Andreia Santana*
Nesta segunda, 29 de março, Salvador completará 461 anos de fundação. A cidade, atual terceira maior capital do país, foi planejada com a perfeição de engenharia naval a qual os portugueses estavam habituados desde o século XV, quando dominaram os mares, senhores absolutos do tráfico de escravos e do comércio de especiarias entre oriente e ocidente.
O processo de colonização no Brasil foi lento e desordenado. Diversos modelos foram testados, um deles, o das capitanias hereditárias, perduraria por séculos -, a última capitania foi extinta apenas em 1763. No entanto, foi preciso organizar um Governo Geral para zelar pelas capitanias, o que ocorreu em 1549, justamente com a fundação de Salvador. A cidade foi planejada para ser o centro do poder da colônia, o braço administrativo do império português neste lado do Atlântico. Sua função principal, como sede, era fortalecer e organizar as capitanias, até então desunidas e desorganizadas, com raras exceções.
I – Das feitorias às capitanias hereditárias:
Do desembarque de Pedro Alvarez Cabral em Porto Seguro, em 22 de abril de 1500, até o início do processo de colonização no Brasil, foram gastos mais de 30 anos em que a coroa portuguesa não sabia o que fazer com a imensidão de terras ocupadas. Não sabia e também não queria fazer nada, porque dava trabalho e custava dinheiro. O Brasil, nos seus 30 primeiros anos de colonização, servia como entreposto para extração de pau-brasil, a madeira usada para tingir tecidos, que valia muito na Europa. Em Porto Seguro, nesse período, havia um ou dois engenhos de açúcar muito primitivos. Serviam como teste da coroa portuguesa, que já havia instituido a indústria açucareira em Cabo Verde, nas Antilhas e nos Açores. Era uma garantia de futuro, descobrir se a nova colônia realmente fazia jus à descrição do escrivão Pero Vaz de Caminha: “nessa terra, em se plantando, tudo dá”. O litoral imenso do Brasil era terra de ninguém. Piratas e corsários infestavam. Extraiam pau-brasil sem autorização de Portugal. Praticavam escambo com os índios. A coroa não queria gastar para mandar povoar o Brasil, não queria gastar para mandar guardar a costa brasileira. Nas colônias espanholas (no restante do que hoje conhecemos como América Central e América do Sul), jorrava ouro e prata do solo. Enquanto no Brasil, nem uma pepita para amenizar o “prejuízo” português. O Brasil era um abacaxi de dimensões continentais para a coroa descascar. Não tinha pedras preciosas ou metais visíveis, estava infestado de piratas e de índios, que eram os ocupantes legítimos da terra. Privatizar a colonização era a solução para impedir que o vasto território fosse invadido por holandeses, franceses, espanhois. E se, realmente houvesse outras riquezas aqui além do pau-brasil? Valia a pena manter a posse da terra, disso a coroa não duvidava, o problema era quem pagaria a conta.
Donatários em ação - Na teoria era bem simples. O rei dividiria o território brasileiro em 15 grandes lotes, doados para 12 fidalgos da coroa. Alguns receberam mais de um lote. Esses nobres, por sua vez, seriam responsáveis por colonizar o Brasil, cada um faria as benfeitorias no seu pedaço de território. Os donos da terra teriam direito de fundar vilas, conceder sesmarias (que eram como grandes fazendas), cobrar impostos, distribuir justiça, legar sua terra aos filhos, netos e bisnetos…Seriam obrigados a pagar uma taxa dos impostos ao rei e não poderiam explorar os produtos que fossem monopólio da coroa. Cada donatário traria seus próprios colonos, gastaria do próprio bolso, investiria no projeto do rei e garantiria para ele a posse do Brasil, dando lucro, ainda por cima. Mas, não foi bem assim que a coisa aconteceu. Da teoria para a prática, houve uma sucessão de poréns que transformou o processo todo numa grande bagunça. Territórios imensos, que deveriam ser povoados e gerar receita, transformaram-se em gigantescos latifúndios. Os donos nem tomavam conhecimento.
Francisco Pereira Coutinho escapou de um naufrágio............................
....................para ser morto pelos tupinambás
Para começo de conversa, alguns donatários não se interessavam em deixar o conforto da corte e se lançar numa aventura marítima. A travessia de Portugal para o Brasil naquela época era um suplício: dois meses no mar, sem água e comida frescas, sem banho, com as gengivas sangrando de escorbuto, piolhos e pulgas fazendo morada nos corpos e cabelos. Depois, uma vez no Brasil, tomar posse da capitania significava pacificar ou exterminar os índios, que não sairiam de sua terra assim tão facilmente. Erguer uma vila não era tão simples, arrumar moradores para ela, instituir uma rotina de povoamento eram processos lentos. Alguns nobres simplesmente acreditavam que o Brasil era um tremendo presente de grego e não apareceram por aqui. Justiça seja feita, houve donatários que até tentaram, mas navegaram numa maré de azar de dar pena. Quatro capitães perderam suas fortunas investindo na colonização brasileira. Aires da Cunha, dono do Maranhão, além de ficar na miséria, morreu em um naufrágio; Francisco Pereira Coutinho (o dono da capitania da Baía de Todos os Santos) foi morto pelos tupinambás da ilha de Itaparica, depois de sobreviver a um naufrágio; Pero de Campo Tourinho (Porto Seguro) foi preso pela Inquisição, acusado de heresia. E Vasco Fernandes Coutinho (do Espirito Santo) virou alcoolatra, gastou o dinheiro todo e voltou para Portugal reduzido a mendicância.
As capitanias que deram certo foram as de São Vicente e Pernambuco, dos donatários Martin Afonso de Souza e Duarte Coelho. Deram certo, lógico, sob a ótica do colonizador, porque para os índios o negócio resultou em morte e escravidão. Quando Thomé de Souza chegou ao Brasil, com a missão expressa de fundar uma capital para o governo geral e botar ordem nas capitanias, essas duas eram as únicas que se mantinham sólidas, prosperando e rendendo dividendos. O resto todo do território, continuava a ser terra de ninguém. Coube a um senhor de 48 anos, de obediência cega a El Rei D. João III, mas de vontade de ferro no comando da colônia, instituir o que hoje conhecemos por Brasil.
A última capitania foi extinta no século XVIII, mas a origem da unidade territorial brasileira está nessa forma primitiva de administração. Como escreve o professor Luiz Henrique Dias Tavares, na sua História da Bahia, “as capitanias deram início à ocupação efetiva da terra, enquanto o governo geral instituiu oficialmente o poder de Portugal na colônia”. As estruturas de poder vigentes hoje no país, também têm origens naquela época. A divisão do Brasil em estados e municípios, que têm nomes herdados das suas capitanias de origem, é um exemplo dessa herança de quase 500 anos.
* Jornalista e editora do blog " Conversa de Menina" http://conversademenina.wordpress.com/
Nesta segunda, 29 de março, Salvador completará 461 anos de fundação. A cidade, atual terceira maior capital do país, foi planejada com a perfeição de engenharia naval a qual os portugueses estavam habituados desde o século XV, quando dominaram os mares, senhores absolutos do tráfico de escravos e do comércio de especiarias entre oriente e ocidente.
O processo de colonização no Brasil foi lento e desordenado. Diversos modelos foram testados, um deles, o das capitanias hereditárias, perduraria por séculos -, a última capitania foi extinta apenas em 1763. No entanto, foi preciso organizar um Governo Geral para zelar pelas capitanias, o que ocorreu em 1549, justamente com a fundação de Salvador. A cidade foi planejada para ser o centro do poder da colônia, o braço administrativo do império português neste lado do Atlântico. Sua função principal, como sede, era fortalecer e organizar as capitanias, até então desunidas e desorganizadas, com raras exceções.
I – Das feitorias às capitanias hereditárias:
Do desembarque de Pedro Alvarez Cabral em Porto Seguro, em 22 de abril de 1500, até o início do processo de colonização no Brasil, foram gastos mais de 30 anos em que a coroa portuguesa não sabia o que fazer com a imensidão de terras ocupadas. Não sabia e também não queria fazer nada, porque dava trabalho e custava dinheiro. O Brasil, nos seus 30 primeiros anos de colonização, servia como entreposto para extração de pau-brasil, a madeira usada para tingir tecidos, que valia muito na Europa. Em Porto Seguro, nesse período, havia um ou dois engenhos de açúcar muito primitivos. Serviam como teste da coroa portuguesa, que já havia instituido a indústria açucareira em Cabo Verde, nas Antilhas e nos Açores. Era uma garantia de futuro, descobrir se a nova colônia realmente fazia jus à descrição do escrivão Pero Vaz de Caminha: “nessa terra, em se plantando, tudo dá”. O litoral imenso do Brasil era terra de ninguém. Piratas e corsários infestavam. Extraiam pau-brasil sem autorização de Portugal. Praticavam escambo com os índios. A coroa não queria gastar para mandar povoar o Brasil, não queria gastar para mandar guardar a costa brasileira. Nas colônias espanholas (no restante do que hoje conhecemos como América Central e América do Sul), jorrava ouro e prata do solo. Enquanto no Brasil, nem uma pepita para amenizar o “prejuízo” português. O Brasil era um abacaxi de dimensões continentais para a coroa descascar. Não tinha pedras preciosas ou metais visíveis, estava infestado de piratas e de índios, que eram os ocupantes legítimos da terra. Privatizar a colonização era a solução para impedir que o vasto território fosse invadido por holandeses, franceses, espanhois. E se, realmente houvesse outras riquezas aqui além do pau-brasil? Valia a pena manter a posse da terra, disso a coroa não duvidava, o problema era quem pagaria a conta.
Donatários em ação - Na teoria era bem simples. O rei dividiria o território brasileiro em 15 grandes lotes, doados para 12 fidalgos da coroa. Alguns receberam mais de um lote. Esses nobres, por sua vez, seriam responsáveis por colonizar o Brasil, cada um faria as benfeitorias no seu pedaço de território. Os donos da terra teriam direito de fundar vilas, conceder sesmarias (que eram como grandes fazendas), cobrar impostos, distribuir justiça, legar sua terra aos filhos, netos e bisnetos…Seriam obrigados a pagar uma taxa dos impostos ao rei e não poderiam explorar os produtos que fossem monopólio da coroa. Cada donatário traria seus próprios colonos, gastaria do próprio bolso, investiria no projeto do rei e garantiria para ele a posse do Brasil, dando lucro, ainda por cima. Mas, não foi bem assim que a coisa aconteceu. Da teoria para a prática, houve uma sucessão de poréns que transformou o processo todo numa grande bagunça. Territórios imensos, que deveriam ser povoados e gerar receita, transformaram-se em gigantescos latifúndios. Os donos nem tomavam conhecimento.
Francisco Pereira Coutinho escapou de um naufrágio............................
....................para ser morto pelos tupinambás
Para começo de conversa, alguns donatários não se interessavam em deixar o conforto da corte e se lançar numa aventura marítima. A travessia de Portugal para o Brasil naquela época era um suplício: dois meses no mar, sem água e comida frescas, sem banho, com as gengivas sangrando de escorbuto, piolhos e pulgas fazendo morada nos corpos e cabelos. Depois, uma vez no Brasil, tomar posse da capitania significava pacificar ou exterminar os índios, que não sairiam de sua terra assim tão facilmente. Erguer uma vila não era tão simples, arrumar moradores para ela, instituir uma rotina de povoamento eram processos lentos. Alguns nobres simplesmente acreditavam que o Brasil era um tremendo presente de grego e não apareceram por aqui. Justiça seja feita, houve donatários que até tentaram, mas navegaram numa maré de azar de dar pena. Quatro capitães perderam suas fortunas investindo na colonização brasileira. Aires da Cunha, dono do Maranhão, além de ficar na miséria, morreu em um naufrágio; Francisco Pereira Coutinho (o dono da capitania da Baía de Todos os Santos) foi morto pelos tupinambás da ilha de Itaparica, depois de sobreviver a um naufrágio; Pero de Campo Tourinho (Porto Seguro) foi preso pela Inquisição, acusado de heresia. E Vasco Fernandes Coutinho (do Espirito Santo) virou alcoolatra, gastou o dinheiro todo e voltou para Portugal reduzido a mendicância.
As capitanias que deram certo foram as de São Vicente e Pernambuco, dos donatários Martin Afonso de Souza e Duarte Coelho. Deram certo, lógico, sob a ótica do colonizador, porque para os índios o negócio resultou em morte e escravidão. Quando Thomé de Souza chegou ao Brasil, com a missão expressa de fundar uma capital para o governo geral e botar ordem nas capitanias, essas duas eram as únicas que se mantinham sólidas, prosperando e rendendo dividendos. O resto todo do território, continuava a ser terra de ninguém. Coube a um senhor de 48 anos, de obediência cega a El Rei D. João III, mas de vontade de ferro no comando da colônia, instituir o que hoje conhecemos por Brasil.
A última capitania foi extinta no século XVIII, mas a origem da unidade territorial brasileira está nessa forma primitiva de administração. Como escreve o professor Luiz Henrique Dias Tavares, na sua História da Bahia, “as capitanias deram início à ocupação efetiva da terra, enquanto o governo geral instituiu oficialmente o poder de Portugal na colônia”. As estruturas de poder vigentes hoje no país, também têm origens naquela época. A divisão do Brasil em estados e municípios, que têm nomes herdados das suas capitanias de origem, é um exemplo dessa herança de quase 500 anos.
* Jornalista e editora do blog " Conversa de Menina" http://conversademenina.wordpress.com/
Fontes de pesquisa para este post:
“Donos da Terra”, reportagem publicada na edição de domingo, 06 de abril de 2003, do caderno Correio Repórter (jornal Correio da Bahia);
História da Bahia; do jornalista e historiador Luis Henrique Dias Tavares
Regimento do Governador e Capitão-General Thomé de Souza; coleção Documentos de Salvador, Fundação Gregório de Mattos, 1998
Os donos do poder – Governo Geral no Brasil de 1549 até 1808; Raimundo Faoro, Rio de Janeiro
“Donos da Terra”, reportagem publicada na edição de domingo, 06 de abril de 2003, do caderno Correio Repórter (jornal Correio da Bahia);
História da Bahia; do jornalista e historiador Luis Henrique Dias Tavares
Regimento do Governador e Capitão-General Thomé de Souza; coleção Documentos de Salvador, Fundação Gregório de Mattos, 1998
Os donos do poder – Governo Geral no Brasil de 1549 até 1808; Raimundo Faoro, Rio de Janeiro
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