidiocese do Salvador, o então suntuoso Palace Hotel e a sede do Liceu de Artes e Ofícios, que deu nome à rua, mesmo em ruínas ainda ostentando o seu magnífico portal. Felizmente as coisas mudaram. Hoje a área que mereceu uma grande intervenção, os imóveis requalificados, o comércio ambulante É uma parada obrigatória dos turistas que nos visitam. É um novo cartão postal da cidade.


Almir Santos
Engenheiro Civil

Cultiva o mar, a lua, música e as histórias da Cidade do Salvador.

2 comentários:

  1. Sr. Almir, seu artigo me chamou a atençãopor citar o cassino Tabaris e a matinê, que certamente esta falando do cine Guarany do meu avô Motta (o portugues). Se não me engano nas décadas de 30 e 40 ele comandou o Tabaris, o Palace Hotel e alguns cinemas. Um abraço (Maria de Fátima)

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  2. Bom dia! Coincidentemente, fui cliente do seu pai, Sr Álvaro, assim como minha mãe e minha avó!
    Atenciosamente,
    Dinorá Seabra Chaves

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