Mostrando postagens com marcador meio ambiente. Mostrar todas as postagens
Mostrando postagens com marcador meio ambiente. Mostrar todas as postagens

quarta-feira, 18 de agosto de 2010

Muito além de um elegante vestido preto

Rosana Jatobá*
Ela surgiu para esconder as vergonhas, mas hoje em dia revela o íntimo de cada um. A roupa é o sinal instantâneo da auto-imagem que queremos exibir. E, na visão da grande dama da moda, ela pode ser uma arma poderosa e infalível:
“Vista-se mal, e notarão o vestido. Vista-se bem, e notarão a mulher.”
Mademoiselle Chanel revolucionou, não apenas porque libertou a mulher dos trajes desconfortáveis e rígidos do fim do século 19. Mas porque valorizou o senso crítico:
“O mais corajoso dos atos ainda é pensar com a própria cabeça”.
Se os tempos modernos desafiam nossas escolhas em nome da Sustentabilidade, invocar a genialidade de Coco Chanel pode ser norteador. Foi o que eu fiz quando recebi um presente, que chegou cheio de recomendações:
– Tenha muito cuidado, guarde-o em lugar fresco e escuro, e, se sujar, leve a um especialista. Esta pele pertenceu à sua avó. É um vison!
Vesti e imediatamente senti o poder de transformação do visual. A peça macia e felpuda de cor castanha tinha a pelagem espessa, brilhante e vistosa. Embora com mais de meio século, mantinha um design atemporal. Envolta na altura dos ombros, proporcionava uma sensação de conforto e proteção. Era a mais perfeita tradução do luxo, o acessório que permitia a metáfora: os diamantes estão para as orelhas, assim como a pele está para o corpo.
Chegou o dia de exibi-la. A noite do casamento estava mesmo fria em São Paulo, coisa rara nos últimos invernos. A festa era de gala, num endereço tradicional da cidade, o Jockey Clube. Escolhi um vestido de seda preto, me enrolei no vison e me perfumei, afinal, segundo nossa musa:
”Uma mulher sem perfume não tem futuro!”
Mas a última olhada no espelho, em vez de glamour, revelava inquietação:
Eu sabia que o animal havia sido morto numa época em que não existia o risco de extinção da espécie. Tinha certeza de que ninguém iria me hostilizar na festa , pois grande parte das mulheres estaria ostentando a sua estola ou casaco de pele. Possuía o aval da papisa da moda, Anna Wintour, editora da vogue americana, fã incondicional de peles e uma das responsáveis pela “fur mania” atual, um boom que não se via desde os anos 80.
Tinha, portanto, razões de sobra para usar o bicho, mas nenhuma tão contundente quanto a deixada pelo legado de Chanel:
“A moda não é algo presente apenas nas roupas. A moda está no céu, nas ruas, a moda tem a ver com ideias, a forma como vivemos, o que está acontecendo.”
Não poderia ignorar que, se usasse o vison, vestiria a capa da indiferença diante de um mercado cruel e fútil, que não para de crescer. De acordo com a Peta (Pessoas pela Ética no Tratamento de Animais), a indústria da pele mata 50 milhões de animais por ano no mundo. Só na China, a produção atingiu números entre 20 e 25 milhões em 2010, ao passo que no ano 2000, oscilava entre 8 e 10 milhões de peles. A organização beneficente invade desfiles de moda e aterroriza as donas do acessório, jogando baldes de tinta para inutilizar a peça. É uma forma de protestar contra os maltratos dispensados aos bichos, que passam suas vidas confinados em minúsculas gaiolas.
Para a extração da pele, são eletrocutados, asfixiados, envenenados, afogados ou estrangulados. Nem todos morrem imediatamente, alguns são esfolados ainda vivos! Em alguns locais, para que as peles fiquem intactas, corta-se a língua do animal, deixando-o sangrar até morrer.
A voz da consciência soprou mais uma vez ao meu ouvido e ouvi o conselho da mestra das agulhas:
“Elegância é recusar.”
Abri mão da gostosa sensação térmica da pele morta do vison e fui às bodas.
No salão ricamente enfeitado, a fauna mórbida desfilava à minha frente. Era uma profusão de visons, chinchilas, raposas, zibelinas, cabras e cordeiros. Bichos montados, pendurados, entrelaçados em mulheres superproduzidas. …e bem agasalhadas.
Toda concessão tem seu preço.
O ar gelado entrava pelas janelas e resfriava até a minha alma, obrigando-me a contorcer os músculos.
Mas toda renúncia, a sua recompensa.
O desconforto em pouco tempo desapareceu, quando me senti envolvida pelo calor dos braços de um certo alguém. Como dizia Gabrielle Coco Chanel:
“Uma mulher precisa de apenas duas coisas na vida: um vestido preto e um homem que a ame”.
*Rosana Jatobá, baiana, é jornalista da Rede Globo, advogada e mestranda em gestão e tecnologias ambientais da USP

sexta-feira, 13 de agosto de 2010

Violação do meio ambiente cultural

Georges Humbert*
Há cerca de dois anos Salvador vive uma celeuma sobre o destino das suas barracas de praia. Tudo começou com o projeto de requalificação proposto pela prefeitura, seguido do embargo da obra pelo IBAMA, propositura de ação judicial pela Procuradoria da República, culminando com a decisão da Justiça Federal que determinou a remoção de todas as barracas. Estes atos ofendem o meio ambiente e direitos constitucionais fundamentais.
De início é preciso esclarecer que meio ambiente não é só o que está na natureza.
Compõe-se por tudo que integra o nosso habitat, incluindo as construções do homem, sua presença e tudo aquilo que faz parte das suas tradições. Trata-se do denominado meio ambiente artificial e cultural, também protegido constitucionalmente. Ademais, todo cidadão tem direito de exercer atividade econômica, de trabalhar e de ter atos do poder públicos confiáveis (artigos 5º, 6º e 170).
Contudo, os atos de todos os agentes públicos envolvidos no caso das barracas de praia olvidaram essas importantes questões.
Os primeiros a descartá-las foram o município e a União (IBAMA). Estes detinham competência na matéria, respectivamente, para ordenar os espaços urbanos promovendo as funções sociais da cidade e para ordenar o uso racional, ambientalmente adequado de suas áreas. Não se entenderam.
O segundo a maltratar referidas normas foi a Procuradoria da República, que ingressou com uma ação buscando apenas a tutela do meio ambiente natural, sem se lembrar que as barracas de praia fazem parte da cultura do País e estão presentes, a longa data, em toda sua extensão litorânea, integrando o seu meio ambiente.
Finalmente, o Judiciário acatou o pedido e, sem impor qualquer determinação quanto ao destino econômico e social (trabalho) dos barraqueiros, impôs a desplanejada e ilegal demolição, em detrimento da adequada ordenação e uso sustentável da área em conflito.
A permanência das barracas de praia, neste caso concreto, é o mais correto, do ponto de vista jurídico e social. Todavia, deve ser realizada mediante o devido processo legal e observadas as condicionantes ambientais, urbanísticas, bem como rigoroso plano de gestão das áreas que permita o seu uso múltiplo e compatível com a sustentabilidade das nossas preciosas praias.
Somente assim, aqueles que não atender em a estas exigências deverão, após exercer o amplo direito de defesa, ter sua barraca demolida; sequencialmente, como condição de validade da demolição, encaminhados a um programa de reinserção profissional, numa operação conjunta entre o município, Estado e União. Valorizar-se a a cute;, dessa forma, o meio ambiente como um todo, em seu aspecto natural e cultural, além dos direitos socioeconômicos ínsitos a todo cidadão brasileiro.
Diante do exposto, forçoso concluir que os cidadãos soteropolitanos e os barraqueiros tiveram desrespeitados direitos intangíveis: meio ambiente ecologicamente equilibrado, trabalho e segurança. Isto porque o ambiente, notadamente o conteúdo cultural, estará desprotegido com a indiscriminada, não planejada demolição e as suas inevitáveis consequências - uma delas pode ser a reocupação desordenada dos espaços litorâneos ou sua favelização. Em segundo lugar, porque muitos perderão seu emprego e renda. Finalmente, porque as praias, a despeito de ser bens públicos, não são intocáveis, devendo ser aproveitadas de forma ordenada, adequada e racional, preservando e resolvendo corretamente a equação da sustentabilidade composta pela responsabilidade social, econômica e ambiental.
E os barraqueiros? Bem, se não houver a revisão destes atos inconstitucionais pelo Tribunal competente, entrarão para história como os únicos, entre os milhares de ocupantes do nosso vasto litoral,que deixarão de exercer uma atividade econômica lícita, vitimados, exclusivamente, pela falta de razoabilidade, planejamento e da reentrante insegurança jurídica que norteia os atos do poder público. Tudo isto, é claro, em confronto com o princípio da dignidade da pessoa humana e do ditame do bem-estar social, alicerces da Constituição.
*Advogado, doutorando e mestre em direito ambiental e urbano
**Artigo publicado originalmente no jornal A Tarde, - Opinião