sexta-feira, 18 de setembro de 2020

João Mangabeira, um Socialista


Antonio Paim* 
 Político consagrado na República Velha, João Mangabeira evoluiu na direção do socialismo democrático. Muito ligado a Rui Barbosa, seria marcado pela ênfase que Rui passou a atribuir à questão social. Até mais ou menos a época do Estado Novo, contudo, essa adesão correspondia a uma espécie de desdobramento de postura humanista. A experiência dos anos 1930 e do Estado Novo é que iria despertá-lo para a necessidade de ser estruturada no País uma alternativa socialista de cunho nitidamente democrático, dado o fato de que essa corrente assumira, sobretudo em decorrência da ascensão de Getúlio Vargas, feição francamente autoritária. Baiano de nascimento, jurista e advogado de certo prestígio, começou a envolver-se na política – sem afastar-se do exercício da advocacia –, em 1906, quando completou 26 anos. Em 1909 começou uma atribulada carreira como deputado federal. Nas duas décadas seguintes envolveu-se em todas as principais questões típicas da República Velha, notadamente a praxe do reconhecimento (e a degola) de mandatos; as duas campanhas de Rui Barbosa à presidência; o envolvimento do País na Primeira Guerra Mundial; a situação de permanentes estados de sítio que o País vivenciou nos anos 1920; a Reforma Constitucional de 1926 etc. Assim, quando eclodiu a Revolução de 1930, era um nome consagrado no cenário político nacional, além de jurista de reconhecida competência. Devido a isto, participou da famosa Comissão do Itamaraty, a qual foi atribuída a missão de elaborar o projeto de Constituição que seria tomado como referência pela Assembleia Constituinte de 1934. Mangabeira elegeu-se para a Constituinte e passou a integrar a Câmara dos Deputados após promulgada a Constituição. Seguiram-se anos de extrema polarização no País, com choques de rua entre comunistas e integralistas, processo que culminaria com a insurreição de novembro de 1935, promovida pelos comunistas em quartéis da Capital da República e de alguns Estados, rapidamente esmagada. Serviu de pretexto para a decretação do Estado de Guerra, que suspendia as garantias constitucionais. Vargas iria valer-se dessa prerrogativa para prender os parlamentares que se destacavam como seus oposicionistas, entre estes João Mangabeira. Introduziu-se tribunal de exceção (Tribunal de Segurança Nacional) que condenou os parlamentares a variadas penas, sob a alegação de que seriam uma espécie de ponta de lança dos comunistas. Mangabeira foi condenado a três anos. O tribunal militar reduziu-lhe a pena. Ao todo ficou preso de março de 1936 a junho de 1937. Retornou à Câmara que, entretanto, foi fechada logo adiante pelo golpe de Estado de novembro, que instituiu o Estado Novo. Na fase de redemocratização do País constituiu, com outros intelectuais, a Esquerda Democrática, que iria fazer parte da União Democrática Nacional. Esse acordo terminou logo depois das eleições (dezembro, 1945). Em agosto de 1946, a Esquerda Democrática transformou-se no Partido Socialista Brasileiro (PSB). O programa do PSB foi escrito por um notável grupo de intelectuais, entre os quais sobressaíam João Mangabeira, escolhido presidente da nova agremiação, e Hermes Lima (1902-1978), eleito representante do PSB à Assembleia Constituinte de 1946. Mangabeira conquistaria mandato somente na eleição complementar realizada após a promulgação da Constituição, em 1947. O programa do PSB reiterava, sempre que oportuno, seu inequívoco compromisso com o sistema democrático-representativo. Antes de mais nada, deixava claro que a aplicação dos princípios que preconizava não se constituiria “em solução de continuidade na história política do País, nem violência aos caracteres culturais do povo brasileiro”. Desse modo, rompeu frontalmente com a tradição, emergente nos anos 1930, de “passar o País a limpo”, “inaugurar os novos tempos” e outras tiradas messiânicas desse tipo. O programa expressava a intenção de preservar a federação brasileira e a autonomia municipal. Todas as principais características da organização democrática do Estado são claramente referidas. O PSB incorporou, como “patrimônio inalienável da humanidade”, as conquistas democrático-liberais, embora as considerasse insuficientes para alcançar a almejada eliminação do sistema econômico que se baseia na “exploração do homem pelo homem”. Se chegasse a alcançar o poder, o PSB preservaria a liberdade de organização partidária. As transformações que almejava introduzir na estrutura econômica do País também são apresentadas de forma equilibrada. Assim, preconizando a “gradual e progressiva socialização dos meios de produção”, entende que somente deverão ser realizadas na medida em que as próprias condições do País o exijam. Ainda mais: a mencionada socialização não era identificada com a posse estatal, não poderia ser efetivada ao arrepio do Parlamento nem excluía a circunstância de que pudessem ser preferidas organizações cooperativas. Tampouco se cogitava da completa eliminação da propriedade privada. O documento evitou a expressão “luta de classes”, dando preferência a “antagonismo de classe”. Finalmente, o PSB não se identificava com nenhuma concepção filosófica nem circunscrevia-se à defesa de determinado grupo social, dizendo-se comprometido com todos que vivem do próprio trabalho. O PSB viria a ser a primeira agremiação no País, de índole socialista, de fato comprometida com o sistema democrático representativo, já que a expressão predominante dessa corrente, desde os anos 1930, revestiu-se de caráter nitidamente autoritário, sobretudo por se achar associada ao varguismo. Ao que parece, contudo, não encontrou ambiente favorável ao seu florescimento. No ciclo do interregno democrático, nunca conseguiu uma representação digna de nota no Parlamento. Como foi referido, Mangabeira seria deputado na primeira legislatura após concluídos os trabalhos da Assembleia Constituinte. Acentuando-se as divergências com a UDN, sobretudo por sua insistência com candidatura militar à presidência, nas eleições de outubro de 1950 concorreu com chapa própria, sendo candidato o próprio Mangabeira. Nessa eleição, Vargas obteve cerca de quatro milhões de votos, enquanto João Mangabeira menos de 10 mil (ao todo, 9.466), o que dá bem uma ideia da pouca expressão alcançada pelo PSB. Sob o parlamentarismo, ocupou a pasta da Justiça. Após a reintrodução do presidencialismo, optou por deixar a função, apesar da intenção de Goulart de mantê-lo no posto. Desde então, afastou-se da política, vindo a falecer menos de um mês após o movimento de 31 de março de 1964, em 27 de abril, pouco antes de completar 84 anos. A ideia de um socialismo comprometido, antes de mais nada, com o funcionamento das instituições mantenedoras da democracia não prosperou. O PSB que se reconstituiu nos dois períodos chamados de reconstituição democrática (1945-1964 e o pós-1985) perdeu a singularidade do socialismo democrático antes caracterizado, afeiçoando-se às agremiações que se tornaram a feição típica, como se mostra nas breves indicações adiante O Partido Socialista Brasileiro foi reorganizado em 1985. No período inicial, foi apropriado por um grupo que optou por transformá-lo numa agremiação de tipo marxista-leninista. A documentação resultante dessa fase foi examinada por Antonio Paim no livro O socialismo brasileiro-1979-1999, editado pelo Instituto Teotônio Vilela. A conclusão do autor é transcrita adiante. A análise precedente e os documentos que a instruem evidenciam que, nos três lustros iniciais, a tentativa de renascimento do PSB fez-se em flagrante contradição com o legado dos fundadores da agremiação em 1947. Os que assumiram tal responsabilidade, mesmo sendo socialistas, a tanto não estavam obrigados. Podiam simplesmente iniciar uma nova experiência, como fizeram os fundadores do PT. Se preferiram identificar-se com o PSB – e até adotaram o mesmo programa –, o que se poderia exigir é que revelassem um mínimo de conhecimento de causa. Ao contrário, o empenho foi dirigido no sentido de estruturar uma organização do tipo stalinista. Nunca causou qualquer constrangimento ao PSB suas alianças públicas com o PC do B, que corresponde precisamente ao absoluto contrário de todos os princípios que norteiam o socialismo democrático. E, mesmo depois da aprovação das novas diretrizes, no Congresso do Cinqüentenário (novembro, 1997) – que revogam a linha até então seguida e dizem expressamente que o PSB não é uma agremiação de classe –, após as eleições de 1998, o PSB formou um bloco com o PC do B na Câmara dos Deputados. No livro de memórias que nos deixou (Travessia, Rio de Janeiro, 1974), Hermes Lima fixou com exatidão o problema enfrentado pela Esquerda Democrática, ao desligar-se da UDN e dar nascedouro ao PSB: distinguir-se tanto dos liberais (UDN) como dos comunistas (PCB). Logo adiante, devido ao clima de histeria anticomunista que se instaurou no País após as eleições presidenciais, de que saiu vitorioso o general Eurico Gaspar Dutra – fechamento do PC; cassação de mandatos dos representantes comunistas; empastelamento de jornais e grande número de prisões – o PSB, já então constituído, tratou de fixar a sua posição independente, sem fazer concessões à falta de liberdades na União Soviética, mas defendendo firmemente o Estado Liberal de Direito em face das sucessivas violações às liberdades fundamentais presenciadas no País. Apesar da complexidade da situação, a impressão que se recolhe da documentação existente é que aquela liderança soube orientar-se adequadamente. Nesse particular, tudo indica que a questão central corresponde à capacidade de distinguir-se do comunismo, tratando-se de agremiação que, a partir mesmo do seu nascedouro, identificou-se com o socialismo democrático ocidental. Subsidiariamente, teria de acompanhar a evolução do socialismo na Europa Ocidental. Na verdade, entre as maiores agremiações socialistas do continente, somente o PS francês mantém-se fiel à bandeira socialista. As demais fizeram uma franca opção social-democrata, isto é, renúncia à utopia da sociedade sem classes e ao entendimento de que o socialismo deveria traduzir-se em estatização da economia. Em 1993, assumiu a presidência do PSB um tradicional líder da esquerda, Miguel Arraes (1916-2005), governador de Pernambuco cassado pelos militares e que, após 1985, voltaria a ocupar aquele cargo. Abandonou o projeto anterior, mas acabaria contribuindo para desfigurar totalmente a agremiação, ao aceitar, em 2002, o ingresso no partido de Anthony Garotinho, que ocupara o cargo de governador do Rio de Janeiro. Esse fato determinou o afastamento de Roberto Saturnino, então senador, que representava justamente a melhor tradição do socialismo democrático. Desde então, o PSB tornou-se progressivamente uma agremiação sem nítida feição própria, engolfada pela geleia geral que passou a representar a base de apoio dos governos subsequentes.