sábado, 4 de outubro de 2025

Consuelo Pondé, uma vida dedicada à Bahia


Jaime Nascimento*

A presidente perpétua do Instituto Geográfico e Histórico da Bahia, no dizer do professor Edivaldo Boaventura, seu dileto e fiel amigo por mais de 50 anos, faleceu nesta Cidade do Salvador, ou da Bahia para muitos, na manhã de 14 de maio de 2015. Diria que esperou que se completassem os 121 anos de ininterruptos serviços prestados à Bahia pelo IGHB, para finalmente partir para o outro lado da vida.


Nasceu nesta mesma cidade, a que tanto amou e defendeu, a 19 de janeiro de 1934, terceira dos nove filhos do casal Maria Carolina Montanha Pondé e Edístio Pondé. Graduou-se em Geografia e História pela Universidade da Bahia, tornando-se depois mestre em Ciências Sociais e especialista no estudo da língua Tupi. Foi discípula e sucessora do professor Frederico Edelweiss, a quem substituiu no ensino da língua primeira na Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade Federal da Bahia.

Alternou a carreira de professora e pesquisadora com a de gestora pública em diversos órgãos e entidades, como o Departamento de Antropologia e Etnologia e o Centro de Estudos Baianos da UFBA, onde lutou bravamente pela preservação do seu rico acervo. Diretora da Associação Baiana de Imprensa – ABI; Membro do Conselho Permanente da Mulher Executiva e do Conselho Geral da Associação Comercial da Bahia; Diretora da Casa de Ruy Barbosa da Bahia e Diretora do Arquivo Público da Bahia.

Mas sem a menor sombra de dúvida foi na presidência do Instituto Geográfico e Histórico da Bahia – IGHB, a mais antiga instituição cultural do estado da Bahia, com 121 anos de funcionamento ininterrupto, desde a sua fundação em 13 de maio de 1894, que a professora Consuelo Pondé de Sena exerceu em total esplendor a sua capacidade de liderança e realização. Foi na Casa da Bahia [IGHB], instituição que frequentou desde a infância, pois para lá era levada por seu pai, que ela pode se dedicar a duas de suas grandes paixões: a História da Bahia, de sua capital, das mulheres e homens que se notabilizaram através dos séculos. E também aos fatos e eventos do processo de Independência do Brasil na Bahia, e suas comemorações no dia Dois de Julho.

Não foi sem muito sofrimento, aborrecimentos e desgaste da própria saúde que a professora Consuelo Pondé se manteve a frente da Casa da Bahia por 19 ininterruptos anos, sendo repetidamente reeleita por cinco mandatos.

Contudo, a sua longa gestão foi a mais frutífera e luzidia de tantas que o IGHB tem vivenciado. Existe um momento anterior e outro posterior à passagem de Consuelo Pondé de Sena a frente dos destinos da Casa da Bahia. Como que a Fênix mitológica, a mais antiga instituição cultural da Bahia renasceu sob o signo da professora Consuelo. Ampliou-se largamente a sua participação na vida cultural baiana e soteropolitana. Congressos, simpósios, seminários, mesas-redondas, palestras, cursos, exposições, publicações, lançamentos de livros. Um sem número de atividades que se tornaram frequentes, e para as quais acorriam o público mais variado, desde os jovens estudantes universitários, a pesquisadores renomados e pessoas interessadas na história.

A cooperação, o diálogo e o estreitamento de relações com instituições afins, se deram em plano local, estadual, regional, nacional e internacional. Assim o comprovam os trabalhos realizados em parceria com o Gabinete Português de Leitura da Bahia e com o próprio Consulado Geral de Portugal na Bahia.  Com o Museu AfroBrasil de São Paulo; com a Casa da Áustria na Bahia; com diversos Institutos Históricos de todo o país – notadamente o Instituto Histórico Brasileiro e o Instituto Histórico de Sergipe. De igual maneira foi ampliado de forma consistente e qualificada o quadro de sócios brasileiros e estrangeiros.

O patrimônio material mereceu especial atenção, o verdadeiro Palácio em que se constitui a sede do IGHB foi paulatinamente modernizado. Rampas e corrimões de acesso foram instalados na entrada; elevadores; sanitários no andar superior; copa; alojamento e sanitário para os funcionários; sistema de monitoramento eletrônico; instalação de sistema de informática; contratação de sistema de segurança e vigilância remoto; modernização do sistema de iluminação e de som do auditório Bernardino de Souza. Foi criado o Setor de Geografia, a cargo do professor Guarani Valença de Araripe; o acervo cartográfico e fotográfico foi digitalizado e cadastrado. Bem como o conjunto das “Cadernetas de Campo” do engenheiro Teodoro Sampaio, que teve as suas cinzas transladadas e hoje se encontram em urna funerária no Patheon Pedro Calmon. Todo o acervo mobiliário, juntamente com a pinacoteca, foi identificado, descrito e catalogado. O rico acervo bibliográfico da Biblioteca Ruy Barbosa foi sistematicamente tratado, restaurado e conservado. Os seus mais de 30 mil títulos, foram incluídos em moderno sistema de catalogação digital e disponibilizados na página eletrônica do IGHB na internet. Sendo possível com isso consultá-lo de qualquer parte do mundo. Ao lado disso, publicou-se o Catálogo de Obras Raras, instrumento de grande importância para a preservação das mesmas.

Dona de uma personalidade invulgar, naturalmente marcante. Alternava momentos da mais contagiante alegria, simpatia e desprendimento com outros de absoluta explosão. Baiana sincrética se dizia filha de Yansã Bále, a senhora dos raios, ventos e tempestades, também chamada de Oyá, Bamburucema, Kaiango, Matamba. Se tal afirmação provinha de revelação feita pelo Jogo do Ifá, ou apenas da percepção da evidente semelhança que existia entre as suas características pessoais com as da divindade da religião afro-brasileira, não sei dizer. Contudo, foi por essa razão que a professora criou uma das tradições do seu governo à frente do IGHB – o Caruru de Santa Bárbara, servido todo dia 4 de dezembro no horário do almoço. Ocasião em que ela invariavelmente se trajava de vermelho, cores atribuídas à Santa Católica e também ao Orixá.

Não descuidou de nenhuma das dimensões do legado e do ímpar e riquíssimo acervo do Instituto Geográfico e Histórico da Bahia – IGHB. Razão pela qual se bateu incansavelmente, através de seus artigos nos jornais e pessoalmente, com políticos e empresários, que esquecidos de suas obrigações para com a sociedade da qual fazem parte, negaram – e negam – o devido e merecido apoio ao IGHB. De alguns desses embates eu fui testemunha e partícipe. Em uma dessas ocasiões, servi como mensageiro de um “cartão de agradecimento”, que ela escrevera de próprio punho, para uma certa vereadora de Salvador, que se dizia defensora das questões ligadas aos afrodescendentes. Mas que de forma grosseira e mal educada não se dignou a responder aos reiterados pedidos de ajuda para a realização de um seminário em memória do primeiro homem negro a se eleger vereador em Salvador, o ilustre filho de Santo Amaro da Purificação Manuel Raimundo Querino, nobre e valoroso por seus próprios méritos.

Foi em sua gestão, e em decorrência da sua paixão pela história da Independência do Brasil na Bahia, que os símbolos maiores do Dois de Julho, o casal de caboclos e seus carros emblemáticos, passaram por minucioso processo de restauro. Conduzido pelo professor José Dirson Argolo da Escola de Belas Artes da UFBA. Também em sua gestão, pela primeira vez, tais emblemas do amor cívico dos baianos deixaram seu local de descanso no Panteon da Lapinha, no ano de 2004, para tomar lugar na exposição Brasileiro, Brasileiros do Museu AfroBrasil, no Pavilhão Manuel da Nóbrega no Parque do Ibirapuera, em São Paulo. Foi ainda por sua permanente luta que a data maior dos brasileiros baianos foi reconhecida como data nacional através de projeto de autoria da deputada Alice Portugal. Contudo um dos seus sonhos, projeto acalentado por muitos anos, ficou sem ser concretizado. A construção do Memorial ao Dois de Julho, a ser edificado em substituição ao Pateon da Lapinha.

*Jaime Nascimento, historiador e sócio do IGHBa 

Consuelo Pondé - Dos anos 1950 a 1952



Consuelo Pondé*
Concluído o curso ginasial no D. Anfrísia, que não havia ainda instalado o colegial, tive, por imposição paterna, matricular-me nas Mercês, porquanto, meu pai não desejava, nem permitia, que eu fosse estudar no Colégio Central, povoado de irrequietos rapazes.Lúcia, minha irmã, não recebia qualquer tipo de censura. Era, sim, um modelo de discrição, bom comportamento e aplicação aos estudos.

Por esse motivo, lá fui eu para um colégio de madres ursulinas, muitas delas francesas ou de língua francesa. Confesso que não me importei com a troca estratégica da minha família. Sabia que, longe dos rapazes, ficaria ao abrigo de mentiras e más interpretações.

O Colégio Nossa Senhora das Mercês desfrutava, então, de grande prestígio educacional e social.

Frequentado pelas moças da alta sociedade, era um espaço privilegiado de acolhimento da grã-finagem da Barra, Graça, Canela e outros bairros mais chiques, dos hoje denominados vips ou socialites.

Claro que morando do outro lado da cidade, sempre em Nazaré e, naquele momento, na Ladeira do Arco, ficasse um pouco “constrangida” em conviver com essas das moradoras das áreas nobres de Salvador.

Talvez, seja interessante informar que, os chiques, consideram os demais, fora do seu circuito, verdadeiros “índios”, forma de discriminar quem não morava por aquelas bandas. Mas, pouco me importei com esse “bulling”. Era muito disposta, topava discussão e não me importava com o desdém das “deslumbradas”.

Tanto isso é verdadeiro que minha fama de desabrida já me acompanhava desde D. Anfrísia. Lembro-me que algumas meninas das Mercês vinham até a minha sala, de primeiro ano colegial, para saber quem eu era. Parece que estou vendo Maria David de Azevedo chegar à porta da sala em que me encontrava e indagar quem era a “maluquinha” Consuelo Montanha Pondé, cuja fama de traquina corria longe. Tenho absoluta certeza de que fiquei muito orgulhosa por ter sido logo destacada, embora não fosse lá de muito estudo. Preferia criar um monte de coisas e repassá-las para as meninas atônitas diante de tantas informações. Era muito grande o poder da minha imaginação e até hoje “driblo” muita gente, contando coisas inverossímeis. O pior é que muita gente acredita.

Mas entre minhas colegas daquele tempo, 1950 a 52, havia algumas brilhantes. No Clássico, a que eu integrava, estava a “estrela maior”, Zilma Gomes Parente, recém chegada de Niterói. Uma inteligência e um preparo raros, que ela jamais economizou para ajudar as companheiras mais fracas. Até hoje, comove-me a sua simplicidade genuína e seu desapego em repartir o que sabe. Para mim, é um paradigma de mulher completa. Educada, gentil, prestimosa, amiga.

No científico, pontuava Sônia de Coni Campos, que saiu do colégio pouco tempo depois para casar-se, garota ainda, com Fernando Wilson Magalhães, com quem teve seis filhos homens, todos vitoriosos. Cumprida sua missão de mãe de família, voltou aos estudos e hoje é psicanalista de sucesso.

Fiz excelentes amigas nas Mercês. Branca Maciel Hortélio, amiga irmã, também não primava pela aplicação. Era muito revoltada por ser aluna do internato, não fazendo boas referências ao que sofreu das freiras. Aurora Sarno, Maria José Peixoto (Zezé), Mona Harfush, Thereza Perazzo, Florentina Silva Santos, Léa Sarno, Therezinha Magalhães Cordeiro, Nadja Cruz Andrade, Mab Gomes Costa, Thereza Parga, Alzira Moreira, Maria José Freire de Carvalho, Wanda Dias e outras tantas que não me recordo no momento, faziam parte de dois cursos distintos, Clássico e Científico, reunidos apenas em determinadas aulas.

Bem, no momento, é o que posso recompor, só puxando pela memória para lembrar outros nomes. *Falecida em 14 de maio de 2015, Consuelo Pondé de Sena, foi professora, historiadora, socióloga, antropóloga, Consuelo Pondé de Sena graduou-se em Geografia e História pela Universidade Federal da Bahia (UFBA), se especializando, mais tarde, no estudo da língua Tupi. Presidindo o IGHB por 19 anos, a historiadora sempre expressou sua paixão pela história da Bahia e pelo Dois de Julho.

sexta-feira, 3 de outubro de 2025

Adeus Itaparica


João Ubaldo Ribeiro*

Como todos os anos, vim a Itaparica, para passar meu aniversário em minha terr, na casa onde nasci. Casa de meu avô, coronel Ubaldo Osório, que fez pouco mais na vida que amar e defender a ilha e seu povo.

De lá para cá, muito se tem perpetrado para destruí-los física ou culturalmente e há nova tentativa em curso. Trata-se da anunciada construção de uma ponte de Salvador para cá. Isso é qualificado, por seus idealizadores, de progresso.

Conheço esse progresso. É o progresso que acabou com o comércio local; que extinguiu os saveiros que faziam cabotagem no Recôncavo; que ao fim dos saveiros juntou o desaparecimento dos marinheiros, dos carpinas, dos fabricantes de velas e toda a economia em torno deles; que vem transformando as cidades brasileiras, inclusive e marcadamente Salvador, em agregados modernosos de condomínios e shoppings acuados pela violência criminosa que se alastra por onde quer que estejamos enfurnados, ilhas das quais só se sai de automóvel, entre avenidas áridas e desertas de gente.

Também conheço os argumentos farisaicos dos proponentes da ponte, ávidos sacerdotes de Mamon, autoungidos como empresários socialmente responsáveis. Na verdade, sabem os menos ingênuos, eles se baseiam em premissas inaceitáveis, tais como uma visão imediatista, materialista e comprometida irrestritamente não só com o capital especulativo, que já está pondo as mangas de fora no Recôncavo, como aquele que investe aqui usando os mesmos padrões aplicados em PagoPago ou na Jamaica. A cultura e a especificidade locais são violentadas e prostituídas e o progresso chega através do abastardamento de toda a verdadeira riqueza das populações assim atingidas.

As estatísticas são outro instrumento desses filibusteiros do progresso que em nosso meio abundam, entre concorrências públicas fajutas, superfaturamentos, jogadas imobiliárias e desvios de verbas. Mas essas estatísticas, mesmo quando fiéis aos dados coligidos, também padecem de pressupostos questionáveis. Trazem à mente o que alguém já disse sobre a estatística, definindo-a como a arte de torturar números até que eles confessem qualquer coisa. E confessarão, é claro, pois Mamon é forte e sempre esteve na crista da onda.

Mas não mostrarão que esse progresso é na verdade uma face de nosso atraso. Atraso que transmutará Itaparica num ponto de autopista, entre resorts, campos de golfe e condomínios de veranistas, uma patética Miami de pobre. E que, em lugar de valorizar o nosso turismo, padroniza-o e esteriliza-o, matando ao mesmo tempo, por economicamente inviável, toda a riqueza de nossa cultura e nossa História. Quem não é atrasado sabe disso.

Para não cometer esse tipo de atentado é que, em Paris, por exemplo, não se permite a abertura de shoppings onde isso possa ferir o comércio de rua tradicional. Tampouco, em Veneza, as gôndolas foram substituídas por modernas lanchas. Num país não submetido a esse estupro socioeconômico e cultural, os saveiros seriam subsidiados, as antigas profissões, o artesanato e o pequeno comércio também. Exercendo a vocação turística de toda a região, teríamos razão em nos mostrar com tanto orgulho quanto um europeu se mostra a nós. Mas nosso destino parece ser acentuar infinitamente a visão que enxerga em nós um país de drinques imitando jardins, danças primitivas, pouca roupa e nativas fáceis.

Adeus, Itaparica do meu coração, adeus, raízes que restarão somente num muro despencado ou outro, no gorgeio aflito de um sabiá sobrevivente, no adro de alguma igrejinha venerável por milagre preservada, na fala, daqui a pouco perdida, de meus conterrâneos da contracosta. Sei em que conta me terão os que querem a ponte e não têm como dizer que só estão mesmo é a fim de grana, venha ela de onde vier e como vier. Conheço os polissílabos altissonantes que empregam, sei da sintaxe americanalhada em que suas exposições são redigidas e provavelmente pensadas, como convém a bons colonizados, já ouvi todos os verbos terminados em “izar” com que julgam dar autoridade a seu discurso.

É bem possível que a ponte seja mesmo construída, mas, pelo menos, não traio meu velho avô.

* Jornalista, escritor, foi membro da Academia Brasileira de Letras

* Artigo publicado no jornal A Tarde, em 22 de janeiro de 2010