sábado, 30 de abril de 2022

Cidade Baixa - caminhando com a história

Paulo Segundo da Costa* A Cidade Baixa tem forte ligação com a história da fundação da Cidade do Salvador e seu desenvolvimento. No Bairro da Praia, depois Conceição da Praia, situado no sopé da escarpa, foram levantadas as primeiras e precárias instalações para a construção da cidade. Inicialmente, uma estreita faixa de praia, com cerca de 20 braças portuguesas (44 metros) de largura, que se estendia até as cercanias do pequeno morro onde o Poder Municipal, em 1756, autorizou o desmonte da encosta rochosa para a construção da igreja de Nossa Senhora do Pilar. A 29 de março de 1549, Thomé de Souza e seus auxiliares desembarcaram na Vila Velha, atual Bairro da Barra. Em abril, após escolher o local onde seria fundada a capital da colônia, sua esquadra deslocou-se para a área onde daria inicio à construção da Cidade do Salvador. Essa área corresponde ao atual Bairro do Comércio, na Cidade Baixa. Ali, na praia, Thomé de Souza mandou construir uma pequena capela para onde trasladou, da Nau N. S. da Conceição, a imagem da Santa de sua devoção, que trouxera de Lisboa. No século XVII, no mesmo local da primitiva capela, foi erigida a Basílica de Nossa Senhora da Conceição da Praia, cuja festa é celebrada no dia oito de dezembro, com enorme afluência popular. Também ali foram construídos os barracões para abrigar operários e guardar ferramentas (pás, picaretas, facões, machados, etc.), que vieram de Portugal, para a edificação da cidade. O português Gabriel Soares de Souza informa, em 1584, que o primeiro lugar analisado por Thomé de Souza, Luiz Dias e demais componentes de sua equipe de governo para localizar a cidade em Itapagipe. Diz ele: “Quando se fundou a cidade, houve parecer para que ali ela fosse edificada, por ficar mais segura e melhor assentada e muito forte, a qual está norte e sul com a ponta do Padrão”, parecer que não prosperou. O local escolhido corresponde aos atuais Bairros da Sé, na Cidade Alta e da Conceição da Praia, na Cidade Baixa. O Professor da Escola de Arquitetura da Universidade Federal da Bahia, Marcos Paraguassú, no estudo que fez dos Bairros da Conceição e do Pilar, diz: "Entre o pé da ladeira da Conceição e o da ladeira da Preguiça, a beira mar, estendia-se o varadouro, onde as embarcações eram querenadas, isto é, colocadas no seco e sobre suporte de madeira, os seus cascos eram raspados e limpos da sujeira marinha. Esta área perece ter sido mais tarde ocupada por estaleiros: os estaleiros da Preguiça". Ao decidir pela fundação da Cidade do Salvador, a Coroa Portuguesa tinha o objetivo de centralizar a administração da colônia em um governo geral, e dispor de um porto de apoio às naus portuguesas que se dirigiam à Índia, no comércio com aquele longínquo país. Na praia da Preguiça ocorreu o primeiro aterro do mar. O engenheiro Odilon Franco Sobrinho, em 6 de agosto de1941, informou: “Na marinha da Cidade Baixa, onde por muito tempo não havia mais que uma rua, a chamada da Praia ou Direita da Praia, apertada entre o mar e as penedias da montanha, começou-se, em 1701, o primeiro trecho de cais, requerido e executado por Francisco Pina, que o construiu na testada de seu prédio(...); outros moradores em breve os imitaram. Os Padres Jesuítas também tinham o seu, para seu uso particular, e com o auxílio dele elevaram do cais para o alto, as grande pedras de mármore lavrado, que vieram de Lisboa para a monumental igreja do seu colégio, no Terreiro de Jesus, na Cidade Alta”. (carta ao Diretor do Patrimônio da União) O historiador Antônio Risério escreveu: “As últimas décadas do Século XVI foram um período de expansão e de enriquecimento (...). A Cidade da Bahia recebeu, logo depois de construída, fortes injeções para o seu desenvolvimento. Em 1550 e 1551, por exemplo, o rei de Portugal enviou duas armadas até à Bahia, conduzindo gente e mantimento. Além disso, houve o chamado “incentivo fiscal”. D. João III assinou um alvará determinando que as pessoas que passassem a morar na Cidade da Bahia, ficariam isentas de impostos – por três anos, os lavradores; por cinco anos, os artífices”. (Uma História da Cidade da Bahia, p. 81). A primeira indústria naval do Brasil foi instalada na Ribeira das Naus, na Cidade Baixa para a construção do “tipo de navegação dominante na ocasião” (Prof Américo Simas Filho). O Bairro do Comércio desenvolveu-se para o norte, ao longo da faixa marítima, ocupando o espaço criado com os aterros do mar, onde foram construídas ruas e cais de atracação de embarcações. Do começo de 1701 até o final de 1900 foram aterradas no mar da Cidade Baixa 194.6002 m2. Nesses 300 anos os aterros foram progressivos: no século XVI, 7.0002 m2; no século XVII, 23.7002 m2; no século XVIII, 66.3002 m2; no século XIX, 97.6002 m2, segundo pesquisas do Professor Carlos Paraguassú. A última área aterrada foi a da região de Águas de Meninos, onde, no começo do século XX, foi instalada a grande feira livre da cidade, conhecida como Feira de São Joaquim. No governo do Conde dos Arcos (Dom Fernando de Noronha e Brito), entre 1810 e 1818, foram introduzidos vários melhoramentos no Bairro do Comércio: aberturas de ruas e praças; construção de prédios destinados à administração pública e o prédio da Associação Comercial da Bahia, projetado pelo arquiteto militar Fidié, inaugurado em 1911. Esses melhoramentos se estenderam até a península de Itapagipe, sobretudo com a construção da Avenida dos Dendezeiros - atual Avenida do Bomfim - proporcionando acesso terrestre àquele bairro, já que, naquele tempo, o acesso só era possível por meio de pequenos barcos ou a pé pela praia. No governo do Presidente Rodrigues Alves, J. J. Seabra, Ministro da Justiça e do Interior, representava a Bahia no governo federal. Nessa condição conseguiu recursos para iniciar a construção do porto da Cidade Baixa e outros melhoramentos, inclusive a abertura da Avenida da Jiquitaia, inaugurada em 1906. O Bairro do Comércio, até o meado do século XX era o principal centro comercial e financeiro da Cidade do Salvador, deslocado em grande parte, nos anos 1970, para a região do Iguatemi, na Cidade Alta. Desenvolveu-se para o norte até atingir a Península de Itapagipe. Até o século XIX, quando surgiu o transporte ferroviário, o principal meio de transporte era o marítimo. Para atender à crescente demanda do comércio era indispensável haver meios e condições que possibilitassem o tráfego com Lisboa e as cidades portuguesas da costa da África e da Índia. A solução era, cada vez mais, aterrar o mar. Cais e trapiches foram construídos, até tomar a atual configuração, inclusive o atual porto de Salvador, cujo primeiro trecho, com 400 metros de extensão, foi inaugurado pelo Governador J. J. Seabra, no dia 13 de maio de 1913. No primeiro Governo de J. J. Seabra (1912-1916) outros importantes melhoramentos foram realizados no Bairro do Comércio: reurbanização de toda sua área; sistema de esgotamento sanitário (projetado e construído pelo engenheiro Teodoro Sampaio); criação da Praça Cairú, com a instalação do busto do Visconde, reformulação da antiga Praça São João, com a ampliação de seu espaço, transformando-a na Praça da Inglaterra, onde, depois, foi erigido o busto de Seabra. Há muito tempo, o intercambio da Cidade Baixa com a Cidade Alta exigia novo meio de transporte dos transeuntes. O empresário Antônio de Lacerda, para atender a essa exigência, construiu o primeiro elevador mecânico da América Latina: o “Elevador Hidráulico da Conceição”, inaugurado no dia 8 de dezembro de 1871. O sistema mecânico que movia as cabinas para subir e descer era constituído de parafusos helicoidais; por isso o povo apelidou aquele elevador de Parafuso. Dizia “vou subir (ou descer) pelo Parafuso”. Esse elevador foi substituído pelo atual, com uma torre de 74 metros e passadiço de 28 metros de comprimento, inaugurado em 7 de setembro de 1930. O Instituto Geográfico e Histórico da Bahia sugeriu ao Governo Municipal que esse elevador passasse a se chamar Elevador Antônio de Lacerda. O Elevador Lacerda tornou-se o principal ícone de Salvador. O transporte de mercadorias e de gente da Cidade Baixa para a cidade Alta, e vice-versa, era feito pelas ladeiras: da Preguiça, da Misericórdia e do Taboão. No século XVII, os padres jesuítas instalaram um rudimentar guindaste entre a Cidade Baixa e a Cidade Alta por onde transportavam mercadorias, cobrando dos interessados pelo transporte. Esse guindaste, no século XIX, foi substituído pelo atual Plano Inclinado, e a rua que lhe dá acesso ainda hoje é chamada Rua do Guindaste dos Padres. No século XVI, na encosta da montanha havia uma íngreme escadaria ligando o sopé da montanha, no Bairro da Praia, com a Praça do Palácio, na Cidade Alta, escada ainda existente em grande parte, construída em alvenaria de pedra. Na Cidade Baixa, quem percorrer o trecho entre Itapagipe (Ponta de Humaitá) e a Igreja da Conceição da Praia andará cerca de 8 quilômetros margeando o lago K i r y m u r é (Paraguassú) dos índios tupinambás. Esse lago, no dia 1º de novembro de 1501, foi denominado de Baia de Todos os Santos, pelo navegador Américo Vespúcio. Américo Vespúcio fazia parte da expedição que saíra de Lisboa no dia 13 de maio de 1501, comandada por Gaspar de Lemos, com o objetivo de reconhecer o litoral brasileiro e o demarcar como colônia da Coroa Portuguesa. Itapagipe foi sesmaria doada por Thomé de Sousa, em 1550, ao seu filho bastardo, e protegido, Garcia d’Avila, que ali começou o criatório de gado (vindo de Cabo Verde) e estabeleceu duas olarias para fornecer telha e tijolo aos construtores da recém fundada Cidade do Salvador, nome esse que lhe fora dado pelo rei D. João III, tendo em vista colocá-la sob a proteção do Divino Salvador. Saindo da Ponta de Humaitá em direção à Boa Viagem sobe-se uma ladeira; na direita existiu o Fortim onde, entre maio de 1624 e abril de 1625, estiveram aquartelados os holandeses que invadiram a Bahia. Esse Fortim foi demolido em 1538 e reconstruído, entre 1583 e 1587, sob a denominação de Forte de São Filipe. Reformado entre os anos de 1591/1602 recebeu o atual nome de Forte de Monte Serrat. No Largo da Boa Viagem existe a Igreja de Nossa Senhora da Boa Viagem e Senhor Bom Jesus dos Navegantes, construída entre 1712/1714. Em suas dependências fica guardada a imagem de Bom Jesus dos Navegantes. No final do mês de dezembro, esta imagem é levada à Igreja de Nossa Senhora da Conceição, de onde retorna pela manhã do dia primeiro de janeiro à Igreja da Boa Viagem na procissão marítima de Nosso Senhor dos Navegantes. Nesse dia ocorre uma das mais bonitas festas do calendário baiano. A Galeota Gratidão do Povo na manhã do dia primeiro de janeiro de cada ano sai do cais do Segundo Comando Naval - que fica em frente da Igreja de Nossa Senhora da Conceição da Praia - acompanhada de inúmeras embarcações (saveiros, lanchas, navios de menor porte, ferry-boat etc.) que usam a Baía de Todos os Santos como via de transporte). Geralmente a imagem de Bom Jesus dos Navegantes chega à praia da Boa Viagem por volta das 13h sob aplausos da multidão que a espera, quando se inicia a festa no Largo da Boa Viagem, a primeira do ano. Em Salvador, todos os anos, as festas populares têm início nesse dia e se estendem até a quarta-feira da semana do carnaval. Seguindo para a Calçada ingressa-se na Avenida Luiz Tarquínio. No lado direito fica o prédio da primeira fábrica de tecelagem do Nordeste e à esquerda a primeira Vila Operária do Brasil, ambas construídas no começo do século XX pelo industrial baiano Luiz Tarquínio. No final dessa avenida, no lado da baía, está o antigo Asilo de Mendicidade, atual Abrigo D. Pedro II, fundado em 1862. No Largo da Calçada situa-se a Estação Ferroviária, construída no século XIX. Dessa Estação seguiram as tropas do Exército para a Estação Ferroviária de Queimadas de onde foram para Canudos, combater Antônio Conselheiro e seus adeptos na Vila de Bom Jesus do Belo Monte, totalmente destruída em 5 de outubro de 1897, quando foi morto o Conselheiro. No início da Avenida Frederico Pontes, lado direito, existiu o Forte da Jequitaia. Em frente ao prédio da Petrobrás, no sopé da encosta, está o Asilo dos Órfãos de São Joaquim, ali instalado em 1818, em prédio construído pelos padres jesuítas (inaugurado em 1728), para o Noviciado da Anunciação. Em 1823, quando as tropas portuguesas do General Madeira foram derrotadas na luta pela independência da Bahia, o embarque para Portugal ocorreu na praia do Noviciado, isto é, em Água de Meninos. Esse nome se deve ao fato de ser ali que os meninos do Noviciado dos Jesuítas tomavam banho. Prosseguindo na direção à Igreja da Conceição da Praia passa-se ao lado do Forte de Santo Alberto (também conhecido como Forte da Lagartixa), situado na Avenida Frederico Pontes (antiga Av. Jiquitaia). Nesse Forte os holandeses estiveram aquartelados em 1624. Nas suas imediações, a 17 de julho de 1624, foi morto o Coronel Van Dorth, governador da Cidade, pelos patriotas baianos, inconformados com a ocupação da Bahia pelos holandeses. Van Dort foi sucedido pelo general Albert Schouten. Esses invasores foram expulsos da Bahia em 30 de abril de 1625. Como se viu, a cidade que nascia ali que deu seus primeiros passos e ali também nasceu a industria naval do Brasil. Diz o professor Américo Simas Filho: “Na Ribeira das Naus de Salvador, estabelecida no Bairro da Praia, perto de igreja construída por Tomé de Sousa, de logo funcionou o embrião que se desenvolveria a ponto de se tornar o mais importante centro de construção naval do Brasil no século XIX”. O núcleo básico da Cidade Baixa desenvolveu-se a ponto de se tornar o mais importante centro comercial e financeiro da Bahia até o último quartel do século XX, quando, então, entrou em lamentável processo de degradação. Felizmente, agora, está sendo recuperado; ali já funcionam a Justiça do Trabalho, Escolas de Ensino Superior, hotéis de cinco estrelas e outros empreendimentos que concorrem para sua recuperação. *Paulo Segundo da Costa engenheiro civil pela Escola Politécnica da UFBA; ex-Secretário de Urbanismo e Obras Públicas da Cidade do Salvador; membro fundador da Academia de Letras e Artes do Salvador – ALAS, titular da cadeira 18 que tem como patrono o urbanista Mário Leal Ferreira; sócio permanente do Instituto Geográfico e Histórico da Bahia; membro permanente do Instituto Genealógico da Bahia. Tem três livros publicados sobre a história da Santa Casa da Bahia e a biografia do ex-Governador da Bahia, sob o título de “Octávio Mangabeira – Democrata Irredutível”.

Mercado Modelo - origem

No início do século 20, a estrutura do bairro do Comércio de Salvador foi bastante modificada com a ampliação do Porto e seus aterros. Antes existiam alguns centros comerciais, com seus próprios cais. Com o novo Porto, esses cais foram desativados. O Mercado Modelo começou a ser construído em 1911, em um local que pertencia a Marinha, ao lado da Praça Cayru. Foi inaugurado em 9 de dezembro de 1912, com cerca de 2.400 m² (40m x 60m), ainda seu a sua famosa Rampa. Foi construído pela Companhia Cessionária do Porto da Bahia. Mas houve outras inaugurações, como indicaram jornais da época: uma em maio de 1913 e outra em janeiro de 1914. O Mercado tinha estrutura metálica com marquises, telhado com três níveis, permitindo boa ventilação e iluminação natural, e cobertura de zinco. Tornou-se o principal centro de abastecimento da Cidade, comercializava-se principalmente gêneros alimentícios, mas se vendia de tudo. Em 3 dezembro de 1913, o jornal Gazeta de Noticias publicou uma reportagem sobre os altos alugueis cobrados pelos cômodos do Mercado, pela Prefeitura. Essa arquitetura, em estilo industrial, não agradou muito aos baianos. Em agosto de 1915, a Intendência Municipal abriu concorrência para sua reforma e ampliação. A única proposta foi a dos engenheiros Filinto Santoro e Portella Passos, que foram contratados. O Mercado Modelo ganhou, então, sua conhecida arquitetura, em estilo eclético. Ao que parece, tratou-se de uma fachada que envolveu a estrutura existente de 1912. Com o tempo, o Mercado Modelo transformou-se em referência cultural da Cidade. Lá vendiam-se todos os ingredientes da culinária baiana, existiam frequentes rodas de capoeira e ouviam-se todos os ritmos musicais dessa Terra. Escritores, pintores e outros artistas inspiravam-se no local. Em 1917, o Mercado sofreu o primeiro incêndio, com danos parciais. Em 1922, um segundo incêndio destruiu grande parte de sua estrutura. Um terceiro incêndio ocorreu em 1943, com danos parciais. Em 1º de agosto de 1969, ocorreu o último incêndio, que destruiu completamente o antigo Mercado Modelo. Em dois de fevereiro de 1971, um novo Mercado Modelo foi inaugurado no antigo prédio da Alfândega. Seu comércio, entretanto, passou a ser principalmente o artesanato e lembranças da Bahia para turistas.
Reforma e ampliação do Mercado Modelo Em 1913, Filinto Santoro se transfere para Salvador. O primeiro trabalho desenvolvido pelo engenheiro napolitano em terras baianas é a reformulação do Mercado Modelo . O Mercado Modelo havia sido originalmente construído entre 1911 e 1912, como parte das obras do porto sob a responsabilidade da Companhia Docas e Melhoramentos da Bahia: Tratava-se de um edifício retangular, medindo, aproximadamente, 40x60 m, envolvido por marquises. Estrutura metálica, importada, com cobertura, constituída por três telhados superpostos, de modo a permitir boa ventilação e iluminação naturais, este edifício foi, provavelmente, o primeiro edifício inteiramente metálico montado na Bahia. Como “a simplicidade de sua forma geométrica e o material empregado – perfis metálicos e chapas de zinco – não causaram boa impressão” e “o primeiro exemplar de arquitetura industrial não foi bem aceito na capital barroca do país” (loc. cit.), em 12 de agosto de 1915 a Intendência Municipal abriu uma concorrência para ampliação e reforma do mercado. Foi apresentada uma única proposta, dos engenheiros Filinto Santoro e Portella Passos, que foram consequentemente contratados para realizar a intervenção. Os anexos previstos na concorrência, que deveriam ampliar a área do mercado em 900,00 m2 e incluíam um pavilhão especial para as “sentinas” e um novo “hangar” para as feiras exteriores, não foram jamais construídos. O que de fato foi executado segundo o projeto de Santoro foi um anel periférico, constituído de 55 lojas voltadas para o exterior, e fechado por uma fachada de cimento armado aposta ao edifício em estrutura metálica existente. Esta fachada possuía dez portões de acesso ao grande espaço central do mercado, sendo três em cada uma das fachadas principais e dois em cada uma das fachadas laterais. Os dois maiores portões, localizados no eixo central das fachadas principais, tinham tratamento monumental em arco do triunfo. Destacavam-se na volumetria deste anel periférico os seis torreões, “com janelas de oxímez, cada qual ocupando a área de três lojas”. Certamente as experiências prévias de Santoro nos projetos do Mercado Municipal de Manaus e do Mercado de São Braz em Belém lhe foram úteis na elaboração deste projeto. Apesar do Mercado Modelo ter passado por dois grandes incêndios em 1922 e 1943, foi a configuração dada por Santoro que ele conservou até a sua destruição total por um suspeito incêndio no dia 1º de agosto de 1969

segunda-feira, 18 de abril de 2022

REFLEXÃO PARA OS TEMPOS ATUAIS


Domenico de Masi*

“Neste momento, vocês estão nas mãos de um ditador”, disse ele, argumentando que Mussolini, Hitler e Erdogan também foram eleitos. 

“Esta ditadura reduz a inteligência coletiva do Brasil. Durante esta pandemia, Bolsonaro se comportou como uma criança, de um jeito maluco. Ou seja, o ditador conseguiu impor um comportamento idiota em um país muito inteligente. Porque é isso que fazem as ditaduras”. Este me parece um fato tão óbvio que às vezes nos passa despercebido. Quando o país é comandado por pessoas tão tacanhas, a tendência é o rebaixamento geral do nível cognitivo da sua população.  É fácil entender por quê. Sob Bolsonaro, Damares, Araújo, Pazuello, Salles, Guedes & Cia, vemo-nos obrigados a retomar debates passados, alguns situados na Idade Média, ou no século 19, como se fossem novidades. Terraplanismo, resistência à vacinação e a medidas básicas de segurança sanitária, pautas morais entendidas como questões de Estado, descaso com o meio ambiente, tudo isso remete a um passado que considerávamos longínquo.  Quando entramos nesse tipo de debate entre nós, ou com as “autoridades”, é como se voltássemos da pós-graduação às primeiras letras do curso elementar. Somos forçados a recapitular consensos estabelecidos há décadas, como se nada tivéssemos aprendido. É como forçar cientistas a provar de novo a esfericidade da Terra ou a demonstrar eficácia da vacinação. Ou defender, outra vez, a necessária separação entre Igreja e Estado, mais de 230 anos depois da Revolução Francesa.  É muita regressão e ela nos atinge. De repente, nos surpreendemos discutindo o óbvio, gastando tempo com temas batidos e desperdiçando energia arrombando portas abertas séculos atrás na história da humanidade.  À parte a necessária luta política para nos livrarmos o quanto antes dessa gente, entendo que existe uma luta particular e que depende de cada um de nós: a luta para não emburrecer. Manter a lucidez e a inteligência através da leitura de bons autores e da escrita. Manter viva a sensibilidade pela conversa com pessoas normais e pela boa música. Assistir a bons filmes para contrabalançar a barbárie proposta pela vida diária e pelas redes sociais.  Enfim, mantermo-nos íntegros e fortes para a reconstrução futura do país. Não podemos ser como eles. Não devemos imitá-los em sua violência cega. Não podemos nos deixar contaminar por sua estupidez. Eles passarão. E estaremos aqui, para recomeçar. Provavelmente, o que leva a esse rebaixamento é ódio e ressentimento por levar as pessoas a se sentirem, no fundo, perdedoras (é o caso de todos os bolsonaristas que conheci mais de perto) e ter de encontrar bodes expiatórios para culpá-los. A cultura competitiva, que estabelece, com critérios perniciosos, o que é ter sucesso, faz com que quem entra nesse jogo perverso, sinta-se, no final das contas, sempre um perdedor". * Professor emérito de sociologia do trabalho na Universidade La Sapienza, de Roma, Domenico De Masi é referência internacional em estudos sobre a sociologia do trabalho.

sábado, 16 de abril de 2022

A CIDADE DOS CUPINS


Paulo Ormindo de Azevedo*

Salvadolores vista do alto parece um assoalho esburacado cheio de caminhos cobertos por onde circulam milhares de cupins operários em busca de alimento e trabalho. Não há cidade no mundo com tantos viadutos e elevados. Há passarelas quilométricas e apinhadas de acesso ao trem suburbano e outras por onde não passa ninguém. A prioridade não é o cidadão, é o condutor solitário de um veiculo ultrapassado.  Política desastrada de sucessivas administrações municipais.Brasília foi uma cidade projetada para o carro, com trevos em todos os cruzamentos. Logo apareceram os semáforos. O Eng. Cristovam Buarque, que governou a cidade entre 1995 e 1998, baixou uma lei que bastava um pedestre colocar o pé no asfalto e os carros paravam. A cidade não parou, se humanizou. Salvador hoje é o contrario, é uma autopista em que os carros não param nem para um deficiente. Concebidas pelo arquiteto Lelé para ligar cumeadas numa cidade com vales profundos, as passarelas foram transformadas em substitutos dos semáforos. Em qualquer cidade civilizada do mundo, o trafego veicular é intermitente ao ritmo dos semáforos, o que não impede de ter ondas verde de fluxo continuo de veículos. Nelas, pedestres podem atravessar cômoda e seguramente a rua sem precisar se arriscar a ser atropelado ou ter que subir em um poleiro a 5 m. de altura para cruzar uma rua. A novidade de Salvadolores é uma autopista tobogã cuja primeira etapa já está engarrafada. Nenhuma cidade brasileira faz mais minhocões, que só ligam dois pontos engarrafados. Nossos administradores não entendem que quanto mais facilidade se der ao carro mais aumenta a frota e os engarrafamentos. Para sua realização, os cupins-reais, que abrem os caminhos, destruíram canteiros centrais, cortaram milhares de árvores, mataram os pássaros, cobriram rios e impermeabilizaram o solo de numa cidade que não resiste às chuvas. Invenção curitibana dos anos 60, quando os ônibus tinham assoalhos altos e não existia o cartão tíquete, o BRT atrasado de Salvador não incorporou nenhuma das flexibilisações por que passou o modal. Continua com gaiolas fechadas e pista bloqueadas por muretas de concreto. Decidido sem ouvir o contraditório técnico, está sendo iniciado uma segunda etapa do malfadado projeto, com os mesmos impactos ambientais e urbanos. Tudo escondidinho por taipais para não se ver a devastação do meio ambiente. Protestos da comunidade quando do inicio das obras foram reprimidos pelas autoridades. Há uma diferença entre a sociedade humana e a geneticamente estratificada dos insetos, como as saúvas e os cupins. O cidadão não pode ser considerado um pária sem direitos, nem voz, que só atrapalha o tráfego. Os viadutos e passarelas se transformaram em instrumento de descriminação social, a ditadura do pneu faixa branca sobre o pé de chinelo Havaiana.>SSA: A Tarde de 17/04/2022

*ARQUITETO E PROFESSOR TITULAR DA UFBA

terça-feira, 23 de novembro de 2021

O vírus da festa e a retomada do carnaval

Gil Vicente Tavares* 
Das coincidências da vida, comprei o livro O Labirinto da Solidão, de Octavio Paz, por indicação de Wilson Gomes, e deparei-me com um capítulo que caiu como uma luva para o que queria dizer, na atual conjuntura. O livro é um belo estudo sobre o México e seu povo, e no terceiro capítulo, que trata do espírito festeiro do mexicano, uma frase saltou-me aos olhos: “Nossa pobreza pode muito bem ser medida pelo número e pela suntuosidade das festas populares”. E completa: “Os países ricos têm poucas [...] e não são necessárias; as pessoas têm outras coisas para fazer e quando se divertem o fazem em pequenos grupos”. E, logo adiante, cita o teatro dentre estes afazeres. A reflexão sobre a quantidade de dinheiro gasto, em meio à pobreza, para pouquíssimas, esparsas e gigantes festas, como desafogo e extravasamento pessoal frente ao cotidiano, na análise de Paz, vai ao encontro do que similarmente acontece no Brasil e, notadamente, em Salvador. Principalmente no Carnaval. Arte e cultura transformam o cidadão. Dão a ele capacidade de visão crítica, diferenciada, distanciada ou intensa da vida, dos amores, políticas, guerras, além de estimular a fantasia e ser um descanso do concreto e cinza repetitivo da vida cotidiana. Quanto mais acesso a diferentes culturas e artes, mais o repertório subjetivo e intelectual do ser humano se sofistica e se amplia. Amo carnaval e sei de sua importância cultural, econômica, e a quantidade de gente que espera esse período para lucrar, sejam ambulantes, artistas, equipe técnica ou rede hoteleira. Mas mesmo essa espera reflete a falta de uma política continuada. Os 5, 7 dias de festa, no carnaval, fazem a economia girar num curto período e para poucos. Os turistas não andam pela cidade consumindo em comércios, restaurantes, espaços culturais. Uma cidade com programação cultural forte e intensa o ano inteiro traz outro impacto. A cadeia produtiva de um espetáculo teatral, por exemplo, vai do elenco, passando por equipe técnica e artística, até funcionários do teatro, costureira, motorista, carpinteiro, copista, ambulantes, serralheiros. São dezenas de pessoas empregadas em função de apenas uma peça. Quem vai ao teatro, sai depois para um restaurante, bar. Compra roupa para a estreia. A produção compra tecido, madeira, sapato, ferro. O dinheiro gira por toda cadeia. Incentivar uma programação artística e cultural forte é estimular a economia, diminuir desemprego, desigualdade, e enriquecer a cidade com um atrativo que dure 365 dias, trazendo uma maior circulação de visitantes interessados pela riqueza de opções que a cidade tem, de museus a espetáculos, de concertos a música popular. A discussão atual, sobre a retomada do carnaval, é, antes de tudo, preocupante pela possibilidade de circulação de muitas pessoas de muitos países, que não estarão de máscara e álcool gel atrás do trio elétrico com distanciamento. Mas é, também, uma demonstração clara da falta de visão de nossos governantes que, em vez de estarem preocupados com toda uma economia criativa, que ao longo do ano pode voltar a movimentar a cidade trazer melhor qualidade de vida a seus cidadãos, insistem na pauta única (mas também importante) do carnaval. Salvador vive o estigma de ser um eterno balneário, para beijar na boca, mijar na rua e beber todas num curto período de histeria coletiva. Que não seja, também, um foco disseminador de um vírus que, em meio a negacionistas, está distante de ser controlado em todo o planeta.
*Gil Vicente Tavares é diretor, dramaturgo, compositor e professor da Escola de Teatro da UFBA. Doutor em artes cênicas, teve sua tese publicada pela EDUFBA com o título a Herança do Absurdo

sexta-feira, 19 de novembro de 2021

Privatização das Companhias Docas Enfrenta Resistências


A privatização dos serviços nos portos brasileiros e os arrendamentos de áreas e equipamentos ja foram feitos desde a promulgação da LEI 8.630. As Companhias Docas, desde então,atuam como Autoridades Portuarias, fiscalizando a ação dos Operadores Privados e promovendo o arrendamento de áreas e instalações. Esse é o modelo vigente em quase todos os paises,sendo que, na Europa, a maioria das Autoridades Portuarias são municipais. Para o consultor Frederico Bussinger, ex-diretor da Codesp e ex-presidente do Porto de São Sebastião, as privatizações de companhias docas são ruins para o ecossistema portuário e contrariam as boas práticas internacionais. "O benchmark aponta em outra direção. Autoridade portuária não é ativo. É uma função, que precisa equilibrar potenciais conflitos de interesses", afirma. Bussinger acrescenta que as administrações de portos nos EUA, na Europa e na Ásia continuam nas mãos do Estado. Na Austrália, experiência que costuma ser citada como modelo de gestão desestatizada, tem havido problemas, segundo o consultor. Ele acredita que as atividades de carregamento e descarregamento de cargas ("o mais importante"), como açúcar e contêineres, tiveram aumento considerável de eficiência desde os anos 1990 e já equivalem às melhores performances globais. Como alternativa à privatização, o prefeito de São Sebastião, Felipe Augusto (PSDB), mandou ofício ao Ministério da Infraestrutura, no dia 20 de outubro, pedindo a abertura de conversas sobre uma eventual municipalização do porto - sem dispensar o arrendamento de áreas internas e terminais ao setor privado. Em Itajaí, o porto foi delegado para o município até o fim de 2022. O prefeito Volnei Morastoni (MDB) também encaminhou uma carta ao ministro Tarcísio Freitas, na semana passada, pleiteando estender essa delegação por 25 anos. Ele teme desordenamento urbano com a perspectiva de triplicação da área do porto sob a iniciativa privada.
Em Salvador, uma alternativa seria a municipalização da Autoridade Portuaria e maior participação da comunidade local, como ocorre em Itajaí e portos europeus a exemplo de Antuerpia, Hamburgo e Rotterdan. Para articular o movimento contrário à privatização, foi criado neste ano o Fórum Permanente de Defesa Portuária, com a participação de empresas e sindicatos trabalhistas. A frente prioritária é a mobilização contra a venda da Codesa - alienação do controle acionário da estatal e concessão da autoridade portuária simultaneamente -, que abriria caminho para as privatizações seguintes. Guilherme Lacerda, ex-diretor do BNDES e integrante do fórum, diz que os estudos estão "eivados de questões nebulosas" e garante que o movimento contra a privatização não tem caráter ideológico. Ele defende como alternativas a abertura de capital da Codesa (com uso dos recursos levantados para obras de modernização) ou a criação de um condomínio (com os operadores de terminais) para administrar o porto. "Não deveríamos ficar acomodados, não se trata disso, mas o modelo proposto levará à oligopolização da atividade portuária", afirma Lacerda. Fonte: com informações do Valor Econômico

quinta-feira, 18 de novembro de 2021

Gatos, Ratos e o Arquivo Público

Nelson Cadena* Quando o presidente eleito da República Washington Luiz visitou Salvador, em meados de agosto de 1926, após o régio almoço oferecido pelo governador Góes Calmon, no Palácio da Aclamação, apreciou a exposição de documentos do Arquivo Público, mostruário preparado especialmente para ele com destaque para originais autógrafos de personalidades. O Presidente foi informado da relevância do acervo da instituição, o segundo arquivo mais importante do país, depositário de preciosidades documentais do Brasil-Colônia, do Império, bandeiras, mapas, plantas, retratos, periódicos. Na oportunidade, Afrânio Peixoto ofertou ao Arquivo a “Ode aos Bahianos” do Patriarca da Independência, José Bonifácio, autografado pelo autor. O que Washington Luiz não ficou sabendo é que a rica documentação do arquivo tinha sido preservada graças aos gatos que afugentaram os ratos dos matos da colina da Praça Thomé de Souza, especificamente do Palácio Rio Branco onde por séculos foram acumulados num quarto do térreo, úmido e cimentado, documentos da história de nossa cidade, conforme contou o ex-governador Francisco Vicente Vianna, primeiro diretor do estabelecimento: “cômoda morada e sossegado ninho dos gatos de toda a vizinhança”. Os gatos contribuíram para preservar os mais de 465 mil documentos acumulados e mais de um milhar de livros manuscritos, já encadernados, na “repartição”, ou depósito, sendo menos generoso com as palavras, que formaram o acervo inicial da instituição, inaugurada em 1890, com sede no Edifício da Escola de Belas Artes, na Rua 28 de Setembro. Parte do acervo já tinha sido transferido para a Biblioteca e Arquivo Nacional, no Rio de Janeiro. Outros documentos tinham sido emprestados __ e não voltaram__ para estudos que contribuíram com a historiografia baiana e brasileira, a Inácio Accioly, Mello Moraes, Gonçalves Dias, Valle Cabral, dentre outros. Por décadas o nosso Arquivo Público viveu de favor, em imóveis emprestados, a mesma sina da Biblioteca Pública que viveu em puxadinhos durante 107 anos (1812-1919) até ter uma sede para chamar de sua. O Arquivo foi instalado em cômodos da Escola de Bellas Artes, anos depois transferido para acanhadas salas num prédio da Rua do Tesouro; em 1919 obteve mais espaço com a locação na Rua Carlos Gomes do prédio da Associação dos Empregados do Comércio da Bahia, de mudança para a Rua Chile, no hoje chamado Palacete do Tira Chapéu, em reforma. Em 1942, o Arquivo mudou-se, na mesma Rua Carlos Gomes, para um edifício de esquina, onde permaneceu até 1980 quando transferido para a Baixa de Quintas, no imóvel de retiro do Padre Vieira, antiga Casa de Oração dos Jesuítas.
Reformada e adequada para funcionar como leprosário, em 1787, e logo mais para isolamento de doentes de febre amarela, varíola e beribéri. É o imóvel tombado pelo IPHAN, em 1949, mais pelo seu valor histórico do que arquitetônico, que a Bahiatursa ofereceu em 2005 como garantia em ação ajuizada por um escritório de arquitetura há mais de três décadas. Não tinha outro patrimônio a oferecer? E aqui estamos, testemunhando a insanidade do Arquivo Público ameaçado de despejo por imprudência, burrice, ou má fé de quem alocou o imóvel como garantia de dívida e desleixo de quem deixou o barco correr. O juiz do processo determinou a transferência do valiosíssimo acervo de 40 milhões de documentos em dois meses; serão necessários, no mínimo dois anos e isso qualquer tribunal superior deve garantir. A ameaça que paira no ar não é sobre o bem tombado, nem sobre o acervo, é sobre o bom senso que, se não restabelecido, abre precedentes para o vale tudo. (Nelson Cadena). *Pesquisador e jornalista Artigo publicado hoje no Correio*

domingo, 4 de abril de 2021

Salvador, Cidade Porto

Antes mesmo de se chamar Salvador, a principal fortaleza portuguesa construída no oeste do Atlântico, já fazia referência às condições geográficas que lhe tornam ideal para as chegadas e partidas de quem sonhava em dominar o mar. A capital dos baianos nasceu como a Cidade da Bahia – com o h na época –, sede do governo português além mar e viu as suas primeiras instalações portuárias acontecerem junto com a fundação da própria cidade. De 1549 para cá, muita coisa mudou. Entretanto a vocação da cidade para os embarques e desembarques de pessoas e mercadorias manteve inalterado. No século XVIII, Salvador foi o principal entreposto comercial do Atlântico Sul. Hoje, com uma série de investimentos, no decorrer de pouco mais de 100 anos, o Porto de Salvador, em sua atual localização, reúne às condições naturais investimentos em acessos terrestre e marítimo, além de condições para a atracação de embarcação consideradas sem iguais no ao Sul do Atlântico. Por cerca de 400 anos, as condições naturais foram suficientes para realizar a atracação de embarcações na região. Apenas no século XX, em 1906, o ancoradouro ganha o título de porto e começa a passar por um processo de modernização. A primeira parte do cais da alfândega ficou pronta em 1913, ano da inauguração oficial do porto. Em 1914, doze meses depois, já haviam sido construídos 750 metros de cais, com oito guindastes móveis sobre trilhos, três linhas férreas e acesso à Avenida da França, exclusiva para a movimentação portuária. Desde 1978, após intervenção federal na Companhia Docas da Bahia, o porto foi encampado pela União e passou a ser administrado pela Codeba. Nos últimos anos, o Porto de Salvador recebeu investimentos na sua infraestrutura. A Via Expressa
proporcionou uma ligação direta entre o terminal e a BR-324, sem causar grandes prejuízos ao trânsito de Salvador e permitindo acesso rápido das cargas ao porto. Somam-se a este investimento nos últimos anos, a dragagem do canal de acesso, a construção de um novo terminal de passageiros, modernização da estrutura para recepção de trigo, além da ampliação e compra de novos equipamentos para o Terminal de Contêineres (Tecon) – que movimenta a maior parte das cargas do porto, de acordo com informações da Companhia Docas do Estado da Bahia (Codeba). Ao todo, o porto tem pouco mais de 2 quilômetros de cais acostáveis, fundamentais para a escrita da história econômica da Bahia. DESENVOLVIMENTO O presidente da Federação da Indústrias do Estado da Bahia (FIEB), Ricardo Alban, destaca a relevância da atividade portuária para a atividade econômica. “Em um mundo crescentemente globalizado, interligado nas chamadas cadeias globais de valor, a atividade portuária é vital para o andamento do comércio internacional e, consequentemente, para o desenvolvimento econômico do país e do estado”, diz. Ele lembra que na Bahia, por exemplo, 93% das exportações em 2020 foram realizadas pela via portuária, ultrapassando os US$ 7,3 bilhões. No Brasil, estima-se que cerca de 95% da corrente de comércio passa pelos portos. Ou seja, sem nossos portos, o país praticamente não teria relevância comercial. “Portos modernos e de elevada capacidade e produtividade são essenciais para transformação e impulsão da atividade econômica, a exemplo do que vimos nos estados de Pernambuco (Suape) e Ceará (Pecém)”, compara. “A Bahia precisa valorizar e modernizar sua infraestrutura portuária. Temos uma dádiva que é a Baía de Todos os Santos, que proporciona águas abrigadas e profundas, excelentes para abrigar portos públicos, como Salvador e Aratu, ou privados”, avalia Alban. Alban pede ainda um olhar para a situaçaõ do Porto Sul, que será erguido em Ilhéus. “Conjugado com a FIOL (Ferrovia de Integração Oeste-Leste), pode alavancar o desenvolvimento do estado da Bahia, com destaque para a região sul, que enfrenta há muitos anos os efeitos adversos da decadência de vetores econômicos como a cultura do cacau e o Polo de Informática de Ilhéus”, ressalta. POTENCIAL Sabidamente um apaixonado por tudo o que diz respeito à operação portuária, Paulo Villa, diretor executivo da Associação dos Usuários de Portos da Bahia (Usuport) acredita que o Porto de Salvador pode contribuir muito mais para o desenvolvimento da cidade e do restante do estado. “A cidade nasceu como um porto e o porto era a cidade. Salvador nasceu em um local natural para a operação portuária”, explica. “A Baía de Todos os Santos é o melhor sítio portuário do Atlântico Sul”, avalia. “O que temos é uma mina de ouro para a operação portuária”, diz Paulo Villa. Villa acredita que Salvador tem capacidade para receber os chamados “navios mãe”, que atraem cargas capazes de abastecer navios menores. Ele diz que este tipo de operação tem potencial para contribuir com a o desenvolvimento econômico de Salvador e de toda a Bahia. “O porto pode modificar todo o cenário econômico da Bahia”, acredita. Ele destaca o conjunto de intervenções humanas no local e avalia que o equipamento portuário montada no bairro do Comércio é de longe o maior investimento já realizado na infraestrutura de Salvador. “Este porto foi construído não apenas com 1,5 quilômetro de cais, mas com 2 quilômetros de quebra-mar. Aquilo ali é uma infraestrutura que dá qualidade invejável para Salvador”, acredita. Villa defende a necessidade de ampliar a estrutura para a movimentação de cargas e a construção de um novo terminal para movimentação de contêineres, mesmo com os investimentos em curso na ampliação do atual. “O porto é a maior obra de engenharia da cidade. Quem diz que é o metrô é porque não conhece o porto”, desafia. Para Paulo Villa, a maior celeridade no processo de modernização do porto passa por uma mudança no modelo de gestão dos portos baianos. O poder decisório em Brasília atrasa muita coisa, acredita. “As principais decisões são tomadas longe da Bahia. É uma incongruência porque fica distante da realidade”, diz. “Eu não vejo razão para portos serem estatais. Hoje já se fala em desestatizar a Codeba e a Usuport apoia isso porque é necessário que se tenha uma visão local”, defende. Ele lembra ainda que em alguns lugares do mundo, os municípios tem presença ativa na gestão portuária, tal a importância dos equipamentos para a dinâmica das cidades. “A ideia de aproveitar integralmente o potencial do porto é dez para a cidade, para o estado e para o país”.
CONTEINERS QUem atua na área portuária costuma dizer que o contêiner é a maior invenção da humanidade. Guardadas as devidas proporções e respeitando-se a natural empolgação dos que estão envolvidos no processo, aquelas caixas de metal trouxeram uma praticidade e segurança para a movimentação de cargas nunca antes vistas. E a movimentação deste tipo de cargas é hoje a principal vocação portuária de Salvador. O diretor do Tecon, Demir Lourenço, lembra compara a capital baiana com outras cidades portuárias do mundo para dizer que locais com a vocação de Salvador costumam colher bons frutos ao estimular isso. “Quem olha para cidades como a Antuérpia, na Bélgica, ou a holandesa Roterdã, sabe que o portos são estruturas centrais na dinâmica urbana destas cidades”, diz. “No mundo inteiro, as cidades que nasceram a partir da vocação portuária, elas continuam até hoje valorizando os portos como um fator central para o desenvolvimento da cidade”, diz. “Portos são ferramentas importantes para o desenvolvimento econômico e social, mas no Brasil nem sempre a sociedade enxerga a atividade desta forma”, acredita Demir Lourenço. “Salvador tem condições inigualáveis. O canal de acesso ao porto é naturalmente profundo, as águas são abrigadas, é uma vocação natural. Nós não temos assoreamento, que é um problema em grande parte dos portos no Sul”, acredita. Ele lembra que em Santos, por exemplo, o processo de dragagem é praticamente contínuo. Além disso, o diretor do Tecon lembra que a Via Expressa trouxe uma condição de acesso bastante privilegiada. “É uma condição que não se encontra mesmo em portos localizados em cidades pequenas. A via isolou o trânsito da cidade e o trânsito do porto”. Recentemente, o Tecon concluiu a expansão em sua área de atracação, já com 800 metros, a ampliação da área de apoio, com mais 30 mil metros quadrados também. “Estes investimentos nos colocam numa situação extremamente privilegiada. Salvador permanece como o principal porto do Norte-Nordeste em movimentação de longo curso. Suape tem uma movimentação total maior porque realiza mais operações de cabotagem e transbordo, mas Salvador é o principal em importação e exportação de contêineres”, compara. “A movimentação depende muito do desempenho econômico do estado, mas a nossa obrigação, que é prover a infraestrutura para esta movimentação, está sendo cumprida. A gente resolveu isso”, comemora. As operações do Tecon completaram 21 anos esse mês. O terminal baiano é um dos mais importantes instrumentos de atração de novos negócios e de investimentos para o estado da Bahia. Em duas décadas, movimentou 3.243.827 contêineres, com cargas relacionadas à produção e consumo da Bahia e outros estados, a exemplo de Minas Gerais, Espírito Santo, Tocantins, Pernambuco e Sergipe. Neste período, foram investidos mais de R$ 918 milhões no terminal baiano. Os investimentos e melhorias consolidaram o terminal como um dos mais importantes terminais do país, uma das instalações mais competitivas na América do Sul, e que recebe atualmente as principais linhas que escalam o Brasil. Neste ano, está finalizando a ampliação do berço de atracação, que passa de 377 metros para 800 metros, além da pavimentação de 30.000 m² de retroárea adicionais. O projeto, iniciado em 2018, demandou investimentos de R$ 443 milhões. Até 2050, serão investidos mais R$ 272 milhões em obras de expansão da unidade, totalizando R$ 715 milhões. A fase atual de investimentos é realizada com 100% de recursos próprios e empregou aproximadamente 700 profissionais diretos e 2.100 indiretos, sendo 90% dos contratados moradores de Salvador e cidades vizinhas.

domingo, 21 de fevereiro de 2021

Quem é o poeta baiano José Carlos Capinan, que aparece na capa do álbum Tropicalia?'

CLAUDIO LEAL*' Nos bastidores do Festival da Record de 1967, perto de ser anunciada a vitória de “Ponteio”, sua parceria com Edu Lobo, o poeta José Carlos Capinan entregou ao tropicalista Gilberto Gil a letra de “Soy Loco Por Ti, América”, tributo cifrado ao guerrilheiro Che Guevara. Um dos maiores letristas da música popular brasileira, Capinan não reconheceu fronteiras na construção de parcerias. De João Bosco ("Papel Machê") a Geraldo Azevedo ("Moça Bonita"), de Jards Macalé ("Gotham City") a Caetano Veloso (“Clarice”), de Paulinho da Viola (“Coração Imprudente”) a Roberto Mendes ("Yáyá Massemba"), de Sueli Costa (“Vuelve Mi luz”) a Moraes Moreira (“Cidadão”), sua poética muda livremente de território. Integrante do grupo da tropicália, Capinan chega aos 80 anos sem fixar outra fronteira, aquela instituída entre o ofício de poeta e o de letrista. “As coisas que aconteceram na linguagem poética alteraram muito essa relação. Não vejo esses dois textos como duas coisas diferentes. Tem mais ou menos um conceito ou preconceito de que a letra é alguma coisa inferior à poesia. Não me parece correto”, diz Capinan, que vive em Salvador. Nascido num arraial em Entre Rios, na Bahia, em 19 de fevereiro de 1941, o poeta se batizou na vida artística na capital baiana, engajado no Centro Popular de Cultura, o CPC, enquanto cursava direito e teatro. Não concluiu nem um, nem outro. Ele se diplomaria em medicina, nos anos 1970. Ainda na Bahia, houve uma prévia de seus vínculos com o movimento tropicalista. “O primeiro autor que me atraiu foi Tom Zé, quando a gente trabalhava no CPC, no ‘Bumba Meu Boi’. Gil aparecia eventualmente para ver alguns ensaios, assim como Caetano, que chegou a fazer um samba pra nossa escola de samba. Eram os caras mais soltos em relação aos compromissos acadêmicos”, lembra. Fugitivo do golpe militar de 1964, Capinan pegou a estrada para São Paulo, mas decidiu viver no Rio de Janeiro. Em “Inquisitorial”, de 1966, livro de estreia, seus poemas reagiam, sem estreiteza, à opressão. O poeta identifica dois eixos na obra. “Há textos com mais densidade literária e há poemas-piada, sem tomar a bênção ao que podia se chamar literatura. ‘Inquisitorial’ é trabalhado, já nos outros poemas há um relaxamento da linguagem, que é uma coisa da poesia moderna.” Naquele 1966, como frequentador dos encontros de músicos no Teatro Jovem, no Rio, ele se sentou certa feita ao lado de Paulinho da Viola. “Eu me chamo Capinan, vim da Bahia e a gente podia ser parceiro”, ele propôs, num intervalo. Pouco depois nasceria “Canção de Maria” —e a amizade. “No tempo em que Capinan viveu no Rio, a gente estava sempre junto. Capinan é muito inteligente, culto, com uma visão critica das coisas. Um dia ele falou ‘você sabe por que as escolas de sambas estão vivas? Porque elas nunca pararam no tempo’. A gente estava conversando sobre as mudanças na ditadura”, recorda Paulinho da Viola, seu parceiro em “Prisma Luminoso”. “Ponteio”, com Edu Lobo, seria uma virada no reconhecimento da crítica. “A vitória no Festival de 1967 deu visibilidade e alterou muito a minha presença na área musical”, avalia Capinan. O pulo para o tropicalismo o trouxe mais para perto das experimentações de linguagem. “O núcleo tropicalista principal, que eu visualizo em Caetano, Gil e Tom Zé, estava localizado em São Paulo. Quando o disco estava para ser lançado, Gil me convidou para uma reunião. Foi um convite do Gil, que eu conhecia de Salvador. Fizemos uma canção, ‘Miserere Nobis’.” Gilberto Gil reconhece as afinidades com o amigo. “Capinan vem de uma região do agreste baiano com uma formação muito severina, como eu lá no sertão. Eu já muito mais ligado a Salvador, a essa cultura litorânea, e ele só vem a conviver com esse mundo quando vem mesmo fazer a escola de direito. Aí vai incorporando ao imaginário poético essa cultura urbana e litorânea, com a coisa africana mais nítida”, observa Gil, um dos autores de “Viramundo”. “Ambos temos essa coisa sertaneja muito forte e, na segunda fase da adolescência, essa coisa urbana.” Os livros de poemas de Capinan seguem fora de catálogo. “Inquisitorial” e “Confissões de Narciso”, da Civilização Brasileira, não foram mais editados. Em 2004, a editora baiana Caramurê lançou “Vinte Canções e um Poema Quase Desesperado”. Ele pode ser lido na antologia “26 Poetas Hoje”, organizada por Heloísa Buarque de Hollanda em 1976 e relançada pela Companhia das Letras. “Apesar de ter mais de 200 músicas gravadas, não consigo viver de direitos autorais. ‘Ponteio’ foi uma das que menos recebi direitos autorais. Não consegui receber direitos de ‘Ponteio’ no exterior”, conta Capinan. Em Salvador, ele é diretor do Muncab, o Museu Nacional da Cultura Afro-Brasileira. Idealizado pelo ex-ministro Francisco Weffort, em 2002, com o acervo inicial organizado por Emanoel Araújo, o museu seria federalizado pelo antigo Ministério da Cultura, mas esse processo nunca se completou. Persiste a crise financeira. Capinan comemora seus 80 anos numa live-show de lançamento do volume dos "Cadernos de Música" sobre sua obra, no canal do YouTube do Muncab. Seu itinerário de letrista merece destaque na coleção editada por Ana Paula Simonaci, Sergio Cohn, Leonardo Lichote, Paulo Almeida e Janaina Marquesini. Além dela, será lançada a série de cinco capítulos dirigida por Jamile Coelho sobre suas canções mais célebres. Jards Macalé, Roberto Mendes e Gereba participam da live. “Movimento dos Barcos”, sua canção com Macalé, condensa desejos geracionais preservados por Capinan. “Não quero ficar dando adeus/ Às coisas passando, eu quero/ É passar com elas, eu quero/ E não deixar nada mais do que as cinzas de um cigarro/ E a marca de um abraço no seu corpo.” “Continuo falando daquilo que é e foi sempre o caráter do meu trabalho, o humanismo radical. Seja em ‘Papel Machê’, seja em ‘Soy Loco Por Ti, América’. Elas têm o homem como o centro do mundo. O homem como radical. Em qualquer canção minha está presente essa ideia. Seja a mais guerrilheira das canções, seja a mais romântica. Eu trabalho sempre abrindo para o lado humano”, diz o poeta. * Jornalista da Folha de São Paulo

segunda-feira, 15 de fevereiro de 2021

Ainda a Praga


 Antônio Risério *
Ainda no começo dessa praga do coronavírus, publiquei um artigo numa revista da Unicamp, onde, entre muitas outras coisas, escrevi que o confinamento, de um ponto de vista brasileiro, não deixava de ser uma espécie de violência antropológica. Como? Simples. O povo brasileiro é gregaríssimo e nunca respeitou o espaço físico alheio. Normalmente, em vez de se manter a uma distância educada, digamos assim, de seus interlocutores, os brasileiros se amontoam, se grudam, invadem o espaço físico uns dos outros. E tome abraço, tome beijo, tome etc. Sempre foi assim em todo canto: em roda de samba, reunião de político, redação de jornal, futebol na praia, agência de publicidade, etc., etc. Estrangeiros (nórdicos, em especial), quando conheciam o Brasil, registravam logo isso. Tinha antropólogo (Edward T. Hall e sua "proxêmica", ramo da "cinésica" de Ray Birdswhistell, por exemplo) que estudava isso, padrões de relacionamento espacial entre pessoas, em lugares diferentes do mundo. A tal da "distância social" - que seria mais corretamente definida como distância física - fere frontalmente o gregarismo brasileiro. É muito mais difícil para nós do que para um sueco obedecer. Nórdicos já nascem praticando essa distância. A gente é o contrário. A gente já nasce grudado. Para nós, tempos atrás, seria simplesmente impensável encontrar uma pessoa amiga sem abraços e beijos. Não por acaso temos a expressão popular "íntimo de mão na bunda".


*


Entendo perfeitamente como minha querida Lica Ceccato se sente, em seu confinamento. Mas confesso que, no meu caso, não sinto muito. Primeiro, porque sempre faço questão de avivar a memória: em comparação com a cela onde fiquei preso no Quartel do Barbalho e depois na base dos fuzileiros navais, em Salvador, prisão domiciliar é um luxo. Segundo, graças à internet e ao teletrabalho (não, não sou aposentado - e, como não tenho emprego fixo, sou obrigado a me virar), moro longe, numa praia tranquila, aqui em Itaparica. Mais importante que tudo, no meu caso: moro com Sara Victoria, que é um sonho in my life. Como se não bastasse, vivemos cercados de muitas plantas (de árvores grandes como o jamelão e a mangueira a coisinhas mínimas, passando por cajueiros, dendezeiros e acácias) e muitos bichos (cachorros, gatos, cágados e até um camaleão chamado Tião, que só aparece quando quer). Ou seja: posso me sentir tudo, menos só ou isolado. Assim, dá pra levar numa boa.


*


E acho bom mesmo a gente se preparar. Não consigo acreditar em "pós-pandemia". Acho que isso é uma fantasia que a gente curte - porque ajuda a passar o tempo, tocar o barco "provisoriamente". Mas até hoje nada me conseguiu convencer do contrário. Outro dia, aliás, um cara da Biontech falou com clareza: é impossível erradicar o coronavírus, vamos ter de nos acostumar a isso. O cara disse, ainda, que a OMS não conta toda a história para que a população segure a onda, sem abrir definitivamente a guarda, sem relaxar de vez. Acredito.

Outro dia, uma jornalista me perguntou por e-mail como eu me relacionava com essa coisa de teletrabalho, fazer "lives", etc. Disse a ela que, para mim, não era novidade: sempre fizemos gravações e, salvo em empreitadas especiais (antigas campanhas políticas, por exemplo), sempre fui, desde a adolescência, praticante disciplinado do teletrabalho. Falei que, do meu ponto de vista, o que era mesmo novo era a TELEVIDA. Esta é a novidade terrível em que estamos - e todos obrigados a tentar aprender a TELEVIVER. Mas vamos em frente.

*ANTROPÓLOGO e ESCRITOR

sábado, 13 de fevereiro de 2021

Carnaval sem Máscaras



Esse ano não teremos uma das maiores festas de rua do Recôncavo Baiano, e porque não da BTS: o Carnaval de Maragojipe. Realizada há mais de 100 anos, a manifestação é considerada uma das mais tradicionais da Bahia, conquistando em 2009 o título de patrimônio cultural imaterial do Estado, através do Instituto do Patrimônio Artístico e Cultural (IPAC), órgão vinculado à Secretaria de Cultura. O Carnaval de Maragojipe mantém a tradição das fantasias usadas nos carnavais do século XIX e sucede os chamados entrudos. A comparação com o Carnaval de Veneza é inevitável pelo requinte das máscaras usadas durante a festa momesca. No carnaval da cidade ainda é possível dançar e se divertir ao som das tradicionais marchinhas carnavalescas que circulam pelas ruas e praças da cidade. A festa conta também com a tradicional escolha do Rei Momo, da Rainha e das Princesas, responsáveis por, simbolicamente, governar a cidade durante os dias de festa. Foto: Armando Correia Ribeiro

quinta-feira, 1 de outubro de 2020

Pastelaria Triunfo

Valdomiro Santana* 

Foi a memória involuntária que, generosa, desatou em mim a Pastelaria Triunfo. No chão da consciência nada consigo localizar, nenhum objeto, para dizer como de súbito a lembrança da pastelaria me apareceu trinta anos depois. Proust, num dia triste e com a perspectiva de mais um dia sombrio, bebeu sem vontade uma colherada de chá onde deixara amolecer um pedaço de madeleine — bolinho de farinha de trigo, ovos e açúcar, semelhante à delícia que chamamos de brevidade —, e com esse gesto prosaico mudou a literatura do mundo.

Não resisto e transcrevo, na excelente tradução de Mario Quintana, o que diz Proust em Du côté du chez Swann, o primeiro volume da Recherche: “[…] no mesmo instante em que aquele gole, de envolta com as migalhas do bolo, tocou o meu paladar, estremeci, atento ao que se passava de extraordinário em mim. Invadira-me um prazer delicioso, isolado, sem noção de sua causa. Esse prazer logo me tornava indiferentes as vicissitudes da vida, inofensivos os seus desastres […] tal como o faz o amor, enchendo-me de uma preciosa essência: ou antes, essa essência não estava em mim; era eu mesmo”. 

Foi esse gosto da madeleine, embebida em chá-da-índia ou de tília, sentido muitos anos depois, que ressuscitou em Proust uma emoção antiga, única e instantânea: a lembrança de sua infância em Combray. Os rostos, as casas, as alamedas, o traçado dos jardins… tudo — que ele julgara morto para sempre — voltou em segundos a existir, vívido e cintilante, com seus detalhes, sua atmosfera particular. O que Proust recordasse de Combray lhe seria unicamente fornecido pela memória voluntária, a da inteligência — mas as informações que ela nos dá sobre o passado não conservam nada deste. Todos os esforços da inteligência são inúteis para evocar o nosso passado. “Está ele oculto, fora do seu domínio e do seu alcance, nalgum objeto material (na sensação que nos daria esse objeto material) que nós nem suspeitamos. Esse objeto, só do acaso depende que o encontremos antes de morrer, ou que não o encontremos nunca”. Eis então o mistério da memória involuntária, a que dispensa o intelecto e é capaz de retrouver le temps, de redescobrir o tempo — que dávamos como irremediavelmente perdido.

“[…] quando mais nada subsistisse de um passado remoto, após a morte das criaturas e a destruição das coisas — sozinhos, mais frágeis, porém mais vivos, mais imateriais, mais persistentes, mais fiéis —, o odor e o sabor permanecem ainda por muito tempo, como almas, lembrando, aguardando, esperando sobre as ruínas de tudo o mais, e suportando sem ceder, em sua gotícula impalpável, o edifício imenso da recordação”. 

Eu estava na praia com meus filhos. De repente, a Pastelaria Triunfo se desenhou inteira em minha lembrança. Que odor, que sabor, que madeleine, não sei; nada me ocorre que tenha operado esse encantamento, a palpitar no fundo de mim, para me fazer repetir a musicalidade feliz destas duas palavras: Pastelaria Triunfo, perfeitamente casadas, com seu quê de delicadeza e força. Há mais do que tonicidade na sílaba un de triunfo: há plenitude, que incorpora o nome e o faz pulsar para além de sua carga semântica. Triunfo, pastelaria, Triunfo. Em que eu estava pensando? Talvez em algas, ramagens, hipocampos… Ou em nada. E o velho casarão, plantado no alto da Ladeira da Praça, me trouxe de volta um menino de 13 anos, ainda usando calças curtas, o pai a segurar-lhe a mão. Saem do Elevador Lacerda, não têm nenhuma pressa, na brisa gentil do verão e sob a translucidez do céu; à esquerda, o prédio baixo, acinzentado pelo tempo, da Imprensa Oficial da Bahia, vizinho ao prédio maior, de um amarelo pardacento, da Biblioteca Pública; à direita, o Palácio Rio Branco, esquina com o trecho mais elegante da cidade, a Rua Chile, onde a loja Duas Américas dispunha, só ela em Salvador, de uma escada rolante, inaugurada havia pouco mais de um ano, uma coqueluche. 

Dezembro de 1959, quatro horas da tarde, e Terezinha Morango — mais uma vez — é capa de O Cruzeiro.

— Que pernas, meu Deus! Aaaah…! — o homem dissera, diante de uma banca de revistas na Praça Cairu, em tom baixo e suspirando, e seu “ah” se prolongara, cavo e sóbrio. O menino, querendo imitá-lo, soltara um “ah” nem um pouquinho rouco, de tão verde, longe daquela bossa, ou molho, que poucos homens conseguem, pondo um tanto de volúpia e solenidade na voz, para que saia um “ah” como convém: nem de mais, que soe a cafajestice, nem de menos, ou desenxabido, que lembre o “ah” idiota dos almofadinhas. 

Seguem de mãos dadas, passam pelo abrigo do ponto de ônibus e bondes em cuja cobertura, assim que anoitecer, brilharão os anúncios da cera Parquetina e dos chapéus Ramenzoni; em frente, a Prefeitura e a Câmara Municipal no mesmo edifício que já foi cadeia pública: sua fachada, após tantas deformações e acréscimos, mais parece a de um cabaré mexicano.

Desviam-se dos carros que vêm da Sé pela Rua da Misericórdia, e naquela confluência, bem no topo da ladeira, o que inunda os olhos do menino são os vidros bojudos de azeitonas em cima do balcão. Pretas, verdes, cor-de-damasco… 

— Autênticas da Grécia e da Espanha — o homem, um habitué, diz para o menino. — As pretas são magníficas.

Sentam-se a uma mesa redonda com pés de ferro, tampo de mármore. Os olhos do menino passeiam pelo balcão, acima do qual estende-se um cano vermelho descascado pendurando rolos de presunto, salame, caixinhas de figos secos, reclames de sal-de-fruta e de bebidas, tiras e arranjos de papel celofane.

— Pronto — diz o homem, cigarro no canto da boca, a fumaça espiralando em seu rosto. O menino não ouvira o pedido; e num tempo que a recordação hoje tornou matéria de sonho, o garçom surgirá do nada, mas era como se ali estivesse desde o começo do mundo: lépido, magrinho, de anel (topázio?) e sem gravata-borboleta, sorriu, “a família vai bem?”, “vai bem, obrigado”, trouxe os guardanapos de pano (linho?), o cálice de conhaque, chope, guaraná, as rodelas de pão e de salame, azeitonas pretas, “com licença”.

— Um equilibrista improvável — comenta o homem. — Viu como ele segurava a bandeja?

— Vi — diz o menino. — Quase ela cai. 

Uma tarde calma e honrada a que têm direito o homem e o menino, em meio a tantos odores convidativos, fortes, discretos, almiscarados ou não, das caixas de bacalhau, das conservas de enchovas e atuns, dos defumados, dos doces em compota, das frutas de clima frio, da profusão de queijos e da variedade de vinhos turvos e leves. E como havia patês, bolachas folhadas, nozes, castanhas, chocolates!

— O que é aquilo?

— Nêspera.

Mas não havia pastel. 

— Não é uma pastelaria?

— É.

— E não tem pastel?

— Não. 

O menino corre os olhos pelo balcão, prateleiras, envoltórios de vidro, escaninhos, cada compartimento, e vai à forra:

— Uma pastelaria improvável — diz. 

Menos de quatro anos depois a Triunfo desapareceu, devorada por um incêndio. Todos temos as nossas madeleines. Se o que narro aqui mal e mal não foi uma madeleine, foi com certeza, feito um alumbramento, a saudade de meu pai. Agora, no fim de janeiro, fez dois anos que ele morreu.

*Contista e cronista

sexta-feira, 18 de setembro de 2020

João Mangabeira, um Socialista


Antonio Paim* 
 Político consagrado na República Velha, João Mangabeira evoluiu na direção do socialismo democrático. Muito ligado a Rui Barbosa, seria marcado pela ênfase que Rui passou a atribuir à questão social. Até mais ou menos a época do Estado Novo, contudo, essa adesão correspondia a uma espécie de desdobramento de postura humanista. A experiência dos anos 1930 e do Estado Novo é que iria despertá-lo para a necessidade de ser estruturada no País uma alternativa socialista de cunho nitidamente democrático, dado o fato de que essa corrente assumira, sobretudo em decorrência da ascensão de Getúlio Vargas, feição francamente autoritária. Baiano de nascimento, jurista e advogado de certo prestígio, começou a envolver-se na política – sem afastar-se do exercício da advocacia –, em 1906, quando completou 26 anos. Em 1909 começou uma atribulada carreira como deputado federal. Nas duas décadas seguintes envolveu-se em todas as principais questões típicas da República Velha, notadamente a praxe do reconhecimento (e a degola) de mandatos; as duas campanhas de Rui Barbosa à presidência; o envolvimento do País na Primeira Guerra Mundial; a situação de permanentes estados de sítio que o País vivenciou nos anos 1920; a Reforma Constitucional de 1926 etc. Assim, quando eclodiu a Revolução de 1930, era um nome consagrado no cenário político nacional, além de jurista de reconhecida competência. Devido a isto, participou da famosa Comissão do Itamaraty, a qual foi atribuída a missão de elaborar o projeto de Constituição que seria tomado como referência pela Assembleia Constituinte de 1934. Mangabeira elegeu-se para a Constituinte e passou a integrar a Câmara dos Deputados após promulgada a Constituição. Seguiram-se anos de extrema polarização no País, com choques de rua entre comunistas e integralistas, processo que culminaria com a insurreição de novembro de 1935, promovida pelos comunistas em quartéis da Capital da República e de alguns Estados, rapidamente esmagada. Serviu de pretexto para a decretação do Estado de Guerra, que suspendia as garantias constitucionais. Vargas iria valer-se dessa prerrogativa para prender os parlamentares que se destacavam como seus oposicionistas, entre estes João Mangabeira. Introduziu-se tribunal de exceção (Tribunal de Segurança Nacional) que condenou os parlamentares a variadas penas, sob a alegação de que seriam uma espécie de ponta de lança dos comunistas. Mangabeira foi condenado a três anos. O tribunal militar reduziu-lhe a pena. Ao todo ficou preso de março de 1936 a junho de 1937. Retornou à Câmara que, entretanto, foi fechada logo adiante pelo golpe de Estado de novembro, que instituiu o Estado Novo. Na fase de redemocratização do País constituiu, com outros intelectuais, a Esquerda Democrática, que iria fazer parte da União Democrática Nacional. Esse acordo terminou logo depois das eleições (dezembro, 1945). Em agosto de 1946, a Esquerda Democrática transformou-se no Partido Socialista Brasileiro (PSB). O programa do PSB foi escrito por um notável grupo de intelectuais, entre os quais sobressaíam João Mangabeira, escolhido presidente da nova agremiação, e Hermes Lima (1902-1978), eleito representante do PSB à Assembleia Constituinte de 1946. Mangabeira conquistaria mandato somente na eleição complementar realizada após a promulgação da Constituição, em 1947. O programa do PSB reiterava, sempre que oportuno, seu inequívoco compromisso com o sistema democrático-representativo. Antes de mais nada, deixava claro que a aplicação dos princípios que preconizava não se constituiria “em solução de continuidade na história política do País, nem violência aos caracteres culturais do povo brasileiro”. Desse modo, rompeu frontalmente com a tradição, emergente nos anos 1930, de “passar o País a limpo”, “inaugurar os novos tempos” e outras tiradas messiânicas desse tipo. O programa expressava a intenção de preservar a federação brasileira e a autonomia municipal. Todas as principais características da organização democrática do Estado são claramente referidas. O PSB incorporou, como “patrimônio inalienável da humanidade”, as conquistas democrático-liberais, embora as considerasse insuficientes para alcançar a almejada eliminação do sistema econômico que se baseia na “exploração do homem pelo homem”. Se chegasse a alcançar o poder, o PSB preservaria a liberdade de organização partidária. As transformações que almejava introduzir na estrutura econômica do País também são apresentadas de forma equilibrada. Assim, preconizando a “gradual e progressiva socialização dos meios de produção”, entende que somente deverão ser realizadas na medida em que as próprias condições do País o exijam. Ainda mais: a mencionada socialização não era identificada com a posse estatal, não poderia ser efetivada ao arrepio do Parlamento nem excluía a circunstância de que pudessem ser preferidas organizações cooperativas. Tampouco se cogitava da completa eliminação da propriedade privada. O documento evitou a expressão “luta de classes”, dando preferência a “antagonismo de classe”. Finalmente, o PSB não se identificava com nenhuma concepção filosófica nem circunscrevia-se à defesa de determinado grupo social, dizendo-se comprometido com todos que vivem do próprio trabalho. O PSB viria a ser a primeira agremiação no País, de índole socialista, de fato comprometida com o sistema democrático representativo, já que a expressão predominante dessa corrente, desde os anos 1930, revestiu-se de caráter nitidamente autoritário, sobretudo por se achar associada ao varguismo. Ao que parece, contudo, não encontrou ambiente favorável ao seu florescimento. No ciclo do interregno democrático, nunca conseguiu uma representação digna de nota no Parlamento. Como foi referido, Mangabeira seria deputado na primeira legislatura após concluídos os trabalhos da Assembleia Constituinte. Acentuando-se as divergências com a UDN, sobretudo por sua insistência com candidatura militar à presidência, nas eleições de outubro de 1950 concorreu com chapa própria, sendo candidato o próprio Mangabeira. Nessa eleição, Vargas obteve cerca de quatro milhões de votos, enquanto João Mangabeira menos de 10 mil (ao todo, 9.466), o que dá bem uma ideia da pouca expressão alcançada pelo PSB. Sob o parlamentarismo, ocupou a pasta da Justiça. Após a reintrodução do presidencialismo, optou por deixar a função, apesar da intenção de Goulart de mantê-lo no posto. Desde então, afastou-se da política, vindo a falecer menos de um mês após o movimento de 31 de março de 1964, em 27 de abril, pouco antes de completar 84 anos. A ideia de um socialismo comprometido, antes de mais nada, com o funcionamento das instituições mantenedoras da democracia não prosperou. O PSB que se reconstituiu nos dois períodos chamados de reconstituição democrática (1945-1964 e o pós-1985) perdeu a singularidade do socialismo democrático antes caracterizado, afeiçoando-se às agremiações que se tornaram a feição típica, como se mostra nas breves indicações adiante O Partido Socialista Brasileiro foi reorganizado em 1985. No período inicial, foi apropriado por um grupo que optou por transformá-lo numa agremiação de tipo marxista-leninista. A documentação resultante dessa fase foi examinada por Antonio Paim no livro O socialismo brasileiro-1979-1999, editado pelo Instituto Teotônio Vilela. A conclusão do autor é transcrita adiante. A análise precedente e os documentos que a instruem evidenciam que, nos três lustros iniciais, a tentativa de renascimento do PSB fez-se em flagrante contradição com o legado dos fundadores da agremiação em 1947. Os que assumiram tal responsabilidade, mesmo sendo socialistas, a tanto não estavam obrigados. Podiam simplesmente iniciar uma nova experiência, como fizeram os fundadores do PT. Se preferiram identificar-se com o PSB – e até adotaram o mesmo programa –, o que se poderia exigir é que revelassem um mínimo de conhecimento de causa. Ao contrário, o empenho foi dirigido no sentido de estruturar uma organização do tipo stalinista. Nunca causou qualquer constrangimento ao PSB suas alianças públicas com o PC do B, que corresponde precisamente ao absoluto contrário de todos os princípios que norteiam o socialismo democrático. E, mesmo depois da aprovação das novas diretrizes, no Congresso do Cinqüentenário (novembro, 1997) – que revogam a linha até então seguida e dizem expressamente que o PSB não é uma agremiação de classe –, após as eleições de 1998, o PSB formou um bloco com o PC do B na Câmara dos Deputados. No livro de memórias que nos deixou (Travessia, Rio de Janeiro, 1974), Hermes Lima fixou com exatidão o problema enfrentado pela Esquerda Democrática, ao desligar-se da UDN e dar nascedouro ao PSB: distinguir-se tanto dos liberais (UDN) como dos comunistas (PCB). Logo adiante, devido ao clima de histeria anticomunista que se instaurou no País após as eleições presidenciais, de que saiu vitorioso o general Eurico Gaspar Dutra – fechamento do PC; cassação de mandatos dos representantes comunistas; empastelamento de jornais e grande número de prisões – o PSB, já então constituído, tratou de fixar a sua posição independente, sem fazer concessões à falta de liberdades na União Soviética, mas defendendo firmemente o Estado Liberal de Direito em face das sucessivas violações às liberdades fundamentais presenciadas no País. Apesar da complexidade da situação, a impressão que se recolhe da documentação existente é que aquela liderança soube orientar-se adequadamente. Nesse particular, tudo indica que a questão central corresponde à capacidade de distinguir-se do comunismo, tratando-se de agremiação que, a partir mesmo do seu nascedouro, identificou-se com o socialismo democrático ocidental. Subsidiariamente, teria de acompanhar a evolução do socialismo na Europa Ocidental. Na verdade, entre as maiores agremiações socialistas do continente, somente o PS francês mantém-se fiel à bandeira socialista. As demais fizeram uma franca opção social-democrata, isto é, renúncia à utopia da sociedade sem classes e ao entendimento de que o socialismo deveria traduzir-se em estatização da economia. Em 1993, assumiu a presidência do PSB um tradicional líder da esquerda, Miguel Arraes (1916-2005), governador de Pernambuco cassado pelos militares e que, após 1985, voltaria a ocupar aquele cargo. Abandonou o projeto anterior, mas acabaria contribuindo para desfigurar totalmente a agremiação, ao aceitar, em 2002, o ingresso no partido de Anthony Garotinho, que ocupara o cargo de governador do Rio de Janeiro. Esse fato determinou o afastamento de Roberto Saturnino, então senador, que representava justamente a melhor tradição do socialismo democrático. Desde então, o PSB tornou-se progressivamente uma agremiação sem nítida feição própria, engolfada pela geleia geral que passou a representar a base de apoio dos governos subsequentes.