segunda-feira, 16 de março de 2015

Uma luz para Fernando Coni Campos

 Sobre "Viagem ao Fim do Mundo" (1968), primeiro longa-metragem completo de Fernando Coni Campos, o crítico Jean-Claude Bernardet assim escreveu em junho: "Quando vi o filme pela primeira vez, percebi que não havia nada semelhante no panorama cinematográfico brasileiro, que ele abria perspectivas em direção ao cinema-ensaio, à possibilidade de elaborar ensaios em filmes, que o pensamento no cinema não precisava se ater à ficção, que o pensamento no cinema podia recorrer à ficção, entre outros instrumentos".  
Esse olhar tardio de um nome tão forte da reflexão crítica, como Bernardet, é indício máximo do quanto a obra de Coni Campos passou marcadamente na historiografia da produção brasileira, mas foi simplesmente esquecida - ou omitida - nas últimas décadas.

"Ele é um dos segredos mais bem guardados do cinema brasileiro", afirma Ewerton Belico, curador da retrospectiva de Fernando Coni Campos .
Coni foi um foguete também em vida. Nasceu em 1933, na cidade baiana de Conceição do Almeida, filho do médico Owaldo Campos e da professora Isabel Coni. Irmão mais velho de seis mulheres, Sonia, Solange, Lia, Simone, Selma e Cristina, casou-se com Talula Abramo, com quem teve dois filhos, Pedro Abramo e Luiz Abramo. Com a segunda esposa, Eloá Jacobina, teve Helena e Rubens. Morreu em 1988, no Rio de Janeiro, aos 55 anos. Foi escritor, designer, pintor e diretor de sete longas e aproximadamente 11 curtas.

Atuando no interregno entre o Cinema Novo e o Cinema Marginal (ou seja, a partir de meados dos anos 1960 e avançando pelos 70), não se vinculou nem se identificou a nenhum dos movimentos. Um pouco à maneira de Luís Sérgio Person ("São Paulo S.A" e "O Caso dos Irmãos Naves"), fez seu cinema como bem quis e arriscou-se numa autoralidade radical, que mereceu do colega (e ex-assistente) Julio Bressane a definição de um cinema "debruçado sobre si mesmo, se refletindo".

Seguindo com seu trabalho no auge da ditadura militar, Coni Campos enfrentou a censura e teve proibido "Um Homem e sua Jaula" (1969), nunca lançado. Será a pepita do forumdoc, que programou o filme quase como um acontecimento - o que de fato é.

Além deste - e do seminal "Viagem ao Fim do Mundo" (considerado sua obra-prima), que se caracteriza, segundo Belico, por resolver esteticamente uma expressão pessoal, traduzindo tensões que permeiam o filme dentro de um estilhaçamento de referências -, há ainda "Ladrões de Cinema" (1977), que traz Jean-Claude Bernardet como ator, e "O Mágico e o Delegado" (1983), dentre outros longas e curtas. 
"Sem aceitar regras impostas de fora, fez filmes do seu tempo, no melhor sentido que a expressão pode ganhar", registra o crítico Daniel Caetano na orelha do livro "Cinema: Sonho e Lucidez" (editora Azougue), uma compilação de textos escritos pelo ou sobre o cineasta. Na publicação, vê-se um conjunto de nomes tributários ao diretor, como Bressane, Paulo César Saraceni e Arnaldo Jabor.Rever filmes em contextos diferentes sempre traz novidades insuspeitadas.
*MARCELO MIRANDA - Jornal OTempo

Viagem ao fim do mundo
Assistir ao filme 47 anos depois da sua finalização e exibição é no mínimo curioso. Não que a impressão tenha se esvaído, longe disso. O filme ainda continua a ser uma estimulante e alegre viagem pelos confins de um determinado momento na história de um país e de um mundo. mas, da mesma forma que a Lua, o filme tem uma parte iluminada e uma outra parte densa, escura, opaca. Pois Viagem ao Fim do Mundo é uma fotografia em polaróide de um momento fugaz (como todos), mas acolhendo nela uma profundidade de campo absurdamente grande que tenta guardar dentro dela não só o tempo presente, mas ao mesmo tempo o imediatamente anterior, o passado longínquo e indo até o fim dos tempos, onde todas as temporalidades se confundem e o início coincide com o fim.
A estrutura narrativa emula essa busca. Um homem maduro (Jofre Soares), um jovem (Fábio Porchat), uma moça (Karin Rodrigues) e uma jovem senhora (Tallulah Campos, primeira esposa de Coni Campos) entram num avião. O filme transcorrerá no espaço de tempo em que eles entram no avião, decolam, voam, aterrissam e dirigem-se, separadamente, cada um para sua casa. Mas dentro desse tempo, um átimo se comparado mesmo com o decorrer de um simples dia, Fernando Coni Campos tenta capturar a essência da vida inteira desses personagens, e através deles uma essência mais ambiciosa, a do tempo em geral: ir ao fim do mundo através da experiência de ler um livro, ir ao tempo dos conceitos que pautam nossas crenças, recorrer à temporalidade da imaginação como expediente para fugir da frustração sexual...
Mas o que parece acima de tudo interessar a Coni Campos nesse filme vai em outra direção: é o peso do tempo, o modo como cada um emprega seu tempo e se embaraça em usá-lo. Uma viagem de avião de hora e meia: não poderia haver melhor cenário para um embate ontológico entre um tempo que jamais passa – afinal, é tempo demais para ficar sem fazer nada – e o tempo que sempre transcorre – da mesma forma, é impossível em tão pouco tempo construir qualquer laço forte. Eternidade e finitude, dois lados de uma única e mesma moeda. Angústia com o tempo – afinal, há momentos que gostaríamos de ver sempre eternizados e outros que gostaríamos que passassem como uma manada de búfalos, pisoteando todas as nossas frustrações. Por trás de tanta curiosidade com os novos tempos, o embate não é vencido: a freira não consegue resolver sua relação com a instituição à qual faz parte (apesar de manter-se intimamente fiel a sua fé), o homem que recorre à imaginação para despir as mulheres do avião não consegue ter relações com sua mulher, a garota propaganda volta para casa e para o marido a quem engana (tem um breve instante amoroso com o jovem do avião) para viver sua cômoda vida de desentusiasmo controlado. Se os personagens não conseguem vencer o tempo, ao menos ao filme é dada uma segunda chance: a seqüência final com a música de despedida e o planeta em cromaqui. Nem tanto o triunfo da arte sobre o tempo, mas uma tentativa de restituir o equilíbrio emocional da balança: não é só porque nossos personagens não conseguiram que devemos desistir dessa empreitada.
Se existe, contudo, além disso tudo algo que é apaixonante em Viagem ao Fim do Mundo, é a estrutura de composição do filme. Pois Viagem é radicalmente diferente de tudo que estava sendo feito no momento em cinema (exceto talvez por Godard, mas esse lado naquele momento ainda permanecia bastante pouco comentado em relação a suas outras revoluções formais). Fernando Coni Campos realiza em seu primeiro longa-metragem um filme inteiramente constituído de colagens. Chesterton, Machado de Assis, Hélio Pellegrino, T.S. Eliot. Cinejornais, revistas de atualidades, livros, músicas. E, mais impressionante, uma personagem que fala unicamente pelos escritos de Simone Weil (antecipação em anos dessa moda literária que utiliza como personagens os grandes escritores em situações prosaicas). Menos um descontrolado amotoado de citações do que a construção de uma tessitura de retalhos que constróem um novo significado a partir de signos já existentes, Viagem ao Fim do Mundo é um filme experimental na forma (além de ser todo feito de recortes ainda abre espaço para pequenas historinhas – como a provocação sobre Cuba – sem qualquer ligação com a tênue narrativa que se esboça) e instigante naquilo que tem a dizer. Genuína preciosidade, e é uma pena que sua voga esteja hoje restrita a um pequeno número de cinéfilos entusiastas.
Ruy Gardnier

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