Almir Santos*
Que saudade do tempo que era levado por suas mãos. Das tardes no Campo Grande, das manhãs na praia da Paciência. Que sensação quando o bonde chegava à Vila Matos e sentia o cheiro de praia. Era sinal que o azul do mar estava perto.
De trocar a roupa na casa de Manuel de Lucila. Não se andava nos bondes em trajes de banho.
Tomar leite de vaca de madrugada na cocheira de Joventino no bairro do Binóculo, comprar manga na roça de René na Rua Garibaldi ou manga, laranja, uva e caju na roça de Simões na Federação.
Do veraneio em Amaralina. De olhar o gado beber água na lagoa.
Das manhãs de domingo, das visitas à minha avó Isaura ou meu tio Edmundo. De subir a ladeira de dona Celina.
De andar pelas ruas do bairro da Sé e depois tomar uma gasosa na Pastelaria Centro Popular.
Das cocadas branca e preta, compradas de uma baiana que ficava à porta da Farmácia Minerva.
De vê-lo retornar do trabalho à tardinha e descer do bonde ainda em movimento.
Dos primeiros filmes: O Mágico de OZ, Branca de Neve e os Sete Anões e Idílio nas Selvas.
De sua voz forte gritando “Almir e Ayrton” à frente do colégio da Prof.ª Iazinha.
Do meu primeiro jogo de futebol: 15 de agosto de 1943, Botafogo 2x Galícia 1 no campo da Graça.
Bahia “doente”. Sempre achava que o seu time não merecia ter perdido, o juiz não marcou dois pênaltis a seu favor ou validou um gol em impedimento do adversário.
Não tinha essa de torcer para time de fora. Vitória, Botafogo, Galícia, Ypiranga, Guarani jogando contra time de fora, tinha de torcer pelos times baianos. “Tem de torcer pela Bahia.” O mesmo para times brasileiros jogando contra times estrangeiros. “Tem de torcer para o Brasil.”
O bairrismo sempre foi uma de suas inúmeras qualidades. Isso não era válido somente para o futebol. E nós aprendemos.
Do nosso primeiro dia do Colégio Antônio Vieira: 3 de novembro de 1946.
Dos bailes de carnaval do clube Cruz Vermelha. Da Queima de Judas e das festas de S.João. Dos foguetes e balões. Da história do balão de 16 metros , feito por ele, que foi notícia de jornal. De sua alegria e suas brincadeiras. Do seu vigoroso aperto de mão.
Adorava fazer surpresas.
Das arraias sem linha temperada.
Das latas de goiabadas ganhas no jogo de dominó e das caixas de fósforo ganhas no jogo de agache.
De sua letra. A caligrafia mais bonita do mundo!
Do dia 3 de julho de 1951, quando me apresentou ao Dr. Mário Gomes, meu primeiro diretor.
De 1954. Dia que nos acordou com os olhos brilhantes de alegria com um jornal na mão: “vocês dois passaram no vestibular !!! ”
Da sua capacidade de ser querido pelas pessoas.
Do seu espírito comunitário. Do seu bom relacionamento com as autoridades que lhe permitia, sem ser político, conseguir melhorias e serviços para o nosso bairro.
Lembro-me do dia que, conseguida por ele, a água encanada chegou à rua onde morávamos.
Do seu caráter, da sua honestidade.
Do orgulho e zelo pela sua profissão. Do ouro que por suas mãos ficava mais brilhante. Das joias que sabia fazer e das pedras preciosas, para ele as mais belas que lapidou ao lado de sua Núbia, que foram os seus filhos. De ouvir chamá-la carinhosamente de minha filha. De vê-lo andar grudado com ela na base do “só vou se você for.”
Carinhoso e delicado com todos, mas austero quando necessário.
Das festas das suas Bodas de Prata e das suas Bodas Ouro. Dos seus oitenta anos. Dos seus noventa anos. Dos seus noventa e três anos.
* Almir Santos é engenheiro civil e escritor. Filho de Álvaro Desidério dos Santos