sábado, 6 de dezembro de 2014

A Casa do Rio Vermelho, abrigo da baianidade

Aninha Franco*
Um amigo, recentemente, descobriu um prazer que alguns de nós desfrutamos de nascença, quando participou da festa de aniversário da esposa de um pescador na Casa de Yá. Ele assistiu à baianidade legítima. Para desfrutá-la e, mesmo, para entendê-la, é preciso dispor de sentidos sensíveis, como os mencionados por Bilac em sua relação com as estrelas. “Amai para entendê-las, pois só quem ama pode ter ouvidos capaz de ouvir e de entender estrelas”. Nem todos merecem isso. 
Daí, então, há humanos nascidos na Bahia que negam ou renegam a baianidade. E nascer na Bahia não é condição essencial para entender ou criar baianidade. O argentino Carybé (1911-1997) só chegou aqui para tornar-se baiano de nascença em 1938, e se foi dentro do Axé Opô Afonjá, fulminado por um infarto, lamentando com baianidade: “Me fodi!”.
 Os primeiros registros da baianidade são de Gregório de Mattos (1636-1696), poeta padroeiro dos pensadores baianos que, advirto, só foi publicado na íntegra em 1968, levando o responsável, Luiz Henrique Dias Tavares, à prisão pela publicação dos inéditos, e causando a fuga de James Amado, seu organizador, para evitar a prisão. Abalaram a colônia!
 Porque a baianidade sempre foi combatida pela mentalidade colonial, pelo eurocentrismo, pelo socialismo arcaico, esse parasita que enramou nas pedras do Muro de Berlim, caído em 1989. Para combatê-los, a poesia de Luiz Gama (1830-1882), as obras de Manuel Querino (1851-1923) e Edson Carneiro (1912-1972). Querino, de uma importância que a Bahia e o Brasil ainda não dimensionaram. E, da década de 1910, poucos anos depois do golpe republicano, Jorge Amado (1912-2001), Dorival Caymmi (1914-2008) e Carybé, agentes da baianidade do século 20, predecessores de Maria Bethânia, Glauber Rocha, Roberto Mendes, Waly Salomão, Antônio Risério, Gerônimo e Ildázio Tavares, e alguns outros felizes, capazes de entender, amar e defender a baianidade.
 Até os anos 1970, essa baianidade que está nos textos, na música, nas artes visuais e no cinema era plena e visível nas festas de largo iniciadas em 4 de dezembro e finalizadas no Carnaval, no próprio Carnaval do Centro Histórico, nos Mercados e no cotidiano da cidade e do Recôncavo. Nos anos 1980, a Bahia soterrou quilos de baianidade com o péssimo gosto de seus habitantes, ocupantes de uma Miami soteropolitana, distantes dos patrimônios mais preciosos do território.
 A Baía de hoje está feia. Falta-lhe o charme sedutor de suas festas, de seu carnaval popular, de sua arquitetura, de suas criações artísticas, mas reações como A Casa de Jorge Amado, pensada e realizada por Gringo Cardia, chega neste momento estéril para mostrar a beleza da baianidade vista e escrita por Amado, e cantada por seus adoráveis companheiros de barco, Caymmi, Carybé e Calazans, reagindo àqueles que por não terem sentidos para amar e ouvir a baianidade, tentam boicotá-la com as ferramentas enferrujadas, às vezes com dinheiro público, da mentalidade colonial.  
*Escritora e dramaturga
** Artigo originalmente publicado no site Bahia Notícias

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