segunda-feira, 19 de agosto de 2013

Menos festa e mais arte

Gil Vicente Tavares*
O recente questionamento sobre a autoria da frase “Salvador é uma cidade devastada pela alegria”, na coluna de James Martins, no site do Teatro NU, vai muito além da autoria. Está no imaginário dos que querem cometer o grave crime de pensar essa cidade – algo ausente, em sua essência, nos políticos, por exemplo – e revela uma angustiante unanimidade e uma acachapante realidade trágica. Haja vista que eu havia escrito uma primeira versão desse artigo, semana passada, onde eu citava a frase sem saber a fonte; mas estava muito ruim e descartei-o pra tentar reescrever. 
Numa das grandes cenas do cinema, Luchino Visconti, em O leopardo, cria um baile com a aristocracia siciliana: as pessoas dançam desesperadamente, vão suando, vão desarrumando-se e se consumindo. A crise e a decadência evidenciadas nessa festa revelam um desespero autodestrutivo e espelham pra mim a festividade soteropolitana, responsável por boa parte da devastação cultural que vimos sofrendo há tempos. 
Chega de festa. Estamos vivendo o paroxismo dessa devastação, diretamente associado à Teoria das Janelas Partidas. De forma rápida e superficial, essa teoria constata que um prédio com janelas partidas estimula que outras sejam partidas, também, depois o prédio depredado. Há um “efeito bola de neve” destrutivo que, em Salvador, pode ser evidenciado na alegria festiva do soteropolitano; num processo “descivilizatório”, retornou à barbárie 
São João, 2 de Julho, 4 e 8 de dezembro, Lavagem do Bonfim, 2 de fevereiro e carnaval. Nossa tradição de festa de rua, de largo é marca indelével e necessária da nossa cultura. Há que se controlar os excessos, a estrutura, a limpeza, segurança, mobilidade urbana, barulho, tudo que uma festa dessas pode acarretar. São cerca de quinze dias; e chega. 
Salvador tornou-se uma  cidade suja, destruída – “aqui tudo parece que é construção e já é ruína”, diria Caetano – e posso dizer que a cidade merece seu cidadão, e o cidadão merece sua cidade. 
Há que se considerar os dois lados e não entrarei na discussão do ovo ou da galinha. O descaso público com Salvador em todos seus aspectos deixou-nos com uma cidade totalmente esburacada, mal iluminada, sem calçadas, péssima iluminação noturna, transporte gravemente deficitário, poucas árvores, descuido com o patrimônio histórico, selvageria imobiliária. Criamos casamatas, os xópins, onde tudo é lindo, enquanto ao redor as pessoas morrem, os buracos aumentam, a sujeira, desordem e urbanismo entram um diálogo absurdo e desesperador. 
Contudo, há o lado do cidadão. O soteropolitano – em parte por conta disso tudo? – tornou-se (mais?) barulhento, (mais?) egoísta e individualista, (mais?) porco, (mais?) mal-educado (coloco o mais para não parecer que nós éramos lindos, elegantes e polidos antes, há uma raiz comum que nos devasta na origem, mas isso é outro papo). 
O paroxismo, ou talvez o momento onde se é mais evidenciado e exposto esse barbarismo da população de Salvador é, justo, na rua, nas festas, nos carros de posto de gasolina, nos porta-malas abertos com som alto, nas latinhas e embalagens largadas pela rua, o mijo nos muros e postes, a brutalidade e extravagância desagradável decorrentes da bebida. Por que tem que ser regra os arredores da Fonte Nova emporcalhados depois de um jogo? Ou o Porto da Barra depois de um domingo, a Paralela depois de um xou, as ruas depois das lavagens, marchas, efemérides e comemorações? 
Perdemos a sutileza e a delicadeza. Queremos multidão, barulho, bebida, putaria. Há um comportamento típico das civilizações decadentes, que é esse descontrole violento, abusivo e agressivo, uma depravação doentia, uma equivocada transgressão que mais parece autodestruição e perda do senso. É típico, na história, vermos a decadência de um império, civilização ou elite mandante associada a grandes festas, orgias, bebedeiras… 
Chega de marchas, festas, comemorações. Que seja proibido trio elétrico fora do carnaval, que seja proibido isopor nas ruas ao longo do ano, que as pessoas sejam multadas – e haja controle – por sujar as ruas, que haja agentes suficientes para coibir o som alto e a baderna. 
Não aguento mais ver minha cidade devastada. E mais devastada ainda em dias de festa, com trânsitos loucos, sujeira, violência e descontrole. 
Outro dia, saindo da Casa do Comércio, à noite, havia uma festa no meio da rua. Som alto, pessoas bebendo, e passei por eles com a sensação de estar violando uma norma. As pessoas me olhavam com ódio, parecendo querer que eu encostasse nelas para que elas me agredissem. A rua fedia, toda suja, e tudo permitido. Não há lei, não há ordem e a sensação que fica é que tudo pode, tudo vale, e está tudo certo. 
Ao voltar da mesma Casa do Comércio, ontem, vim projetando meu caminho com asfalto perfeito, calçadas bonitas, árvores, iluminação pública eficiente, intervenções urbanísticas e artísticas embelezando as ruas. Seria mais agradável, mais calma e tranquila minha volta à casa. Contudo, depois do quinquagésimo buraco, uma irascibilidade já aflorava-se e uma vontade doida de estar longe daqui, ou sair estapeando políticos, ser estúpido com a pessoa do lado, ou sei lá mais o quê de pior ou mais desagradável. 
 Precisamos dar um freio de arrumação. As potencialidades dessa cidade eminentemente cultural são várias, significativas, contudo obnubiladas pela histeria devastadora dessa alegria que, a meu ver, é mais histeria que alegria. É um baile como o de Visconti, onde todos dançam sofregamente sua própria decadência e destruição.
Já falei, noutro artigo, sobre a opressão que é segregar legitimando a diferença. Alimentamos a população do que, de mais imediato, ela quer. Reforça-se estereótipos, anestesia-se qualquer possibilidade de mudança, e a legitimação de uma cultura pode ser sua própria destruição. A cultura que se fecha em si, gerando uma autossuficiência fictícia, é, em si, um processo de autofagia, se pensarmos no desenvolvimento de uma cidade, de uma população. 
Chega da cultura da festa. A população precisa viver outra cidade. A Salvador das orquestras, espetáculos de dança e teatro, exposições e filmes. Há muito o que se ver, há muito ainda por fazer. É preciso, antes de tudo, perceber que a Arte também pode ser uma festa, e, com Arte, descobre-se que não é preciso barulho, violência, sujeira, erotismo desagradável, multidão e álcool para se ter alegria. 
Claro que pra isso é preciso sensibilização, educação, vontade política e familiar (sim, os pais deturpam seus filhos). É necessário que as gestões da cultura entendam que é preciso reservar espaço para a Arte, visto que atualmente só se pensa em delegados, ONGs, comunidades, minorias: tudo caiu no colo da cultura. A Arte, a qualidade artística, o profissional, a meritocracia são, mais que ignorados, anátemas, elitismo, falta de visão social e sei lá mais o quê. 
A arte, antes de tudo, tem que lutar contra as políticas públicas. O socialismo vesgo que contaminou as pastas de cultura parece não olhar para a excelência artística buscada em regimes latino-americanos ditos de esquerda. Aqui, tudo é pelo social. Mesmo a Arte, que devia ser o diferencial para a sociedade, foi enfraquecida em prol das benesses assistenciais, mas isso é outro papo, também. 
Precisamos de menos festa e mais Arte. Isso é apenas uma das coisas que precisam ser repensadas nessa cidade. Ação impopular? Sim. Alguém compraria essa batalha? Provavelmente não. 
 Precisamos decidir urgentemente se queremos botar a cabeça no lugar ou simplesmente tirar o pé do chão. 
* Artigo originalmente publicado em http://www.teatronu.com/cultura-e-cidade/menos-festa-e-mais-arte/ 
- Gil Vicente Tavares -Encenador, dramaturgo, compositor e articulista. Doutor em artes cênicas e diretor artístico do Teatro NU.

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