quinta-feira, 26 de maio de 2016

Caribé entrevistado por Clarice Lispector



Carybé - (foto: Acervo ©Instituto Carybé)
O feitiço da Bahia começa pela cozinha. Você só se alimenta de comidas sagradas.”



E eu que tinha como um dos objetivos da viagem à Bahia dialogar com Carybé, terminei conseguindo-o no Rio...? Ele esteve dois meses na Europa e passava 
por aqui, rumo a Salvador. E eu o tive à minha frente com seu ar dos mais humanos que já senti: é uma pessoa de fato.

Clarice Lispector – Seu nome é mesmo Carybé?
Carybé – Fui registrado como Hector Bernabó. Carybé é meu nome de artista.

Clarice Lispector – Você é argentino de nascimento, mas brasileiríssimo e, ainda por cima, baianíssimo de coração. Comuo é que você explica seu amor, aliás correspondido plenamente, pelo Brasil?
Carybé – É simples: saí da Argentina ainda criança de colo; depois fui para a Itália (meu pai era italiano) e aos oito anos vim para o Rio. E ainda por cima minha mãe era gaúcha. Quanto à Bahia, foi um namoro comprido. Conhecemo-nos em 1938. Fiquei com a ideia fixa de morar na Bahia e voltei lá por duas vezes, sem poder
 concretizar meu desejo. Até que uma carta vergonhosamente elogiativa de Rubem abriu-me as portas da Bahia na pessoa de Anísio Teixeira, no governo de Otávio Mangabeira. E me deram a tarefa de desenhar durante um ano as coisas da Bahia. Esse ano se estendeu pelos 19 em que estou lá.

Clarice Lispector – Agora, Carybé, você vai por favor me explicar o fascínio da Bahia a que também sucumbi, tanto que só penso em voltar e passar pelo menos um mês trabalhando por lá.
Carybé – Minha linha era sempre uma aventura sul-americana. Fui para o Peru, para a Bolívia, para o Chaco argentino, onde morei com os índios. Mas a Bahia ganhou o campeonato porque é uma cidade viva. Em geral as cidades que têm história, arquitetura – enfim, que viveram desde o começo da América – são cidades-museus. Mas a Bahia tem arte e arquitetura modernas, um povo alegre, simpático, sobretudo bom, ao mesmo tempo que fortalezas, catedrais e o mar que é maravilhoso.

Clarice Lispector – Poucas vezes vi mar mais bonito e mais audacioso que o da Bahia.
Carybé – Salvador é uma cidade que parece encomendada para artistas plásticos, para escritores, cineastas. Enfim, tudo lá é uma espécie de incubadeira para essa gente.

Figuras na praia, © Carybé 1955
Clarice Lispector – É o que eu senti, Carybé: como se uma sereia me chamasse com o seu feitiço.
Carybé – Agora, Clarice, você disse a palavra certa: feitiço. O feitiço é vivo, começa pela cozinha.
Você se alimenta de comidas sagradas. Por exemplo, acarajé é comida de Iansã, que é um orixá-fêmea dos ventos e das chuvas. O caruru é o amalá de Xangô. E quase todos os pratos típicos baianos são a comida dos orixás (santos do candomblé). Depois tem arvoredos que são a morada de encantados (orixás também). E a música de Caymmi, Caetano Veloso, Gil, Tom Zé e muitos outros. Tem sol, tem pescadores, tem o diabo... que não é bem diabo, é Exu, o diabo do candomblé que é de uma travessura diferente da dos outros diabos e, sendo bem tratado, torna-se um amigo inestimável.

Clarice Lispector – No começo de sua carreira como pintor, é verdade que você desenhava muito os botos?
Carybé – Eu trabalhei muito em jornal para poder ter dinheiro e ilustrava livros. Até que pouco a pouco pude me sustentar exclusivamente com a pintura. Isso se deu na Bahia, o lugar onde eu menos imaginava que pudesse viver só de arte.

Clarice Lispector – Mas... e os botos?
Carybé – Os botos, quando mais contato tive com eles, foi ilustrando um livro de Newton Freitas sobre lendas amazônicas. E também numa viagem longa que fiz pelo Amazonas, onde os bichinhos pulavam acompanhando as alvarengas (canoas imensas) e os navios-gaiola. Nunca vi um transformado em pessoa...

Duende da montanha, © Carybé, 1942
Clarice Lispector – Você hoje é chamado pelos ingleses de “o pintor dos cavalos”. E eles compraram nada menos que 40 telas suas... Como eu tenho alucinação por cavalos de todas as espécies, queria saber se você também tem.
Carybé – Tenho, sim, Clarice, é o animal de que eu talvez mais goste. Viajei muito em companhia deles. Agora a coisa de “pintor de cavalos” foi devido ao presente que a Bahia ofereceu à rainha da Inglaterra. Sendo ela também apreciadora de cavalos, o embaixador Russell sugeriu que lhe fosse dado um quadro meu onde figuravam montarias. Agora fiz uma exposição em Londres; em novembro farei outra na Tryon Gallery, com tema indicado, cavalos. Concorrerei com pintores de umas oito nações: ingleses, mexicanos e australianos, entre outros.

Clarice Lispector – Você trabalhou durante sua recente viagem pela Europa? Tomou notas?
Carybé – Fiz umas crônicas ilustradas para o Jornal do Brasil e para A Tarde, da Bahia. Mas o principal trabalho foi ver. Os olhos são a ferramenta da gente. (Os olhos de Carybé são de um castanho-dourado, bem atentos às coisas que o rodeiam: não há perigo de lhe escaparem visões.) E agora estou doido para chegar à Bahia para ver o que acontece.

Clarice Lispector – Chegando lá, qual é a primeira coisa que você pretende fazer?
Carybé – Tomar contato com minhas latas, meus pincéis, e ver o que vai fermentar ou já fermentou das coisas que vi.

Clarice Lispector – Sobretudo o que é que você viu pela Europa?
Carybé – Por exemplo, vi Londres, que foi uma surpresa para mim. É uma espécie de reinado da juventude, da liberdade de viver e de criar. E, depois, a porta de São Pedro, de Giacomo Manzu, as catedrais romanas e góticas, e sobretudo o povo da Espanha, da França, da Itália, da Inglaterra. Essa é a coisa de que eu mais gosto: povo, gente. Em Sevilha, por exemplo, houve um paralelo entre a tragédia e a alegria: a tragédia da Semana Santa e a alegria desbordada na Feira dessa cidade – o mesmo povo com sentimentos opostos. Na Feira é uma alegria de doidos, as moças a cavalo, vinho, castanholas, bailes. Na Semana Santa, o soturno, uma atmosfera de Idade Média, com penitentes e véus negros cobrindo cabeças de mulheres, o canto mais sentido do mundo, que são as saetas que o povo canta para Jesus e Maria.

Enigma das nuvens, © Carybé, 1942
Clarice Lispector – O rosto humano lhe interessa para desenhar?
Carybé – Me interessa demais até, mas não sou retratista. O que mais eu apreendo são gestos do corpo todo, movimentos, maneira de sentar, de andar, de carregar coisas, enfim, a vida humana e a dos bichos. Eu adoro bichos.

Clarice Lispector – Você tem muitos amigos na Bahia – isto é, amigos que você frequenta?
Carybé – Eu graças a Deus não tenho inimigos. Sou muito amigueiro e tenho amigos um pouco pelo mundo todo.

Clarice Lispector – Posso dagora em diante ser considerada por você também sua amiga?
Carybé – Você é minha amiga há muitíssimos anos através de Inês Besouchet, do Marino-Macunaíma, do Jorge Amado, da Zélia, do Rubem e outros amigos comuns. E sobretudo por ter lido o que você já escreveu.

Clarice Lispector – O que me diz você na Bahia dos músicos, pintores, escritores?
Carybé – Está tudo no ar. Não no ar da tevê, como se diz agora, mas no ar mesmo, no sol, e no povo. Na Bahia não há grupos em choque: cada um trabalha como acha que deve ser. Eu penso que é isso que dá essa atmosfera de criação que se respira lá e que nos inspira. É uma coisa misteriosa, Clarice, porque os plásticos, os músicos, os escritores, os poetas brotam com facilidade e com amizade mútua.

Clarice Lispector – Há quantos anos você pinta, Carybé?
Carybé – Tenho 58 anos, pinto desde os 15. Faça a conta.

Clarice Lispector – Por que você escolheu o pseudônimo de Carybé?
Carybé – Tenho um irmão que também é pintor e dava confusão os dois com o mesmo nome. Aí procurei um pseudônimo. Veja você, eu era escoteiro do Clube do Flamengo e pertencia a uma patrulha na qual todos tinham nomes de peixes. E eu era o peixe carybé. Achei o nome sonoro e curto, e adotei-o. E não diga nada a ninguém, mas o carybé é uma piranha ...

Clarice Lispector – Estou aqui morrendo de inveja de você que vai amanhã, tão expressivamente apressado, pra Bahia...
Carybé – Se você quer ir à Bahia para escrever é preciso duas coisas: muita vontade de sua parte, e nós lá pedirmos a Exu que abra os caminhos para a sua ida...

Carybé, 1970 (foto: Klaus Meyer)

Clarice Lispector – Depois que terminei e publiquei romance mais recente, Uma Aprendizagem ou o Livro dos Prazeres, estou inteiramente vazia de inspiração. Mas nisso de inspiração também conto com Exu, que já é meu amigo do peito e vai me ajudar em tudo, entendeu? Exu é poderoso.
Carybé – Pintor nascido na Argentina. Nome artístico de Hector Julio Paride Bernabó. Radicou-se, inicialmente, no Rio de Janeiro depois de ter vivido na Itália até os oito anos de idade. Fixou-se definitivamente na Bahia a partir de 1950, naturalizando-se sete anos depois. Suas obras traduzem a baianidade expressa nas cenas cotidianas e no folclore popular. Destacou-se pela criação de murais, hoje expostos em São Paulo, Rio de Janeiro, Bahia, Montreal, Buenos Aires e Nova York. Fez ilustrações de obras literárias, como O sumiço da santa, de Jorge Amado.
E CARYBÉ ©Instituto Caribé

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