sábado, 9 de maio de 2009

Salvador, a cidade das chuvas

Antônio Risério
Vamos direto ao assunto. Chega desse papo furado de que a Cidade da Bahia é sinônimo de sol. O que mais temos aqui são chuvas. Logo qualquer prefeito medianamente inteligente tem de ser obrigado a pensar no seguinte. Esta não é uma cidade que precisa se fantasiar para o sol. Mas sim, se preparar para as chuvas.
Salvador é uma cidade com uma espantosa capacidade de produzir discursos ilusórios sobre si mesma. Discursos míticos e mistificadores. Nestas direções agem conjuntamente (embora não necessariamente de forma coordenada ou pelas vias da cooptação) o aparelho estatal, os intelectuais e muitos artistas. Assim foram criados muitos mitos baianos. E que conseguiram se nacionalizar pelo simples e eficaz fato de que conseguiram fazer com que os próprios baianos acreditassem nesses mitos.
A Bahia emitiu para o Brasil a mensagem de que aqui vive um povo ensolarado, preguiçoso, impontual, relaxado, sensual e feliz. Este foi um discurso elaborado simultaneamente, por políticos, gestores públicos, empresários, escritores e músicos populares. Mas resiste o mito à menor análise dos fatos? Claro que não.
Caymmi virou o símbolo nacional do charme, do dengo e da preguiça da Bahia. Mas quem disse que baiano é impontual e preguiçoso? Se de fato fosse, o Pólo Petroquímico de Camaçari simplesmente não funcionaria. Baiano trabalha – e muito. Caymmi nunca foi a regra. Mas, sempre a exceção. Os baianos que acreditaram nessa história estão a ver navios. Gostamos também de acreditar que fazemos sexo como ninguém. É outro mito. Fazemos sexo como o fazem muitos outros povos. Se baianos fosse assim tão gostosos, muitas das mulheres aqui nascidas não estariam vivendo hoje em outros países – da Europa ao Canadá – e alegres e felizes da vida com os maridos que escolheram ter.
Os mitos da preguiça e da sensualidade, todavia, não são diretamente prejudiciais à nossa vida cotidiana na cidade. Já o mito do sol sim. A gente se comporta como com se em Salvador, o sol reinasse o ano inteiro. E não é o que acontece. O sol, aqui, é um ilustre passageiro visitante. Um visitante que nunca se dignou a se demorar no céu da cidade.
Mas gostamos de pensar o contrário. Achamos que vivemos sob o signo do sol. É uma tremenda mentira. Salvador é uma das cidades com os mais altos índices pluviométricos do País. Chove aqui o ano inteiro. O sol, entre nós, tem um breve reinado. Vai, no máximo, de novembro a fevereiro. Ainda assim, em meio às chamadas chuvas de verão. Durante o resto do ano, é chuva e chuva e mais chuva.
Esta é uma cidade de céu predominantemente cinzento. De ruas e becos alagados. De enxurradas descendo dos morros. De riachos transbordando. De casas se movendo perigosamente nas encostas. De águas arrastando barrancos e barracos. De dezenas e dezenas de deslizamentos de terra. De crianças encharcadas, tossindo, chorando, pela noite fechada, cheia de lama.
E, no entanto, continuamos a acreditar que Salvador é a cidade do sol. É impressionante a facilidade com que mentimos para nós mesmos. Foi por isso mesmo que fiz a minha novela A Banda do Companheiro Mágico se passar sob um aguaceiro. Onde entre outras coisas, escrevi:
“Chove no Brasil, Atlântico Central. Chove mais ainda no recôncavo baiano. Chove ainda mais na capital baiana. Chove sem cessar na falha geológica de Salvador. Chove, chove, chove. Cidade de chuvas densas. Cidade das águas bruscas.”
Todo ano, entretanto, as pessoas me dizem: “Está chovendo demais”. Não, não está chovendo demais, está chovendo como sempre. Como sempre chove todo ano. O problema é outro. É que todo mundo embarcou na canoa furada ideológica da cidade ensolarada. Mas onde é mesmo que fica esta Salvador, cidade do sol? Aos mais de 50 anos de idade, tendo nascido aqui, ainda não tive o prazer de conhecê-la. Cidade do sol, meus amigos, é Fortaleza. Salvador, não. Nunca.
É estranho que os moradores locais, abrindo guarda-chuvas e metendo o pé na lama, não vejam isso. Mas muito mais estranho ainda é que administradores públicos caiam também, e com gosto, neste conto do vigário do sol. Eles deveriam ter um mínimo de sensatez e realismo. E, em vez de executar frescuras de veraneio, fazer coisas mais sérias para as chuvas.

Artigo publicado originalmente no jornal A Tarde

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