praia do farol da barra
zédejesusbarrêto*
Era uma sexta-feira de dia claro, aquele 29 de março de 1549, quando despontou no azul infindo de céu e mar, na entrada norte da Baía de Todos-os-Santos, a armada portuguesa de três naus, duas caravelas e um bergantim com mais de mil pessoas a bordo, sob o comando do fidalgo Thomé de Souza, a serviço do rei D.João III.
Chegavam com uma missão estabelecida, a cumprir: a fundação de uma cidade, porto e fortaleza, planejada para ser (e seria) a primeira capital do Brasil-Colônia, sede do governo, base de toda a administração e do povoamento das terras portuguesas d’além mar recém descobertas nessa costa atlântica da América do Sul.
Tinham embarcado em Lisboa, com a bênção real, em 1º de fevereiro e vinham determinados, sabiam muito bem onde aportar e o que queriam. Entre a tripulação, alguns nobres, seis jesuítas, navegadores, mais de uma centena de artífices – entre pedreiros, carpinteiros, calafates, oleiros, ferreiros, serralheiros, barbeiros, até cirurgiões… –, trabalhadores braçais e degredados, homens fortes jovens e destemidos aventureiros.
Entre eles, destacava-se uma figura especial, pela missão que lhe fora confiada: o mestre de obras Luis Dias, que trazia consigo um esboço traçado em Portugal do que seria “a cidade do Salvador da Baía de Todos os Santos, que foi a Lisboa da América e competiu, como empório, com Goa e Malaca, erguida por ordem régia, pormenorizada e clara” (cito o autor português Luis Silveira, na obra ‘Ensaio de Iconografia das Cidades Portuguesas do Ultramar’).
A Chegada
Thomé de Souza, o primeiro governador-geral do Brasil, trazia com ele também, naquele longínquo 29 de março, um roteiro detalhado, por escrito e datado de 17 de dezembro de 1548, do que fazer quando aqui chegasse. Todas as instruções de D. João III em forma de um Regimento.
Como estava previsto, Thomé de Souza desembarcou na enseada de águas mansas do Porto da Barra, onde foi recebido de forma cortês e pacífica por um grupo de algumas dezenas de moradores da Povoação do Pereira (ou Vila Velha) – um aldeamento que se estendia pela costa até o alto da Graça criado por Caramuru (Diogo Álvares Correia), seus amigos tupinambás, e pelo inábil capitão donatário Pereira Coutinho (da capitania hereditária da Bahia) que, à chegada da armada, já havia sido enxotado de lá pelos nativos.
À frente do grupo receptivo estava o experimentado capitão-cavaleiro da Casa Real, Gramatão Teles, que já fora enviado antes por D. João III no intuito de preparar o ambiente para a chegada da armada real, ao lado de Caramuru – um portuga que aqui naufragou, bem jovem, por volta de 1510, deu na praia, caiu nas graças dos nativos, casou-se com uma filha do chefe tubinambá, estabeleceu-se e tornou-se um pioneiro no comércio ultramarino do Pau Brasil, dando início também ao processo de miscigenação dos baianos/brasileiros.
O Local
Mas ali, naquele porto tão próximo da entrada norte da baía, não seria o local ideal para a construção da nova cidade – que haveria de ser um porto e fortaleza. Era preciso achar um local mais apropriado, mais protegido, mais estratégico, mais para o interior da baía.
O achado do local exato, hoje a rampa do antigo Mercado Modelo, aquelas águas diante de Igreja da Conceição da Praia, deu-se alguns dias depois do 29 de março de 1549.
Essa data que hoje se comemora, de fato, é a data da chegada de Thomé de Souza com sua armada e não a data da fundação do novo sítio, pois demorou meses até que se erguessem casas e fizessem os arruamentos pioneiros.
A nova urbe seria, assim, construída bem no alto, no cume do morro, cimo de uma escarpa de mais de 60 metros acima do nível das águas, num local de onde se descortinava o horizonte do mar. O sítio escolhido foi cercado de uma forte paliçada de madeira, para evitar o ataque dos índios, e tudo foi erguido a mão em pedra, barro, cal e madeira, sob a diretriz do ‘arquiteto e engenheiro’ Luis Dias, tal e qual fora traçado em Lisboa.
Poderíamos dizer que o traçado original cercado tinha como limites: a Barroquinha, o rio das Tripas que hoje passa por baixo da Baixa dos Sapateiros, o Taboão e a escarpa, com o marzão batendo nas pedras, lá embaixo, onde hoje é o Comércio (o aterro foi feito bem depois).
As Águas E essa é a história verdadeira desta cidade-mãe que tem como referência o mar, as águas, o azul do céu, a luminosidade do infinito. Vocação de mar.
Aqui nessa bacia kirimurê (o nome como os nativos tupinambás chamavam o caldeirão de águas da Baía de Todos-os-Santos) de águas limpas, tépidas e plácidas, doces e salgadas, misturadas, deu-se a grande mescla humana de caboclos nativos, negros africanos, brancos europeus… e depois asiáticos, árabes, judeus… todos que aqui aportaram e bem contribuíram com suas crenças, costumes e fazeres para essa nossa baianidade ou baianice, como queiram.
Porque a Bahia é fruto de mistura. Com muito tempero africano, porque tudo que aqui se fez tem o suor dos negros – construções, comida, hábitos, religião, alegrias, manhas…
A Cidade da Bahia tornou-se uma acolhedora mãe-preta (ou mulata) de colo farto e braços sempre abertos para o mundo. Uma cidade das águas, sempre porto e sempre fortaleza.
Como cantam Gerônimo e Vevé Calazans: ‘Nesta cidade todo mundo é d’Oxum’. Oxum, a divindade das águas doces, das nascentes, da fecundidade. Os aqui nascidos trazem em si a força, a luz, o axé das águas. Disso sejamos cientes. E cuidemos.
O Porto
Durante séculos, Salvador foi o maior entreposto comercial do Atlântico Sul, parada obrigatória dos navegadores que faziam o Caminho das Índias, ida e volta, pelo entorno sul da África. A vida girava em torno do porto. Caravelas, naus de todas as bandeiras, saveiros, mercadorias das índias, novidades da Europa, especiarias, açúcar, fumo, frutas, pescados, a fartura do Recôncavo… E as notícias, as futricas, o sobe e desce dos carregadores, o suor e a sabedoria dos negros. A vida ocorria em função do porto, das águas e dos ventos do mar.
Assim foi se escrevendo a nossa história.
Salvador foi também o ponto mais concorrido da costa brasileira em função do tráfico de escravos africanos – ativo de 1551 à segunda metade dos anos 1800, três séculos desse comércio infame. No início do século XIX a população escrava e afrodescendente era absoluta maioria na cidade. Os negros formigavam pelas ladeiras. Daí ter sido chamada por muitos historiadores europeus de ‘a Roma Negra’ .
A escravidão foi uma ignomínia e deixou nódoas, ainda hoje indeléveis, bem visíveis. Mas, quem sabe, veio da Mãe África também a nossa graça, a nossa diferença, pois a negritude fez de nós uma gente muito especial. Malditas, benditas heranças.
Sim sinhô, e que os orixás, inquices e voduns, divindades ancestrais, todos os encantados das matas e santos do céu nos guardem e protejam… E conservem sã essa Mãe tão amada e tão prenhe de pecados. Preservem suas coisas boas, quantas! Que ela seja sempre um abrigo de encontro das diversidades, todas. Seja essa a nossa singularidade, tão plural.
Espaço de respeitosa convivência humana, de fortes e igrejas barrocas, sobrados e casebres, terreiros e regaços, palácios e shoppings, modernidades e tradições, tantas traduções, quantos ritmos, cores, cheiros, crenças, sentimentos…
Que as diferenças e dessemelhanças aqui se achem em harmonia, sempre.
O Espaço
A Salvador de hoje é uma metrópole. Mais de 3 milhões de habitantes. Uma cidade moderna e desigual. Opulenta para uns e injusta para muitos. A mancha urbana espalhou-se sobre toda a grande península, com duas faces: uma voltada para o mar aberto, atlântica; outra para as águas interiores da baía, maré mansa, áreas de mangue, cênica.
A velha cidade perdeu, sim, alguns encantos, mas preserva íntimos mistérios. Anda à volta com novos costumes, tormentos.
Sem mais espaço disponível ao tranquilo bem viver, sem ter mais para onde crescer, a histórica cidade enfrenta, aos seus 461 anos, todos os problemas de uma metrópole superpovoada, inchada, sem infraestrutura suficiente para todos os seus filhos e agregados, sem planejamento e pobre de recursos. Com muitos a padecer, por falta do que fazer, por não saber onde morar, por carência do que comer.
Era uma sexta-feira de dia claro, aquele 29 de março de 1549, quando despontou no azul infindo de céu e mar, na entrada norte da Baía de Todos-os-Santos, a armada portuguesa de três naus, duas caravelas e um bergantim com mais de mil pessoas a bordo, sob o comando do fidalgo Thomé de Souza, a serviço do rei D.João III.
Chegavam com uma missão estabelecida, a cumprir: a fundação de uma cidade, porto e fortaleza, planejada para ser (e seria) a primeira capital do Brasil-Colônia, sede do governo, base de toda a administração e do povoamento das terras portuguesas d’além mar recém descobertas nessa costa atlântica da América do Sul.
Tinham embarcado em Lisboa, com a bênção real, em 1º de fevereiro e vinham determinados, sabiam muito bem onde aportar e o que queriam. Entre a tripulação, alguns nobres, seis jesuítas, navegadores, mais de uma centena de artífices – entre pedreiros, carpinteiros, calafates, oleiros, ferreiros, serralheiros, barbeiros, até cirurgiões… –, trabalhadores braçais e degredados, homens fortes jovens e destemidos aventureiros.
Entre eles, destacava-se uma figura especial, pela missão que lhe fora confiada: o mestre de obras Luis Dias, que trazia consigo um esboço traçado em Portugal do que seria “a cidade do Salvador da Baía de Todos os Santos, que foi a Lisboa da América e competiu, como empório, com Goa e Malaca, erguida por ordem régia, pormenorizada e clara” (cito o autor português Luis Silveira, na obra ‘Ensaio de Iconografia das Cidades Portuguesas do Ultramar’).
A Chegada
Thomé de Souza, o primeiro governador-geral do Brasil, trazia com ele também, naquele longínquo 29 de março, um roteiro detalhado, por escrito e datado de 17 de dezembro de 1548, do que fazer quando aqui chegasse. Todas as instruções de D. João III em forma de um Regimento.
Como estava previsto, Thomé de Souza desembarcou na enseada de águas mansas do Porto da Barra, onde foi recebido de forma cortês e pacífica por um grupo de algumas dezenas de moradores da Povoação do Pereira (ou Vila Velha) – um aldeamento que se estendia pela costa até o alto da Graça criado por Caramuru (Diogo Álvares Correia), seus amigos tupinambás, e pelo inábil capitão donatário Pereira Coutinho (da capitania hereditária da Bahia) que, à chegada da armada, já havia sido enxotado de lá pelos nativos.
À frente do grupo receptivo estava o experimentado capitão-cavaleiro da Casa Real, Gramatão Teles, que já fora enviado antes por D. João III no intuito de preparar o ambiente para a chegada da armada real, ao lado de Caramuru – um portuga que aqui naufragou, bem jovem, por volta de 1510, deu na praia, caiu nas graças dos nativos, casou-se com uma filha do chefe tubinambá, estabeleceu-se e tornou-se um pioneiro no comércio ultramarino do Pau Brasil, dando início também ao processo de miscigenação dos baianos/brasileiros.
O Local
Mas ali, naquele porto tão próximo da entrada norte da baía, não seria o local ideal para a construção da nova cidade – que haveria de ser um porto e fortaleza. Era preciso achar um local mais apropriado, mais protegido, mais estratégico, mais para o interior da baía.
O achado do local exato, hoje a rampa do antigo Mercado Modelo, aquelas águas diante de Igreja da Conceição da Praia, deu-se alguns dias depois do 29 de março de 1549.
Essa data que hoje se comemora, de fato, é a data da chegada de Thomé de Souza com sua armada e não a data da fundação do novo sítio, pois demorou meses até que se erguessem casas e fizessem os arruamentos pioneiros.
A nova urbe seria, assim, construída bem no alto, no cume do morro, cimo de uma escarpa de mais de 60 metros acima do nível das águas, num local de onde se descortinava o horizonte do mar. O sítio escolhido foi cercado de uma forte paliçada de madeira, para evitar o ataque dos índios, e tudo foi erguido a mão em pedra, barro, cal e madeira, sob a diretriz do ‘arquiteto e engenheiro’ Luis Dias, tal e qual fora traçado em Lisboa.
Poderíamos dizer que o traçado original cercado tinha como limites: a Barroquinha, o rio das Tripas que hoje passa por baixo da Baixa dos Sapateiros, o Taboão e a escarpa, com o marzão batendo nas pedras, lá embaixo, onde hoje é o Comércio (o aterro foi feito bem depois).
As Águas E essa é a história verdadeira desta cidade-mãe que tem como referência o mar, as águas, o azul do céu, a luminosidade do infinito. Vocação de mar.
Aqui nessa bacia kirimurê (o nome como os nativos tupinambás chamavam o caldeirão de águas da Baía de Todos-os-Santos) de águas limpas, tépidas e plácidas, doces e salgadas, misturadas, deu-se a grande mescla humana de caboclos nativos, negros africanos, brancos europeus… e depois asiáticos, árabes, judeus… todos que aqui aportaram e bem contribuíram com suas crenças, costumes e fazeres para essa nossa baianidade ou baianice, como queiram.
Porque a Bahia é fruto de mistura. Com muito tempero africano, porque tudo que aqui se fez tem o suor dos negros – construções, comida, hábitos, religião, alegrias, manhas…
A Cidade da Bahia tornou-se uma acolhedora mãe-preta (ou mulata) de colo farto e braços sempre abertos para o mundo. Uma cidade das águas, sempre porto e sempre fortaleza.
Como cantam Gerônimo e Vevé Calazans: ‘Nesta cidade todo mundo é d’Oxum’. Oxum, a divindade das águas doces, das nascentes, da fecundidade. Os aqui nascidos trazem em si a força, a luz, o axé das águas. Disso sejamos cientes. E cuidemos.
O Porto
Durante séculos, Salvador foi o maior entreposto comercial do Atlântico Sul, parada obrigatória dos navegadores que faziam o Caminho das Índias, ida e volta, pelo entorno sul da África. A vida girava em torno do porto. Caravelas, naus de todas as bandeiras, saveiros, mercadorias das índias, novidades da Europa, especiarias, açúcar, fumo, frutas, pescados, a fartura do Recôncavo… E as notícias, as futricas, o sobe e desce dos carregadores, o suor e a sabedoria dos negros. A vida ocorria em função do porto, das águas e dos ventos do mar.
Assim foi se escrevendo a nossa história.
Salvador foi também o ponto mais concorrido da costa brasileira em função do tráfico de escravos africanos – ativo de 1551 à segunda metade dos anos 1800, três séculos desse comércio infame. No início do século XIX a população escrava e afrodescendente era absoluta maioria na cidade. Os negros formigavam pelas ladeiras. Daí ter sido chamada por muitos historiadores europeus de ‘a Roma Negra’ .
A escravidão foi uma ignomínia e deixou nódoas, ainda hoje indeléveis, bem visíveis. Mas, quem sabe, veio da Mãe África também a nossa graça, a nossa diferença, pois a negritude fez de nós uma gente muito especial. Malditas, benditas heranças.
Sim sinhô, e que os orixás, inquices e voduns, divindades ancestrais, todos os encantados das matas e santos do céu nos guardem e protejam… E conservem sã essa Mãe tão amada e tão prenhe de pecados. Preservem suas coisas boas, quantas! Que ela seja sempre um abrigo de encontro das diversidades, todas. Seja essa a nossa singularidade, tão plural.
Espaço de respeitosa convivência humana, de fortes e igrejas barrocas, sobrados e casebres, terreiros e regaços, palácios e shoppings, modernidades e tradições, tantas traduções, quantos ritmos, cores, cheiros, crenças, sentimentos…
Que as diferenças e dessemelhanças aqui se achem em harmonia, sempre.
O Espaço
A Salvador de hoje é uma metrópole. Mais de 3 milhões de habitantes. Uma cidade moderna e desigual. Opulenta para uns e injusta para muitos. A mancha urbana espalhou-se sobre toda a grande península, com duas faces: uma voltada para o mar aberto, atlântica; outra para as águas interiores da baía, maré mansa, áreas de mangue, cênica.
A velha cidade perdeu, sim, alguns encantos, mas preserva íntimos mistérios. Anda à volta com novos costumes, tormentos.
Sem mais espaço disponível ao tranquilo bem viver, sem ter mais para onde crescer, a histórica cidade enfrenta, aos seus 461 anos, todos os problemas de uma metrópole superpovoada, inchada, sem infraestrutura suficiente para todos os seus filhos e agregados, sem planejamento e pobre de recursos. Com muitos a padecer, por falta do que fazer, por não saber onde morar, por carência do que comer.
* Jornalista e escritor
Artigo originalmente publicado no blog jeito baiano
Prezado Senhor,
ResponderExcluirE com um imenso OBRIGADO! Graças as suas pesquisas, pude achar o elo perdio da minha arvore genealogica luso-bahiana!
À frente do grupo receptivo estava o experimentado capitão-cavaleiro da Casa Real, Gramatão Teles, que já fora enviado antes por D. João III no intuito de preparar o ambiente para a chegada da armada real, ao lado de Caramuru – Affonso RIBEIRO - um português (originario d'Entre Douro e Minho) mancebo e criado de Dom João Telles que aqui naufragou(deixado na terra como castigo - pena capital- juntamente à um outro rapaz criminoso segundo o capitao do navio ), bem jovem, por volta de 1500 (livro HISTORIA DO BRAZIL - traduzido do Inglêz Roberto Southey pelo Dr. Luiz Joaquim de Oliveira e Castro -Livraria de B.L. Garnier - 1862 - Rio de Janeiro);
essa colecçao é completa!
Sou esposa do bisneto do Sr. Abilio CORREA DO CARMO (casado com Dna. Mercedes de Oliveira)- nascido na Bahia e continuo o estudo de nossas familias.
Monique SCHMID CORREA DO CARMO