sexta-feira, 12 de maio de 2017

Zélia Duncan celebra os 50 anos da Tropicália

Sérgio Roveri*
A primeira benção à escolha de Zélia Duncan como protagonista de "Alegria Alegria" foi dada antes mesmo da estreia deste musical sobre a Tropicália marcada para amanhã no Teatro Santander, em São Paulo. "Quando soube que Zélia seria a estrela do projeto, Caetano Veloso se mostrou feliz e tranquilo quanto ao resultado", disse o diretor Moacyr Góes, ele próprio o maior entusiasta do trabalho da cantora. "Zélia Duncan sempre foi o norte deste projeto. Escrevi o musical tendo sempre em mente que ela estaria à frente do elenco."
O aval de Caetano, que não costuma ser desprezível qualquer que seja o assunto em pauta, ganha importância especial neste caso, já que é de sua autoria a maioria das 24 canções executadas ao vivo durante as quase duas horas de espetáculo - há ainda, em número consideravelmente menor, composições de Gilberto Gil, Tom Jobim, Luiz Gonzaga e Roberto Carlos.
Zélia Duncan não está apenas à frente do elenco: quando as cortinas se abrem para o número inicial, a cantora de 52 anos é vista sobre um platô a cerca de quatro metros acima do chão, à direita do palco. É desta posição estratégica que a Zélia, trajando bata feita com centenas de fitinhas do Senhor do Bonfim, usa as mãos para conduzir, num misto de narradora e comandante, a cena que se desenrola sob seus pés.
"Estou aprendendo um pouco a cada dia", diz a cantora num intervalo dos ensaios. "O que faço aqui é um exercício de entrega. O diretor orienta esse trabalho com tanta doçura, que não me dou conta do risco que estou correndo ao assumir este papel."
Não se pode dizer que "Alegria Alegria" seja a estreia de Zélia Duncan no teatro. Entre 2011 e 2012 ela correu o país com o espetáculo "Tô Tatiando", espécie de concerto músico-teatral baseado na obra do compositor Luiz Tatit, no qual o texto tinha uma relevância maior que as canções. Sob a direção da atriz Regina Braga, Zélia tinha, em "Tô Tatiando", uma quantidade de texto ainda maior do que se viu obrigada a decorar agora em "Alegria Alegria".
"Aquele espetáculo foi um divisor de águas na minha carreira. Depois de 'Tô Tatiando', nunca mais vi o palco da mesma maneira", afirma. "Mais que isso, até: nunca mais vi a minha carreira da mesma maneira. O que não quer dizer que esteja abrindo definitivamente novo rumo na profissão. Sou uma cantora que, no momento, está trabalhando em um espetáculo teatral, já que teatro sempre foi uma das minhas paixões. Mas não sei como serão as coisas daqui a seis meses."
Apesar da importância que "Tô Tatiando" teve em sua carreira, a cantora afirma não ter sido esse o único trabalho que ajudou a pavimentar o caminho que a conduziria ao musical "Alegria Alegria". "Antes do 'Tatiando' veio minha parceria com os Mutantes, entre 2006 e 2007. Tocar com eles, que também tiveram importância no tropicalismo, foi como tomar um ácido cujo efeito se prolonga até hoje. É uma viagem que ainda não terminou", diz. "Agora sei que o risco aqui é outro, mas conheço o Moacyr Góes há tanto tempo e confio tanto nele que, caso eu venha a cair, sei que vou cair gostoso."
Em "Alegria Alegria", que chega aos palcos quando a Tropicália comemora 50 anos, Zélia não responde por um personagem fixo. Ela transita por entre os 13 atores do espetáculo fazendo uma costura cênica, uma anfitriã incumbida de conduzir uma narrativa que se apropria da música para esboçar retrato social, econômico e, acima de tudo, cultural do Brasil. Não apenas do Brasil do fim dos anos 60, quando o movimento aflorou, mas do país onde vivemos hoje. "Foi trabalhoso, mas fácil ao mesmo tempo, transportar a Tropicália para o Brasil do século XXI", diz Góes, que além da direção responde pelo roteiro.
"Digo que foi fácil porque os clássicos preservam a juventude, e as 24 canções escolhidas são clássicos indiscutíveis. São músicas que tratam de determinados valores que não morrem. Os tropicalistas não produziram apenas aventura musical, produziram a contracultura e nos apresentaram a ela."
Nessa primeira experiência com musicais, Góes, que já dirigiu duas novelas na Rede Globo, dez filmes e perto de 50 peças, afirma ter se afastado do didatismo e de uma cronologia que presenteasse a trama com começo, meio e fim. "Isso nem seria condizente com a Tropicália, movimento que nunca foi obediente às normas", afirma. Vindo de uma família de intelectuais de esquerda - seu pai foi o educador e escritor Moacyr de Góes - Moacyr Góes era obrigado, na infância, a se esconder no quarto da empregada para ouvir as canções da Tropicália, já que na casa o movimento, por ser considerado americano demais, havia sido sumariamente banido.
"Escrevi 'Alegria Alegria' para dar voz à paixão que sinto pela cultura e pela diversidade", afirma. "Estamos vivendo um momento muito difícil, por isso acredito que o espetáculo sinaliza que é possível um renascimento. Eu quis trazer um pouco de esperança, justamente por meio da diversidade. Estas canções são uma ode ao que temos de melhor."
*Valor Econômico - Cultura & Estilo

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